sábado, 27 de junho de 2015




28 de junho de 2015 | N° 18208
MARTHA MEDEIROS

Uma casa em frente ao mar


Nunca mais escrever uma única linha, basta, tempo esgotado, já disse tudo o que tinha e o que não tinha para dizer, nada mais a acrescentar

Sabe aqueles dias em que você pensa o que ainda estou fazendo aqui?

Sendo “aqui” uma cidade em que você corre o risco de ser assaltada, em que mil festas, peças e lançamentos acontecem e você não consegue participar de quase nada por falta de tempo ou cansaço, e em que você fica dia e noite na internet conferindo as postagens de gente que mal conhece, permitindo que a felicidade e a inteligência alheias minem aos poucos sua autoestima, já que você, sendo bem franca, não é tão feliz, nem tão linda, nem tão espirituosa, nem tão brilhante. Sabe aqueles dias?

Tenho tido uns dias assim. Em que me visualizo numa casa à beira-mar com uma longa extensão de areia para minhas caminhadas, seguindo uma dieta mediterrânea com peixes, azeites e tomates que muito me atraem, lendo finalmente os livros que acumulei na esperança de que chegaria a hora deles, cometendo alguns pecados capitais como a preguiça, a luxúria e a gula, passando os dias ouvindo música, gastando pouco, vestindo quase nada, recebendo visitas ocasionais, aprendendo a cozinhar, namorando um pescador, ah, essas fantasias que nem mesmo originais são.

Por escrito, esse desapego soa como o Éden, mas vivenciado, sabemos que nem sempre é tão fácil. Pessoas acostumadas a estarem plugadas na tomada geralmente não suportam mais do que três dias de mansidão, o que dirá três anos, o que dirá o resto da vida, esta que pode durar ainda umas três décadas.

O que fazer quando se está tão desinteressada do que se tem?

Hoje foi um dia em que me transportei para o clichê de todo workaholic: adeus, estresse, vou abrir uma pousada – eu que nunca sonhei em ter uma pousada. Sonho, neste instante, em não ter carro, não ter compromissos, não ter agenda, não ter coisa alguma. Raspar minhas economias no banco e torrá-las na manutenção de um cotidiano simplificado.

Nunca mais escrever uma única linha, basta, tempo esgotado, já disse tudo o que tinha e o que não tinha para dizer, nada mais a acrescentar. Agora, só leitura, só silêncio, só papo furado com o pescador. Segunda vez que o pescador aparece nesta história, já estou apaixonada antes mesmo de conhecê-lo.

E à noite, olhar as estrelas, beber meu vinho e morrer de um tédio bom. Quando a santa paz começasse a dar nos nervos, poderia voltar à urbe, rever os amigos, pegar um cinema, renovar o estoque de livros, de queijos, de frescuras e retornar correndo para a beira da praia, fazer um rabo de cavalo e se sentir personagem de um filme – eu sempre enxergo esses ermitões de meia-idade como charmosos personagens de um filme alternativo, de baixo orçamento e pouca bilheteria.

Mas esse filme ainda não saiu do papel e amanhã é segunda-feira. Acorda, dona Martha.


28 de junho de 2015 | N° 18208
CARPINEJAR

Felizardos os casais da manhã

O sexo de manhã estabelece anticorpos contra a infidelidade.

Casais que preferem o turno matinal desarmam qualquer pulada de cerca.

É um escudo para amantes. Uma cerca eletrônica na aliança.

Dificilmente a esposa ou o marido trairá com um envolvimento ao despertar do dia, seja rapidinha, seja média com pão e manteiga. O contato fervoroso logo cedo liquida com as dúvidas do relacionamento.

Estará com o cheiro de seu amor no corpo, a saudade quente, o gosto da cama da própria casa, é muita desfaçatez sair procurando mais, daí já é doença. A tese de trair por falta de interesse do parceiro também cai por terra. Nem pode alegar a ausência de cuidado para flertar com terceiros.

O hábito ainda acaba com a compulsão dos tarados. Não há tentação que resista. O sexo de manhã é prevenção. É marcação de território. Felizardos são os que praticam.

Quem terá vontade de transar em menos de seis horas? Improvável. Estará satisfeito demais para dar mais uma e correr o risco de ser pego.

Interrompe as estratégias dos amantes de se encontrar ao meio-dia em hotel e no decorrer da tarde em motéis, suspende as escapadas dos intervalos do serviço.

