sábado, 28 de agosto de 2021


Silêncio

Não fale. Mantenha o nobre silêncio. Sem reclamar, sem resmungar, sem falar nem o bem nem o mal. Observe em profundidade a si. Quem é você? O que é a mente?

Não se preocupe. Ocupe-se em andar em plena atenção, saber como pisa no chão. Sentir o ar, a brisa, o vento e as fragrâncias de um local onde a espiritualidade é cultivada há décadas.

Durante três dias (de 3 a 5 de setembro), no Cecrei, em São Leopoldo, vamos nos sentar em meditação silenciosa. Deveria ser um retiro presencial, em 2020. Transferimos para 2021 e agora será híbrido. Carros híbridos, aulas híbridas, árvores híbridas. Geralmente os frutos ficam mais doces e o ar, menos poluído. Tentemos. Em silêncio. Apreciando a vida.

Algumas pessoas se hospedarão no Centro de Espiritualidade Cristo Rei, um dos vários locais, no Brasil, de retiros espirituais de jesuítas. Outras, como eu, estaremos online, para evitar viagens poluentes da atmosfera e possíveis vírus. Quartos individuais e distanciamento, máscaras obrigatórias, álcool gel, muito sabão e água e o pré-requisito de terem feito teste de covid recentemente e já estarem vacinados. A fé caminha de mãos dadas com a prudência e o cuidado.

Os encontros entre pessoas de diferentes tradições é um dos alicerces na construção de uma cultura de paz, justiça e cura. Algumas pessoas hoje chamam de encontros inter, intra ou trans religiosos, onde podemos experimentar outras práticas espirituais, sem nunca nos afastarmos da nossa tradição. Pelo contrário, nos aprofundando em nossa fé.

Não é turismo espiritual, dar uma espiadinha, só para ver como é: tirar foto e colocar nas redes sociais. Nada disso. Fotos e celulares, rádios e televisões, livros, revistas, textos e computadores - tudo ficará em tempo de espera por um curto final de semana.

Silencie. Não fale. Internamente permita que tudo se cale. Não procure se comunicar com outros praticantes/retirantes. Vamos nos afastar das atividades quotidianas, para vivenciar a plenitude.

Silencie. Não olhe para as outras pessoas, não faça gestos, não pisque os olhos, não mexa a cabeça em aprovação ou reprovação. Sinta o que se passa no seu corpo e na sua mente. Você com você.

Penetre o seu mais íntimo, além das palavras e dos gestos. Reconheça o movimento incessante dos neurônios e sinta os espaços, as pausas entre palavras, imagens, sentimentos, sensações, emoções, memórias. Observe e investigue em profundidade. Não importa que seja um dia ou um ano. Entregue-se e redescubra o que realmente é valioso para você.

Um retiro de silêncio Zen em um centro de espiritualidade Inaciana é para pessoas de todas as tradições espirituais e para ateus. Juntos, nós, seres humanos, podemos facilitar a manutenção do silêncio sagrado para poder compreender melhor a própria vida.

Um centro de espiritualidade inaciana significa ser parte da ordem dos Jesuítas, fundada por Santo Inácio de Loyola, no século 16. Grupo católico que tem como prática a meditação silenciosa, os exercícios espirituais, a reflexão profunda sobre o que realmente importa. Para não ficarmos importando - colocando para dentro de nós - o que é menor.

Em nós, habita o sagrado. O sagrado presente em cada partícula e no maior espaço. Podemos senti-lo na quietude profunda do encontro e da procura. Somos o todo e o todo é em cada um de nós. O tempo urge. Perceba e sinta o dulcíssimo sabor da espiritualidade. Silencie.

Silêncio para ouvir, ver, sentir e ser - intersendo, em comunhão auspiciosa com toda vida da Terra.

Mãos em prece


28 DE AGOSTO DE 2021
LYA LUFT

Querer não é poder

Eu tinha horror dessas frases cretinas que raramente funcionam: "Sobe na bicicleta, não precisa mais de rodinhas! Toma impulso e vai!".

Fiquei semanas com marcas do tombo homérico.

Algo parecido me ocorreria décadas depois na Grécia após um jantar maravilhoso à beira do mar. Era preciso entrar num minúsculo barquinho para chegar ao iate dos amigos. Protestei que nem pensar! Alguém repetiu a velha frase: "Toma impulso que vai!".

Cheguei no iate molhada dos pés à cabeça, dessa água que ali não era verde-cristalina. E ainda tendo de fingir que achava graça...

Esse momento da minha vida é um dos que mais me lembram disso: quero saltar da cama e correr pro banheiro? Só com andador, essa aranha metálica detestável e temporária, mas útil.

Quero passar uns dias lindos na casinha do Bosque em Gramado? Nem pensar, por enquanto.

Uma velha bruxa nada simpática nem engraçada me pegou debaixo do braço, e eu que me comporte.

Mas uma coisa eu posso: tentar ser otimista e confiante, curtir o amor que me rodeia, agradecer tantos cuidados.

Ah sim, apesar de alguns momentinhos menos doces, isso eu posso.

Mas vêm as trovoadas e a chuva: ótimo me aconchegar nas cobertas. Ler me cansa? Aprendo e curto coisas incríveis em ótimos programas de TV. E o Whats sempre transborda de recados de amizade, descobertas, vida.

Obrigada, vida.

LYA LUFT

28 DE AGOSTO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Não basta falar em Deus

Um leitor me pergunta por e-mail: "Como podes atacar um homem tão bom, um aliado de Deus?". Não preciso dizer a quem ele defendia. A mensagem era cortês, de alguém que acredita que um político que se apresenta abraçado a Deus logicamente fará o melhor para todos. Enquanto isso, o diabo ri pelas costas dos inocentes.

Política e religião não deveriam se misturar, um assunto é público e o outro é privado. Mas, curiosamente, são os políticos mais "polêmicos" (ah, os eufemismos) que usam e abusam de Deus como cabo eleitoral, pois sabem que a religião sempre serviu como blindagem contra críticas.

Muitos de nós buscam conforto na religião. Outros buscam conforto na natureza, na arte, na ciência, no humanismo. Tanto faz. Uma pessoa é boa pelos seus princípios éticos e morais, não pelos meios com que alimenta seu espírito. Eu posso ser equilibrada, amorosa, generosa e solidária sem nunca ter colocado uma hóstia na boca e sem atribuir minhas ações a uma força divina e sobrenatural. Assim como posso ir à missa todos os domingos, crer que Deus está acima de tudo, e minha suposta benignidade ser uma fraude.

O que eu chamo intimamente de Deus, e o que você chama, está igualmente a serviço do bem e do mal, ou não haveria extremistas radicais, atentados terroristas, populações subjugadas em nome da fé. Adesivar o carro com o emblema "Jesus te ama" ou rezar antes das refeições têm efeito zero sobre nossa índole.

Há maneiras mais eficientes de descobrir se alguém é, de fato, especial. Ouça o que ela diz. Observe como se comporta. Que respeito tem pelos outros. O quanto é sensível ao sofrimento alheio. Como trata aqueles que a estão servindo. O quanto se interessa por quem não lhe é útil. O que a emociona. Em que medida se compromete com a verdade. O quanto se dedica à escuta. O tom de voz com que se comunica. Em que ela contribui para a sociedade. Qual sua predisposição em evoluir, em acompanhar as mudanças do seu tempo. O quanto evita causar desassossegos. Se estende a mão quando lhe pedem ajuda. Como lida com crianças e idosos. Qual a importância que dá para a beleza de uma escultura, para a emoção provocada por uma música. Se consegue compreender que miséria e vício não são escolhas, se sente compaixão por quem padece pela desigualdade social.

Prestando bem atenção, você conseguirá perceber se essa pessoa tem valores e intenções confiáveis, ou se é uma egoísta a serviço da própria vaidade e da ambição por poder. Seja qual for o resultado da sua análise, você não terá a mínima ideia se ela é religiosa ou não.

