quinta-feira, 29 de novembro de 2007



29 de novembro de 2007
N° 15433 -Nilson Souza


Garranchite

De boas intenções, os cestos de lixo estão cheios. Outro dia, o governador de Brasília resolveu acabar com o gerúndio por decreto. Virou alvo de gozação nacional. Agora um dos nossos parlamentares apresentou um projeto para restringir os garranchos dos médicos nas receitas.

A intenção é nobre: evitar confusões na hora da compra dos remédios - reclamação antiga dos farmacêuticos, que atribuem muitos casos de intoxicação aos equívocos com os nomes dos medicamentos.

Com saúde não se brinca. Mas os médicos reagiram mal à proposta do ilustre deputado. Mesmo vivendo no mundo digital, querem continuar tendo (olha o gerundismo aí!) o direito de rabiscar letras cursivas nos seus receituários - alguns porque acham mais prático, outros porque atendem em locais precários, onde caneta e papel já é luxo.

Espero que não me acusem de charlatanismo, mas vou sugerir um remédio para este mal: o velho e eficiente caderno de caligrafia.

Senhores doutores, por favor, leiam a bula.

Nome genérico: Corretivol 500 ou 750 repetições. Composição: um caderno pedagógico com 40 folhas pautadas. Informação ao paciente: este tratamento é indicado aos portadores de garranchite, que sofrem de desleixo ortográfico (não confundir com dislexia). Informação técnica: o Corretivol só faz efeito quando praticado diariamente. Indicações:

tratamento de deformações de grafia presumidas ou causadas por bactérias insensíveis às conseqüências da ilegibilidade. Contra-indicações: hipersensibilidade nos dedos, calos no pai-de-todos e tendinites crônicas.

Advertência: não se recomenda o uso deste medicamento antes de cirurgias delicadas. Reações adversas: a maioria das reações adversas observadas foram de intensidade moderada, não exigindo interrupção do tratamento.

Posologia e modo de administração: pacientes graves devem usar o Corretivol cinco vezes ao dia, preenchendo no mínimo uma página por dose. A duração do tratamento depende da resposta clínica e emocional do paciente. Venda sem prescrição médica.

Apesar da má fama, médicos escrevem bem. Alguns podem não ter boa letra, mas muitos profissionais dessa área poderiam dar receitas de literatura (especialmente de crônica) a jornalistas e escritores.

Por isso, acredito que a maioria vai receber esta sugestão de tratamento com espírito esportivo. Se alguém se sentir ofendido, porém, por favor me escreva. De preferência, com letra de fôrma.

Uma ótima quinta-feira para todos nós ainda ensolarada por aqui.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007



28 de novembro de 2007
N° 15432 - Martha Medeiros


Entrelinhas

Quando se lança um novo livro, responde-se a entrevistas aqui e ali, e é normal que perguntem qual o aspecto mais positivo da profissão.

Se o assunto é relacionado à crônica, desfio logo minha lista de vantagens: são várias as alegrias de se escrever em jornal. Mas, quando me perguntam as desvantagens, empaco. São poucas. Pensando bem, uma só.

É quando as pessoas tentam adivinhar o que você está sentindo, o que você está vivendo, o que está acontecendo com você, afinal. Se o lado A dessa superexposição é o carinho que a gente recebe dos leitores, o lado B é quando interpretam coisas que não foram ditas.

De certa forma, faz parte do jogo. Eu também, ao ler um colunista, posso até intuir que ele está pensando em trocar de cidade, ou que brigou com a mulher, ou que está mal de dinheiro. Só que eu não mando e-mails para consolá-lo.

Outro dia recebi um e-mail enorme de uma leitora que me fez um diagnóstico preciso e indiscutível: eu estava com depressão.

Respondi agradecendo a preocupação, mas que ela ficasse aliviada, estou vivendo a melhor fase da minha vida.

Ela me pediu então para enfrentar a realidade, não mascarar minha dor. Calei. Quem melhor do que ela pra saber?

Passou uma semana e recebi um e-mail de uma outra leitora que me perguntava se eu havia brigado com meu namorado.

Não, não brigamos, está tudo ótimo. "Bem capaz! Admita. Brigaram, claro. Pode se abrir comigo." Melhor não contrariar, deixei por isso mesmo.

E um cara me veio com esta uma vez: "Por que você tem tanto ódio dos homens?" Fiquei chocada. Eu? Euzinha? Mas de onde tiram essas idéias?

Tiram das entrelinhas, este espaço onde nada está escrito, mas que todo mundo lê. O comentário implícito que nem sempre foi feito, mas que já está sendo estudado em salas de aula.

Esta zona nebulosa que atiça a imaginação dos mais criativos. O silêncio que fala o que o leitor escolheu ouvir. Um vazio que ninguém assina, e por isso mesmo não tem dono: qualquer um pode ser o autor das entrelinhas.

E não raro as entrelinhas do leitor anônimo são muito melhores do que as nossas linhas. A gente se esforça para dar uma opinião e o leitor, durante a leitura, já vai elaborando uma contra-argumentação bombástica.

Ao chegar ao final do texto, em quem ele vai acreditar, em nós ou nele mesmo? Que pergunta.

Pensando bem, escrever crônicas só tem vantagens, desde que a gente não se importe de concorrer com as entrelinhas que alguns leitores escrevem junto, mas pelas quais não se responsabilizam, ao contrário: tentam nos convencer de que é tudo coisa nossa.

Depois não querem que a gente entre em depressão.

Excelente Dia Internacional do sofá - esta quarta-feira, ainda ensolarada por aqui.

terça-feira, 27 de novembro de 2007



27 de novembro de 2007
N° 15431 - Liberato Vieira da Cunha

Qualquer coisa chamada de vida

Como era o mundo antes da internet? Era estranho, as pessoas conversavam. Elas comunicavam umas às outras sonhos, desejos, sentimentos.

Havia uma instituição que as aproximava, mesmo nas cidades grandes. Chamava-se visita. Hoje você diz a um amigo ou a uma amiga: qualquer dia eu apareço lá. Trata-se de uma vaga promessa, de uma expressão de simpatia, de um ritual de vaga cordialidade.

Em outras épocas, não. Se você falasse que iria aparecer, aparecia mesmo. Não telefonava antes, não se anunciava na portaria do edifício, simplesmente pressionava a campainha do apartamento (ou da casa, o que era mais comum) e era recebido com uma alegria genuína e pura que o culto à privacidade matou.

A visita era mais do que a internet. Era a novela das oito daquele tempo. Quietão como sempre fui, me fascinava ficar em um canto da sala ouvindo anfitriões e inspecionantes. Conversavam sobre o quê? Sobre Deus, o Diabo e a Terra do Sol, o que significava que acerca de absolutamente tudo.

