sábado, 27 de agosto de 2022


27 DE AGOSTO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

A conversa na sala

Todo casamento passa por altos e baixos, e quando termina é uma pequena morte. Apostou-se que aquele amor seria o definitivo, ou que, ao menos, a amizade erótica resistiria firme às provocações inevitáveis do destino, mas algo se quebrou e não há mais o que fazer a não ser tentar ser feliz de outro jeito. Fica a tristeza e a frustração, mas o pior momento acontece antes de a porta fechar com alguém do lado de fora: é quando os filhos precisam ser avisados.

Uma separação sem filhos dói também, mas não igual. A dor é singular, uma implosão.

Havendo filhos, é um castelo de vários quartos que desmorona, não apenas uma torre. Se a separação for litigiosa, precedida por gritos e agressões, o desfecho será um alívio, mas a um custo dilacerante. Se, ao contrário, for uma separação consensual, ficha limpa, sem fissuras visíveis, será menos dolorida, mas nunca descomplicada. Afinal, há inocentes envolvidos - de todas as idades.

Quando meus pais se separaram, eu era uma mulher de 20 anos, já trabalhava, mas diante da ruptura, mesmo que amigável, voltei à infância primária. Caminhei uma tarde inteira sem ter para onde ir, não queria chegar a lugar nenhum. Em trânsito, eu me preparava para a nova história que iria começar, como se eu fosse nascer outra vez. E assim foi, nasci, e voltei a nascer outras tantas vezes nesta vida repleta de mortes pontuais.

Imagino a garotada de oito, 10, 11 anos. Apegam-se à fantasia da continuidade, ao conto de fadas universal, à segurança garantida por dois adultos no comando de um projeto de felicidade, até que descobrem que mãe e pai se desiludem, falham, mudam. O "pra sempre" é apenas uma farsa bem-intencionada: o mundo externo atrai nossos super-heróis com desejos subversivos. Ambos fizeram juras no altar, mas não passam de reles humanos, que decepção.

"Queridos, desliguem o computador, deixem os celulares de lado, vamos conversar ali na sala". Tensão. Os pequenos olham para nós, incrédulos, enquanto usamos as palavras mais ternas, prometendo estar sempre a postos e que ter duas casas vai ser divertido, que o amor não sofrerá nenhum abalo. De fato, mas cada um organiza sua desconstrução em silêncio. 

Hoje a cena parece banal, mas os pais que um dia tiveram esta conversa sabem que é uma tortura: tão dedicados a proteger os filhos do sofrimento, são obrigados a provocá-lo. Atenuante, só vejo um. Que o "pra sempre" deixe de ser uma promessa. Que a eternidade da relação passe a ser vista por todos como uma benção, não mais como regra. Sem prejuízo ao amor, que ao assumir-se finito, trocará o romantismo por uma edificação mais sólida - e bonita como só a verdade consegue ser.

MARTHA MEDEIROS

27 DE AGOSTO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Era inevitável, e os números anunciavam o processo havia décadas. O censo indicava, a cada novo levantamento, o encolhimento da parcela de católicos. Sim, a religião oficial da Colônia e do Império não cessava de perder a fatia demográfica dominante. O Brasil era, ano a ano, mais evangélico.

O período de 2025 a 2035 foi decisivo. Pesquisas independentes revelaram que os católicos já estavam abaixo de 40%. O eleitorado evangélico cerrou seus votos nos candidatos exclusivos das igrejas reformadas. A virada no Congresso foi perto de 2032: 70 senadores declaravam-se ligados a alguma grande denominação pentecostal ou neopentecostal. Dois eram luteranos e um, presbiteriano. Havia um ateu declarado. Poucos ainda se diziam católicos.

O avanço numérico e político resultou em novas leis. O feriado de 12 de outubro foi mantido como o Dia da Criança Brasileira, mas não mais como a festa de Nossa Senhora Aparecida. Começou um movimento de reorientação geográfica. O Cabo de Santo Agostinho (PE) foi rebatizado como Cabo Só Jesus Salva. A cidade de Santa Maria (RS) tornou-se, em 2033, a Cidade do Evangelho. A batalha dos nomes foi mais forte em São Paulo. Por um tempo, dividiu-se o público entre os que chamavam de São Paulo e aqueles que diziam morar na cidade do Apóstolo Paulo. Por fim, a Câmara dos Vereadores aprovou a mudança em 2054, a tempo de comemorar o quinto centenário da metrópole.

O pastor Samuel de Oliveira e Silva foi eleito presidente pela aliança O Brasil É de Jesus. Sua vice era a bispa Francisca de Almeida. As verbas publicitárias corriam para a rede Record; escasseavam na Globo e na Bandeirantes. As novelas bíblicas estavam cada vez mais elaboradas. Surgiu até um Big Brother da família cristã. O paredão era para quem tivesse praguejado ou se esquecido de orar.

As lojas elegantes de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou da Oscar Freire, em São Paulo, passaram a vender a onda fashion evangélica. Aumentou a produção de ternos para homens. As roupas de praia passaram a utilizar mais tecido. Havia uma nova estética em ascensão.

O feriado católico de Corpus Christi virou o Dia Nacional da Marcha com Jesus. As ruas de todo o país foram tomadas de entusiasmados manifestantes. Em todos os campos, a vitória evangélica era visível. Alguns aderiram por convicção pessoal. Outros, especialmente políticos e empresários, entenderam que votos e verbas eram mais fáceis com participação em cultos. Como na vitória do Cristianismo, no Império Romano, a nova crença crescia nos corações, nos cérebros e nos bolsos.

A bispa que era vice do presidente Samuel foi eleita após os dois mandatos do pastor. Surgiu uma constituinte, e o Brasil foi declarado oficialmente cristão. Quebrava-se o verniz da laicidade do Estado que a República tinha tentado. Os novos feriados nacionais eram religiosos: o Dia da Bíblia, o da Família Cristã e a Festa do Dízimo. Aboliu-se o Carnaval, substituído por uma animada micareta de salmos. O Galo da Madrugada, no Recife, anunciava que Pernambuco também era de Jesus. Foi instaurado o concurso nacional de versículos. Ganhava o aluno do Ensino Fundamental que mais soubesse passagens de cor - da versão João Ferreira de Almeida, claro!

A mudança universitária foi rápida. Sendo porta de acesso à função de pastor, o curso de Teologia tornou-se o mais procurado Em 2040, havia mais candidatos por vaga na USP, para o Instituto Teológico da Universidade de São Paulo, criado cinco anos antes, do que para Medicina ou Engenharia Mecatrônica.

Grandes igrejas católicas iam sendo adaptadas para o culto evangélico. Foi comemorado o dia em que a Catedral da Sé, de São Paulo, virou um novo Templo de Salomão. A basílica de Aparecida removeu as obras do artista Cláudio Pastor e transformou-se na Igreja da Família Evangélica.

O mundo artístico tinha mudado. Anitta tornou-se militante da Assembleia de Deus; seus shows com vestido preto comprido cantando louvores eram emocionantes. Pablo Vittar era, agora, Apóstolo Rodrigues da Silva. Seus depoimentos de como tinha encontrado Jesus a caminho de Campinas (SP) bombavam nas redes. Ele havia sido derrubado da garupa de uma moto e ficado cego com uma luz intensa. Batizado, recuperou a visão. O TikTok era de louvores, apenas.