É tudo muito recente para pensar bobagem. A culpa não lhe deixará responder sim para o inimigo.

Por sua vez, os casais que optam pelo tradicional sexo no fim do dia sofrem com o acúmulo de tarefas. Para transar, terão que enfrentar o cansaço do trabalho, os problemas e o sono. Podem adiar o prazer à espera de um final de semana redentor, que nunca chegará. A abstinência involuntária abre a guarda para indiscrições e convites na web. Não estarão mais sozinhos, mas rodeados de preocupações a respeito do pensamento silencioso de quem acompanha: será que ele me ama? Será que ela me quer? Por que não me procura mais?

A idealização sempre gera adiamento. Será uma maratona para abrir espaço a dois e criar clima entre banho, jantar, filhos, contas, tarefas, telefonemas, leituras, televisão. A noite gera desespero e extremismo. É agora ou nunca. Um vai querer mais do que o outro, um vai se incomodar mais do que o outro, um vai dormir emburrado por fracassar em seus ataques enquanto o outro dormirá triste por ser forçado a algo que não deseja.

Já os que realizam sexo de manhã têm uma vantagem. Vivem desobrigados, leves, podem reservar o entardecer para conversar, jantar e assistir novela. Não precisam pressionar nada, muito menos inventar desculpa como enxaqueca e indisposição.

E se, por ventura, estiverem excitados à noite será um bônus, uma promoção, um prêmio pela antecedência. Certamente despertarão inveja dos amigos: alcançaram a média nacional do mês em 24 horas.

quarta-feira, 24 de junho de 2015



24 de junho de 2015 | N° 18204 
MARTHA MEDEIROS

Um novo Brasil sobre os escombros

Ao dar um giro pelo planeta, descobre-se, por exemplo, que a maior atração turística de Mostar é uma ponte que foi reconstruída depois da guerra da Bósnia. Que Munique é deslumbrante mesmo tendo sido quase toda devastada por bombardeios durante a II Guerra Mundial. E que praticamente tudo o que o tsunami no norte do Japão arrasou, há apenas quatro anos, já está em pé de novo.

O ser humano é regenerador. Confiante nisso é que me sinto feliz com a situação atual do Brasil, este país sem terremotos, tsunamis, guerras ou desastres ambientais de grande magnitude, mas com uma canalhada de dar medo: se tudo se reconstrói e fica melhor, nós conseguiremos também.

Não temos templos com marcas de tiros de canhões nem ruínas de cidades dizimadas por antigas civilizações, mas aguardo um Museu da Corrupção em cada capital (o museu virtual existe, acesse muco.com.br), com fotos, documentos, gravações, tudo que comprove nossa devastação moral e que cumpra o dever de manter vivo o passado para que ele não seja repetido.

Foram muitos e muitos anos de um Brasil destruído pela ganância, muitos e muitos anos de um país que não se desenvolveu como deveria por causa dos ratos que corroeram as leis e impediram qualquer espécie de grandeza, muitos e muitos anos em que os traíras da nação foram mais danosos que os inimigos externos – aliás, nossos inimigos externos nunca foram páreo para os internos, os que aqui nasceram sem nenhum traço de honestidade. Nossa guerra foi dilacerante porque éramos nós contra nós mesmos.

E agora aí está. Empresários e políticos atrás das grades, a respeitabilidade reduzida a níveis subterrâneos e a consciência inquestionável de que este é um país que sempre foi surrupiado, lesado – quase nada poderia mesmo ter vingado diante de tanta falcatrua. Somos gatunos natos. Uns melhorzinhos que outros, mas os piorzinhos fazendo um estrago avassalador.

Rouba-se pouco e muito, rouba-se na esfera pública e privada, rouba-se do condomínio e da Receita Federal, rouba-se no troco e rouba-se no orçamento, rouba-se no leite, no queijo, na gasolina, no esporte, rouba-se de dia e de noite, com armas e com liminares, rouba-se com os pés descalços e de gravata, rouba-se de fiéis e de ateus, rouba-se por trás, de frente e de viés. Um dia isso iria eclodir. Quem precisa de Hiroshima, de bomba de napalm? Temos nosso próprio cogumelo de fumaça encobrindo a música, a natureza e a alegria que tão bem nos representavam até pouco tempo.