O acontecimento do dia, o clima, a política, a economia, algum ecoante caso policial, o escândalo mais recente, o custo de vida, namoros e desnamoros, livros, filmes, peças, nada escapava aos conversantes, com certa inclinação aos temas que propiciavam uma entonação de ironia ou de malícia.

Mencionei os inspecionantes. Era um grupo onipresente. Pois enquanto alguém comentava Um Certo Sorriso (a obra de Françoise Sagan) ou Désirée, o Amor de Napoleão (estrelando Marlon Brando e Jean Simmons), os inspecionistas inspecionavam.

Isso queria dizer que examinavam o rádio Telefunken, o vaso de cristal mais ou menos tcheco, as cortinas de tule, ou qualquer demais sinal de prosperidade ou decadência dos hospedeiros.

Faziam isso sem malquerença; faziam por puro hábito, já que observar era também um modo de visitar.

E eu quieto no meu canto, impressionado com aquele teatro que se desenrolava ao meu redor, rindo de alguma tirada humorística, seguindo o enredo de uma fita, acompanhando o final inesperado do romance de uma vizinha.

Pensando bem, tudo isso era melhor do que a internet. Pois se compunha de algo ausente da telinha. Qualquer coisa chamada de vida.

Uma ótima terça-feira ensolarada por aqui.

sábado, 24 de novembro de 2007



25 de novembro de 2007
N° 15429 - Martha Medeiros

Coisa de adolescente

Que insistência tola a nossa ao afirmar, cada vez que vivemos algo novo e excitante, que estamos em surto de adolescência. Isso sim é falta de maturidade

Uma amiga minha, separada, com três filhos para criar e que já não esperava mais nada da vida, me conta que está trocando e-mails com um empresário charmoso, uma surpresa que caiu do céu de uma hora pra outra. Ela me diz com todas as letras: "Estou me sentindo uma adolescente!"

Numa cena de novela, outro dia, o mesmo texto: mulher recém-separada, mais de 50 anos, declarando-se apaixonada feito... feito o quê? Feito uma advogada, feito uma manicure, feito uma professora? Não, feito uma adolescente.

Qualquer pessoa que já se considere carta fora do baralho do amor, quando cruza com alguém que seguiu à risca os conselhos do "personal paquera" e recebe uma cantada, logo fica nostálgica e pensa: "ah, se fosse nos velhos tempos".

Velhos tempos?? Mas que autoboicote! Certa está Bia Kuhn, psicanalista amiga minha, que diz que o inconsciente não usa calendário: os desejos de ontem seguem pulsando anarquicamente dentro da gente, com a mesma intensidade em qualquer época da vida.

Agimos como se apenas os adolescentes tivessem o direito de vibrar. Como se adrenalina correndo nas veias fosse um direito exclusivo deles.

Como se homens e mulheres maduros não pudessem se divertir, não pudessem azarar sem compromisso, não pudessem se presentear com instantes de total curtição. Quem declarou que isso é um desajuste?

Nós mesmos, quem mais.

Está na hora de reconhecermos que entusiasmo não é coisa de adolescente: é coisa de gente grande. Vou além: é coisa de gente velha, inclusive.

Coisa de adolescente é depender de ajuda financeira dos pais, passar a madrugada bebendo cerveja nas calçadas, andar sempre em turma. E até isso não é propriedade privada deles.

Mas entusiasmo, vibração, paixonite? Que insistência tola a nossa ao afirmar, cada vez que vivemos algo novo e excitante, que estamos em surto de adolescência. Isso sim é falta de maturidade.

Os maduros de verdade sabem que estão sujeitos a vibrações aos 30, aos 40, aos 60 anos. Alguém está morto aí? Se estiver, não responda que tenho medo de fantasma.

Sei que é difícil mudar um hábito, mas vou tentar nunca mais dizer que um entusiasmo é "coisa de adolescente". É desrespeito com os adolescentes, porque dá a entender que tudo o que lhes acontece é frugal e sem consistência.

E um desrespeito conosco: se a gente pensar que já viveu tudo o que tinha pra viver, que não há mais surpresas nem vertigens pela frente, que graça terá acordar amanhã de manhã?

Excelente domingo e um ótimo início de semana.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007



22 de novembro de 2007
N° 15426 - Nilson Souza


O dedo do rei

O incidente entre o rei da Espanha e o presidente da Venezuela dividiu o mundo novamente, como nos tempos do Muro de Berlim.

Ainda sob o eco do desabafo real, intelectuais, políticos e cidadãos de todos os hemisférios lançaram-se a um debate apaixonado, alguns tomando o partido do nobre europeu, outros cerrando fileira ao lado do índio sul-americano.

Virou uma disputa ideológica como há muito não se via. Outro dia, dois jovens se cruzaram na Redenção e um deles gritou para o outro:

- Estás com o rei ou com Chávez?

A pergunta envolve mais do que uma simples preferência pessoal e não deixa margem para neutralidade. Na Guerra Fria de rótulos ideológicos, o rei encarna o capitalismo, a opressão e o autoritarismo de direita, enquanto seu oponente é visto como representante do socialismo, da rebeldia e também do autoritarismo, só que de esquerda.

Não há como ficar na linha do Equador deste mundo redividido, até mesmo porque o fanatismo reduz o debate à frase bíblica: "Quem não está comigo está contra mim".

A propósito, Deus estará com o rei ou com Chávez? Ele não erra.

Outro dia li uma história exemplar sobre isso. Havia um rei que não acreditava na bondade de Deus, mas tinha um ajudante-de-ordens extremamente crente, que vivia a alertá-lo:

- Tudo o que Deus faz é perfeito, ele nunca erra.

Um dia, o rei e seu súdito foram caçar. Encontraram um urso feroz, que decepou o dedo mínimo da mão real antes de ser morto pelo fiel serviçal. Em vez de agradecer, o monarca ficou indignado e reclamou:

- E o seu Deus? Se ele fosse bom, eu não teria perdido o meu dedo.

Como o servo respondeu que Deus jamais cometia erros, o rei ficou mais irritado ainda e mandou colocá-lo na cadeia.

Passados alguns dias, o soberano saiu para caçar de novo, sozinho, e voltou a se dar mal. Foi capturado por índios adeptos de sacrifícios humanos. Quando a fogueira já estava pronta, o sacerdote indígena examinou o prisioneiro e exclamou:

- Este homem não pode ser sacrificado, pois é defeituoso. Falta-lhe um dedo. Soltem-no.

Feliz da vida, o rei voltou para o palácio, mandou libertar o súdito e recebeu-o com um abraço:

- Meu caro, Deus foi realmente bom comigo! Escapei da morte justamente porque não tinha um dos dedos. Mas ainda tenho uma grande dúvida: se Deus é tão bom, por que permitiu que você fosse preso da maneira como foi? Logo você, que tanto o defendeu?