O turismo passou a conviver com novos roteiros como "a caminhada de Abraão", que ia de Parati a Tiradentes _ a pé. No caminho, encenações do sacrifício de Isaac e do encontro com Melquisedeque. As pousadas bíblicas, todas familiares, exigiam o certificado de casamento para hospedar um homem e uma mulher no mesmo quarto.

Não seria completo este relato histórico se eu não falasse do que ocorreu comigo. Após uma vida de ateísmo, aceitei ser batizado na Igreja Deus É Amor. A cena foi televisionada e alcançou muito ibope. Emergi das águas transformado e passando a rodar o Brasil, narrando a mudança. Agora, aos 75 anos, percorro a nova Terra de Santa Cruz, sempre dando o testemunho como um João que viu um novo Céu e uma Nova Terra.

Minha piedosa leitora e meu piedoso leitor: minha breve ficção produziu esperança ou medo em você? É utopia profética ou distopia? Sonho ou pesadelo? Bem, tente viver mais alguns anos e seja feliz. Amém!

LEANDRO KARNAL

1 BILHÃO DEADEPTOS ATÉ 2035

A regra é levar pouca coisa junto. Roupas, produtos de higiene e utensílios de cozinha, já que gostam de deixar a casa alugada por aplicativo com a sua cara. Não podem esquecer dos notebooks, fundamentais para trabalharem de qualquer lugar. Colocam tudo dentro do carro e partem para o próximo destino, onde devem ficar um ou dois meses, não mais do que isso, até escolherem outra cidade para morar.

A vida sem residência fixa tornou-se possível quando Stephanie Pedron e Eduardo Zanotto, de Porto Alegre, ambos com 34 anos, passaram a trabalhar em casa durante a pandemia. Vivendo em São Paulo, para onde se mudaram em 2019, quando ele aceitou uma proposta de um banco digital, já estavam cansados de ficar isolados em um apartamento. Decidiram cair na estrada sem precisar entrar em férias ou largar o emprego. Tornaram-se nômades digitais.

A ideia surgiu no inverno de 2021, durante um período de descanso em Capitólio (MG), onde se revigoraram em cachoeiras e trilhas após um ano trancafiados pelo medo do coronavírus. Ao retornarem à capital paulista, não fazia mais sentido manter os gastos na cidade grande se os chefes sequer exigiam que comparecessem ao trabalho. Todas as tarefas já eram cumpridas a distância, na frente do computador.

- Voltamos para São Paulo e decidimos: vamos entregar o apartamento e morar em Airbnb. Então vendemos toda a nossa mobília. Não sobrou nada - conta Eduardo, que trabalha como gerente de tecnologia.

Escolheram viajar pelo Brasil. Alugaram um carro e foram a Santos, no litoral paulista, e depois a Paraty (RJ). Em uma breve visita para matar a saudade da família no Rio Grande do Sul, fizeram uma parada em Garopaba (SC), onde prolongaram a estadia para três meses, mais do que o planejado. Ali, foi difícil dar adeus às amizades que acabaram criando.

Só cruzaram as fronteiras do país quando tiveram de cumprir um compromisso profissional de Eduardo no México, o que exigiu organização com o fuso horário. Mesmo no Exterior, Stephanie seguiu trabalhando para um aplicativo de pagamentos brasileiro, onde atua como gerente de produto. Precisou se alinhar com o horário comercial da empresa e só quando encerrava o expediente podia sair do hotel e conhecer a cultura dos mexicanos, batendo perna pelos bairros e visitando museus.

A preferência deles, no entanto, são os lugares menos badalados. Quando concederam entrevista a ZH, haviam retornado a Minas Gerais, dessa vez para ficar em Mariana, município conhecido pela arquitetura barroca. Alojaram-se em uma casa de dois andares em meio a construções de estilo colonial, com direito a um pátio onde mantêm uma horta.

Toda vez que são bombardeados com perguntas sobre a vantagem de não terem um lugar para chamar de seu, respondem com argumentos que podem dar inveja em quem só consegue viajar durante as férias.

- Claro que em vários momentos é um desafio ficar sempre se planejando para estar em outro lugar. Mas a gente tenta manter uma rotina, cuidar do corpo. Eu, por exemplo, sempre quis aprender a surfar. Em Garopaba, comecei a fazer aulas de surfe. Também pensava: será que não vou sentir falta da minha cozinha, com as minhas coisas? A experiência de viver em casas diferentes nos ajuda a pensar como será a nossa casa, no futuro. Brinco que virei sommelier de Airbnb. Se a gente viesse de férias para Mariana, nunca iríamos viver essa cidade como estamos vivendo - diz Stephanie.

Ser nômade digital é diferente de ser um turista, que deixa os compromissos de lado enquanto viaja, ou mesmo de alguém que se desloca para uma cidade a trabalho. Como observa a turismóloga Ivane Fávero, mestre em Turismo, o nômade digital agrega tudo: as obrigações e a vontade de conhecer um novo destino.

- O conceito tradicional de turismo é o de lazer não remunerado. O nomadismo digital quebra isso. A pessoa consegue trabalhar, estudar e fazer turismo em qualquer parte - define.

Embora já fosse tendência antes de 2020, a pandemia foi o empurrão que faltava para popularizar esse estilo de vida. De acordo com o relatório Tendências de Imigração 2022, emitido pela Fragomen, especializada em imigração, cerca de 35 milhões de pessoas aderiram ao trabalho remoto durante a crise sanitária. A estimativa da empresa é de que, até 2035, existam em torno de 1 bilhão de nômades digitais pelo mundo.

Além disso, segundo a Fragomen, 29 países já têm programas para facilitar o ingresso dos nômades digitais, entre eles o Brasil. Não há pesquisas sobre o número exato de nômades digitais no país, mas desde janeiro o Ministério das Relações Exteriores emite um visto específico para estrangeiros que comprovem vínculo de trabalho em outro país. Até 10 de agosto, haviam sido concedidas 124 autorizações. Outras 84 foram solicitadas até julho por pessoas que já estavam por aqui, sendo que 37 foram deferidas.

De acordo com o governo federal, a elaboração desse visto especial segue uma tendência de "migrações por estilo de vida" e foi formulado levando em conta experiências de países como Portugal, Austrália, República Tcheca, Tailândia, México, Costa Rica, além de polos mundiais de nômades digitais, como Bali, a Ilha da Madeira e as cidades de Lisboa e Berlim.

Em março deste ano, o Brasil também regulamentou o trabalho remoto, inclusive para estagiários e aprendizes, permitindo que o empregado exerça suas funções em outro país.

- A partir da pandemia, aprendemos que dá para trabalhar em casa, enquanto as empresas entenderam que isso é até vantajoso, porque há economia de despesas e a produtividade dos funcionários não cai. Em alguns casos, até melhora. Com o desejo acumulado de viajar, as pessoas estão tirando o atraso - afirma Ivane.

Mas ser um nômade digital não é para todos. Professora da disciplina de Sistemas de Informação do MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Neiva Coelho Marostica lembra que algumas profissões jamais vão permitir essa prática:

- Há profissões que não podem aderir ao nomadismo digital, como um atendente de varejo, por exemplo, já que ter alguém ali, presencialmente, é uma parte importante para o relacionamento com o cliente. Por outro lado, profissões que envolvem um ambiente digital, como produtor de conteúdo, desenvolvedor de sistema, designer, essas conseguem.