A pessoa que fala em Deus, que cita Deus, que se agarra em Deus, pode ser um ser humano extremamente bom e justo. Mas, para confirmarmos, falta todo o resto.

MARTHA MEDEIROS

Desde quando educação é exclusão?

Esse ministro da educação (a caixa baixa é proposital), Milton Ribeiro. O homem é um equívoco em forma de bigode. Um erro em forma de pastor. E se parecer que essa é uma coluna engraçada, não é. Ela fala de uma tragédia, ideias elitistas e preconceituosas na educação. E isso é triste.

Aos fatos.

Em entrevista que parece um esquete de programa humorístico ruim, o ministro da educação declarou que, no Brasil, a universidade deveria ser para poucos. Na visão do excelentíssimo, o país precisa é de técnicos - e precisa mesmo, mas não por imposição, e sim por escolha. Haveria menos engenheiros trabalhando nos aplicativos, segundo ele, se tivessem feito um curso técnico no lugar de uma faculdade.

Depois de meses de um silêncio que fazia crer que o país nem tinha ministério da educação, seu Ribeiro tirou o bigode para fora porque só agora, 13 meses depois de empossado, descobriu nossos cursos técnicos - criados em 2008. Ficou tão maravilhado que chamou os cursos de "vedetes do futuro". Virginias Lanes do amanhã. Se depender do ministério dele, o Brasil será uma Alemanha, onde "são poucos os que fazem universidade, universidade deveria ser para poucos nesse sentido de ser útil à sociedade".

Com esse discurso, o ministro desconsiderou completamente a vontade das pessoas. A vocação. O sonho de entrar na Universidade - que sempre foi tão restrito, quase inacessível para a maioria dos brasileiros antes dos programas de incentivo. Não sei você, mas eu morro chorando cada vez que vejo alguém que veio de uma situação vulnerável conseguir um diploma de Pedagogia, de Biologia, de Medicina. Isso não conta para um ministro da educação?

Porque estava muito inspirado (só que não), Milton Ribeiro também disse que os filhinhos de papai - ele falou isso, não eu - deveriam ocupar as vagas das universidades públicas, já que os impostos dos papais sustentam o país e, por consequência, as universidades públicas. Com um estímulo desses, até dá para entender por que o Enem teve o menor número de inscritos em 14 anos.

Seja como for, a ideia de Ribeiro encontrou apoiadores. Mas então ele deu outra entrevista, e aí ficou difícil alguém defender o bigode ministerial. Para Milton Ribeiro, quando uma criança com deficiência é incluída em salas de aula com alunos sem a mesma condição, ela "atrapalha, entre aspas", a aprendizagem das outras.

Onde é que esse senhor andou nas últimas décadas para estar tão defasado, tão mal informado, tão obsoleto? E olha que ele é um religioso, líder de alguma igreja por aí. Imagino o que os pais de crianças especiais, que lutam todos os dias pela inclusão dos filhos, devem ter sentido.

Não demorou para o Ministério da Educação lançar a surrada nota de "o ministro se desculpa com todas as pessoas que se sentiram ofendidas". E já o seu Ribeiro estava metendo os pés pelas mãos novamente, declarando que não se referiu a todas as crianças especiais, só "às que têm um grau de deficiência que tornam a convivência com as outras impossível".

Impossível é imaginar que o ministro da educação do Brasil seja uma versão sem graça alguma do Justo Veríssimo, o personagem criado por Chico Anysio. Até no bigode os dois se parecem. A diferença é que o personagem do Chico nos fazia rir dos pensamentos e preconceitos de um político desprezível. No caso do ministro Ribeiro, dá vontade mesmo é de chorar.

E mudando para o prazer de estudar, vem aí mais uma Oficina do Subtexto da Cíntia Moscovich. Agora online, os encontros com o talento e carisma da Moscovich têm reunido alunos pelo mundo inteiro. A ideia é estimular a criatividade e trabalhar a criação de contos com o uso de filmes, clipes, séries e muitos outros materiais. Para mais informações e inscrições, é só escrever para oficinasubtexto@gmail.com.

CLAUDIA TAJES 


28 DE AGOSTO DE 2021
LEANDRO KARNAL

Nossa aldeia

Mal havia começado a década de 1990 e eu terminava meu doutorado na USP. Publiquei a tese em forma de livro em 1998. Naquele texto, há um prólogo empedernido. Várias vezes, nas décadas que se seguiram à publicação, perguntei-me se eu deveria ter escrito aquele pequeno texto da forma que o fiz. Era um misto de arrogância da juventude com genuíno gosto por história. Das muitas coisas que poderia ter feito diferente no prólogo, uma delas eu manteria idêntica.

A lembrança da frase foi trazida por um amigo, em conversa recente. Ele se lembrou dela e me perguntou a quem eu me referia Faz sentido, pois o preâmbulo do livro é carregado de referências implícitas, quase uma esfinge. Respondi que tinha ecos de Tolstoi, ainda que a lavra fosse minha: "é preciso sair da aldeia para contemplar o vale". Eu justificava a amplitude do recorte cronológico do trabalho.

Volto à máxima e a reitero. Nossa aldeia é sempre sinônimo de conforto, bem-estar. Ainda que tenha muito trabalho, desafetos e problemas, tudo que se passa na aldeia em que vivemos é nosso. Nossas referências são aprendidas em nossas casas, com nossas famílias, em nossas igrejas aos finais de semana. Aprendemos qual restaurante frequentar e quais pratos pedir quando nos sentamos à mesa.

Sabemos os melhores caminhos para os lugares de hábito, pegando atalhos e manejando o volante sem necessidade de GPS. Usamos roupas que vêm do mesmo conjunto de lojas, tomamos café na mesma padaria de sempre e, como de hábito, folheamos livros da livraria da esquina. Pela lógica, o oposto é tão natural como abotoar uma camisa, qual caminho deve ser evitado, qual vizinho é detestável, qual rota deve ser escolhida.

Nesta vida pacata em que construímos nossas certezas, qualquer fuga do cotidiano traz impacto. As novidades chegam às aldeias, claro, e modificam por alguns dias a vida dos pacatos moradores. Mas, como vieram, ou se vão e tudo volta ao normal, ou são incorporadas, mais dia ou menos dia, ao costume dos aldeões.

A vida de nossa aldeia é, malgrado experiências com forasteiros, a mesma. A mesma paisagem se vê pelas mesmas janelas. Não há prédios altos que nos permitam ver além das ruas do próprio vilarejo.

Não há palavra melhor que descreva o que somos em nossas aldeias: idiossincráticos. Nossas peculiaridades não nos tornam abobados. Kant, um dos grandes filósofos do século 18, nunca saiu de sua aldeia: jamais saiu da Prússia e mal deixou sua cidade natal, Königsberg. Nasceu ali, estudou por ali, e tinha tantas idiossincrasias que seu passeio na praça no meio da tarde era tão pontual e regular, que, reza a lenda, ajustavam-se os relógios quando o viam: era 15h30min, pontualmente. Kant viu longe sem (quase) nunca sair, fisicamente, da aldeia.

Há, contudo, os parvos que moram nas aldeias. Esses não só têm a idiossincrasia de todos os vilões, como emprestam o radical grego para algo mais chão: são idiotas. Os tais idiotas da aldeia que Umberto Eco imortalizou. Antes confinadas a seus preconceitos em bares pequenos, cercadas de pouca plateia que lhe davam respaldo, tais criaturas, hoje, têm uma aldeia global com a qual se comunicar. Qualquer opinião terraplanista que antes encontraria esparso acolhimento agora gera engajamento em vídeos virais em redes sociais. O inepto saiu da aldeia e nunca viu vale algum, apenas aprofundou-se no abismo onde já vivia. Ou seja, pode-se sair da aldeia e continuar nela ao mesmo tempo. Quantos de nós conhecemos pessoas que viajam o globo e procuram comer no McDonald?s onde quer que estejam?