O servo sorriu e disse:

- Meu rei, se eu estivesse junto contigo nessa caçada, certamente seria sacrificado em teu lugar, pois não me falta dedo algum!

A história termina aí. Sem analogias com o rei sem dedo, por favor, pois não quero começar outra polêmica apaixonada.

Uma excelente quinta-feira para todos nós.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007



21 de novembro de 2007
N° 15425 - martha medeiros


O momento da gaita

Estava ouvindo rádio no carro, iniciando uma viagem para o litoral, quando entrou uma música dos Engenheiros do Havaí gravada ao vivo em algum show. Humberto Gessinger cantava numa boa, quando, no meio da canção, ele começou a tocar gaita-de-boca. A platéia veio abaixo.

Ainda na freeway, entrou uma música do Nenhum de Nós. Mesma coisa: durante um show ao vivo, o Thedy puxou uma gaitinha e o povo delirou.

Alguns quilômetros depois, já na Estrada do Mar, foi a vez de Neil Young invadir meu carro pelo rádio numa gravação ao vivo de Hey, Hey, My, My: na hora da gaita, comoção, assovios, bateção de pés, urros.

Quando eu estava quase chegando ao meu destino, a rádio mal pegando, ainda deu pra escutar Stevie Wonder com sua eletrizante Isnt She Lovely num show ao vivo em Madri e, claro, levando a galera ao êxtase na hora da gaita.

Sei que não é uma questão existencial profunda, mas fiquei me perguntando: que diabo de fascínio tem essa gaita-de-boca?

Minha primeira teoria: o "momento da gaita" emociona porque ela nos remete à infância. Todos nós já tivemos um violãozinho de plástico, um pianinho de brinquedo, mas a gaita sempre foi de verdade. Eu, ao menos, tive uma. Não sabia tocar, mas tentava, e a tentativa me fazia sentir como uma estrela pop. Eu brincava de Bob Dylan.

Depois pensei que esse delírio na hora da gaita talvez tenha a ver com sexo. O cara põe os lábios na embocadura do instrumento, tapa com as mãos em concha e fica ali fazendo sabe-se lá o que escondido.

Por fim, cheguei a uma terceira teoria: a gaita libera nosso lado caipira. Eta, trem bão. Podemos estar escutando rock, blues, jazz, qualquer coisa assim sofisticada, mas em algum momento há uma homenagem ao folclore e à música country, e ambas nos remetem ao campo, a uma vida mais simples. Soprar uma gaita seria mais ou menos como mastigar um capim com um chapéu de palha na cabeça.

Pois domingo último, logo que retornei do litoral, mas ainda "viajando" nessas idéias, fui assistir ao Magic Slim no Abbey Road, em Porto Alegre. Durante todo o show eu pensava: quando será a hora da gaita? Pô, blues sem gaita, inconcebível.

Mas não teve gaita. E minha tese foi por água abaixo: o público veio abaixo foi com os solos de guitarra. Aplausos, urros, bateção de pés. Crianças, não éramos. Caipiras, tampouco. Com a guitarra gemendo, restou a teoria do sexo.

Uma ótima quarta-feira Dia Internacional do sofá para todos nós.

terça-feira, 20 de novembro de 2007



20 de novembro de 2007
N° 15424 - Liberato Vieira da Cunha


Preenchida de ausência

Como orbito no mesmo espaço de Porto Alegre desde que me mudei para cá há 50 anos, acho que tenho direito adquirido a alguns mergulhos nostálgicos.

Salvo pelos grandes edifícios, que se resumiam a três ou quatro e hoje são dezenas, a paisagem circundante não mudou muito: preencheu-se de ausências.

Guri, eu costumava contemplar um imenso sobrado que havia na Bento Martins, quase defronte à Farmácia Santa Catarina, e ficava ali imaginando como era possível reunir num único prédio tantas portas, janelas, porões e águas-furtadas.

Em matéria de variedade, contudo, imbatível era mesmo o Armazém Pimenta, ali perto, na esquina da Duque, onde se encontravam desde tachinhas a filtros dágua, desde agulhas a fogareiros a querosene.

Na linha transversal direita era o Bar Cristal, entregue aos cuidados e ao bom humor de Amílcar, um dos melhores produtos de exportação de Portugal, só igualado por seus primos António (assim com ó) e José, proprietários da (assim com z) Panificadora Luzitana.

Descendo-se a ladeira, ainda na Bento, quem queria cultivar as belas-artes estaria bem servido no Conservatório Musical do Professor Vito Favale.

Já a quem apetecia não mais do que cortar o cabelo, podia escolher entre dois salões, de mestres igualmente peninsulares. Italianos eram também dois sapateiros instalados perto do cruzamento da Riachuelo com a João Manoel.

Falei de alguns imigrantes. Eram muitos mais, de variadas nacionalidades, gente amável e rija, que vinha refazer a vida do lado de cá do Atlântico, depois da hecatombe da II Guerra. No meu edifício morava um inglês e havia outro que passeava o cão harrier pelas pedras azul e rosa da travessa.

A lista de chamada de minha aula era respondida por nomes checos, austríacos, uruguaios, escoceses e romenos. Se houve uma vez a Terra Prometida, tinha uma prima-irmã em Porto Alegre.

Depois, não sei. Veio abaixo o sobradão da Bento Martins. Fecharam a Farmácia Santa Catarina, o Armazém Pimenta (embora Seu Ivo, o proprietário, resista heróico na calçada oposta), o Bar Cristal, a Panificadora Luzitana, o Conservatório, barbearias e sapateiros.

Não me arrisco a dizer que nos civilizamos; suspeito que apenas nos transformamos. Pois de repente a paisagem preencheu-se de ausência.

Uma ótima terça-feira e um excelente feriado para aquelas capitais onde é feriado. Sexta, sábado, domingo, segunda e terça-feira...aja ócio para tantos dias..Enfim...

domingo, 18 de novembro de 2007


DANUZA LEÃO

Participações

Aconselho a participação da separação, sem precisar dar detalhes, tipo "porque ela descobriu que ele é gay"

UM CASAMENTO É UMA operação complicada. Além dos noivos, são duas sogras e várias irmãs e cunhadas, todas dando palpites sobre a igreja, o tipo de cerimônia, o número de convidados, e por aí vai.

Dizem que esses casamentos bem tradicionais, à moda antiga, começam a ser preparados com mais de um ano de antecedência.

Um ano é tempo suficiente para que os noivos briguem e casem com outros/as, mas, se não começarem a pensar tanto tempo antes, as igrejas não terão mais data, os costureiros não terão tempo para fazer o vestido da noiva, das damas de honra, das madrinhas; todos têm de ser pensados em conjunto para que as cores combinem e não haja duas iguais. Já pensou a confusão?