A boa notícia? Se tivermos sorte, essa devastação nos transformará finalmente em um país maduro, forte e ético. Basta que no futuro ninguém mais tolere que esta desgraça chamada corrupção volte a ser epidêmica.

sábado, 20 de junho de 2015



21 de junho de 2015 | N° 18201
CARPINEJAR

Por que escrevo sem parar?

Escrevo sem parar, escrevo cinco textos por semana, para que você nunca deixe de se apaixonar por mim.

Escrevo sem parar para que você me abrace pelas costas, e nem lhe veja se aproximar de mim, distraído como sou diante das janelas abertas, que apareça com seus pés de vento e pluma e me enlace e encaixe sua cabeça em meus ombros e diga que me ama suspirando, como alguém que diz um bom dia nos ouvidos.

Escrevo sem parar para lhe convencer do quanto preciso de você, do jeito que for, do jeito que é. Escrevo para me casar com você, para planejarmos as férias, para um dia você deixar que o nosso filho jogue bola dentro de seu ventre.

Escrevo porque não me dei por vencido, não me dei por satisfeito, não sinto que o meu amor é suficiente para garantir o seu amor e farei surpresas no interior das surpresas até que tudo entre nós seja conhecido.

Escrevo sem parar em qualquer canto ou movimento, com caneta, lápis, teclado e unha na tela, a tinta dos meus escritos estará em seus olhos verdes.

Escrevo sem parar, mesmo que não me leia, mesmo que me esqueça, mesmo que não tenha vontade de falar comigo. Escrevo sem parar porque há datas quebradas, há datas com uma única asa para voar e o esforço das pernas em correr para ganhar impulso.

Escrevo sem parar porque a água é madura com as pedras redondas no fundo do leito, porque eu sou maduro quando toco os seus pés na cama. Escrevo sem parar, pois caminho um pouco mais com a boca em cada beijo nosso.

Escrevo sem parar em nome do que não vi, não vi você andando de bicicleta. Escrevo sem parar para chamar a sua atenção, pela carência que ilumina os meus enganos, pela fé que conserta o meu juízo, pela esperança que refaz a nossa memória.

Escrevo sem parar para curar a sua tristeza, para que não se isole nos pensamentos loucos, para jamais conclua que é melhor ficar sozinha. Escrevo sem parar para vê-la de novo abrindo a porta de nossa casa.

Escrevo sem parar para admirá-la por encontrar um modo de tomar banho de sol no inverno, ainda que cheia de casacos, com o mesmo tempo de frente e de costas.

Escrevo sem parar porque meu sangue deve ser quente e sua cerveja gelada.

Escrevo sem parar como um mendigo que se cobre de jornal e não lê as notícias que estão em sua cara, que prefere inventar a próxima manhã, absurdamente desatualizado da própria vida e só sabendo de você.

Escrevo sem parar por orgulho e teimosia, por insistência e vaidade, já que não encontrei nada melhor que substituísse seu riso. Escrevo sem parar pelo dom de confundir o espaço dos travesseiros e me prender em seus cabelos quando deitamos juntos.

Escrevo sem parar, como um animal da respiração, baixo a cabeça e escrevo, este meu violão sem cordas, esta minha flauta sem pinos, este saxofone sem garganta. Escrevo sem parar a procurar um perdão melhor do que o de ontem, uma confissão mais sincera para amanhã, palavras que confirmem o quanto sou seu desde sempre.

Escrever é a minha decisão de estar com você.


21 de junho de 2015 | N° 18201
MARTHA MEDEIROS

Nem todo mundo

Nem todo mundo quer ser campeão, presidente, celebridade. Há quem queira apenas viver de um jeito que não seja julgado por ninguém 

A gente acredita que existe um senso comum regendo nossos gostos e opiniões, porém somos sete bilhões pensando e vivendo de forma muito distinta uns dos outros.

Nem todo mundo é regido pelo dinheiro, por exemplo. Dinheiro é bom, é necessário e, quanto mais, melhor – mas esse “mais” não obceca a todos. Há quem troque o “mais dinheiro” por “mais sossego” e “mais tempo ocioso”. Qual o sentido de trabalhar insanamente se já se tem o suficiente para viver com dignidade?

Nem todo mundo gostaria de morar numa mansão com uma dezena de quartos e espaço de sobra para se perder: tenho uma amiga que desistiu do apartamento cinematográfico onde morava, pois ela não conseguia enxergar os filhos nem conversar com eles – eram longos os corredores e muitas as portas. Parecia que a família vivia num hotel, e não num lar. Trocou por um apartamento menor e aproximaram-se todos.

