terça-feira, 29 de dezembro de 2020


29 DE DEZEMBRO DE 2020
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O time da zona

Não tem fim de ano que não me dê aquele banzo de lembrar dos natais da infância e, por aí, da infância em si. Ainda esses dias, ouvindo o excepcional podcast Agora, Agora e mais Agora, do historiador Rui Tavares (está no site do jornal O Público, de Portugal), me veio todo um fio de lembranças. (Devo dizer que é o primeiro podcast que escuto. Aprendi que dá pra ouvir enquanto dirijo ou faço outra coisa que não requer atenção intelectual absoluta. E estou fascinado com a história que ele desdobra, uma reflexão sobre os últimos mil anos. Mil, mas volta a mais longe ainda.)

O caso é que lembrei de um momento dos meus 10 anos, não muito mais nem muito menos. Eu reunido com vizinhos, mais ou menos da mesma idade, para organizar um time de futebol da zona. "Zona" é conceito geográfico mas também afetivo: era a rua e alguma adjacência, com o acréscimo eventual de um primo frequente, por exemplo. Sem grana, como todo mundo na minha classe familiar - classe média média, sem medo de passar fome mas sem qualquer luxo de consumo -, combinamos de pegar cada um uma camiseta branca em casa para o uniforme. Já aí era bronca, porque tinha que pedir pra mãe, que só liberaria uma já gasta, entre as poucas que cada um tinha, naquele tempo anterior ao hiperconsumo atual.

O resultado foi disparatado: uma de manga curta com gola vê, outra de manga comprida, um chegou a apresentar o que se chamava de camiseta de física, hoje regata. Igual, desenhamos o escudo do time, que tinha nome, "Esporte Clube Brasil", e um por um cortamos num tecido meio plástico - acho que a letra era a minha, caprichada. Não era muito sofisticado, mas tinha uma faixa atravessada, como o Vasco e o River.

Por que "Brasil"? Acho que tinha a ver com um sábio acordo para evitar qualquer coisa que fosse meio colorada ou meio gremista, porque já então essas definições dominavam a cena das brincadeiras. Nos reuníamos, creia-me gentil leitor, sob o palco do cinema Rosário, porque dois do nosso time eram filhos do encarregado do cinema e moravam num anexo do prédio, nos fundos. E ali, ao lado daqueles tubos de ar que refrescavam o ambiente interno, desenhamos e cortamos o escudo, combinamos o time, com titulares e reservas, e pensamos em fazer uma estreia com um inimigo distante, o time da 11 de Agosto, duas quadras pra lá.

Epa. Acabou o espaço, acabou também o ano. Mas a memória segue aqui ativada. Bom ano para quem merece! E para os que não merecem, também um ano melhor.

LUÍS AUGUSTO FISCHER

sábado, 26 de dezembro de 2020


26 DE DEZEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Ainda existe

Deve parecer uma obviedade quase patética escrever sobre o Natal, mas apesar dos males atuais, dessa densa sombra que escorre sobre o mundo, ele ainda existe.

Possivelmente não como antes, de momento mais discreto, magrinho, sem tanto brilho, sem tanto amor explícito, mas talvez com muito mais amor online, ou atrás de máscaras e álcool gel. Porque o proibido é sempre tão mais delicioso.

Meio triste? Ah, sim. Mas, como disse o Dr. J.J. Camargo em seu artigo mais recente aqui na ZH, cuidar de nós neste Natal significa termos muitos outros Natais juntos e alegres.

Minhas memórias de Natais da infância são pura magia: o crepúsculo vermelho era os fornos do céu onde os anjos preparavam os doces de Natal. E em algum lugar crescia uma árvore miraculosa, que logo se multiplicaria em nossas casas.

Nessa véspera ninguém podia entrar na sala, onde lençóis pendurados fechavam como biombos todo um recanto. Na cozinha, os biscoitos em forma de estrela com açúcar colorido em cima; adivinhar os presentes escondidos; gente da família chegando.