Sair da aldeia é deixar nossas certezas, nossas particularidades, idiossincrasias e idiotias para trás em busca de novos sabores, algo que nos balance o íntimo, sacuda aquilo que tínhamos como inabalável. Por que Kant, sem (quase!) nunca ter saído de sua aldeia, pôde ver tantos vales?

O vale é um horizonte que só se compreende quando nosso ponto de vista se alterou radicalmente, quando a experiência nos transformou. Uma experiência nos modifica de várias formas porque são várias as formas de experiência. No caso concreto do meu doutorado, como comentei no domingo passado, foram muitos as capotagens que me transformaram. Muito, muito estudo, uma mudança de paisagem, a distância da família, novos amigos, novos hábitos, estágios na França e no México etc. O Leandro que escrevia aquele prólogo era jovem, no entanto já compreendera a máxima que criara. Nunca reneguei o aconchego do hábito, gosto dele. Jamais aceitei me acomodar novamente em uma aldeia. Uma vez sabendo da beleza do vale, visto lá de cima, não queremos deixar de contemplá-lo. Àquele vale e a outros tantos que nem sabíamos existir. Tornei-me um aldeão peregrino.

E você, caro leitor e estimada leitora, conhece apenas sua aldeia ou já se arriscou para fora dela, escalando montanhas para contemplar vales?


28 DE AGOSTO DE 2021
COM A PALAVRA

O CONSUMIDOR É A MELHOR MÍDIA DO MUNDO

WASHINGTON OLIVETTO - Publicitário, 69 anos

Criador de campanhas memoráveis, como a do Garoto Bombril (1978), a do primeiro sutiã (1987) e do cãozinho da Cofap (1994), único latino-americano a ganhar o prêmio Clio Awards, por um comercial de TV para a revista Época (2001)

O publicitário Washington Olivetto é o criador de comerciais inesquecíveis da TV brasileira, como o do primeiro sutiã ou o do garoto da Bombril. Hoje, além de frequentarem o imaginário de uma geração, essas peças estão inseridas na cultura popular nacional. Esta, aliás, é uma das obsessões confessas de Olivetto, que, aos 69 anos, continua a busca incansável por fazer o "novo de novo".

Para ZH, ele apontou alguns momentos marcantes da trajetória e analisou o atual cenário da comunicação mundial. Com a bagagem repleta de conhecimento, de Londres, onde vive com a família, desde 2017, desembarca no RS, em Gramado, na próxima quarta-feira, para participar de uma palestra da Gramado Summit (empresa de eventos de inovação e tecnologia). Será sua primeira atividade presencial em dois anos.

Você está fora do Brasil desde 2017. Há alguma insatisfação com o cenário nacional?

Eu não saí do Brasil por causa do Brasil, saí por Londres. Eu tinha muita vontade de ter uma experiência profissional em Londres. Queria que meus filhos (um casal de gêmeos), adolescentes, depois de uma formação muito brasileira, tivessem a experiência da Europa. Gosto de Nova York, mas costumo dizer que Londres é a melhor Nova York do mundo (risos). Minha esposa, que teve uma produtora de comerciais (Conspiração), durante anos, a vendeu para os sócios e voltou a trabalhar no mercado de arte. Londres também é perfeita para isso.

O BRASIL FICA MAIS LEGAL A DISTÂNCIA?

A distância tenho vantagens. Uma coisa é mudar de país na condição de exilado. Outra, bem diferente, é poder voltar a hora que bem entender. É o meu caso, visito o Brasil com frequência. A sensação é semelhante à de assistir a um jogo de futebol pela TV ou dentro do estádio. Em casa, no sofá, você vê muito mais aquele lance, a jogada em si. No campo, a noção é de conjunto. Agora, acredito ter uma noção de conjunto muito maior do que quando estava no Brasil. Convivo com pessoas de distintas nacionalidades e ouço uma pergunta recorrente: como é que o país da doçura virou o país do amargor? Sinceramente, é difícil explicar. E muitos comentários feitos no Brasil sequer são cogitados por aqui. Os jornais britânicos, que têm por característica críticas mais veementes ao Brasil, de comunistas não têm nada. Estou falando do Financial Times, da revista The Economist. É uma maluquice dizer que uma crítica deste tipo de veículo é "coisa de comunista". Gestos como a grosseria com a primeira-dama da França (Brigitte Macron, em 2019), o negacionismo do governo diante da pandemia, os problemas com vacinas e, recentemente, a presença do exército nas ruas de Brasília (durante a sessão do voto impresso no Congresso) são vistos com muito maus olhos por aqui.

HIPOTETICAMENTE, COMO VOCÊ, PUBLICITÁRIO, MUDARIA ESSA PERCEPÇÃO NEGATIVA DO PAÍS?

É curioso, porque eu jamais fiz, ou faria, uma campanha política. Um dos grandes orgulhos que carrego é o de sempre ter trabalhado para a iniciativa privada. Afirmo que fazer campanhas de políticos, ou para governos, foi um dinheiro muito bom de não ganhar (risos). Isso também me dá independência para falar. Muita gente me pergunta, porque é da minha atividade, como eu reconstruiria a imagem do Brasil, tão depredada nos últimos tempos. Para fazer uma boa publicidade, o Brasil precisa, antes de tudo, arrumar o produto. A pior coisa que um mau produto pode ter é uma boa publicidade. Tempos atrás o The Guardian fez uma matéria dizendo que evitaria citar políticos brasileiros. O The Guardian justifica que políticos brasileiros provocam fatos com o objetivo de desviar a atenção. Na sequência, o veículo afirma que os brasileiros de que gostava era gente como Tom Jobim, Oscar Niemeyer e Ivo Pitanguy. Neste raciocínio, fica evidente que o Brasil tem pessoas incríveis em todas as áreas, na música, na literatura, no cinema...Acredito que é da somatória destas pessoas que surgiria a construção de uma bela imagem do país. Mas tem que arrumar o produto antes.

Por falar em produto, há uma movimentação de receitas publicitárias, com uma redução em 2020. O momento também afeta as agências ou essa tendência está associada à pandemia?

Sempre fujo da palavra "tendência". Deve ter sido inventada por alguém que queria imitar alguma coisa e, para dar dignidade ao ato, o apelidou de "tendência" (risos). Vejo uma quantidade maior de mídias nos últimos anos. No Brasil, cometeu-se o erro de gerar uma briga entre os onlines e os offlines. São complementares. Há, sim, mudança no universo de comunicação. A boa notícia é o que não mudou. Ou seja, sem uma grande ideia, nada acontece. Só que a grande ideia de hoje tem que ser única e com a capacidade de ganhar características de cada veículo. Não pode ser adaptada. Não pode ser um comercial de TV com versão de jornal, uma trilha de rádio, com um tema de internet. Não. A grande ideia deve ter a cara dos veículos. Aqui na Inglaterra, uma das mídias que mais crescem é o rádio. No Brasil também. É um veículo fascinante. Na pandemia, a demanda é por mais informação e menos persuasão. As pessoas precisam ser informadas, mais até do que seduzidas a comprar. E olha que eu digo isso como quem passou boa parte da vida seduzindo e vendendo. É mais do que natural que a TV perca um pouco de espaço, por exemplo, e tem relação com a pandemia, sim. Por outro lado, num país de dimensões intercontinentais, como o nosso, a TV aberta será importantíssima por muitos anos. A questão é fazer TV de qualidade. Este foi o grande fenômeno implantado pelo Boni (José Bonifácio de Oliveira) na Rede Globo. Fazer TV sofisticada e de pequeníssima audiência não é difícil. Fazer TV vulgar com alta audiência e pouca duração também não é difícil. O desafio, mesmo, é fazer o "popular elegante" e com qualidade. Isso a televisão brasileira conseguiu, particularmente na Globo. Eu fico revoltado e ofendido quando vejo determinadas figuras do Brasil atual querendo contestar e destruir as nossas melhores mídias. Você só faz um país com mídias de qualidade. O mesmo vale para a publicidade nacional, que só chegou a ser uma das melhores do mundo graças à qualidade da mídia brasileira. Simbolizando isso, eu diria que estão veículos como a Rede Globo, os jornais O Globo, Estadão, Folha de S.Paulo, Zero Hora, muitas das nossas rádios e, agora, as plataformas digitais.