Foram os ventos que levaram Sara Bagatini ao Ceará. Aos 33 anos, ela vive na praia de Cumbuco, a 30 quilômetros de Fortaleza. Divide a rotina entre a função de gerente de produto em uma rede de lojas de eletrodomésticos no Rio Grande do Sul e a prática do kitesurfe, que depende de uma boa lufada de ar para deslizar pela água.

Também foi na pandemia que Sara mudou de vida. Entregou o apartamento em Porto Alegre porque já não precisava mais aparecer na empresa, sediada em Cachoeirinha, na Região Metropolitana. Com amigas que também trabalham a distância, passou a dividir o aluguel de uma casa em Ibiraquera, no litoral catarinense, onde aprendeu kitesurfe. Juntas, decidiram ir para o Nordeste, onde as condições de vento são ideais para o esporte.

Tudo muito diferente do que Sara havia vivido até 2019. Acostumada a bater ponto diariamente na empresa, enfrentava uma hora de trânsito para ir, outra para voltar. Não fazia esportes. Com a vida de nômade, deixou o carro na garagem da casa dos pais, em Guaíba. A carga horária de trabalho é a mesma, mas pode cumpri-la usando chinelos nos pés. No intervalo, pega o equipamento de kitesurfe e cai no mar.

- Valorizo o meu bem-estar. A Sara de hoje prioriza mais a saúde. Física e mental - frisa.

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27 DE AGOSTO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

A VIAGEM DA MUSA CLIO

Visitou-nos por uns tempos, em Porto Alegre, a deusa Clio, filha de Memória (Mnemosyne) e de Zeus, a Musa que proclama, dá fama, celebra e transmite o que tem valor. É o saber realizado com beleza, e a beleza com saber, em ritos mágicos, com miríades de efeitos fecundos. Essa aparição se estendeu por 17 anos, em um templo que muitos chamavam oásis, um casarão marrom, antigo e atual, na Cidade Baixa, o StudioClio. É próprio desta e das outras oito Musas realizar-se como memória, e assim essa epifania de Clio ora converte-se em dom da mente, com afeto, no coração e na lembrança dos que a conheceram.

Musa não morre, apenas revela-se quando quer, e deixa seu rastro gracioso como parte da paisagem e da vida. Assim, deusa misteriosa, Clio pode manifestar-se a qualquer momento, para os que puderem reconhecê-la e logo alçar sua existência para novos mundos, luminosos. E quem poderá esquecer dessa visita potente e dadivosa, havida em altar apto aos melhores ritos da cultura?

O mito das Musas, entre os gregos, representou o valor sagrado do conhecimento e da civilização. Dentre as várias potências divinas, a estas toca infundir saberes elevados no tempo em que vivemos, salvando-nos da ignorância e da brutalidade. Bem sabemos que todas as divindades são palavras e imagens, invenções culturais com e sem a matéria dos quatro elementos; são ficções, mas podem ter funções tão reais quanto o pão, o vinho, o fogo e o amor. Mesmo ateus e agnósticos rendem-se ao poder do símbolo e podem entender o que são esses dons sagrados, sem as mentiras das religiões, com a energia necessária da arte. E vai muito bem considerar-se sagrado o conhecimento, sobretudo em eras e terras em que predomina seu oposto.

Foram centenas de concertos, exposições, almoços e banquetes culturais, cursos, expedições, ciclos de arte, ciência e educação e convívio, que deram pleno sentido à palavra cultura - cultivar-nos e promover encanto e desenvolvimento. Com os sentidos atiçados, corpos ávidos subiam a pequena rampa ou saíam do auditório para abraços emocionados, em uma comunidade unida pelo que há de mais puro e nobre. Aquele jardim histórico, feito só de bons pensamentos, realizou-se com a aura da philia - a força de atração que é amor e amizade, o poder gregário, necessário para que nossa espécie seja mais do que selva de panças disputando presas, e que possamos unir-nos com desejo e sorrisos, sabendo que é possível um destino animado por arte e humanismo. 

Essa fonte deveria jorrar em todos os bairros da cidade, para alimentar a todos com néctar e ambrosia, a imortalidade de pagãos antigos e de Beethoven e Villa-Lobos, do barroco ao blues, em palavras de versos e livros, veículos entre muitos tempos, mentes e cidades, as imagens e percepções, os engenhos e desafios da linguagem, a sede, a fome e a curiosidade que ao saciarem-se querem sempre mais, desejar e pensar, gozar a vida em sua plenitude.

Ora a Musa Clio sopra com afeto o doce pólen de suas primaveras, e agradece a Ana Maria e aos seus, ao talento e ao trabalho de artistas e ao amor de uma comunidade iluminada.

FRANCISCO MARSHALL

27 DE AGOSTO DE 202
IMUNOLOGIA

TENDÊNCIA GLOBAL E PREOCUPANTE

MOVIMENTO ANTIVACINA, FAKE NEWS E FALTA DE MOBILIZAÇÃO: COMO SE EXPLICA A QUEDA NA COBERTURA VACINAL INFANTIL

Doenças consideradas erradicadas no Brasil voltaram a preocupar autoridades de saúde, porque o país segue uma tendência mundial: a redução nos índices de cobertura vacinal infantil.

Um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgado neste mês relata "a maior queda contínua nas vacinações infantis em 30 anos" em todo o mundo.

No Brasil, a situação é similar. Entre as maiores quedas de cobertura vacinal infantil, está a da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), que, em 2015, chegou a 96% das crianças, mas em 2021 teve redução para 71%.

A pentavalente (contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e hemófilo B) caiu de 96% para 68% no mesmo período; e a de poliomielite (contra a paralisia infantil) foi de 98% a 67%.

Até 2014, o cenário era o oposto: em geral, a cobertura vacinal apresentava aumento ano após ano, com adesão acima dos 90% e que, em alguns imunizantes, superava os 100% no grupo.

O Rio Grande do Sul também registra redução na cobertura vacinal de crianças nos últimos anos, segundo dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações compilados por ZH. A cobertura da poliomielite, por exemplo, chegou a 100,02% em 2013, mas teve alcance de 75,72% em 2021. Outro exemplo é a vacina BCG, que combate a tuberculose: em 2013, foi registrada cobertura vacinal de 110,88% no RS; em 2021, foi de 74,64%. Autoridades de saúde entendem que, para que haja proteção coletiva a doenças, a recomendação é de que no mínimo 90% das crianças estejam com as vacinas em dia.

u Movimento antivacina ganhou força na pandemia

Quando perguntado sobre os motivos que levaram à redução da cobertura vacinal de crianças no país e no mundo, Paulo Ernesto Gewehr, infectologista do Hospital Moinhos de Vento, cita, primeiro, os movimentos antivacina. Para ele, as ideias contra os imunizantes circulam na Europa e nos EUA há anos, mas ganharam espaço e seguidores no Brasil durante a pandemia de covid-19.

O médico assegura que a desconfiança não tem base no que é verificado no combate às doenças, mas esse "debate" causa dúvidas na população quanto a vacinas que já se provaram seguras e eficazes durante anos de uso:

- O movimento antivacina se alimenta de fake news. É importante combater a desinformação e a mentira com informações baseadas em estudos científicos e chanceladas pelos órgãos sanitários e especialistas de cada área.