Vestido novo de organza, sapato de verniz, promessas de me comportar: sim sim sim... dali em diante eu seria outra. Prometo, prometo ser boazinha, prometo ser obediente, prometo não responder pra mãe, nem botar a língua, nem me esconder na hora de dormir, nem nem nem.

Por fim, na noite de Natal, um anjo dissimulado atrás dos panos alvos tocava sinetas, retiravam-se as cortinas improvisadas, e podia-se contemplar o paraíso.

Lá estava a árvore dos milagres. Nós, em torno, nem éramos pessoas: éramos anjos também. Eu esquecia até o medo, quando muito pequena, de um Papai Noel que, para mim, chegaria não com presentes, mas com um feixe de varas...

Inesquecíveis também os Natais em casa de minha avó materna. A árvore chegava ao teto, pé-direito tão alto como se ali em cima houvesse sempre névoa. Girava solene numa pinha de ferro sobre uma caixa de música, uns discos de metal com lasquinhas levantadas tocadas por agulhas. O som metálico em canções natalinas, o pinheiro enfeitado rodando em câmera lenta, pesado e alado ao mesmo tempo, e nós ali, tomados de beleza.

Depois havia brindes e presentes, e os adultos tomavam champanha e alguém tocava piano, todos cantavam, minha avó parecia contente com seu rebanho reunido do jeito que ela gostava.

Mas eu, mais do que meus pais e irmãozinho, tios e primos e comidas e embrulhos, via pelos cantos das salas - ou atrás das portas de vidro que se abriam para o jardim - solenes anjos com asas de tule, girando numa dança lenta.

Essa árvore, por muitos anos renovada, lançou raiz em mim: às vezes, nestes tempos de Natal, ainda brota nos meus sonhos quando, dormindo, volto àquela mesma casa onde a menina que fui mais sonhava do que vivia: e ainda a sinto em mim.

LYA LUFT

26 DE DEZEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

O nosso astral

Durante uma das Lives de Casal comandadas por Patrícia Parenza e Marcelo Pires, escutei algo interessante de Washington Olivetto, que foi entrevistado ao lado da mulher. Conversando sobre os bons tempos da agência W/Brasil, ele revelou que um de seus méritos era ser um excelente administrador de astral. Quem teve a sorte de trabalhar com ele, pode confirmar. Se o ânimo do pessoal murchava, Washington mandava distribuir sorvete para todo mundo: uma atitude prosaica com efeito instantâneo. Sem falar nas animadas "festas da firma", com shows de Lulu Santos, Jorge Ben Jor e outros entendidos em diversão.

Se você não tem uma empresa, ao menos tem um teto onde dorme, almoça, vive. Então também entende do assunto: criar uma atmosfera. Mesmo que tenha herdado móveis pesados cheirando a mofo ou que more num apartamento minúsculo com uma única janela, nada impede que receba os amigos com jazz, um café passado na hora, flores nos vasos (mesmo que colhidas num jardim público, ninguém precisa saber) e com a janela bem aberta. Pode contar histórias engraçadas em vez de apenas se queixar, escolher filmes bacanas em vez de assistir a programas ordinários, ser afetivo em vez de arrogante, manter o ambiente sempre limpo e investir em alguma cor para quebrar a monotonia. Vale para seu consultório também. Para sua loja. Sua barbearia. Seu mercadinho.

Vale para o país. É dever de todo presidente administrar o astral. Passar confiança, estimular a arte e a cultura, dar exemplo de comportamento, cuidar da natureza, ser gentil, ter compostura de chefe e, ao mesmo tempo, inteligência emocional para rir de si mesmo, humildade para reconhecer os próprios erros e evoluir, a fim de que todos em volta se sintam protegidos, seguros e confortáveis, orgulhosos do seu chão, com vontade de cantar no chuveiro, dançar na sala.