Neste contexto, você declarou que plataformas e mídias digitais teriam de encerrar um dilema e se apresentarem como, de fato, são. Isso vale para os veículos de publicidade e de conteúdo?

É verdade que a composição atual torna híbrido o significado de cada plataforma. Sem dúvida, seria muito explícito dizer que se é um veículo de venda, ou um veículo de informação. Eu, que não declaro voto e nunca fiz campanha política, gosto muito da estrutura norte-americana em que os veículos de comunicação abrem seu apoio aos candidatos. Vejo isso como algo verdadeiro. Acho muito positivo, porque, por mais sincero que um veículo seja, é difícil ser isento. A isenção é algo que muitos tentam, mas nem todos conseguem. Às vezes você pensa que está sendo isento e não está. Isso vai ter que se ajustar fortemente. Outro aspecto é que se vende muito, no mercado anunciante, a ideia de quantificação de dados. Os grandes vendedores dessa ideia são as plataformas digitais. Na verdade, você só pode quantificar o que aconteceu. Primeiro, a gente precisa avaliar se tem a capacidade de encantar, de seduzir, de ser memorável. Se essas premissas forem válidas, terá o que quantificar. Do contrário, existe uma frase muito boa que resume o caso: quando não acontece nada, não acontece nada.

Os comerciais dos anos 1990 e 1980 eram caracterizados pela linguagem cinematográfica. Você é um dos expoentes desse momento, mas, hoje, a figura dos influenciadores digitais rouba a cena e as receitas publicitárias. Para onde caminha a publicidade?

A publicidade mundial e a brasileira, mais profundamente, vivem uma crise criativa. Ingenuamente, algumas pessoas acreditam que com um influenciador digital é possível obter resultados, sem os custos de produção. É uma economia bobinha, porque boa parte destes influencers relembram os primórdios da TV. Eles são exatamente iguais às garotas-propagandas. São iguais ao que se fazia quando a publicidade era absolutamente primária. É a mesma coisa que é chamada, aqui, no Brasil, de merchandising. Nos EUA, surgiu com o cinema. Vale a mesma regra, pode ser interessante quando há uma grande ideia. Lembro de quando o ator Luís Gustavo fazia em uma novela o personagem Mário Fofoca. Ele tinha um Fusca velho e sonhava toda a noite com um novo. Aquilo era um merchandising de alta qualidade, pertinente, divertido e inteligente. Só o sujeito passando no meio de uma novela e convidando uma personagem a "dar uma paradinha no banco tal" não é inteligente. Quando existem crises criativas, curiosamente, é até bom que piore porque será preciso bater no fundo do poço para que todos percebam que não funciona. Aí haverá a reinvenção.

Quando não havia crise criativa, o comercial da Bombril usava o humor para vender esponjas de aço e chegou a fazer uma encenação de Che Guevara e outra de Bill Clinton e Monica Lewinsky no auge do escândalo sexual. Seria possível repetir essas brincadeiras? A crise de criatividade não é fruto do ambiente atual?

Isso é fantástico. Foram 35 anos de Bombril com o mesmo criador, o mesmo diretor e o mesmo ator. Graças ao talento do Carlos Moreno, que consegue fazer qualquer personagem sem deixar de ser ele mesmo, a gente teve uma oportunidade única: usamos todas as possibilidades que a comunicação oferece. Normalmente, na campanha você escolhe uma opção. Pode ser o humor. Pode ser a emoção. O racional, o musical, enfim. Com o Moreno, fizemos tudo em 399 comerciais. Agora, sobre fazer isso no Brasil polarizado, todo mundo me pergunta a respeito do "politicamente correto". Costumo dizer que, muitas vezes, o "politicamente correto" é educado, certo e chato. Em outras, você tem o "politicamente incorreto", que pode até ser engraçado, mas é mal educado e ofende. No meio das duas coisas, existe algo que batizei de "politicamente saudável". É o que respeita a inteligência das pessoas, mas não joga fora o humor. É aquilo que não coloca o consumidor em uma redoma de vidro, pois é ele quem vai decidir. Hoje, há uma radicalização enorme, manifestada nas redes sociais. É preciso ter critério para dimensionar essas manifestações. Às vezes, uma mensagem em TV aberta é vista por milhões de pessoas. Neste contexto, 350 comentários, induzidos por alguém, numa rede social não significam absolutamente nada. Você só deve ter o cuidado de não alimentá-los, caso contrário a repercussão dura mais. Você precisa reconhecer que essa manifestação logo será substituída por uma nova bobagem. Por exemplo, o comercial da menina e o primeiro sutiã é belíssimo, premiado e reconhecido no mundo como um dos melhores de todos os tempos, por sua doçura, delicadeza e pertinência com o produto. O sutiã não é só uma roupa, representa a transição da menina para mulher. Não tenho dúvida de que, hoje, uma meia dúzia de malucos na internet diria que é um incentivo à pedofilia. Aí, a função é não dar bola e tocar o jogo para frente.

Além de uma grande ideia, quais elementos fazem uma campanha inesquecível acontecer?

A grande ideia tem uma característica fundamental. Ela é pertinente. Ou seja, uma grande ideia publicitária tem que ser memorável, original, inesquecível e, sobretudo, algo que só aquele produto poderia ter. A melhor publicidade, no fundo, é aquela que a gente olha e pensa que não teve autor. Parece feita pelo próprio produto. Uma coisa que percebi muito cedo é que ganhar prêmios e ser reconhecido é bom, mas tem algo melhor ainda. Minha busca sempre foi por criar publicidades que cumpram com as suas obrigações de vender produtos e construir marcas, mas que também tivessem a ambição de entrar para a cultura popular brasileira. É o meu melhor critério. É a razão pela qual muitas campanhas não ganharam prêmios internacionais, pois eram impossíveis de traduzir. O comercial da Cofap é um belo exemplo. Ele mudou o nome da raça Dachshund (salsichinha), que passou a ser chamada, no Brasil, de "cofapinho". Aquilo fez crianças se fascinarem pela ideia de acompanhar os pais na hora de trocar o amortecedor dos carros. Curiosamente, ganhou todos os prêmios nacionais e nenhum internacional. É que o Brasil é o único país em que existe a ideia de trocar o amortecedor a cada 30 mil km. Foi uma criação do senhor Abraham Kasinski, fundador da Cofap, para gerar a obsolescência planejada. Ele detinha todo o mercado de montadoras e precisou inventar um mercado de reposição de peças. Tive a honra de ajudá-lo. Minha ambição pela cultura popular é muito forte. É que, quando consigo isso, transformo o consumidor em mídia. Ele começa a repetir a minha publicidade. E ele é a melhor mídia do mundo. É gratuito e mais acreditável do que qualquer outra. Quando passei a fazer isso, gerei o mesmo fluxo das redes sociais, antes delas existirem.

Entre consumidores, os das classes C e D estiveram, por anos, no centro das atenções. Com a perda do poder de compra, deixaram de ser alvo das campanhas. Qual o efeito dessa retração?