E na hora de escolher o vestido da noiva, engana-se quem pensa que é ela quem decide sozinha: já na primeira visita ao costureiro, a mãe e a sogra vão junto, e esse encontro nunca é pacífico.

Depois tem a decoração da igreja, o local da recepção, a quantidade de convidados, as comidas e bebidas (nacionais ou estrangeiras?), e tem os convites: se os pais da noiva são separados e cada um já é casado com outro/outra, esses outros/outras têm o direito a ficar no altar? Por mais civilizados que sejam todos, o perigo de uma baixaria é grande.

E quem paga a conta da festa? Teoricamente, o pai da noiva, mas, dependendo da situação financeira desse pobre mártir, esse detalhe pode ser negociado.

Sendo as famílias relativamente bem de vida, ainda tem o apartamento dos noivos que será o presente de casamento, que eles encontrarão já prontinho, até com a geladeira cheia. É um momento de tal frenesi que não se fala em outra coisa, e a última em que pensam é em como vai a relação entre os noivos.

Que pode ir bem e outras vezes mal, como tudo na vida.
Digamos que de tanto pensar na festa o amor pode passar para segundo plano, e quando chega a hora do sim já é quase o momento de se separar. Não estou sendo descrente do amor, mas quantos casamentos você já viu que não chegaram ao segundo ano? Eu, vários.

Isso cria um problema grave para os amigos. Se encontram a mãe da noiva e perguntam "e como vão Irene e Mario, bebê já à vista?", é uma saia justa, pois ter de explicar as separações dos filhos -sobretudo os de famílias tradicionais- é sempre embaraçoso. E quando se encontra o noivo e se pergunta pela mulher?

Difícil dizer que o casamento acabou. Por isso, os novos manuais de comportamento e elegância deveriam aconselhar a, quando a separação acontece, ir à mesma tipografia que fez os convites de casamento e participar a separação, dando os novos endereços de cada um.

Já que as modas e os comportamentos mudam o tempo todo, essa seria uma providência digna de aplausos. O texto seria simples: "Irene Couto e Mario Silva comunicam sua separação e seus novos endereços". Não haveria fofocas, e gafes seriam evitadas.

As regras do bom viver e da elegância não começaram com Adão e Eva; foram acontecendo, com o passar dos tempos e as modificações comportamentais.

Por isso, aconselho vivamente a participação da separação, sem precisar dar detalhes, tipo "porque ela descobriu que ele é gay" ou que ela estava tendo um caso com o padrinho do casamento.

Essa é a minha modesta contribuição para o próximo manual de etiqueta que surgir na praça -se possível, me dando o crédito.

sábado, 17 de novembro de 2007



18 de novembro de 2007
N° 15422 - Martha Medeiros


O capricho da simplicidade

Bom gosto e mau gosto custam a mesma coisa, me disseram certa vez. Adotei a frase como minha, tanto concordo com ela. Aliás, o mau gosto às vezes custa até mais caro

Eu estava numa grande loja, naquele esquema de "só estou dando uma olhada", quando vi uma senhora se apossar de uma bolsa como se tivesse encontrado o Santo Graal. Chamou a filha e mostrou: não é linda??

Agarrada à bolsa em frente ao espelho, ela virava de um lado, de outro, extasiada com a própria imagem carregando aquela bolsa de couro azul turquesa com umas 357 tachas pretas. Eu já vi bolsa feia nesta vida, mas como aquela, nem nos meus pesadelos mais tiranos.

Mas a tal senhora estava apaixonada pela bolsa. Mostrava a etiqueta com o preço para a filha e dizia: "E nem é tão cara!".

Nem é tão cara??? A loja deveria estender um tapete vermelho e chamar banda de música para quem levasse aquele troço por R$ 5.

E a senhora voltava pro espelho, se olhava, levo ou não levo? Eu tive vontade de cutucar o ombro dela e dizer pelamordedeus não faça essa loucura, olhe em volta, tem bolsa muito mais bonita, com mais classe, mais usável, deixe essa coisa medonha pra lá.

Claro que não me meti e saí da loja antes de ver a tragédia consumada.

E então fiquei pensando nessa história de bom gosto e mau gosto, classificação que os politicamente corretos rejeitam, dizendo que gosto cada um tem o seu e fim de papo.

Não é bem assim: a diferenciação existe. O que não impede que pessoas de bom gosto errem, e pessoas de mau gosto acertem - de vez em quando.

Cheguei em casa e fui reler um texto escrito por Celso Sagastume, em que ele defende que bom gosto se aprende. Que uma pessoa começa a gostar do que é bom quando adquire bagagem cultural (através de viagens e do acesso à arte) e quando tem humildade para observar pessoas e lugares reconhecidamente sofisticados e extrair deles a informação necessária para compor o seu próprio bom gosto.

Sofisticação, no entanto, tem variadas interpretações. Eu não troco uma charmosa bolsa de palha por uma Louis Vuitton e pode me chamar de maluca. Nunca duvidei de que menos é mais, e acho que estou me saindo razoavelmente bem, com uma porcentagem aceitável de deslizes.

Bom gosto e mau gosto custam a mesma coisa, me disseram certa vez. Adotei a frase como minha, tanto concordo com ela. Aliás, o mau gosto às vezes custa até mais caro. Ninguém precisa de muito dinheiro quando tem capricho e noção.

Capricho para tornar sua casa confortável, alegre e preparada não para uma foto ou uma festa, mas para ter história. Capricho para escrever um e-mail mantendo certa diagramação e um português correto. Capricho ao se vestir, deixando de se monitorar por grifes e valorizando mais o estilo.

Capricho é cuidado e atenção. Flores frescas nos vasos, unhas limpas, música em volume adequado, educação ao falar, abajures em vez de luz direta, um toque personalizado e uma pitada de bom humor em tudo: nas atitudes, no visual, até na bagunça do escritório, que uma baguncinha também tem seu charme.

Onde eu quero chegar com isso? Na bolsa azul turquesa com 357 tachas pretas que a gente carrega desnecessariamente por falta de treinar o olho para as coisas mais simples.

Excelente domingo e um ótimo início de semana.

Ponto de vista: Lya Luft

Sem retoque ou com retoque?

"Gosto de ser otimista, mas não posso perder

a visão da realidade, e nela não vejo nada deslumbrante"

Ilustração Atômica Studio

Detesto o pessimismo e as lamúrias. Mas, às vezes, eu me sinto assim, quando penso um pouco sobre as notícias nossas de todo dia, que apresentam uma realidade em parte coberta por uma pesada maquiagem.

Como agir nessa situação bipolar? De um lado, ficamos alucinados e eufóricos, porque a Copa é nossa, as Olimpíadas serão nossas, o petróleo é nosso, a cultura é nossa, a educação e a saúde idem. A Copa é nossa fica ótimo.