Nem todo mundo prefere mulheres com cara de boneca e corpo de modelo, ou homens com rosto de galã e corpo de fisiculturista. Imperfeições, exotismo, autenticidade, um look de verdade, natural, sem render-se a uma busca sacrificada pela beleza, ah, o valor que isso ainda tem.

Nem todo mundo gosta de bicho, de doce, de praia, de ler, de criança, de festa, de esportes, e nem por isso merecem ser expulsos do planeta por inadequação crônica. Seus prazeres estão fora do catálogo da normalidade e ainda assim são criaturas especiais a seu modo, enquanto que outras pessoas podem cumprir todas as obviedades consagradas e isso não adiantar nada na hora da convivência: são ruins no trato, fracas de humor e voltadas para o próprio umbigo, apesar de seu exemplar enquadramento social.

Nem todo mundo veio ao mundo para brigar, para reclamar, para agredir, para difamar, para fofocar, para magoar, para atrapalhar – hábitos de muitos, até arrisco dizer que da maioria, já que é mais fácil chamar a atenção através do nosso pior do que do nosso melhor. O pior faz barulho, o pior ganha as manchetes, o pior gera comentários, o pior recebe os holofotes, o pior causa embaraço. Porém, há os que vieram em missão de paz e não se afligem pela discreta repercussão de seus atos.

Nem todo mundo quer casar, quer filhos, quer fazer faculdade. Nem todo mundo quer ser campeão, presidente, celebridade. Há quem queira apenas viver de um jeito que não seja julgado por ninguém, há quem queira apenas se expressar de um modo menos exuberante e mais íntimo, há quem queira apenas passar pela vida nutrindo a própria identidade, não se preocupando em colecionar seguidores, admiradores e afetos de ocasião.

Sem jogar pra torcida, há quem queira apenas estar bem consigo mesmo.

quarta-feira, 17 de junho de 2015



17 de junho de 2015 | N° 18197 
MARTHA MEDEIROS

Estrago seu amor em três dias

Café da manhã do dia 1:

Você está sorrindo do quê? O dia está feio e o café está frio. Você é boba mesmo.

Música a uma hora dessas? Desligue esse jazz, mulher, que troço chato.

Vou almoçar na minha mãe.

Você acha que ainda tem idade para usar uma calça rasgada?

Quem está mandando WhatsApp para você antes das 10h da manhã?

Essa sua amiga é muito folgada, não é à toa que ainda está solteira.

Não sei a que horas eu volto.

Café da manhã do dia 2:

Por que você não me acordou antes? Estou atrasado.

É hoje o tal jantar daquela sua prima, a Nadine? Não sei se vou ter paciência, as conversas são sempre as mesmas.

Você não está arrumada demais para um simples dia de trabalho?

Peguei o último iogurte. Tem que comprar mais.

Não cabe mais um único creme na bancada do banheiro, pare de gastar com essas besteiras. Eles não têm adiantado nada, desculpe dizer.

Espero que o vizinho não tenha prensado o carro dele contra o meu na garagem. Ontem quase não consegui abrir a porta. Furo os pneus do carro dele ou dou uma arranhada na lataria daquele calhambeque?

Sabe que eu até que simpatizo com esse Bolsonaro? Ele diz coisas que a gente pensa e não tem coragem de falar.

Vou almoçar com um cliente. 

Café da manhã do dia 3:

Vinho ruim o de ontem, hein? Que dor de cabeça dos infernos.

Claro que tenho lido o jornal. Mas nunca ouvi falar nesse filme.

Cinema, cinema! Por que você não gosta de novela, como toda mulher?

Vou almoçar na minha mãe. Até o fim do mês a gente transa, prometo. Não fica nervosinha.

Você não achou ridícula aquela declaração de amor do Mateus para a Nadine ontem? Estão casados há 19 anos e ainda se prestam àquele vexame.

Sei lá quem é Tim Burton. Já disse que vou almoçar na minha mãe?

Como assim, tchau? Volta aqui, mulher.

sábado, 13 de junho de 2015



14 de junho de 2015 | N° 18193
CARPINEJAR

Amor vira-lata

Ela não aceita que chamem seu namorado de feio, diz que ele é apenas desarrumado.

Ela não aceita que chamem seu namorado de vesgo, diz que ele olha para todos os lados por segurança.