2021 precisa ser melhor do que 2020. A vacina virá e é possível que no segundo semestre a gente recupere algo parecido com a rotina que tivemos um dia. Parecido, não igual. Porque o astral do país despencou. Ficamos inseguros em relação a tudo. Substituímos nosso natural bom humor pelo espírito de porco. Ninguém lá fora anda a fim de nos visitar, nem de receber nossa visita. O Brasil se tornou desagradável, como aquele vizinho que nunca acende a luz, não areja a casa, usa um vocabulário chulo, só come enlatado e não junta o lixo sobre o tapete. Que não administra o astral dele, nem de coisa nenhuma, e compromete o prédio inteiro, deixando um cheiro de podre no ar.

Vacine-se. Salve-se. Deixe o vizinho turrão falando sozinho. Café e flores. Música e livros. Sol e amigos. Paz e amor. Um 2021 com muito sorvete para todos nós.

MARTHA MEDEIROS

26 DE DEZEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Vai logo que ninguém te aguenta mais

Vai que já vai tarde, 2020. Vai e leva junto tudo o que não deu para fazer nesse ano. Todos os planos que, de repente, sumiram. As viagens que não saíram pela porta. As ideias que ficaram só na vontade. Os abraços e os beijos que se acumularam dentro da gente. A saudade de um mundo que até podia ser cheio de defeitos, mas que era nosso.

Vai que já vai tarde, 2020. Não foi fácil chegar até o teu fim. O mais estranho é que os dias, que pareciam não passar nunca, passaram. Tanto que estamos aqui, desejando que 2020 logo seja só mais uma folha arrancada do calendário.

Vai que já vai tarde, 2020. Se possível, arrasta contigo todos os negacionistas que encontrar pelo caminho. Para parecer que esse tsunami de ignorância que varreu o Brasil não passou de um pesadelo - longo demais, é verdade, mas um pesadelo. Antes isso que uma condenação ao retrocesso. Bons tempos em que nos chamavam de "país do futuro".

Vai que já vai tarde, 2020. Embora a tua saída de cena jamais vá apagar os quase 200 mil mortos que se espalham pelos teus meses.

Vai que já vai tarde, 2020. O ano que, para o bem e para o mal, ninguém vai esquecer. Se faltou tanto, sobrou solidariedade também. Foram muitas as iniciativas para levar alimentos a quem ficou sem nada, pagar as contas de quem perdeu tudo, abrigar e acolher. Quem pôde não ficou de braços cruzados. Sem esse mínimo consolo, os 365 intermináveis dias de 2020 estariam mais para um filme de terror B, roteirinho dos mais chinfrins, que para um capítulo da vida real.

Só uma coisa. No futuro, quando filmarem essa história, que não venham com o George Clooney ou o Will Smith nos papéis principais. Os homens que leem esta coluna, e eles são muitos, vão ter que me desculpar, mas acho que esse 2020 - que já vai tarde - foi um ano protagonizado do início ao fim pelas mulheres. E como a retrospectiva é minha, a Damares fica de fora.

Nos países governados por mulheres, a pandemia foi enfrentada sem mentiras desde o início, assim como a segunda onda está sendo encarada com dureza. No Brasil, duas cientistas foram as primeiras a sequenciar o genoma do novo coronavírus. Em qualquer telejornal, a qualquer hora em que se sintonizasse, a bióloga Natalia Pasternak estava lá, esclarecendo o público - ela, várias médicas e médicos e o doutor Dráuzio, claro. Não quero parecer sexista, mas as mulheres seguraram uma barra pesada dentro das casas e mataram no peito os problemas domésticos sem deixar a vida profissional de lado. Quem conseguiu chegar ao fim desse fatídico ano com o emprego a salvo teve que fazer milagre para dar conta de tudo.

Há quem diga que as mulheres se saíram melhor porque, desde sempre, têm um gerenciador de crises interno. Algo parecido com uma tecla ou um chip. Na verdade, o que os incautos confundem com tecnologia é bem o contrário disso. O nome é coração. Não que seja exclusivo. É grande a quantidade de homens que vêm se utilizando desse recurso nesses tempos tristes.