Outros problemas podem explicar o cenário global, como a falta de vacinas em postos de saúde, o horário de funcionamento desses locais e a capacitação dos profissionais para orientar a população quanto à importância dos imunizantes. Mas, por outro lado, uma característica desse tipo de prevenção pode explicar o desinteresse em manter as crianças com o calendário vacinal em dia: os bons resultados das campanhas de imunização feitas em décadas passadas.

- As vacinas sofrem do próprio sucesso. Quando há uma doença em atividade, como é o caso da covid-19, a população quer a vacina. Mas, no momento em que o imunizante chega e controla a doença, a percepção de risco diminui e as pessoas deixam de se vacinar - resume o médico.

Entretanto, o vírus estar sob controle ou sem registros de casos durante anos não significa que não possa retornar. Como exemplo, Gewehr cita o sarampo. De acordo com o Ministério da Saúde, o último registro da doença no Brasil havia sido em 2015, o que levou o país a receber, em 2016, uma certificação da eliminação do vírus.

Em 2017, foram confirmados 9,3 mil casos, e em 2019, cerca de 20 mil registros. Em 2021, 668 casos da doença foram registrados. Além disso, desde o retorno da circulação do vírus, 40 pessoas morreram devido à doença, metade delas crianças abaixo de cinco anos, de acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

VINICIUS COIMBRA

27 DE AGOSTO DE 2022
J.J. CAMARGO

O SAGRADO DIREITO DE DECIDIR

Vamos chama-lo de Evilásio, acho que ele não ia se importar. Era o patriarca de uma família enorme, que com o passar dos anos foi quase duplicada pelo acréscimo de noras e genros, esses penduricalhos que a vida acrescenta às famílias normais. Com o tempo, esse inexorável atropelador de hierarquias, ele foi ficando mais lento, de fala e de marcha, e sentiu, mais do que ninguém, a desvalorização progressiva da sua vontade.

Confessou ao seu médico que não andava se sentindo muito bem, mas não comentaria com a família, antes de saber qual era a sua perspectiva de vida futura, porque seus filhos "eram muito espalhafatosos".

Constatada a presença de um tumor pulmonar, em estágio 3, foi inevitável a participação da prole porque muitas decisões terapêuticas futuras exigiriam consenso familiar.

E então, numa sessão que mais se assemelhava a uma reunião de condomínio, todos palpitaram desassombradamente:

- Quimioterapia, de jeito nenhum, que mamãe morreu por causa dela.

- Mas os tempos mudaram. - Mudaram nada, as pessoas continuam morrendo de câncer, com ou sem quimioterapia! - Ouvi falar numa tal de imunoterapia.

- Essa é a nova febre da medicina, com uns remédios que custam o olho da cara!

- Cirurgia, não. Com 85 anos, ele não sai da mesa de operação! - Mas falam maravilhas de cirurgia com vídeo... - Não acredito em milagres, cirurgia é cirurgia.

No canto da sala, o Evilásio, blindado por uma pretensa surdez, assistia a tudo com olímpica indiferença. Quando a paciência acabou, ele tentou intervir, mas como ninguém deu bola, ele passou a bater palmas, até que, convencidos de que ele não pararia de aplaudir porque esta estratégia já funcionara na semana anterior, todos calaram a boca. Enquanto Evilásio engatilhava o discurso, uma nora resolveu atualizá-lo da situação:

- Querido sogrinho, estamos discutindo o que é melhor pra você!

- Sei disso, minha querida, mas eu só queria me inscrever para participar da discussão, considerando que sou uma parte bastante envolvida com o problema! Além de uma avaliação equivocada da intensidade da surdez, havia uma decisão colegiada de que ele, responsável pelo destino de uma grande família durante 65 anos, agora tinha que se sujeitar a ser rebaixado à condição de mero espectador do seu destino.

Quando o filho caçula esboçou um início de discurso, ele voltou a bater palmas e, recuperado o silêncio, sacramentou: - Esta discussão, além de inútil, é injusta com vocês, que não têm formação técnica no assunto. Eu, por sorte, tenho um médico da minha confiança, que sabe muito do assunto, e vou fazer o que ele achar melhor. Então vamos servir o chá, porque o cheiro de bolo assado já chegou aqui.

Se eu pertencesse àquela família, teria começado a aplaudir, mesmo que o chá esfriasse.

J.J. CAMARGO

27 DE AGOSTO DE 2022
CARPINEJAR

O vulcão branco

Quando a minha mãe me pedia para cuidar do leite, eu já sabia que teria que limpar o fogão.

Não existia chance de apagar o leite antes que fervesse e transbordasse. Nunca alcancei tal proeza. Nem eu, nem ninguém na história da humanidade. Não se tratava de um fato comprovado, de algo real e acessível, mas de um desejo familiar impossível.

Eu permanecia por 10 minutos olhando fixamente para a leiteira que aquecia, sem piscar, sem pestanejar, focado, concentrado, mas era virar um pouco o rosto para o lado que o leite subia e sujava tudo. Um descuido mínimo e o vulcão branco entrava em erupção, deitando suas lavas pelos cilindros. Um cumprimento inofensivo, um "bom dia!" a um irmão que surgia no corredor, e jogava fora o meu turno de vigília.

Busquei a vida inteira apanhar o leite antes do vazamento e nunca consegui. Foram dezenas, centenas de vezes mirando o bico da leiteira amassada, num jogo de estátua, mas sempre eu perdia, sempre eu piscava. Ela me ganhava na hipnose, na paciência, e me via depois, fracassado, resignado, passando a esponja entre as bocas de fogo. Bocas que riam da minha cara. O fogão bebia grande parte do leite de casa - sobrava nem metade para nós.

O fogão se lambuzava com o meu desperdício. Foi o maior bullying da minha infância. Nunca decifrava como o líquido da nata se solidificava com tamanha rapidez. Virava subitamente cola, chiclete antigo. Havia uma ciência para desgrudar o visco e não arranhar a chapa.

Os minutos de desatenção custavam minha paz de espírito, roubavam o tempo de tomar café com calma e de ir para a escola sem pressa. Chegava tarde na aula com cheiro de detergente entre os dedos, inventando desculpas cada vez mais extravagantes para a professora. Os atrasos foram registrados diversas vezes em minha agenda; às vezes ganhava meia presença. Nunca compreendi o significado de estar presente pela metade. Na escola, deveria estar mais perto da ausência do que da presença. Se contassem os meus olhares distraídos pela janela, se computassem os meus sonhos acordado, poderia conseguir uma ausência inteira.

Eu me atrapalhava com os horários do toque do sino porque me condicionava à responsabilidade de arrumar a bagunça antes de a minha mãe suspeitar e descobrir o meu vexame.

Impelia-me, por uma obrigação moral, a deixar a cozinha como antes, recuperar o brilho do aço com álcool, liberando o uso do espaço para o almoço. Só que o acidente envolvia outras panelas na rodovia das grades, e exigia também lavar a louça.

Acredito que a leiteira possuía um sensor facial. É a única explicação possível. Ao mínimo movimento, ela regurgitava. Não havia como remediar, suspirar, gritar, espernear. Nada impedia a correnteza cálida rompendo os diques.