Ela não aceita que chamem seu namorado de vampiro, diz que ele tem um sorriso de criança.

Ela não aceita que chamem seu namorado de confuso, diz que ele procura a palavra certa.

Ela não aceita que chamem seu namorado de estranho, diz que só é estranho aquilo que a gente não conhece.

Ela não aceita que chamem seu namorado de retraído, diz que ele é apenas educado.

Ela não aceita que chamem seu namorado de tolo, diz que ele é um sonhador.

Ela não aceita que chamem seu namorado de desocupado, diz que ele estuda muito e um dia será famoso.

Ela suspira descrevendo o que é a mão dele suando na mão dela, o quanto se arrepia quando ele beija sua testa, o quanto se sente orgulhosa de andar abraçada nele, o quanto logo que se afasta já quer voltar para perto, o quanto a saudade elimina os defeitos, o quanto o coração bate inesperado quando ele deseja uma “Boa aula” ou comenta que “Foi bom te ver”.

Ela não aceita que falem mal de seu namorado. Porque não é qualquer um, é seu namorado, é o homem que ela escolheu entre todos os homens que ela viu passar.

A beleza vem de sua verdade, de nenhum outro lugar mais seguro. Ninguém tira e ninguém atrapalha sua crença. Não serão os pais, os amigos, os colegas que a farão pensar o contrário. O sentimento não muda de opinião.

Ela me apresentou seu namorado em Teresina, quando participava do Salão do Livro do Piauí (Salipi):

– Não é lindo?

Eu achei mesmo o menino lindo. O menino encabulado atrás dela. O menino escondido na moldura crespa dos cabelos dela. O menino e sua leoa. O menino e sua protetora. O menino que amadurecerá protegido por aquela mulher, que conseguirá superar os preconceitos e o bullying pela devoção milagrosa.

Não há como desmanchar um amor vira-lata. Porque o vira-lata não foi escolhido pela sua formosura, mas definido pelo território insondável da ternura.

Adota-se um vira-lata pelo jeito torto que anda, pelo lampejo do olhar miúdo e de pobres cílios, pela carência de seus meneios.

Um vira-lata será chamado pelo nome, não pela sua raça e pedigree.

O vira-lata tem resistência, tem humildade, tem sabedoria de rua.


O vira-lata será sempre grato. Não precisa de nada para ser feliz; basta ser simplesmente amado.


14 de junho de 2015 | N° 18193
MARTHA MEDEIROS

Saudoso e-mail

Agora, você troca mensagens instantâneas, um toma lá dá cá que faz todo mundo parecer meio esquizofrênico

Quando o e-mail surgiu, foi considerado um meio prático, porém frio de se corresponder. Mas agora que o e-mail foi reduzido a pó por Face, WhatsApp & Cia, agora que ele sobrevive apenas para a troca de mensagens profissionais (e olhe lá), agora que ele respira por aparelhos, já podemos lembrar, nostálgicos, de como ele era refinado.

O e-mail entrava discretamente na sua caixa de mensagens e ficava ali, quietinho, aguardando pacientemente o momento em que o destinatário pudesse lê-lo e respondê-lo. Havia todo o tempo do mundo para isso. A resposta podia ser bem articulada, revisada e enviada sem nenhuma aflição. 

Claro que não era agradável deixar alguém aguardando uma semana, mas na maioria das vezes não levava tanto tempo assim, o retorno geralmente era dado no mesmo dia ou no dia seguinte, e isso era suficiente para comemorar esta vibrante conexão virtual.

Isso foi ontem. Anteontem. Um século atrás. Dá no mesmo.

Agora, você troca mensagens instantâneas, um toma lá dá cá que faz todo mundo parecer meio esquizofrênico. A questão do corretor de texto é uma insanidade. “Oi, Patricia!” se transforma em “Ouviu, patife!” e o que era para ser um gentil cumprimento vira um insulto. Não preciso dar outros exemplos, você passa por isso todos os dias: corrigir com avidez as bananices que o corretor comete à revelia.

Mas o mais grave nem é isso.

É ter que responder de bate-pronto. Eu às vezes não sei exatamente como reagir a algo que me escreveram, gostaria de ter ao menos cinco minutos para processar a informação e entender o que estou sentindo antes de mandar a resposta, cinco minutos não é tanto tempo, é? Ora, em cinco minutos o interlocutor já se atirou do oitavo andar, sentindo-se rejeitado pelo meu silêncio.