Vem logo, 2021. E traz contigo a vacina, a esperança, a retomada, o horizonte. Se o nosso coração fez o que fez nesse 2020 - que já vai tarde -, imagina do que vai ser capaz quando o mundo voltar para a gente.

CLAUDIA TAJES

26 DE DEZEMBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

GENTILEZA, ENFIM

Na origem clássica da palavra "gentileza", existe o termo que remete a gens, clã, família e origem. Você tem obrigações com seu grupo porque descende de um ancestral em comum. Essa antiga noção é maior do que a ideia de família nuclear ou estendida que temos hoje, na qual o que nos une é o sobrenome e a possibilidade de amor. Devo gentilezas inúmeras ao meu grupo familiar. Antes, o código não era de doçura de maneiras, porém de regras e serviços com meu grupo.

Jesus foi uma revolução no campo da gentileza. Definiu que deveríamos ter preocupações e gestos de cuidado com desconhecidos e até com inimigos. A parábola do Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37) define com clareza: o homem que nem era alguém do grupo judaico mais ortodoxo atendeu a vítima de um assalto. Cuidar de um desconhecido, pagar pelo seu tratamento e amparar uma necessidade ignorada pelos religiosos que passaram por ali era a nova regra. Gentileza como gesto de amor entrega, de amor ágape.

Da ideia de proteção indistinta ao fraco surge o código medieval da cavalaria e o contemporâneo do cavalheiro. Ainda que guarde um conteúdo patriarcal de supor o feminino como indefeso e que deve ser protegido (e controlado), são códigos que dialogam com o Bom Samaritano. A gentileza torna-se virtude além do pertencimento familiar.

A fala do Nazareno nem sempre foi ouvida. A Segunda Guerra foi o momento de maior atrocidade concentrada em nossa história. Em pouco tempo e em enorme quantidade matamos, destruímos, desabrigamos, humilhamos, violentamos, apagamos. O mundo conheceu um vórtice negativo: o que era feito, criado, inventando tinha como finalidade desfazer, eliminar, desinventar. Saímos da nefasta experiência para um mundo de Guerra Fria, ainda que com um certo otimismo. Fizemos uma Declaração de Direitos Humanos. Parecíamos ter chegado ao acordo mínimo de que certas atitudes de uns com os outros deveriam ser obrigatórias. E que fazer o mal era um erro. Erro coletivo que poderia nos levar à destruição. O bem comum era um acerto a ser buscado. Isso sempre foi um ideal que preconizava o cuidado de si e do próximo como política e a gentileza como cotidiano.

Voltemos ao Brasil. José Datrino, conhecido como Profeta Gentileza, escreveu em muitos pilares do Rio de Janeiro as frases sobre gentileza. Tido como louco, perambulava pela cidade distribuindo flores e frases sobre amor e cuidado com o outro. Faleceu em 1996. Não muito tempo depois, a divisão de limpeza urbana pintou os 56 murais de Datrino de cinza, como se escondesse pichações. A grande cantora Marisa Monte, chocada com o apagamento das inscrições, compôs a música Gentileza. Vale a pena ouvir. Em nossas cidades, o colorido vai para debaixo do cinza, a gentileza some diante de nossos olhos.

O mundo de 2020, repetindo e amplificando os anos mais recentes, foi da agressividade, da "lacração", da comunicação violenta e do berro. Na política e no trânsito, na internet e até em almoços familiares, a diferença foi estopim de raiva. A suprema forma de gentileza, a comunicação não violenta, escasseou. O que houve?

O colapso da empatia talvez esteja na crise da saúde, da política e da economia. Quando minha vida e estabilidade estão em jogo, fica mais difícil defender a percepção do outro e das suas necessidades. Na saúde, esforço mundial pelo desenvolvimento de vacinas é solapado pela ignorância que polemiza a origem do tratamento, pela idiotia que nega a vacinação, alegando que há um direito individual de não a usar. Ainda que esse fosse um direito, e não o é, pois uma sociedade é igualmente composta por deveres comuns, seria um ato de gentileza se vacinar: sem um porcentual alto de pessoas vacinadas, o vírus ainda estará à solta, matando, maltratando. Vacina não funciona de maneira individualizada, porém em grupo.