O que eu gostaria de mudar no meu passado? A leiteira. Sem sombra de dúvida, a leiteira. Queria uma vez na vida girar o botão para o lado direito antes do seu silvo borbulhante, do sibilo da tragédia doméstica.

CARPINEJAR

27 DE AGOSTO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

UMA EXPOINTER OUTRA VEZ PLENA

O Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio, abre neste sábado os seus portões para mais uma Expointer. A 45ª edição da mostra, no entanto, tem peculiaridades que fazem o evento merecer atenção especial. Em primeiro lugar, é a volta às atividades a pleno, sem restrições sanitárias, após dois anos de limitações devido aos cuidados necessários por conta da covid-19. Espera-se, assim, uma presença maior de público, revivendo o período áureo de integração entre campo e cidade, interrompido pela pandemia. A programação outra vez completa, da mesma forma, volta a ser um forte atrativo tanto para visitantes urbanos quanto para quem vai à feira para fazer negócios, conhecer as novidades, tendências e se inteirar sobre os principais temas de interesse do campo.

A Expointer, como grande mostruário do agronegócio gaúcho, consolidou-se como o palco do melhor da genética animal, da tecnologia de ponta do maquinário agrícola e dos novos serviços oferecidos aos produtores rurais. Ao mesmo tempo, firmou-se como ponto de encontro das lideranças do setor, quando são discutidas as principais questões que preocupam o segmento e articuladas soluções políticas para as demandas da agropecuária gaúcha e brasileira. Vai muito além, portanto, do caráter festivo e de termômetro de perspectivas comerciais.

Sem limitações sanitárias, a 45ª edição se reencontra com todas as suas faces e eventos paralelos. Grande atração para o público em geral e aficionados, a final do tradicionalíssimo Freio de Ouro, principal competição do cavalo crioulo e que chega a quatro décadas, volta a ser realizada durante a feira. Desta vez, no entanto, os vencedores serão conhecidos no segundo fim de semana da mostra. O pavilhão da agricultura familiar, outro sucesso a partir de décadas mais recentes, terá mais expositores do que em 2019, último ano antes da crise sanitária. 

Na elite genética, o número de animais de argola inscritos também é superior a três anos atrás, outro indicador de confiança dos criadores e do caráter de retomada da Expointer. A sustentabilidade e a inovação, temas prementes no mundo, serão assuntos centrais em um momento em que o planeta discute como conciliar a preservação ambiental e o necessário aumento da produção de alimentos. Mais uma vez a Expointer mostra-se, além de atenta às demandas locais, sintonizada com as inquietações globais.

A organização projeta cerca de 600 mil visitantes e estima R$ 4 bilhões em negócios. Se o volume de vendas alcançar este montante será um resultado extremamente positivo, levando-se em conta que o Estado se recupera dos reflexos de uma estiagem severa, que dizimou lavouras e derrubou o PIB no primeiro semestre. Quem investe, no entanto, está olhando adiante, e o agronegócio, no país e no Rio Grande do Sul, tem um horizonte promissor. Para isso, no entanto, é preciso sempre elevar a produtividade e a eficiência. São requisitos essenciais, ao lado da dedicação e da competência dos homens e das mulheres do campo, que, trabalhando de sol a sol, ajudam a escrever a história do setor mais competitivo da economia brasileira.


27 DE AGOSTO DE 2022
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Cobertura da Expointer

Já é tradição dos veículos da RBS montar forças-tarefas a cada ano de Expointer, a maior feira agropecuária da América Latina. Há, porém, uma grande expectativa em torno desta 45ª edição, que se inicia neste sábado em Esteio, por significar a retomada completa dos negócios. Nos dois últimos anos, o evento ficou em parte prejudicado em razão da pandemia, limitando o acesso do público ao parque Assis Brasil.

Além de reunir jornalistas habituados ao setor do agronegócio, outros profissionais se incorporam à força-tarefa para que possamos entregar aos nossos leitores, ouvintes e telespectadores conteúdos sobre os mais variados setores representados na feira.

Nos nove dias de evento, os veículos do Grupo RBS terão uma extensa programação no parque. Neste sábado, por exemplo, haverá uma sabatina sobre desafios do agronegócio com os candidatos ao governo do Estado, mediada pela comentarista de política Rosane de Oliveira. Na terça-feira, a Casa RBS recebe a 23ª edição do Troféu Guri, evento da RBS que celebra 12 personalidades do Estado com destaque em suas áreas de atuação e homenagens póstumas a David Coimbra e Armindo Antônio Ranzolin. Na quinta, o jornalista da RBS TV Elói Zorzetto vai mediar o Painel RBS Notícias, com foco na evolução do agronegócio ao longo dos 45 anos de Expointer.

Colunista de ZH e GZH e comentarista de agronegócio da Rádio Gaúcha e da RBS TV, Gisele Loeblein nos conta por que é importante dar visibilidade à Expointer:

- A feira sempre foi um momento de celebração, um período em que os produtores têm a oportunidade de colocar na vitrine o resultado de anos de dedicação à atividade. Da mesma forma, para quem visita, é um momento de conhecer, de se aproximar. Isso ajuda a explicar por que a 45ª edição promete ser tão emblemática. Durante dois anos, esse grande ponto de encontro do Rio Grande do Sul precisou funcionar de um jeito diferente, em razão das restrições necessárias para o enfrentamento da pandemia. Agora, retoma o formato que o consagrou como uma das grandes feiras do calendário do agronegócio. Traz a reboque a expectativa de que bons negócios sejam fechados nas pistas, nos pavilhões e no setor de máquinas.

O leitor pode saber mais sobre as novidades e como visitar a Expointer no caderno Campo e Lavoura encartado nesta edição.

DIONE KUHN

27 DE AGOSTO DE 2022
MARCELO RECH

Técnico x político

Na entrevista ao Jornal Nacional, o presidente Jair Bolsonaro jactou-se de ter nomeado apenas ministros pelo critério técnico. Não é bem assim, até porque líderes do centrão, como Ciro Nogueira, da Casa Civil, têm papel decisivo em seu governo, e a montagem do gabinete contemplou as diferentes correntes que o apoiam. No fundo, a questão de ministérios ou secretariados técnicos ou políticos é uma daquelas discussões intermináveis no Brasil que pouco iluminam o que de fato importa: quão eficiente é um governo?

Dois dos mais marcantes ministros da Fazenda eram políticos e nem sequer vieram da área econômica. Fernando Henrique Cardoso (governo Itamar) e Antônio Palocci (primeiro governo Lula) são, respectivamente, sociólogo e médico. Um virou presidente e o outro se enredou na corrupção, mas enquanto estiveram no comando da economia avalizaram reformas e ações que garantiram a estabilidade e o crescimento, em grande parte por seus méritos na articulação política. Já o ministro Paulo Guedes, que empilha diplomas no campo econômico, bateu de frente com a área política e conseguiu quase nada: nem aprovar as reformas que prometera na posse e nem reverter a sanha gastadora de um Executivo e um Congresso de instintos populistas. 

Na Educação, Bolsonaro demitiu quatro ministros professores sem carreira parlamentar, enquanto outro professor e agora político Fernando Haddad ainda colhe louros pelos seus sete anos à frente do MEC. Aparentes contradições se repetem em outras áreas. Dois ministros de Bolsonaro - políticos até a medula - Fábio Faria e Tereza Cristina, nas Comunicações e na Agricultura, lideraram iniciativas cruciais para o país valendo-se de seus aprendizados nas negociações parlamentares.