Não, senhora, você não pode pensar nem cinco, nem dois, nem meio segundo, precisa escrever feito um raio, num flash, sem pestanejar, porque o outro está digitando ao mesmo tempo e isso configura um duelo, ganha quem disparar primeiro. Portanto, seja ligeira e tenha presença de espírito – ainda isso: é imperativo mostrar que é engraçadinha.

Só que não sou engraçadinha. Sou cautelosa. Ponderada. Gosto de construir frases. Criar raciocínios. Sou escritora, me dê um desconto. Não consigo me contentar com frase de telegrama, que, aliás, é uma coisa bem antiga, se não me falha a memória.

Bom mesmo seria se a gente continuasse a se comunicar frente a frente, transmitindo nosso estado de espírito com o próprio rosto, sem precisar do auxílio de algum emoji. Se a gente pudesse falar com calma e o outro responder com calma. Mas isso parece que também é coisa muito antiga.

Nasci atrasada, estou sempre correndo atrás do tempo: aquele tempo que o e-mail me dava pra pensar. 

quarta-feira, 10 de junho de 2015



10 de junho de 2015 | N° 18189 
MARTHA MEDEIROS

Sentido anti-horário

Há 16 anos, publiquei um texto no Dia dos Namorados intitulado “O dia do amor”. Eu defendia o 12 de Junho como uma oportunidade para celebrar os sentimentos, as emoções, o afeto, enfim, tudo o que une duas pessoas, não importando qual o seu sexo. O resultado foi uma chuva de mensagens calorosas e concordantes. Na época, me chamou a atenção o fato de eu não ter recebido xingamentos ou reações preconceituosas. Pensei: estamos evoluindo.

De fato, 16 anos atrás estávamos mais adiantados.

Hoje, deparo com essa onda moralista de solicitar boicote pra novela, boicote pra propaganda, boicote pra qualquer coisa que envolva cenas de homossexualidade e tento entender a razão do retrocesso. Avançou-se demais, foi isso? Parece que foi isso.

Enquanto o assunto ficava restrito a teorias, era fácil ser civilizado. Aceitava-se que homossexuais pudessem jantar fora e trocar presentes no dia em que todos os namorados faziam o mesmo, desde que longe dos olhos da família tradicional brasileira. Ficando no gueto deles, tudo certo.

Hoje, os personagens gays da tevê não são caricatos, se beijam, trabalham e têm família – credo, até parecem normais. Foi só dar a mão que eles tomaram o braço.

Deve ser esse o pensamento de quem se escandaliza com um comercial singelo como o do Boticário ou com o fato de duas octogenárias trocarem um selinho na novela das nove. Acredita que invadiram seu latifúndio e agora tenta evitar que o inimigo tome posse. Que inimigo? Também não sei.

Entendo que muitas pessoas se sintam constrangidas diante de cenas de carinho explícito entre gays. É algo ainda novo e estima-se que o costume com a situação venha com o tempo, mas o que me espanta é que 16 anos atrás não se fazia tanto escarcéu. Nas redes sociais, hoje, é comum publicarem pérolas como “a Globo está em campanha para nos empurrar goela abaixo a homossexualidade, só porque lá dentro tem um monte de gays”. Pois é, nas outras empresas, não tem.

Dentro das famílias, não tem. Na praia, não tem. Nas academias, não tem. Nas universidades, não tem. Nas favelas, não tem. Só dentro da Globo. Só artista é gay. Engenheiros, professores, advogados, atletas, políticos, empresários, jornalistas, cozinheiros e demais profissionais estão imunes. Houve alguma campanha de vacinação?

Até o Papa flexibilizou, mas não adianta: em nome da religião, logo dela, segue-se difundindo por aí a intolerância e a mesquinhez. Luta-se contra algo que jamais vai acabar: a pulsão de amor e desejo entre dois seres humanos, que é coisa bem antiga. Novidade é este desespero agora. Algum hétero está sendo convocado a aderir ao mundo gay? Que eu saiba, todo mundo continua livre para viver sua sexualidade como preferir.

Taí uma discussão que perdeu o timing. Acabou ficando meio ridícula.

sábado, 6 de junho de 2015



07 de junho de 2015 | N° 18186
MARTHA MEDEIROS

Como tem que ser

Muitos problemas seriam eliminados se optássemos pela maneira consagrada, a que sempre funcionou: transparência e assertividade.