Era tão importante, que quando eu estava no Brasil realizamos a maior pesquisa sobre o consumidor C e D. Era um sucesso, particularmente, para abordar possíveis novos clientes. Não houve um anunciante sequer que eu tivesse telefonado para apresentar a pesquisa que tenha dito "não". É uma pena, mas mudou. E, nós publicitários, lamentamos mais do que ninguém. Nunca tenho certeza se a frase é, de fato, minha ou se a gente não conhece o criador, mas esta deve ser: nem os sociólogos de esquerda gostam tanto de uma boa distribuição de renda quanto os publicitários. Nós dependemos disso para viver. É uma pena que tenhamos perdido a turma da classe C e D.

sua obsessão pela cultura popular nunca o levou a querer fazer cinema?

Na minha geração, tinha muita gente com talento. Com certeza, eu era o que mais queria ser publicitário. Nunca tive complexo de culpa. Não achava que era algo podre criado pelo capitalismo. Muito pelo contrário, eu pertencia a uma corrente de esquerda e de vanguarda, que já tinha lido (Vladimir) Maiakovski e sabia que jamais existiria revolução política sem revolução estética. Eu queria era ser publicitário. Fiz muita coisa com música, releituras que ganharam mais de 20 discos de ouro. Fiz pequenos filmes que teriam estruturas quase de longas. Mas a minha obsessão sempre foi a publicidade. Uma característica que construiu a minha vida foi me movimentar bem em muitas áreas e canalizar tudo no trabalho. Leio de tudo, do mais elaborado ao mais vulgar. Ouço todo tipo de música, vejo todo tipo de filme. Sou um sujeito que se treinou para não ter preconceito com informação. Claro que algum preconceito sobra, mas acredito que, se tenho, escondo bem. Por outro lado, minha obsessão é pela novidade. Minha ligação com a música popular, por exemplo, é forte. Virei canção do Jorge Ben na pessoa física (W/Brasil) e na jurídica (Engenho de Dentro). Essas várias facetas me ajudam. Porque eu tenho mesmo é fascinação por poder fazer, sempre, o novo de novo.

RAFAEL VIGNA

28 DE AGOSTO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

Racismo

Está arraigado nas profundezas do passado evolutivo e é um dos grandes responsáveis pela violência no mundo

Seres humanos dividem o mundo em "nós" e "eles". Criadas por razões religiosas, étnicas, preferências sexuais, futebolísticas ou de outra natureza, as tensões e suspeições intergrupais são as grandes responsáveis pela violência no mundo.

O preconceito que resulta dessas divisões não é consciente, está arraigado nas profundezas do passado evolutivo, na tendência universal de formarmos coalizões que nos ajudem a enfrentar os desafios que a vida impõe.

Experimentos conduzidos nos últimos 30 anos mostram que nos reunimos em grupos, mesmo em torno de objetivos fúteis: o fã-clube, uma cantora, um time ou um piloto de corrida. E que, ao nos incluirmos em tais agrupamentos, passamos a acreditar que nossos companheiros são mais inteligentes, espertos, generosos e dotados de valores morais superiores aos dos membros de outros grupos.

As pesquisas hoje estão dirigidas para as razões que nos levam a enxergar o mundo sob essa perspectiva do "nós" e "eles". Que fatores em nosso passado evolutivo forjaram a extrema facilidade com que formamos coalizões e reagimos de forma preconceituosa contra os estranhos a elas?

Para muitos psicólogos, o ódio dirigido a "eles" tem origem na generosidade manifestada em relação a "nós" mesmos. Seres humanos são os únicos animais capazes de cooperar tão intensamente com pessoas que não fazem parte de seu clã.

Essa característica se deve ao fato de que a adaptação à vida grupal foi decisiva à sobrevivência da espécie. Isolados, não escaparíamos dos predadores ao descer das árvores nas savanas da África, há 5 ou 6 milhões de anos.

Como consequência, esperamos encontrar acolhimento e solidariedade quando estamos entre "nós", porque somos mais amigáveis, altruístas e pacíficos do que os de fora. Valores morais dessa magnitude nos autorizam a agir com violência contra inimigos que julgamos não possuí-los, em caso de disputas por territórios, prestígio social, empregos ou acesso a bens materiais.

Nossos parentes mais próximos têm uma visão maniqueísta do mundo semelhante à nossa. Chimpanzés se juntam em bandos que atacam e matam membros de outras comunidades. Agressões por disputas intergrupais são descritas também em gorilas, bonobos e orangotangos, grandes primatas como nós.

O grupo de Laurie Santos, da Universidade Yale, estudou macacos rhesus, primatas que divergiram dos ancestrais que deram origem aos humanos 25 a 30 milhões de anos atrás. Colocados diante de fotografias, eles passavam muito mais tempo encarando as fotos dos macacos de outras comunidades.

A conclusão é de que nossas reações diante de estranhos fazem parte de um mecanismo neural de detecção de ameaças, que nos permite distinguir rapidamente amigos de inimigos.

Milhões de anos de seleção natural engendraram um sistema de segurança que erra menos ao disparar alarmes falsos do que se deixasse passar despercebida uma ameaça real. Nem todos, porém, reagem às sensações subjetivas de perigo da mesma maneira; aqueles que apresentam reações exacerbadas e desproporcionais são justamente os mais sujeitos a exibir comportamento preconceituoso.

O preconceito contra "eles" se manifesta de forma mais clara contra os homens (hipótese do homem guerreiro). À luz da evolução, foram eles que fizeram as guerras e atacaram nossos ancestrais.

Talvez por essa razão, homens negros sofram mais preconceito do que as mulheres da mesma cor, sejam tratados com mais violência pela polícia, recebam condenações mais longas, paguem aluguéis mais altos e sejam ofendidos nos estádios de futebol.

Temos ímpetos inatos para levantar fronteiras intergrupais que separam raças, línguas, comportamentos sexuais, religiões ou times de futebol. Uma vez que a linha fronteiriça esteja demarcada, discriminamos automaticamente os que estão do lado de lá.

Embora o preconceito esteja alojado em áreas arcaicas do sistema nervoso central, sua expressão não é inevitável. Nosso córtex cerebral já evoluiu o suficiente para reprimi-lo, de modo a abandonarmos a bestialidade do passado e adotarmos condutas racionais centradas na tolerância e na aceitação da diversidade humana.

DRAUZIO VARELLA

28 DE AGOSTO DE 2021
J.J. CAMARGO

Chega de saudade

Devíamos inventar uma vacina para aplacar a falta dos abraços. Porque a internet, ficou claro na pandemia, é placebo

Fui visitar o velho amigo que andava queixoso porque, segundo ele, não nos víamos há muito tempo. Querendo argumentar, disse que "como que não, se participamos de cinco lives no último mês?".

O olhar pareceu ainda mais triste quando ele respondeu: "Eu não vejo o que não posso tocar!". A interação virtual atenua mas não elimina a saudade que só se aplaca quando mantemos o ser querido apertado contra o peito, sem pressa de descolar.

Esse longo tempo em que imagem do monitor vem sendo a única forma de "contato humano" tem produzido uma subversão das nossas relações pessoais, com percepções diferentes. As pessoas menos afetivas se contentam com essa artificialidade, que se completa com a chatice do insosso "abração virtual", como se o toque, o cheiro e gosto não fossem os sentidos indispensáveis da relação entre seres amorosos.

Depois daquela introdução, pareceu natural que ficássemos de mãos dadas durante um tempo, e quando este gesto de carinho genuíno foi interrompido para segurar a xícara do cafezinho, ele tratou de bebê-lo rapidamente. A palma carente já estava de volta, porque a mãozinha eletrônica das plataformas é um recurso inanimado que ninguém conceberia que pudesse ser usado numa carícia elementar como um cafuné (ainda lembram o quanto era bom?).

Esta nova forma de contatar tem sido assumida com certa naturalidade pelos mais jovens, porque nessa idade são mais adaptáveis às circunstâncias. Ou porque, ao contrário dos velhinhos, nem viveram o suficiente para dar valor a um abraço, como fazem aqueles que ao longo da vida já abraçaram muito e descobriram que esta é a principal razão para termos sido concebidos com esses apêndices longos, sempre prontos a formarem uma concha.