Na Saúde e durante a pandemia, Bolsonaro teve um ministro sensato, o político e médico Luiz Henrique Mandetta, e um desastroso, o técnico e general Eduardo Pazuello. Mas o título de médico não é pré-requisito para uma boa administração na Saúde. O político e economista José Serra, por exemplo, é tido como um dos melhores ministros da área na história recente.

A lista de políticos competentes e técnicos ineficientes, ou vice-versa, seria infindável, porque o que impulsiona administrações não são títulos, ideologia ou mesmo experiências prévias, que podem apenas reprisar erros antigos. Na gestão pública, habitualmente emperrada, o que faz a diferença é blindar carreiras de Estado de pressões políticas, manter em alta o alerta para desvios, definir boas estratégias e reunir esforços para convencer a máquina estatal e o parlamento a apoiar mudanças que garantam um futuro melhor. O contrário é que abre as portas para o inferno.

 


27 DE AGOSTO DE 2022
J.R. GUZZO

Como republiquetas

O ministro Alexandre de Moraes, com o apoio cego, incondicional e automático da maioria dos seus colegas do STF, está impondo ao Brasil uma justiça de Idi Amin - aquele deboche violento, e baseado na força bruta, que as piores ditaduras da África fazem da trágica deformidade que apresentam como o seu aparelho judicial. Nem existe mais esse Idi Amin, uma caricatura de ditador patológico que foi estrela do noticiário internacional nos anos 1970, nem o seu regime de barbaridades. Mas pelo que indicam os fatos, os puros e simples fatos, o seu estilo de fazer justiça ressuscitou no Brasil de hoje e está transformando o ministro Moraes, junto com o resto do Supremo, numa espécie de cópia mal resolvida dos déspotas subdesenvolvidos de 50 anos atrás.

"Temos liberdade de opinião, mas eu não posso garantir a liberdade de quem deu a opinião", diz Amin numa piada que circula nas redes sociais. É um retrato perfeito do STF de hoje. Falam, em seus manifestos à nação e em suas palestras em universidades dos Estados Unidos ou Europa, que o cidadão brasileiro tem direito de pensar livremente e dar a sua opinião sobre o que bem entenda. 

Mas a cada cinco minutos, Moraes está mandando a polícia atrás de quem tem opiniões que ele acha "antidemocráticas" - e aí se vê que a liberdade de ninguém está garantida depois que a opinião foi dada, mesmo que numa conversa particular. É exatamente o que acaba de acontecer com os "empresários golpistas", um grupo que trocava ideias pelo WhatsApp e foi enfiado por Moraes nos inquéritos totalmente ilegais que ele usa há três anos para perseguir pessoas cujas posições políticas não admite. No caso, trata-se de admiradores do presidente da República - mais uma vez.

Moraes mandou a polícia invadir, às 6 horas da manhã, os escritórios e as residências dos empresários sem ao menos avisar o Ministério Público - a única autoridade no Brasil que tem direito de fazer denúncias criminais e solicitar à Justiça que elas sejam examinadas. Mas Moraes, há três anos, ignora o MP de maneira sistemática e truculenta; nesse caso, só mandou um comunicado aos procuradores depois de iniciada a operação. É pior ainda. O MP, a quem cabe a exclusividade da acusação, é contra essa investigação dos "empresários golpistas", por não ver nenhum cabimento nisso.

Está tudo errado, em suma, neste caso dos "empresários golpistas". Na justiça de republiqueta africana que o STF criou no Brasil, entretanto, o que se está fazendo aí é "a defesa da democracia".

 

sábado, 20 de agosto de 2022


20 DE AGOSTO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

No fluxo

Ao sair do quarto do pequeno hotel, atravesso um corredor silencioso e desço os três lances de escada, até chegar à porta do prédio, que está aberta. Respiro fundo e ganho a calçada. Atrapalho o movimento contínuo dos pedestres, são nove horas de um dia útil. Olho para cima e saúdo a falta de nuvens, o dia promete se manter estável até que anoiteça.

Não tenho para onde ir. Nenhum compromisso. Ninguém a minha espera. Apenas ela, a cidade.

Dou os primeiros passos independentes: me apresso, me demoro, paro diante da vitrine de uma papelaria, ignoro a entrada da estação do metrô.

Enquanto caminho, vou delineando o traçado desta manhã que, em algum momento, invadirá a tarde sem exigir um horário determinado para o almoço. Estou livre das demarcações do tempo (mas os museus só abrem a partir das 10h). Enquanto isso, cruzo por um sobrado em reforma, por uma florista e seus girassóis, por um bistrô cuja placa avisa: "desde 1907". Eu me sentaria para um café, se houvesse uma mesa desocupada junto à janela, ou se eu gostasse de café. O vidro reflete minha imagem. Cumprimento a mim mesma com um sorriso e ajeito a franja.

O sinal fecha, vou até o outro lado da rua. Recordo o orgulho inocente dos meus oito anos, quando achava que os carros paravam especialmente para eu passar. Escolho vielas residenciais, fotografo portões, observo os gatos que dormem nos parapeitos. Bem acomodada dentro de mim, caminho mais um pouco.

O bairro já é outro. Agora as árvores se enfileiram no meio-fio e há uma loja de instrumentos musicais, escuto um piano. Percebo o tédio de um garçom que aguarda o cliente pedir a conta. Uma estudante cuja mochila parece pesada demais. O beijo caloroso de um casal antes de seguirem para lados opostos. É como se eu perambulasse dentro de um filme que eu mesma dirijo, atuo, corto, monto. Meu longa-metragem.

Após 40 minutos de arte moderna, deixo o museu e compro uma revista. Puxo uma cadeira, me sento à mesa de um quiosque, peço uma tábua de frios e um cálice de vinho. Faço anotações e verifico mensagens no celular, ainda não evoluí o bastante para ignorá-lo. Coloco os fones de ouvido e escolho uma música aleatória na playlist. A luz do dia se alterou. Com a mente à toa, encontro a solução para um problema antigo que já nem incomodava tanto. 

E então opto em seguir pela ponte, os lampiões logo serão acesos e o rio estará no mesmo lugar amanhã, mas será outro rio, a literatura me contou este segredo anos atrás, e eu serei outra também, pois andar nos transforma. Calçarei sapatos confortáveis e minhas pernas me levarão, mais uma vez, a parques, avenidas, rooftops, livrarias. Não sinto medo ou solidão. Levo a alma para ser curtida ao sol. Caminhando, faço parte da vida.

MARTHA MEDEIROS

20 DE AGOSTO DE 2022
CLAUDIA TAJES

O que dizer das flores

Era para ser um fim de tarde-começo de noite qualquer, nada muito diferente dos outros dias que oficialmente terminam quando o primeiro apresentador de telejornal dá o seu boa noite para os telespectadores. Bem verdade que o tempo não estava firme, quem saiu sem guarda-chuva precisou se deslocar entre uma pancada e outra, e que pancada. A chuva vinha quase sem aviso, despencando da camada de nuvens tão pesada como algumas das tristezas que nos acompanharam nesses últimos anos.