A política continua sendo o território do absurdo e da temeridade. Trump recusando-se a admitir a derrota e criticando o processo eleitoral que não o favoreceu. Similar processo ocorrendo por aqui nas eleições municipais. Sem política, somos, literalmente, idiotas, capazes de olhar apenas para nossos umbigos. Daremos com a cabeça no primeiro poste que encontrarmos no caminho.

Por fim, a economia não vinha bem e desmoronou neste ano. Em pouco tempo, saímos de ser a sexta maior economia do mundo para um amargo lugar fora do top 10. O pior resultado histórico. A pandemia, diriam os otimistas. O mundo todo passou por ela e esse resultado foi apenas nosso. Na esteira, desemprego, baixos salários, empregos informais, trabalhos ocasionais.

Como cereja ácida desse bolo intragável, vivemos um mundo de coices, pontapés e desacatos. Os ogros sempre existiram, provavelmente estivessem mais envergonhados no pântano há algum tempo. Talvez formassem um clube fechado, autorreferente quiçá. De repente, ganharam a praça pública e seus berros calaram quase todas as outras vozes mais tranquilas. Foi o eclipse do sensato e a aurora do ogro do pântano. Como recuperar um pouco da sanidade e da gentileza? Que todos tenhamos muita, muita esperança em um mundo mais gentil.

LEANDRO KARNAL

26 DE DEZEMBRO DE 2020
ELIANE MARQUES

O CONSENSO DA DESIGUALDADE

No texto que inaugurou esta coluna, escrevi que somos responsáveis pelos cadáveres prematuros, atuais e futuros, que pululam no entorno social. Porém, eu mesma considero insuficiente tal declaração de coculpabilidade. Algo soa "frase de efeito"; por isso, pretendo ir mais além, e peço que me acompanhem.

Na semana que passou, soubemos de uma trabalhadora doméstica submetida a condições análogas às de escravidão, por um escravizador, professor universitário; soubemos de um técnico de futebol que adjetivou de malandro jogador que reclamou do imperativo dirigido a ele por um colega - "Cala a boca, negro"; vimos um deputado apalpar os seios de sua colega numa sessão legislativa. Não vimos, mas alguém deve ter ouvido, outra mãe declarar que era trabalhador o filho assassinado pela polícia.

Vocês perguntarão - o que homicídios, importunação sexual, injúria racial, redução à condição análoga à de escravizada têm em comum? Partamos da frase da mãe. Entendemos que seja apenas o que lhe reste. Contudo, pergunto se estaria justificada a decisão estatal pela morte, acaso o filho não fosse o afirmado.

O "Meu filho é trabalhador", o "Cala a boca, negro", a mão que se passa pelos seios de outrem sem o seu consentimento e que faz do trabalho doméstico escravidão se enlaçam num pano de fundo consensual assentado no valor diferencial das vidas humanas como legitimação das hierarquias sociais. Não fosse esse pano, a natureza construída das hierarquias se manifestaria despida de máscaras de naturalidade.

No Diário do Hospício, Lima Barreto lembrava, não sei por qual motivo, que o guarda-civil que o esperou na porta do hospício dirigiu-se ao enfermeiro Bragança mais de uma vez chamando-o de doutor; contudo, o bragantino nunca protestara. Daqui, escrevo ao Lima lançando-lhe a hipótese de que, menos que presunçoso, o Bragança se sentia "humano" sendo nomeado doutor.