Uma amiga querida me confessou que não sabe o que seria da vida dela sem o Skype que lhe permite conversar com a filha e ver a netinha crescer, nestes dois anos em que elas estão na Austrália. Fez a seguir uma descrição impressionante do efeito da saudade, gerando sintomas orgânicos que se acentuam durante a tarde, à espera do único momento solene de um dia inteiro.

Quando se aproxima o horário da chamada obrigatória, ela tem que se conter para parecer feliz e manter a filha animada com seu investimento profissional. Faz parte da introdução uma brincadeira em que ela "oferece um copo de suco" para a netinha, que sorri para o deslumbramento da vó. E então a confissão que me comoveu: "O que nenhuma das duas desconfia é que aquele suco gelado me ajuda a engolir a dor seca da ausência delas!".

Então resolvi descontrair: "Mas eu imagino que este contato, ainda que virtual, deva atenuar a tal pressão no peito que parece ser uma exclusividade dos avós!". O sorriso bonito continuava triste quando ela completou: "Claro que ajuda, porque eu vou me deitar em seguida, e a carinha sorridente da minha neta, se preparando para ir para a escola, alivia a minha dor na garganta e me afrouxa o choro".

Devíamos inventar uma vacina para a saudade, que ao menos minimizasse os efeitos. Porque a internet, ficou claro, é placebo.


28 DE AGOSTO DE 2021
DAVID COIMBRA

O homem que era uma onça

O que o Cunhambebe pensaria, se visse hoje a reunião dos índios em Brasília?

Cunhambebe foi, talvez, o índio brasileiro mais temido pelo homem branco, em 521 anos de convivência. Verdade que houve outros índios ferozes. Os indomáveis charrua, aqui, no Sul, e os poderosos goytacaz, no Rio de Janeiro.

Dos charrua escrevi dias atrás, eles jamais se renderam ao homem branco. Os goytacaz também não. Os goytacaz eram mais altos do que a maioria dos índios do litoral brasileiro. Usavam cabelos compridos, quase até a cintura, e eram corredores e nadadores invencíveis. Os goytacaz apreciavam comer carne humana, e o faziam por diletantismo ou fome, não como ritual.

Outro hábito dos goytacaz era caçar tubarão à unha. Repare que escrevi "caçar", não "pescar", porque era isso mesmo que eles faziam. O índio goytacaz se jogava nas águas do mar à procura de um tubarão. Quanto o tubarão o via, atacava. Mas o goytacaz contra-atacava dando um soco bem no nariz do bicho, que, perplexo com aquela ousadia, abria a bocarra. O goytacaz se aproveitava desse momento de surpresa e enfiava um galho na boca do tubarão, impedindo-o de movimentar a mandíbula. Depois disso, o índio metia o braço DENTRO do tubarão e arrancava-lhe o coração!

Agora me diga: alguém podia ser mais galo cinza do que um índio goytacaz?

Podia. Cunhambebe era.

Cunhambebe era um tupinambá de dois metros de altura e forte ao ponto de, nas batalhas, carregar dois canhões que havia subtraído dos portugueses, um embaixo de cada braço. Ele adorava comer portugueses. Contam que devorou mais de 60.

- Eu sou uma onça - dizia, e os inimigos estremeciam.

Cunhambebe liderou a chamada "Confederação dos Tamoios", que foi uma revolta indígena contra os portugueses. Conseguiu reunir milhares de guerreiros, pelo menos três vezes mais do que os 6 mil índios que nesta semana acamparam em Brasília. Esse exército formidável estava pronto para cair sobre os portugueses e, se o fizesse, os dizimaria, mas os europeus, cheios de promessas e jurando arrependimento, conseguiram convencer Cunhambebe a assinar um pacto de paz.

Com tempo para se reorganizar, os portugueses foram derrotando seus inimigos um a um. Cunhambebe, desolado, não foi batido em batalha, mas acabou morrendo de varíola. Assim, os tupinambá foram, na prática, extintos.

A mesma sorte coube aos goytacaz. Percebendo que não os derrotariam na guerra convencional, os portugueses apelaram para a guerra biológica. Deixaram roupas contaminadas com varíola perto das aldeias goytacaz. Os índios pegaram as roupas e as levaram para a aldeia, assim como os troianos levaram para dentro dos muros da sua cidade o cavalo de madeira dos gregos. A varíola dizimou praticamente todos, matando mais de 10 mil índios.

Hoje não existem mais índios goytacaz, mas existe a cidade de Campos dos Goytacazes, que fica onde eles viveram e morreram, no Rio de Janeiro.

De Cunhambebe o que resta é uma estátua no "Parque dos Tupiniquins", em Bertioga, São Paulo. Ainda quero ver de perto essa estátua, que só vi em fotos. Vou parar diante daquele personagem impressionante, agora imobilizado em bronze, e vou imaginá-lo repetindo o seu bordão que fazia estremecer o homem branco:

- Eu sou uma onça.

DAVID COIMBRA

28 DE AGOSTO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

TRANSPARÊNCIA E CRISE ENERGÉTICA

Vai na direção correta o governo federal ao criar programas de compensação financeira para grandes consumidores e clientes residenciais de energia diante da gravidade da crise hídrica atravessada pelo país. Em um momento de luz cada vez mais cara, com perspectivas pouco animadoras, incentivar a redução voluntária com vantagens na fatura é uma estratégia lógica e cabível para tentar amenizar a escassez gerada essencialmente pela falta de água nos reservatórios das hidrelétricas. Falta, entretanto, mais transparência e uma maior assertividade na comunicação com a sociedade em relação ao cenário preocupante à frente.

Provavelmente por receio de reflexos eleitorais, o governo resiste em falar abertamente no risco de racionamento, o que de certa forma já começa, com a obrigação de reduzir o consumo de energia nos órgãos públicos federais. A melhor maneira de enfrentar um problema, no entanto, é não negá-lo e admitir de forma límpida a sua magnitude. Até agora, o Ministério de Minas e Energia resiste em passar uma mensagem mais clara à população.

Na crise do apagão de 2001, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, foi criada a Câmara de Gestão da Crise de Energia, que passou aos cuidados do então ministro-chefe da Casa Civil, Pedro Parente. A palavra "crise", portanto, não foi escondida. Afinal, a ideia era exatamente dar à sociedade a nítida compreensão da seriedade da situação, em busca de um engajamento maior na busca por reduzir o consumo. Entre os interesses do país e o receio do reflexo da incerteza nas urnas no ano seguinte, optou-se pelo primeiro.

O governo Jair Bolsonaro não é responsável pela falta de chuva, mas tem o dever de buscar soluções de curto prazo pelo lado da redução do consumo, com o incentivo ao uso racional. Para isso, deve começar a se comunicar sem tergiversações. O presidente chegou a fazer um apelo na quinta-feira em sua live semanal, mas ainda foi algo de alcance limitado, direcionado à fração de seus apoiadores mais fiéis, e carente de institucionalidade.

A crise hídrica é a maior em nove décadas. É um fato que fala por si. Com as barragens das hidrelétricas nas grandes regiões geradoras em patamares críticos e previsões sombrias em relação à volta da chuva, não há outra saída a não ser acionar mais usinas térmicas, com custo de geração maior. Foi o que recomendou o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) na quinta-feira, junto a outras medidas, como a ampliação da importação de energia do Mercosul. As consequências na fatura dos consumidores são inevitáveis. Mas os problemas a serem criados, com reverberação na inflação e na recuperação da economia, o que inclui o risco de apagões, poderão ser bem maiores se a escolha for pelo negacionismo. A pandemia deveria ter sido uma lição aprendida. Assim, superar esta dificuldade passa pela elaboração de um plano robusto e transparente, despolitizando a questão.