Era para ser um fim de tarde-começo de noite qualquer, até que o que parecia ser uma pedrinha bateu na lataria do Uber. E depois outra e outra e outra. Curioso é que, pelo menos na Avenida Independência, ainda caíam poucos pingos de chuva. Parecia óbvio, mas não contive a ansiedade de perguntar para o motorista: isso é granizo, moço? Claro que não, ele respondeu, cheio de sabedoria. Precisa cair uma tempestade para vir granizo.

O sujeito acabou de falar e foi como se abrisse um portal, o céu começou a despejar água como uma represa que tivesse estourado. E pedra. E mais água. E mais pedra.

Na rua, era um tal de gente correndo para se abrigar nas marquises, nas portas, onde desse. Os carros em dúvida, alguns diminuindo a velocidade, outros querendo andar mais rápido para escapar do granizo. Como se houvesse para onde escapar. Em segundos a água subiu na avenida, e quem estava a pé não ficou de canela seca.

O fim de tarde-começo de noite virou caos. As luzes foram se apagando rápido. Em alguns lugares, a se julgar por eventos recentes, aposto que a energia não voltou ainda.

No dia seguinte, as notícias sobre desabrigados e desaparecidos nos jornais. Lembrei de quando era pequena e caía granizo, a gente ia de roupa para a chuva, pegar as pedrinhas na mão. Era uma festa. Em 50 anos mudou tudo. E olha que 50 anos deveriam ser apenas uma piscada, quando se fala em mudanças no planeta.

Era para ser um fim de tarde-começo de noite como outro qualquer. Mas, no dia seguinte, as plantinhas que mal ameaçavam despontar nos canteiros de pré-primavera estavam amassadas, arrancadas, mortas. Nada a estranhar. Se os desatinos do tempo pegam as pessoas desprevenidas, o que dizer das flores?

Uma das livrarias mais bonitas de Porto Alegre está fechando as portas para reabrir, daqui a pouco, em novo endereço. Sábado, dia 20, a Baleia - hoje na Fernando Machado, 85 - promove dois lançamentos. Às 14h é Sofia Nestrovski quem apresenta o romance A História Invisível. Às 16h, Jeferson Tenório conversa com Manuela D?Ávila sobre a nova edição de Estela sem Deus. Tudo na praça General Osório, em frente à Baleia, com música e clima de festa - porque não é epílogo, é capítulo novo.

Show que Porto Alegre nunca viu - aliás, ninguém viu, porque é a primeira vez que o Encruza se apresenta no palco. A diva Juçara Marçal, voz mais bonita da MPB de hoje, vem com todos os nomes da nova música paulista para um show que reúne os projetos Metá Metá, Passo Torto e Sambas do Absurdo. Vai ser no Theatro São Pedro, no dia 24 de agosto, às 21 horas. Ingressos de vários e diversos preços em theatrosaopedro.eleventickets.com. Uma dica: é possível comprar ingresso sem taxa de conveniência para os shows e peças do teatro na bilheteria, duas horas antes de qualquer espetáculo. Já sobra mais para as próximas atrações do São Pedro, que em dezembro fecha por dois anos para reforma. A hora de ir é agora.

CLAUDIA TAJES

20 DE AGOSTO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Ocupar um espaço público parece ter um poder magnético: você atrai coisas. Sou atingido por diversas curadorias. As pessoas me indicam temas e criam interditos. Não é a saudável crítica a algo publicado. Trata-se do desejo de dirigir o vir a ser.

Explico-me. Um colega é militante ecologista. Estuda, escreve com zelo e muita profundidade sobre o tema. Li um livro dele e achei excelente. Porém... ele manda textos incisivos do estilo: "Leandro, nos dias de hoje, quem não defende o meio ambiente é uma pessoa sem caráter. Todos os textos devem ser sobre a defesa da Amazônia".

Acho necessária a defesa do nosso patrimônio natural, contudo nem sempre é meu único tema. Já entrevistei nomes relevantes da área. Ele, todavia, acha fraca a iniciativa porque "perco meu tempo" com recortes culturais, religiosos ou de comportamento. É o meu "curador verde".

Os orientadores políticos são os mais abundantes. É um crime, dizem uns, que eu não ataque, em todos os meus canais, a corrupção do PT. "Absurdo você não usar sua força midiática para denunciar Bolsonaro", garante outro grupo. "Você evita afrontar com força o STF", escreve-me alguém. "Faça um artigo contra Alexandre de Moraes!"

A lista continua. Há listas que meus curadores possuem de inimigos. Estes, para eles, devem ser destruídos. Na guerra, insistem, minha catapulta deve ser cooptada.

Faço um artigo sobre ateísmo, e alguém me diz que uso meu espaço para proselitismo. Escrevo sobre Jesus, e meus curadores céticos dizem que faço jogo duplo. Se eu me inclinar ao candomblé, é - para outros - pura concessão populista para a "esquerda mimizenta". Falar de Arte? "Careca elitista decadente", tentou insultar-me uma menina com identidades políticas mais radicais.

Mais uma vez: um texto em jornal é um diálogo público. Faz parte das normas da comunicação que eu responda por tudo aquilo que publico. Pelas minhas ideias e afirmações, presto contas. Aceito, assim, a enorme responsabilidade de ocupar espaço tão importante como este. Quem canta recolhido, no fundo da sua garagem e em voz baixa, não pode e nem deve ser criticado. Quem vai para a calçada e solta a voz está, necessariamente, submetido aos críticos musicais do passeio público. Uso a metáfora para garantir: criticar textos publicados é um direito lícito de toda leitora ou todo leitor.

Minha constatação é sobre a curadoria do que eu possa ou deva falar. Uma espécie de censura prévia, mas não de crítica póstuma Aceito a responsabilidade de ser vidraça exposta. Entendo as muitas vontades de interferência que tentam a tantas almas. Alguns casos são até divertidos. Um jovem leitor me escreve dizendo que não confia em um filósofo de terno igual a mim. Respondo tranquilo que sou historiador e que ele está certo: não deve confiar em ninguém, de terno ou de croc. O ceticismo é uma metodologia boa nas ciências humanas. Lembrei que até o "diabo veste Prada", mas ele não acompanhou minha ironia ou, talvez... prefira Armani.

Feitas as ressalvas e assumindo as responsabilidades, quereria sempre ressaltar que a agenda de um cronista de jornal pode não ser a sua. Cada leitor é livre para buscar os autores com que se identifique na sua visão de mundo. O contraditório é bom, uma das bases do direito e da democracia. A mesma liberdade de leitura que preside ao sagrado gosto individual preexiste, igualmente, à escrita. Sou livre para escrever tudo aquilo que não ferir a lei. Você possui livre-arbítrio para acessar o que bem entender. Seria equivocado obrigar um vegetariano a consumir carne e seria, da mesma forma, estranho um vegano frequentar uma churrascaria e afirmar que nada encontra ali de bom para consumir.

Conciliar gosto e local é uma arte. Harmonizar valores e autores também é importante. Há pessoas na imprensa que me irritam muito. Eu os evito. Outros produzem coisas de que discordo, porém são inteligentes e me fazem pensar. Por fim, há os que parecem ter limado quaisquer arestas com o meu mundo e dizem coisas que eu subscrevo na íntegra.