Desde que signifique atletas mais bem-cuidados, bem alimentados, tendo bons patrocínios e benefícios que durem e perdurem bem depois desse grande evento. Novos estádios e reforma dos já existentes, animação do turismo, hotéis lotados, dinheiro circulando, muitos novos empregos.

Tudo bem. Desde que não haja também dinheiro escoando para bolsos indevidos.

Temos, por outro lado, um olhar lúcido que percebe que somos atraídos por miragens habilmente construídas. Os cientistas entrevistados sobre a monstruosa jazida de petróleo – que já foi anunciada um ano atrás, sem nenhum alarde – são, no mínimo, discretos: é qua-se uma hipótese ainda a possibilidade de explorar o que fica a uma profundidade nunca antes explorada.

Precisaremos inventar novas tecnologias, preparar novos especialistas.

Meu velho pai dizia: "Não conte com o ovo antes de a galinha botá-lo". Eis uma verdade eterna. O imenso ovo da nova jazida ainda está no quentinho de sua mãe.

Parece que a economia vai bem. Mas o que significa o índice Bovespa para quem ganha salário? A saúde receberá não sei quantos bilhões: quando, como, onde, na realidade real?

O que vejo são hospitais pobres e podres, médicos desesperados ou demitidos, doentes atendidos em saguões (ou não atendidos), prateleiras de remédios vazias, consultas de casos graves marcadas para daqui a seis meses, um ano. Essa é a realidade real.

A notícia recente de que nosso PIB de 2005 foi maior do que disseram os resultados de então é, no mínimo, suspeita. O PIB era ou não era aquele? Se foi ruim, para nosso conforto, a gente manda recalcular e muda o resultado? Fazemos isso com a maior simplicidade, e meio mundo se regozija.

Viva, como estamos bem! Mas vejo escolas vazias por falta de professores (quem ainda quer lecionar ganhando menos do que uma empregada doméstica mediana?), sem luz, sem merenda, sem a menor condição.

Boa parte da juventude brasileira está fora da escola, pedindo esmola nas esquinas, servindo de avião para os traficantes, assaltando com armas poderosas na mão ainda infantil.

Temos um boom imobiliário. Nunca se anunciaram e construíram tantos edifícios. Vamos voltar ao assunto daqui a dez, vinte anos, quando – como ocorre agora nos Estados Unidos – os compradores não puderem mais pagar as prestações, pois hoje se vende apartamento a um prazo insano. Nada de mais: já nos endividamos por um ano inteiro na festa de Natal, e daí?

Gosto de ser otimista. O pessimismo radical merece uma bala na cabeça, fim, acabou-se a chatice. Mas não posso perder a visão da realidade, e nela não vejo nada deslumbrante.

É verdade que há coisas boas em curso. Nem todas as descobertas de corrupção foram definitivamente engavetadas, embora ainda não se possa dizer que a impunidade é rara.

A revelação de trambiques, trampas e roubalheiras assusta pelo inesperado e pelas dimensões, mas nos dá certo alento. Em boa hora, pois a gente anda cansado de usar o nariz de palhaço e o cenário de papelão.

Que os deuses permitam que as autoridades tenham autoridade moral, que os governantes governem para o bem, que o povo não seja usado para melhorar o jardim das delícias alheio.

Que, com ordem, se desfrute um progresso verdadeiro, generalizado, seguro e... sem retoques.

Lya Luft é escritora

quinta-feira, 15 de novembro de 2007



15 de novembro de 2007
N° 15419 - Nilson Souza


O acordo

Um amigo me desafiou a escrever sobre a Morte justamente numa semana em que estive com seu cartão de visitas nas mãos. Na quarta-feira da semana passada, meu tio maranhense fez cem anos.

Dois dias depois, despediu-se suavemente do convívio de seus familiares, provavelmente para fazer a definitiva viagem de retorno à sua São Luís natal.

Estive na sua despedida, mais para testemunhar o encerramento de um profícuo século de existência do que propriamente para consolar meus queridos primos - todos eles conformados pela longevidade com que o pai fora agraciado.

Talvez tenha ido, também, movido pela jornalística e humana curiosidade de captar alguma informação sobre a fórmula mágica que transforma mortais comuns em enigmáticos centenários.

Nisso não tive sucesso.

Só ouvi o que já sabia: que meu tio fora na juventude um exímio nadador, tendo em seu currículo a façanha de ter permanecido horas ou dias sob um barco virado, em alto-mar, após um naufrágio.

Por aí já se percebe que esse homem deve ter visto a indesejável das gentes muitas vezes ao longo de sua passagem pelo planeta, sem jamais ceder-lhe aos encantos de sereia enganadora nem submeter-se ao seu jugo de bruxa das trevas. Todos sabemos o quanto ela é ardilosa para levar um pouco de nós a cada afeto que nos tira.

Mas meu tio tinha aquela resistência inflexível dos caboclos nordestinos. Já estávamos convencidos de que a havia derrotado pelo cansaço. Na última sexta-feira, porém, resolveu fazer um acordo com a Dama da Noite e partiu em sua companhia.

Não há muito para lamentar quando um homem empreende a derradeira viagem depois de sobreviver ao mar, atravessar o século, constituir família e conhecer os netos.

É evidente que ele cumpriu a sua missão por aqui. Por isso me lembrei dele quando meu amigo me desafiou a escrever sobre este tema, tão árido, que as pessoas preferem tratá-lo com eufemismos.

Eu também poderia dizer que meu tio voou para o firmamento, dormiu o sono eterno ou partiu desta para melhor, como é de costume nessas ocasiões.

Mas não quero saber para onde ele foi. O máximo que me permito é imaginar que deve ter ido para o lugar de onde veio. Prefiro lembrá-lo como o conheci, contando suas aventuras com o inconfundível sotaque maranhense e passando a impressão de que iria viver para sempre. Viverá, certamente, no coração daqueles que o amaram.

Talvez aí esteja a resposta para o desafio do meu amigo. Não dói nada escrever sobre a Morte quando ela aparece apenas como ponto final para uma bonita história de Vida.

Aproveite o feriado e se puder estique: descanse na sexta-feira, no sábado e no domingo. Afinal esse é um País rico, os bancos fundamentalmente, nunca ganharam tanto, e pode se dar ao luxo de tantos feriadões.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007



14 de novembro de 2007
N° 15418 - Martha Medeiros


Redenção, segunda-feira

Todos os dias, caminho pelas ruas da cidade e atravesso praças e parques, mas a Redenção sempre ficou fora do meu circuito. No entanto, como tinha algo a fazer lá por perto, na última segunda-feira caminhei às oito da manhã pelas alamedas desse que é considerado o pulmão verde da nossa cidade.

Bom, se a Redenção é o nosso pulmão, estamos fritos. Asfixia à vista.