Vinte anos depois, o país se encontra novamente em apuros, praticamente pelos mesmos motivos. Já ficou clara a necessidade de planejar o setor elétrico com uma maior diversificação da matriz, apostando mais na energia solar e eólica. Será inevitável pensar em térmicas a gás natural, que possam assegurar uma oferta mais firme sem risco de sazonalidade, ao mesmo tempo mais baratas e menos poluentes do que as movidas a diesel. As mudanças climáticas estão batendo à porta, com maior imprevisibilidade de chuvas em grande parte do país. Fiar-se principalmente em hidrelétricas deixou ser uma opção racional.

 


28 DE AGOSTO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

O CRIME COMPEN$A?

Propalar invencionices e mentiras pode transformar-se em milionária fonte de renda, tal qual demonstrou agora o corregedor do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Salomão, ao mandar congelar as receitas das chamadas redes sociais bolsonaristas.

No YouTube, os canais dedicados a ofender os críticos do presidente da República (e a santificar o que ele diz ou faz) tiveram receitas anuais de R$ 15 milhões a partir de 2019. Por outro lado, a Procuradoria-Geral da República contabilizou outros R$ 5,7 milhões obtidos, a cada ano, por canais menores, mas similares em conteúdo agressivo, de junho de 2018 a maio de 2020.

O cerne de tudo provém do "gabinete do ódio" instalado no Palácio do Planalto. Nada é mais convincente do que uma mentira elaborada com rigor, em que cada detalhe é pensado para atingir um fim. Em contraposição, a verdade é aquilo que é, sem admitir retoques ou emendas que lhe alterem o rosto. Assim, às vezes, a verdade se torna rude em si.

As tais "redes sociais" deram status à mentira. Prometem revelações "secretas ou desconhecidas" e têm milhões de seguidores ávidos por saber o que se oculta. O canal oficial de Bolsonaro tem 3,5 milhões de inscritos. Os investigados agora pelo TSE, outros 10,1 milhões.

Esses centros de invencionices têm propagandas pagas e recebem doações dos fanatizados usuários, passando a ser rentáveis, mesmo que nada produzam. A não ser fantasiar ou mentir, como no caso das urnas eletrônicas. Ou em chamar a covid-19 de "gripezinha", desmobilizando a população nos cuidados com a pandemia.

Vivemos hoje situações tão absurdas, que é lícito indagar: será que tudo mudou tanto que até o crime compen$a?

Quando se lida com o interesse público, até os erros de avaliação podem equivaler a um crime. É o caso de Porto Alegre, com a alteração do Plano Diretor para permitir enormes arranha-céus no centro da cidade.

E o mais desolador: a decisão se faz em nome da revitalização da área central, tão maltratada nos últimos anos. Os vereadores e o prefeito Melo não perceberam que o "centro histórico" irá se tornar sombrio, sem sol, com altas edificações impedindo sequer vislumbrar o céu azul?

A especulação imobiliária já transformou a capital gaúcha numa cidade vertical. Todo dia desaparecem as casas residenciais que, nos bairros, coloriam a cidade com jardins floridos à entrada. Dir-se-á que a população cresceu, mas até por isto é inexplicável que, no futuro, arranha-céus imensos escondam o sol.

FLÁVIO TAVARES

28 DE AGOSTO DE 2021
ACERTO DE CONTAS

Duelo de sulistas

A Havan passou a Lojas Renner no ranking 300 Maiores Empresas do Varejo Brasileiro, feito pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). A gaúcha perdeu mais posições do que a catarinense. A Renner estava em 9º lugar no levantamento anterior e passou para 14º. Já a Havan passou de 11º para 13º. O posicionamento é definido pelo faturamento, que, no caso da Havan, ficou praticamente estável em R$ 10,519 bilhões em 2020 sobre 2019. A Renner fechou o ano com R$ 10,341 bilhões, queda de 20,2%. Com sede em Porto Alegre e apesar da perda de posições, a Renner é a gaúcha mais bem colocada no ranking nacional, assim como a Havan é a líder entre as catarinenses. Presidente da SBVC, Eduardo Terra comenta que o crescimento da Havan tem sido impressionante.

Em estrutura, no entanto, a Renner se mostra bem maior. Ela atua em 27 Estados e tem 606 lojas. Já a Havan tinha 152 operações, em 18 Estados. Quando se fala em funcionários, a diferença, porém, não é assim tão grande. A empresa gaúcha emprega 24.757 pessoas, enquanto a companhia catarinense tem 22 mil funcionários, segundo as informações da SBVC.

Quem gera energia escapa de apagão?

Em tempos em que se teme o racionamento e até o apagão em horários de pico de consumo, surge a dúvida se quem gera energia solar fica sem luz no caso de um blecaute. Depende. Mas, na maioria dos casos, fica no escuro mesmo. A legislação determina que, quando há queda de energia, seja desligado o inversor - equipamento que converte o que é captado pelas placas fotovoltaicas para o padrão das tomadas. Isso ocorre automaticamente, assim como ele é religado quando a energia é restabelecida.

"É por segurança. Um técnico, por exemplo, poderia mexer na sua rede sem saber que ela está funcionando", explica o sócio-diretor da Ecosul Energias, Alan Spier.

Então, mesmo que a casa ou empresa esteja gerando energia naquele momento, ela fica sem luz. Quando é noite ou dia nublado também, claro, pois a energia é puxada da rede elétrica. Porém, há alguns sistemas off-grid que são ligados a uma bateria, onde é armazenada a energia solar gerada. Spier explica, no entanto, que precisa ser paralelo ao da rede elétrica:

"A lei não permite sistemas híbridos, nos quais o consumidor escolheria qual fonte usar naquele momento para o aparelho ou lâmpada".

Ainda são poucas baterias em funcionamento. Elas custam caro e têm durabilidade de poucos anos. Mas a tecnologia avança de forma acelerada. O empresário crê que elas estarão muito mais acessíveis e de uso disseminado em um período de cinco a 10 anos. Então, quem gera energia não dependerá mais da rede elétrica.

GIANE GUERRA

28 DE AGOSTO DE 2021
CLÃ PRESIDENCIAL

Filho e ex-mulher de Bolsonaro alugam casa de R$ 3,2 milhões

Jair Renan Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro, e sua mãe, a advogada Ana Cristina Siqueira Valle, alugaram uma casa avaliada em R$ 3,2 milhões em um dos metros quadrados mais caros de Brasília. Ela foi casada com Jair Bolsonaro, e hoje trabalha na Câmara dos Deputados.

Mãe e filho, de 22 anos, alugaram a casa no fim de maio, e se mudaram em junho. O local fica a 3,5 quilômetros de outra residência do clã presidencial: a casa do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), avaliada em R$ 6 milhões.

O imóvel locado por Jair Renan e sua mãe pertence a um corretor de imóveis, Geraldo Machado. O profissional adquiriu a casa poucos dias antes de fechar o aluguel para Ana Cristina e Jair Renan. Machado pagou R$ 2,9 milhões pelo imóvel, segundo os registros cartoriais, pouco abaixo do valor de mercado. Ele vive em uma casa simples em Vicente Pires, na periferia do Distrito Federal, em Taguatinga.

Ao portal UOL, o corretor disse que tinha compromissado a venda de sua casa em Vicente Pires, e que se mudaria para o Lago Sul depois que a transação se concretizasse. Como a negociação malogrou, ele alugou o imóvel.

Desde 17 de março de 2021, Ana Cristina é assessora da deputada federal Celina Leão (PP- DF), aliada do governo Bolsonaro. O cargo dela trouxe ganhos de R$ 6,2 mil líquidos este mês, e mais R$ 982 em auxílios. Jair Renan cursa computação no Centro Universitário de Brasília (CEUB) e tem empresa chamada Bolsonaro Jr Eventos e Mídia.

Na tarde de sexta-feira, o menor preço de aluguel de uma casa na nova quadra de Jair Renan e Ana Cristina era de R$ 7 mil, segundo o principal site de imóveis do Distrito Federal. Mesmo assim, tratava-se de um imóvel de padrão inferior àquele dos Bolsonaros. Os aluguéis disponíveis na quadra variam de R$ 7 mil a R$ 25 mil.