Imagino ser válido tentar povoar as páginas do jornal com outras escolhas. É o seu caso? O ideal seria, claro, você enviar à direção do jornal seus próprios textos que consagrassem sua visão de mundo e vieses analíticos. É um caminho interessante. Crie seus podcasts, abra seu canal de vídeos, escreva textos, elabore palestras e mostre como coisas mais relevantes podem ser ditas. Até lá, siga o conselho de uma professora de ioga, em uma aula que tive na praia com a família: "Aceita, entrega, confia e agradece".

Abandonar o conforto do estilingue é inquietante. "Posso sempre criticar, é meu direito sagrado e constitucional."

Escreva textos! Publique! Crie! Ganha o Brasil e ganha você. Viva a liberdade de ler e, mais ainda, a liberdade de fazer melhor. Aceita o desafio? Cultive a esperança de um jornal ainda melhor. Faça curadoria de si!

LEANDRO KARNAL

20 DE AGOSTO DE 2022
EUGÊNIO ESBER

LIBERDADE ZERO

O Twitter baniu a conta da jornalista Paula Schmitt sem apresentar razão específica para a decisão. Apenas aludiu, como de hábito, a uma imprecisa "violação de regra de desinformação sobre covid-19". Qual, não se sabe - provavelmente porque a rede social não conseguiria demonstrar com objetividade a razão para o silenciamento da jornalista, que sempre apoiou suas opiniões em múltiplas referências a autores e pesquisadores com o timbre de sólidas instituições e fontes. Os longos e fundamentados artigos que Paula publicou podem ser encontrados no Poder 360. 

O site é um dos poucos espaços que restaram abertos ao debate no jornalismo brasileiro desde que alguns veículos tradicionais de mídia impressa e eletrônica fizeram um pacto cujo efeito foi cercear o livre curso das ideias e dos possíveis achados científicos que trouxessem questionamentos sobre segurança e eficácia de vacinas, ou evidências sobre contribuição de medicamentos reposicionados para prevenção ou combate à doença.

Paula dirigiu sua verve crítica ao comportamento de cientistas que incorriam, a seu ver, em conflitos de interesse por ligações com a indústria farmacêutica ou recebimento de fundos para suas pesquisas. Os grandes laboratórios farmacêuticos globais e sua teia de influência sobre agências governamentais e fundos de investimento foram expostos com desassombro pela jornalista em textos que não se consegue ler superficialmente, tal a profusão de links que descortinam ao leitor uma realidade muito mais complexa do que a verdade pasteurizada que lhe apresentam jornais e telejornais com desapreço pelo contraditório. Paula tem viés? Todos têm, ora. Por isso é que a imprensa jamais deve renunciar ao primado do pluralismo de visões, única forma de respeitar a inteligência e a autonomia de decisão do público frente a diferentes facetas da realidade.

O cerceamento e a censura a cientistas, jornalistas, médicos, agentes públicos e muitos que lançaram questões relevantes para o debate indicam a lenta e excruciante agonia da liberdade. Aliás, nos últimos dias a Faculdade de Direito da USP lançou sua festejada carta "em defesa do Estado democrático de direito". Nenhuma linha sobre abusos da suprema corte e a violação ao devido processo legal e ao sistema acusatório brasileiro. Mudez sobre a prisão de jornalistas e políticos por palavras e opiniões que emitiram. Absoluto silêncio a respeito do exílio que o STF impõe ao jornalista Allan dos Santos. A carta fala em "desvarios autoritários" nos EUA enquanto ignora violências praticadas aqui mesmo contra as leis e a Constituição do país, como impedir advogados de terem acesso aos autos para a defesa de seus clientes.

O texto do autoproclamado "território livre" do Largo de São Francisco, endereço da Faculdade de Direito da USP, tem 634 palavras. Você sabe quantas vezes aparece a palavra "liberdade"? Nenhuma. Ao que parece, nenhum dos redatores percebeu. Ou se importou.

Deve ser este o tão anunciado "new normal" que o coronavírus nos legaria. "Esqueça liberdade."

EUGÊNIO ESBER

20 DE AGOSTO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

TODOS AMAM UM GORDO

Para quem se paralisa diante das crenças limitantes ou se deixa levar pela autocrítica, por aquilo que os outros dizem ou pelo que imagina que os outros pensem, precisa lembrar da trajetória de Jô Soares. Um ícone brasileiro, uma explosão de talento, um amigo querido de tanta gente. E, entre centenas de outras qualidades: um gordo. Que fez disso sua marca registrada e nunca deixou que essa característica o impedisse de ser e fazer tudo o que queria.

Aprendeu a brincar sobre isso e nos deliciava com seu humor em cenas memoráveis. Enumerou todos os perrengues reais de um gordo, com a imensa qualidade de saber rir de si mesmo nas piores situações. Banheiro de avião, por exemplo: fez disso um sketch hilário, com o qual mesmo os magros podiam se identificar.

Tá certo que estamos falando de um gênio, mas também de um ótimo exemplo de quebrar paradigmas e não se deixar impor limites que não são verdadeiros. Jô, sem dúvida, abriu caminho para muita gente e fez as pessoas pensarem mais nas diferenças. A palavra "gordofobia" não era ainda tão difundida, mas ele a superou logo de cara e deu o troco: todos amam um homem gordo.

Hoje tantas mulheres mostram seus corpos com beleza e sensualidade baseadas no refrão: "Todos amam uma mulher gorda? quando ela se ama". Acredito que isso sirva para tudo. É na aceitação do que somos e na nossa interação com o mundo que vencemos barreiras. Superamos falsas ideias impostas pela chamada ditadura da moda ou dos modismos, sempre superficial e passageira, não levando em conta a diversidade, a individualidade e a beleza de cada um.

Corpos têm infinitos formatos, não existe um igual ao outro. Quando uma sociedade tenta impor um padrão, imediatamente cria uma sucessão de frustrações, uma avalanche de falta de autoestima, um terrível encolhimento de potenciais humanos. Deixamos de ser tudo o que podemos. Comprimimos a nossa alma sufocada e escondemos o nosso corpo.

Inventamos a estupidez da vergonha da nossa natureza ou do nosso momento. Vergonha e desprezo de uma parte do nosso físico, uma dor inútil. Um sentimento que mina nossa felicidade, nossa posição na vida, nosso desenvolvimento. Drena nossa energia e cria um círculo vicioso que se alimenta dos efeitos tóxicos que nós mesmos nos causamos.

Jô sabia dançar e era leve em seus movimentos. Usava roupas coloridas quando muitos homens não as ousavam, não precisava provar nada para ninguém, a não ser para si mesmo.

Existem dificuldades na vida de cada um, fatos que são batalhas diárias, e assim seguimos. Cuidar do peso e da alimentação faz parte do cuidado com a saúde, do equilíbrio, da harmonia. Gostar de si mesmo é a base da nossa saúde emocional.

Estar bem consigo mesmo é uma prova de amor à vida. De gratidão à natureza. Jô Soares entrava em todas as casas e fazia parte de todas as famílias. Era inteligente, culto, vibrante e todo mundo se orgulhava dessa amizade íntima, mesmo sem nunca o conhecer pessoalmente.

Seus bordões são repetidos nas conversas, e foi seu exemplo de comportamento que disse a todos: seja o que você é.

BRUNA LOMBARDI