O quadro era desolador. Eu cruzava com outros caminhantes e tinha vontade de perguntar: você também está sentindo esse cheiro?

O fedor era o de um lixão a céu aberto. Por cima da grama, garrafas vazias de vinho, pacotes de salgadinho, páginas de jornal, canudos, copos plásticos, baganas, latas de refrigerante, embalagens diversas, restos de tudo. Resolvi contar quantas lixeiras o parque dispõe.

Pois bem, são inúmeras. A cada 30 passos, há uma lixeira para material orgânico e outra para os inorgânicos. A cada 30 passos! Nem nos países europeus se vê tanta lixeira. Mas, por aqui, elas são apenas decorativas. Jogar lixo no chão é que é maneiro.

Dentro do espelho dágua, diante do Monumento ao Expedicionário, mais podridão, descaso e lixo poluindo a água e emporcalhando o visual.

Não é possível que sejam apenas os mendigos que ali dormem que promovem essa sujeirada - eles precisariam ser muito mais numerosos. Sem falar que é preconceito acreditar que são eles os mal-educados. Os mal-educados somos nós.

Fiquei tentando imaginar como funciona a cabeça de uma pessoa que devora um pacote de Doritos e abandona a embalagem na grama sem o menor constrangimento. Só pode ser um caso de "grosseria em série".

Quando alguém entra num banheiro público e encontra o vaso rodeado por papéis usados, jogados no chão, é comum que pense: um a mais, um a menos, que diferença fará?

E repete a negligência, dando sua contribuição para que a imundície continue. A Redenção está chegando a esse ponto: um detrito a mais, outro a menos, quem vai reparar?

Sei que escolhi o pior dia para caminhar pelo "pulmão" da cidade, justo no day after de um domingo de sol, de brique e de passeata, e com o pessoal do DMLU ainda na cama.

Mas o que fica dessa experiência é a desanimante constatação de que ainda há muita gente tosca e sem consciência ambiental e de que o cercamento da Redenção é mesmo urgente. Deixaria o parque não só mais seguro, como imporia um certo respeito - presume-se.

Enquanto isso não acontece, melhor respirar outros ares.

Uma ótima quarta-feira - Dia Internacional do Sofá e véspera de feriado da Proclamação da República do Brasil, então aproveite.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

12/11/2007 - 19h00
Daniella Sarahyba negocia com a MTV
Publicidade da Folha Online

A modelo Daniella Sarahyba, 23, está cotada para integrar o time de VJs da MTV. Ela foi vista na última semana nas dependências da emissora, em São Paulo.

A MTV e o empresário da modelo confirmam a informação, como havia antecipado a coluna "Olá!", do jornal "Agora".

Daniella Sarahyba pode se tornar VJ na MTV no verão

Segundo a MTV, Daniella pode se tornar VJ provavelmente no início de 2008, quando estréia sua programação de verão. No entanto, a assessoria não fornece detalhes sobre a negociação.

A MTV se limitou a informar que ela pode ter ido ao prédio da emissora para assinar um contrato, fazer um teste ou reunião.

Já a empresa que assessora a modelo informou que ela foi apenas "tomar um café" no prédio da MTV na última semana.

A modelo já passou pela Globo. Ela fez uma breve participação na novela "Belíssima" (2005).

sábado, 10 de novembro de 2007



11 de novembro de 2007
N° 15415 - Martha Medeiros


Povoar a solidão

Permita que sua solidão seja bem aproveitada, que ela não seja inútil. Não a cultive como uma doença, e sim como uma circunstância

A sua é de que tamanho? Difícil encontrar alguém que tenha uma solidão pequena, ajustada, do tipo baby look. Geralmente, a solidão é larga, esgarçada, como uma camiseta que poderia vestir outros corpos além do nosso. E costuma ser com outros corpos que se tenta combatê-la, mas combatê-la por quê?

Se nossa solidão pudesse ser visualizada, ela seria um vasto campo abandonado, um estádio de futebol numa segunda-feira de manhã. Dói, mas tem poesia. Talvez seja por aí que devamos reavaliá-la: no reconhecimento do que há de belo na sua amplitude.

A solidão não precisa ser aniquilada, ela só precisa de um sentido. Eu não saberia dizer que outra coisa mais benéfica há para isso do que livros. Uma biblioteca com mil volumes é um exército que não combate a solidão, mas a ela se alia.

A solidão costuma ser tratada como algo deslocado da realidade, como um tumor que invade um órgão vital. Ah, se todos os tumores pudessem ser curados com amigos. Uma pessoa que não fez amigos não teve pela sua vida nenhum respeito.

Nossa solidão é nossa casa e necessita abrir horários de visita, hospedar, convidar para o almoço, cozinhar com afeto, revelar-se uma solidão anfitriã, que gosta de ouvir as histórias das solidões dos outros, já que todos possuem seus descampados.

A solidão não precisa se valer apenas do monólogo. Pode aprender a dialogar e deve exercitar isso também através da arte. Há sempre uma conversa silenciosa entre o ator no palco e o sujeito no escuro da platéia, entre o pintor em seu ateliê e o visitante do museu, entre o escritor e o seu leitor desconhecido.

Ah, os livros, de novo. De todos os que preenchem nossa solidão, são os livros os mais anárquicos, os mais instigantes. Leia, e seu silêncio ganhará voz.

Às vezes, tratamos nosso isolamento com certa afetação. Acendemos um cigarro na penumbra da sala, botamos um disco dilacerante e aguardamos pelas lágrimas. Já fizemos essa cena num final de domingo - tem dia mais solitário?

É comum que a gente entre na fantasia de que nossa solidão daria um filme noir, mas sem esquecer que ela continuará conosco amanhã e depois de amanhã, deixando de ser charmosa e nos acompanhando até o supermercado. Suporte-a com bom humor ou com mau humor, mas não a despreze.

Permita que sua solidão seja bem aproveitada, que ela não seja inútil. Não a cultive como uma doença, e sim como uma circunstância. Em vez de tentar expulsá-la, habite-a com espiritualidade, estética, memória, inspiração, percepções.

Não será menos solidão, apenas uma solidão mais povoada. Quem não sabe povoar sua solidão, também não saberá ficar sozinho em meio a uma multidão, escreveu Baudelaire.

Ah, os livros, outra vez.

Um ótimo domingo excelente início de semana

sábado, 3 de novembro de 2007



04 de novembro de 2007
N° 15408 - Martha Medeiros


Matando a saudade em sonho

Como vencer a saudade com algo que seja mais parecido com presença? Através do sonho

A saudade não tem nada de trivial. Interfere em nossa vida de um modo às vezes sereno, às vezes não. É um sentimento bem-vindo, pois confirma o valor de quem é ou foi importante para nós, e é ao mesmo tempo um sentimento incômodo, porque acusa a ausência, e os ausentes sempre nos doem.