Recebi um e-mail da prefeitura avisando que de agora até abril de 2016 haverá a construção de uma superciclovia cortando toda a área central da cidade. Eles dizem que durante a primeira fase dos trabalhos serei avisada sobre quais ruas devo evitar nas horas de pico e também serei comunicada quando houver algum desvio.

Disseram também que o transporte público não será afetado, mas poderá eventualmente acontecer algum atraso nos horários previstos de chegada dos ônibus nas estações. Por fim, divulgaram um site onde encontro uma animação em 3D reproduzindo todo o trajeto da ciclovia, incluindo os cruzamentos e a sinalização, assim como as datas de início e conclusão de cada trecho e horários de atendimento por telefone para esclarecimento de dúvidas.

O e-mail é da prefeitura de Londres. Cerca de dois anos atrás, passei um mês estudando lá e comprei um Oyster Card, que é um cartão para transitar por transporte público por toda a cidade. Fiquei cadastrada no mailing deles e desde então recebo periodicamente as informações sobre o trânsito da capital inglesa. Sei quais linhas de metrô e ônibus sofrerão atraso, quais serão as alterações de rota nos feriados e nos períodos de obras, recebo pedido de desculpas pelos transtornos e agradecimento pela minha cooperação.

A cada vez que recebo um comunicado desses, lembro como é ser tratada como cidadã. E penso: é assim que tinha que ser. Tudo. Tudo na vida. Não sou inimiga da flexibilidade, há modos diversos de se administrar uma cidade, um relacionamento, um trabalho, porém muitos problemas seriam eliminados se optássemos pela maneira consagrada, a que sempre funcionou: transparência e assertividade.

Como é que tem que ser? Se te perguntam, responda. Se te emprestam, devolva. Sem dinheiro, não compre. Se te dão, agradeça. Se te confiaram, cuide. Se te agridem, afaste-se. Se te pagaram, entregue. Se cansou, pare. Se te confidenciaram, silencie. Se te roubaram, acuse. Se colocou no mundo, crie. Se contratou, pague. Se gostou, fique. Se não gostou, recuse. Se errou, desculpe-se. Se acertou, repita. Se tem que fazer, faça. Se prometeu, cumpra. Se vai atrasar, avise. Se te necessitam, ajude. Se você precisa, peça.

É feito um relógio. Tic-tac, no ritmo da eficiência. Porém, as pessoas fogem desse esquema porque acreditam que ficarão engessadas, que serão chamadas de caretas ou que terão uma existência simplista. Que bobagem. Elas apenas adiantarão seu lado a fim de ganhar tempo para se dedicarem à deliciosa anarquia da vida, aquela que, aí sim, nunca teve tic-tac. Se gamar, invista. Se sofrer, azar. Se der frio na barriga, celebre. Se vacilar, tente de novo. Se parecer longe, vá igual. Se nunca fez, arrisque. Se der medo, vença-o. Se não souber, invente. Se falhar, ria. Se encheu, viaje. Se fizer calor, praia. Se calhar, Londres.


07 de junho de 2015 | N° 18186
CARPINEJAR

Aladim dos caprichos impossíveis


O ansioso não é ansioso por ele, mas pelos outros.

A ansiedade é raciocinar pelos outros, é concluir pelos outros, é resolver pelos outros.

Você escuta algo, toma aquilo como uma missão e deseja concluir rapidamente para voltar a pensar em si. A ansiedade é uma generosidade inventada pelo egoísmo.

A ansiedade é correr contra o tempo com o propósito de voltar a ter seu próprio tempo. A ansiedade é a compulsão de atender às expectativas de quem está do seu lado para retornar aos cuidados de suas próprias expectativas.

O dilema do ansioso é que procura agradar à sua companhia para não ser criticado. Mas sempre está a fim de algo pessoal que não sobra tempo.

É alguém que come o pior do prato e reserva o melhor para o final. Certamente a comida predileta restará fria na hora de ser garfada.

Não há discernimento entre o que é importante e o dispensável. Tudo é urgente, tudo é motivo de aflição, tudo é uma perigosa avaliação de seus atos.

A próxima atividade, apenas por ser a próxima, é de absoluta premência. O pequeno e o grande têm o mesmo valor. O simples e o épico têm igual medida.