 


28 DE AGOSTO DE 2021
MARCELO RECH

Onde está o trabalho

Sou de um tempo em que, ao se entrar em elevadores, havia ali uma figura de semblante enfadado, com a cabeça encostada na parede enquanto apertava mecanicamente botões com os números dos andares. Tal e qual os acendedores de lampião um século antes, ascensoristas eram parte do cotidiano mas desapareceram porque assim é a história: profissões nascem, florescem e morrem à medida que a marcha da tecnologia e a busca da gratificação pessoal e da qualidade de vida avançam.

Pela profunda disrupção causada pela inteligência artificial, somada à pandemia e novas formas de negócios e pagamentos, o mercado de trabalho experimenta uma transformação comparável ao início da revolução industrial. É o caso, por exemplo, dos cobradores de ônibus, cuja atividade foi extinta em grande parte do mundo. Suas funções vêm sendo substituídas por cartões eletrônicos ou aplicativos em celulares. A prefeitura de Porto Alegre apresentou um plano para, gradualmente, treinar cobradores em outras funções até o fim de 2025, mas a resistência à mudança só estreita os caminhos para eles no futuro. Assim como não foi possível impedir o fim do ramo de acendimento de lampiões, fechar os olhos a essa revolução ou negá-la é uma temeridade com os que já foram, são e serão inevitavelmente atingidos.

Em vez de tentar proteger na marra profissões fadadas a desaparecer, retardando ainda mais oportunidades para forças de trabalho emparedadas entre duas eras, governos e sociedade deveriam concentrar esforços para reconverter a mão de obra pega no contrapé. Profissões queridas, como motoristas de táxi, telefonistas e frentistas, já mal existem em outras partes. Em contrapartida disparam ocupações de massa, como as de motoristas de aplicativos, entregadores e cuidadores de terceiros. No caso da tecnologia, então, o problema é outro: há escassez de gente especializada em programação e negócios digitais.

O novo mundo do trabalho está em moldagem permanente, mas com certeza privilegia menos chefes capatazes e mais líderes preocupados com o bem-estar das equipes, menos vigilância superior e mais autonomia (e, portanto, mais autodisciplina de cada empregado), menos ordens e mais propósitos, menos cartão-ponto e mais flexibilidade de horários, inclusive para trabalhar de casa, menos pressão e suor e mais qualidade de vida dentro e fora do local de trabalho e, principalmente, menos atividades mecânicas e mais as que requerem algum tipo de aptidão ou talento.

Ainda que não saiba, todo indivíduo tem os seus, a serem identificados, estimulados e desenvolvidos. Retardar esse desenvolvimento, seja por leis anacrônicas ou negacionismos diante do futuro, é atrasar o potencial de cada pessoa e a própria história da realização humana.

MARCELO RECH

28 DE AGOSTO DE 2021
J.R. GUZZO

O que a CPI da Covid produziu até agora

Não há registro, nos 200 anos de história do parlamento brasileiro, de alguma coisa tão calamitosa para o Congresso Nacional, o respeito devido às instituições e à lei e, no fim das contas, à ideia de que a vida pública deve ser conduzida com um mínimo de decência, quanto essa "CPI da Covid" que se arrasta por aí desde o início do mês de maio.

A CPI nasceu morta, por um motivo bem simples: sua intenção nunca foi fazer uma investigação séria de irregularidades ocorridas no tratamento da epidemia. Tudo o que quis, de maneira indiscutível e flagrante, foi chegar à conclusão de que o presidente da República havia praticado "genocídio".

Não se trata de uma questão de opinião: no seu discurso inicial, antes de se ouvir a primeira testemunha ou de se apurar o primeiro fato, o relator já anunciou que o relatório final da CPI iria condenar o governo, o seu "negacionismo", a cloroquina e sabe Deus o que mais.

Em quatro meses inteiros de ruído, gasto insensato de dinheiro público e acessos de histeria dos "acusadores", a comissão não foi capaz de descobrir um único fato real que apontasse para a prática de delitos. Não foi feita uma única acusação que tivesse um mínimo de valor jurídico.

Xingatório de mãe, desrespeito escandaloso aos direitos humanos e legais dos depoentes, acessos de neurastenia por parte dos inquisidores e mentiras em estado puro - é tudo o que essa aberração produziu até agora e vai produzir até acabar, em novembro.

No momento, como se o fracasso absoluto das acusações em termos de fatos e de provas não existisse, a CPI enrola a opinião pública com mais um "jantar" que "teria" havido para combinar alguma "possível" roubalheira em não se sabe bem o quê. Há também a opção de debater voos de avião "para a Índia" para uma compra de vacinas que não foi feita, num negócio que não se sabe qual é.

É difícil de acreditar, mas tudo isso rende manchete diária na imprensa. O relator e o presidente da CPI, além dos seus colegas mais excitados, publicam na mídia, desde o primeiro dia de CPI, qualquer disparate que queiram.

Em nenhum momento se menciona que o relator da CPI tem nove processos penais no lombo, e que o presidente é um veterano de investigações sobre corrupção da Polícia Federal na área da saúde.

Não se dá um pio, igualmente, sobre o aspecto mais sórdido e inexplicável dessa CPI. A investigação não apura nada da corrupção gigante que foi a gestão da covid nos Estados, o "covidão" - ao contrário, oculta deliberadamente o seu extenso prontuário de roubos de respiradores, superfaturamento em hospitais de emergência que nunca funcionaram, contratos secretos de compra e por aí afora. Esses são os fatos. O resto é falsificação.

Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO


28 DE AGOSTO DE 2021
CARTA DA EDITORA

O olhar atento do repórter

O repórter Rodrigo Oliveira, que integrou a equipe de jornalistas do Grupo RBS enviada a Tóquio para acompanhar os jogos, traz nesta edição uma reportagem mostrando o impacto que teve no Rio Grande do Sul a participação exitosa dos skatistas brasileiros nas Olimpíadas.

Rodrigo é um dos jornalistas mais completos e está sempre pronto a atuar em outras frentes que não a do futebol. Seja na rádio, no jornal ou no digital, suas reportagens não se limitam a informações que estão ao alcance de todos. Buscam contemplar todos os ângulos, trazem bastidores, várias visões sobre o mesmo tema, dados reveladores. E foi assim com o conteúdo das páginas 34 e 35.

Além de comprovar que disparou o número de pessoas se matriculando em aulas de skate, em especial crianças, por conta do sucesso de Rayssa Leal - medalha de prata na categoria street -, a reportagem mostra que as pistas estão ainda mais lotadas e os comerciantes estão vendendo uma quantidade maior de produtos relacionados ao esporte. Porém, junto com esse fenômeno, o repórter também captou um problema que tende a crescer: devido ao aumento da demanda por aulas, estão aparecendo professores de skate sem a capacitação necessária.

- Isso me lembra muito o que aconteceu com o tênis no Brasil depois de o Guga ganhar Roland Garros em 1997. O esporte teve uma disparada no número de praticantes. No entanto, a formação de professores qualificados não cresceu na mesma proporção, e muitos tenistas sem capacitação começaram a dar aulas de tênis para surfar na onda. Resta saber como as entidades que administram o skate vão aproveitar o momento - conta Rodrigo.

A reportagem também está disponível aos assinantes de ZH pelo aplicativo ou pelo site de GZH.

Outro destaque desta edição é o caderno especial Viagem. Nele o leitor vai encontrar atrações turísticas do Rio Grande do Sul, que permitem viagens curtas e de carro, contam com opções ao ar livre e seguem os protocolos sanitários. O conteúdo contempla diferentes atividades, como trilhas pelos cânions, passeio de balão e pisa de uvas. Há informações sobre rotas de viagem, horários de funcionamento e preços.

DIONE KUHN