Por sorte, é relativamente fácil exterminar a saudade de quase tudo e de quase todos, simplesmente pegando o telefone e ouvindo a voz de quem nos faz falta, ou indo ao encontro dessa pessoa.

Ou daquele lugar que ficou na memória: uma cidade, uma antiga casa. Podemos eliminar muitas saudades, enquanto outras vão surgindo.

A saudade do gosto de uma comida, de um cheiro do passado, de um abraço. Há muitas saudades possíveis de se conviver e possíveis de matar. A única saudade que não se mata é a de quem morreu. Matar, morrer. Que verbos macabros para se falar de nostalgia.

Já ouvi vários relatos sobre a saudade que se sente de um pai, de um avô, de um filho, de uma amiga, dos afetos que nos deixaram cedo demais - sempre é cedo para partir, não importa a idade de quem se foi.

Ficam as cenas guardadas na lembrança, mas elas se esvanecem, recordações são sempre abstratas.

De concreto, palpável, tem-se as fotos e as imagens de gravações caseiras, mas de tanto vê-las, já não vemos. Já a sabemos de cor. Não há o rosto com uma expressão nova, a surpresa de um gesto inusitado.

Como, então, vencer a saudade com algo que seja mais parecido com presença? Através do sonho.

Uma mãe que perdeu seu filho quatro anos atrás me conta que todos em casa sonham com ele, menos ela. Para sua infelicidade, ela não tem controle sobre isso, simplesmente não recebe essa bênção, e queria tanto.

E eu a entendo, porque através do sonho a pessoa que se foi nos faz uma visita.

Pode até ser uma visita aflitiva, mas a pessoa está de novo ali, ela está interagindo, ela está sorrindo, ou está calada, ou está dançando, ou escapando de nossas mãos, mas ela está acontecendo em tempo real, que é o período em que estamos dormindo, e que faz parte da vida, e não da morte.

De vez em quando sonho com minha avó e sempre acordo animada por ela ter encontrado esse meio de me dar um alô, de me fazer recordá-la. Observo seu jeito, ouço sua voz e penso:

quem roteirizou esse sonho? De onde vieram suas palavras para mim?

A resposta lógica: meu inconsciente falou através dela, só que isso tira todo o encanto da cena. Prefiro acreditar que ela é que esteve no comando da sua aparição, me dizendo o que tinha para dizer, nem que fosse uma frasezinha à toa.

Um colega de trabalho falecido há 20 anos num acidente de carro também já me apareceu em sonhos algumas vezes, e quando isso acontece acordo com a sensação de que morte, mesmo, é esquecimento:

enquanto eu abrir as portas do sonho para ele entrar, meu amigo seguirá existindo.

Nesse feriado de Finados, o que se pode desejar para os inúmeros saudosos de mães, de maridos, de netos? Que os sonhos abracem a todos.

Um excelente domingo ensolarado para todos nós.

Ponto de vista: Lya Luft

Paisagem com problemas

"Por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios dos psicanalistas, escrevem os escritores, combatem os soldados"

Problemas são privilégio dos humanos. Quem mandou andar ereto, quem mandou pensar? Quem mandou inventar sociedade, trabalho, salário, teorias das mais abstrusas e, ainda por cima, política?

Altos e baixos, magros e gordos, belos e feios, pobres e ricos, inteligentes e menos iluminados, problemas sempre teremos: com filho, com cônjuge, com patrão, com funcionários, com o Fisco ou o governo, com amigos ou com a burrice alheia. Nosso envolvimento vai armando uma trama que nos atrapalha e não nos deixa enxergar a claridade ou curtir os não-problemas.

Outro dia, depois de uma palestra, um casal me abordou, simpático. Ele pediu: "Eu queria que a senhora escrevesse sobre a necessidade de reavaliar nossos problemas e aliviar a vida.

Pois minha mulher", ele a olhou com carinho, não com censura, "vive tão enrolada que pouco tempo resta para a alegria e para nós dois".

Ilustração Atômica Studio

"Bom", respondi, "isso depende dos problemas". E resolvi escrever este artigo, lembrando o que me disse uma amiga: "Quando a gente está muito atrapalhado, é bom parar e analisar o que sombreia nossa paisagem: são tragédias ou chateações?

Na imensa maioria das vezes são apenas chateações". Nunca esqueci essa fabulinha. Quando começo a querer me queixar da vida, penso nela.

"Com as perdas só há uma coisa a fazer: perdê-las", escrevi certa vez. Algo parecido ocorre com os problemas. Com eles, só há duas saídas: uma é resolvê-los. Com os insolúveis, o jeito é perceber e aceitar. Duro aprendizado.

Depois, relegá-los a um segundo plano, abrindo-se mais para a vida – que é breve, é difícil, e não deixa o bonde passar muitas vezes, ah, não. Um dia, talvez não distante, abriremos os olhos e lá estará o belo e terrível Anjo da Morte, curvando o dedo no gesto irrecusável: "Vim te buscar, pobre humano".

Não acho que problemas devam ser ignorados. Frivolidade também mata. Mas há sempre o momento de parar para pensar, ou pensar menos e viver mais. Rever nossas estruturas, internas e externas: O que posso resolver? O que devo esquecer ou superar para que não me sufoque ou me roube a luz de que preciso para enxergar outras coisas, coisas melhores?

A vida é dura lida. Por vezes altamente dramática. Aqui e ali, tragédia. Nem sempre podemos desviar os olhos e a alma, nem sempre podemos ignorar e superar, nem sempre podemos resolver. Vitórias são raras. "Do caos nasce a luz" e da derrota pode nascer uma nova pessoa, melhor que a de antes.

Mas do caos também pode surgir mais confusão, e da derrota pode resultar um pobre ser esmagado. Assim, dos problemas pode-se fazer uma seleção, em que alguns serão jogados fora. Deletou, acabou-se. Outros ficarão à margem do caminho, dando passagem ao otimismo e à vontade de vida, mas estarão ali, à espreita de um momento de fraqueza para nos assaltar feito bandoleiros.

Outros, ainda, necessitam de um longo tempo para que se desmanchem suas raízes no coração que se atormenta. Só que esse tempo não pode ser tão longo quanto a vida nem ocupar demasiado espaço dentro dela, ou desperdiçaremos o que há de melhor na paisagem.

Eu mesma, do alto dos meus tantos anos e duras lidas, não consigo resolver ou superar alguns de meus problemas nem ajudar pessoas que amo a se livrar de todos os seus. Às vezes o jeito é dar-se as mãos numa ciranda solidária, esperando que o bom senso vença a perplexidade e reduza nosso sofrimento inútil.

Seja como for, por ser complexa, a vida é interessante: por isso enchem-se os consultórios dos psicanalistas, escrevem os escritores, lutam os soldados, roubam os ladrões, enganam os crápulas e brincam, antes de se convencer da dureza dos combates, quase todas as crianças na paisagem em torno.