O problema do ansioso é que ele converte qualquer solicitação em prioridade. E como só consegue começar uma tarefa quando terminar a anterior, sua rotina transforma-se em gincana.

Ninguém está pedindo ou solicitando nada, só que ele se posiciona como o provedor do universo, como o telepata do casamento, como o Aladim dos caprichos impossíveis.

Como se fosse um marido saciando infinitamente os rompantes esquisitos de sua esposa gestante. E sua esposa ainda nem está grávida.

O ansioso é carente, pois nunca se julga satisfeito consigo. O ansioso é insaciável, pois não para nem para comemorar seus feitos. O ansioso não avalia as possibilidades, ele prefere descartá-las cumprindo uma por uma.

Se a mulher comenta que precisam comprar roupa de cama, incorpora as palavras dela como uma ameaça e pretende amanhecer na loja e se desobrigar da tarefa.

Mas ela não falou para realizar naquele instante, era uma intenção para ser cumprida durante o mês, mas o mês para o ansioso é ontem e ele não admite esperar. Ele não suporta acumular planos. Plano é tensão, plano é pendência, plano é uma decepção agendada.

Parte da hipótese de que senão fizer agora não fará nunca mais. Mas é mentira. Ele faz rapidamente porque odeia ter compromissos em aberto. Abomina ser pressionado e se pressiona terrivelmente. Ele se cobra para não ser cobrado.

Seu prazer está em finalizar os atos, não em desfrutá-los. Perde o melhor da vida que é não se preocupar naquilo que virá depois. O ansioso é um doente terminal com excesso de saúde. Morre de uma doença imaginária.

quarta-feira, 3 de junho de 2015



03 de junho de 2015 | N° 18182
MARTHA MEDEIROS

Cadeados de Paris

Foi-se o tempo em que os telhados de Paris é que eram românticos: agora românticos são os cadeados de Paris, que estão sendo retirados da Pont des Arts, onde trancafiavam os amores para sempre.

Nada é mais antigo do que o jornal de ontem, então resgato aqui a notícia: uma das mais famosas pontes de Paris recebia todos os dias, em seus gradis metálicos, centenas de cadeados colocados ali por casais apaixonados, como uma evidência de que jamais se separariam. Com os anos, esses cadeados começaram a pesar e colocaram em risco a segurança da ponte. No ano passado, um pedaço da balaustrada desabou e a prefeitura resolveu acabar com a brincadeira. Mandou retirar todos os cadeados e, no local dos gradis, irá colocar placas de acrílico.

Eu estive algumas vezes em Paris e pude acompanhar a evolução desse modismo. No início, lembro de ter sido contra aqueles cadeados que descaracterizavam o cenário, mas os anos foram passando, os cadeados começaram a se acumular e por fim acabaram impondo sua estética. Eu já estava achando aquilo até bonito, uma instalação viva e com enorme simbolismo, ainda que um simbolismo meio démodé: quem ainda acredita em relações vitalícias?

Aparentemente, ninguém. Secretamente, todos.

No fundo, bem no fundo, queremos, sim, encontrar alguém que seja um amor para toda a vida, que dê motivo para levantarmos da cama de manhã e motivo para deitarmos nela à noite, que preencha de significado a nossa rotina banal, que seja uma parceria que vá muito além da amizade, que nos faça sentir especiais e que desperte a vontade de fazer versos intensos como os do Fabrício Carpinejar.

Ele não apareceu à toa nesta história. Na última vez que estive em Paris, eu passeava pela Pont des Arts com calma, observando os nomes marcados em cada cadeado e imaginando se todos aqueles Pierre & Irina & Anthony & Helga ainda estariam juntos, quando meu celular tocou. Era o Fabrício, que não sabia que eu estava fora do país. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele falou o motivo da ligação: havia se separado. Estava triste.

Queria conversar. Eu sentei num dos bancos da ponte e não acreditei. Para mim, ele e ela formavam aquela espécie de casal que se prende um no outro e joga fora a chave, mas não foi assim. Fabrício estava a um oceano de distância e ao mesmo tempo muito perto, me contando sobre o seu desenlace, enquanto eu olhava para aqueles cadeados desiludida por confirmar ali, durante o telefonema, que eles representavam um sonho que não se sustenta mais.


Li em algum lugar que os cadeados retirados da ponte irão para reciclagem. Acho que deveriam ser doados a um museu. Como relíquia histórica – uma prova de que o desejo pelo amor eterno existiu um dia.