Não brincam as que morrem nos hospitais, fenecem nas ruas, sofrem nos lares violentos ou tristes: são responsabilidade nossa, grandes trapalhões que inventamos esta cultura, esta sociedade, esta injustiça, esta omissão, estas relações e esta vida.

Porque a morte, essa não inventamos nós. Diante dela, quase todos os problemas se resolvem, e empalidecem quase todos os dramas.

Lya Luft é escritora

sexta-feira, 2 de novembro de 2007



02 de novembro de 2007
N° 15406 - Paulo Sant'ana


Animais solidários

De uma vez por todas, é preciso que a população de Porto Alegre saiba qual é o órgão destinado ao salvamento dos animais.

Segunda-feira passada, uma leitora me telefonou desesperada porque um pássaro estava preso numa fenda de um caule de árvore já fazia 48 horas e o Corpo de Bombeiros se recusava a ir libertar o animalzinho. Isso aconteceu numa árvore da Rua Tomás Flores. Do Corpo de Bombeiros, informaram que era caso para o órgão de proteção ambiental.

No órgão de proteção ambiental, informaram que era caso para o Corpo de Bombeiros, que, no entanto, encurralado, disse que só poderia tomar providências no dia seguinte, não atendiam esses casos à noite. Este é um país em que quem tem câncer no intestino entra em fila de cirurgia que demora três anos e em que Corpo de Bombeiros não trabalha à noite.

É melhor ir embora daqui.

Ontem Zero Hora mostrou a sorte de outro pássaro preso num poste da esquina das avenidas Panamericana e Quito, no Jardim Lindóia.

Um filhote de chupim, pássaro que costuma morar nos ninhos dos outros, ficou com a perna presa num fio de náilon, no alto de um poste elétrico, entre duas casas de joões-de-barro.

Foi um deus-nos-acuda para chamar um órgão que salvasse o passarinho, que estava de cabeça para baixo. Chama a CEEE e lá dizem que é com os Bombeiros. Chama os Bombeiros, não atende porque é em cima de um poste e, se é em cima de um poste, tem de ser a CEEE.

Até que o clamor dos populares, ansiosos pela salvação do pobre passarinho, fez chegar ao local uma equipe da CEEE.

Mas veio o pelotão de choque da CEEE, aquele que está melhor preparado para enfrentar brigas com moradores que furtam energia elétrica do que fazer consertos na rede.

E o que decidiu o Bope da CEEE? Escolheu entre duas alternativas, dinamitar o poste ou destruir a casa do joão-de-barro, a segunda. E pôs-se o Bope da CEEE, em vez de subir lá no ninho e libertar o pássaro, a destruir a casa do joão-de-barro, com uma barra longa acionada lá de baixo.

Rasparam, rasparam na casinha de barro até que a demoliram. E junto com a casinha despencou lá de cima o passarinho que estava com a perna presa. Espatifou-se no chão o chupim e morreu.

Que salvamento desastrado esse do pelotão de choque da CEEE. Por preguiça, não puseram uma escada e não foram lá em cima libertar o animalzinho.

Que idéia estúpida a de escarafunchar na casa do joão-de-barro até derrubá-la, e com ela o pássaro que estava preso e morreu estatelado no chão. Que tropelia, que operação desastrada! Que trágica trapalhada.

Terminou o casal de joões-de-barro ficando sem casa, vão ter de chamar o Demhab.

E terminou principalmente o pobrezinho do chupim morto.

Restou uma lição de solidariedade animal jamais vista em nossa cidade. Tanto no episódio da Rua Tomás Flores quanto no do Jardim Lindóia, os dois pássaros presos pelas pernas e pendurados de cabeça para baixo foram socorridos, no primeiro caso por dois dias, no segundo por várias horas, por pássaros de outras espécies, que lhes alcançavam alimentos em seus bicos.

Outras aves socorristas alimentando, bico a bico, as duas avezinhas em apuros. Que solenidade de ternura. Que humanidade entre os animais!

E ainda vêm me dizer incautos cientistas que os animais não têm inteligência.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007



01 de novembro de 2007
N° 15405 - Nilson Souza


O Laçador de bermuda

A estátua desceu do pedestal e invadiu minha sala de trabalho na tarde da última terça-feira. Estava descaracterizada, é verdade.

Em vez da conhecida pilcha, vestia uma prosaica bermuda de brim azul.

Mas o bigode inconfundível não deixava dúvidas: era ele mesmo, o monumento que saúda os visitantes na entrada da cidade, um símbolo da nossa hospitalidade e do nosso mais saudável orgulho de pertencer ao Rio Grande.

Oitenta anos completados em julho passado, João Carlos DÁvila Paixão Côrtes, o Laçador em carne e osso, deu um show de conhecimento, simpatia e vitalidade para um público de seis pessoas - este cronista curioso e seus companheiros da lida diária de pealar letrinhas.

Questionei-o sobre tudo o que me veio à cabeça, até levá-lo para o terreno da música tradicionalista. Então, lembrei-me da enquete que o Macedão está fazendo no seu programa matinal da Rádio Gaúcha, e perguntei-lhe de supetão:

- Qual a canção que você escolheria como hino popular do Rio Grande?

O gauchão não perdeu o embalo. Disse que cabe ao povo rio-grandense fazer esta escolha, mas que receberá com agrado os votos para a música de Simão Goldman, que ele mesmo interpreta e que se chama exatamente Hino ao Rio Grande.

Disse e cantou, para não deixar dúvidas: "Rio Grande do Sul,/ o gaúcho quer cantar/ a querência, o céu azul,/ os verdes pampas e o mar..."

Para manter o clima, fiz rodar no meu computador o mini-CD que acompanha o livro Flores da Cunha de Corpo Inteiro, de Lauro Schirmer, que abre com a interpretação de Paixão Côrtes do épico O Caudilho, música de Antonio Augusto Fagundes e Airton Pimentel.

Então o Laçador cresceu dentro de suas bermudas e acompanhou a própria voz, com gestos entusiasmados. Show. Depois disso, contou histórias, falou de seu trabalho de pesquisador da cultura gaúcha e ainda deu uma sapateada na sala, para nos fazer entender melhor determinado passo de dança.

Só então retirou-se, lépido e faceiro, provavelmente para retomar a sua condição de monumento.

Fiquei pensando no poema de Jayme Caetano Braun que faz parte do mesmo disco. Termina com versos definitivos: "Nunca haverá outro Rio Grande/ nem outro Flores da Cunha". Nem outro Jayme Caetano Braun. Nem outro Paixão Côrtes.

Haja pedestal!

Ainda que com chuva que teima em não parar, que tenhamos todos uma ótima quinta-feira, véspera de Feriadão.