Esse consenso perpassa as classes sociais e funciona como o inconsciente freudiano que, insabido, faz sintoma no discurso intersubjetivado da disciplina e do desempenho diferencial - meu filho era diferente, por isso não mereceria morrer! Desse modo, tanto pelos incluídos como pelos de inclusão social precária, os "inadaptados" e "marginalizados" são lidos sob a lupa miúda e falsamente neutra do fracasso pessoal e da vagabundagem. Eles são "essa gente" que deverá ser presenteada no Natal quando durante o ano inteiro tenha falado baixo, vergado o lombo e se dirigido ao sujeito e à sujeita universais (homens e mulheres brancas) os nomeando dotor ou dotora, padrinho ou madrinha.

Ainda que o neguemos, fazemos parte desse consenso que começa a ser formulado desde a abolição da escravatura e que se afirma na década de 1930. Ele está no nosso corpo, com ou sem palavras burocráticas que defendam a igualdade. Nele se registra que algumas pessoas e classes participam do conceito de humanidade e outras, não, por isso podem ser assassinadas, apalpadas, injuriadas e reescravizadas.

Há um acordo implícito entre nós ancorado no desvalor de certos grupos que ainda nem mereceriam ser reconhecidos como gente. Podemos nos subtrair a esse consenso?

ELIANE MARQUES


26 DE DEZEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA

NOSSO PROBLEMA MÁXIMO, QUE A PANDEMIA AGRAVOU, É A DESIGUALDADE SOCIAL

Primeiro historiador a integrar a Academia Brasileira de Letras (hoje divide o "posto" com Celso Lafer), o mineiro José Murilo de Carvalho construiu uma obra sólida analisando a História do Brasil a partir das relações sociais estabelecidas no país. É um estudioso da identidade nacional conformada desde os tempos do Império com base nas imposições das elites brasileiras e no exercício da cidadania ao longo das décadas. A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil (1990) e Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que Não Foi (1986) são exemplos de como conjugar conteúdos profundos burilados em pesquisa acadêmica com linguagem acessível e leitura prazerosa. Nos últimos anos, dedica-se a interpretar o Brasil em textos curtos, reunidos em publicações como O Pecado Original da República (2017). A seguir, ele responde a questões sobre a situação atual do país e a encruzilhada representada por este 2020 pandêmico recheado de dificuldades e situações atípicas sob uma perspectiva histórica.

O ano de 2020 foi atípico e de dificuldades para muita gente por conta da pandemia e de suas consequências, tanto do ponto de vista da saúde quanto da economia e da própria organização social. parece ser consenso, por exemplo, que a pandemia aumentará a desigualdade brasileira, que já é uma chaga do país, como o senhor deixa claro em vários de seus livros. como vê este momento? Pelo seu caráter sui generis, 2020 pode ter sido um ano definidor ou redefinidor de algo?

A pandemia do coronavírus é uma calamidade, mas, em termos comparativos, está longe de ter a letalidade da gripe espanhola, que segundo estimativas pode ter chegado a 50 milhões de mortos - para citar apenas um dos vários casos de pandemias mais desastrosas que a humanidade já enfrentou ao longo da História. Daí, não diria que o ano foi definidor ou redefinidor de algo. Prefiro usar outra palavra: agravador. Pelo lado econômico e social, 2020 viu agravarem-se a crise financeira e a oferta de empregos. Politicamente, a herança disso será ambígua. O auxílio financeiro emergencial, estendido a 66 milhões de pessoas no país, deu alguma popularidade ao governo entre os beneficiados, afastando, por enquanto, as ameaças à sua sobrevivência. Mas esse efeito pode desaparecer, uma vez extinto um auxílio que as finanças não podem manter por longo tempo. Por outro lado, a postura do presidente em relação à pandemia e à vacinação joga na oposição pessoas de renda mais alta e com maior escolaridade. O ano agravou diversas situações que vinham se estabelecendo até então.

Em O pecado original da República, uma coletânea de artigos recentes sobre o Brasil, o senhor aborda a desigualdade e também a representatividade da população no âmbito político como desafios para o amadurecimento do Brasil como nação. O que os novos eventos, a exemplo da atual pandemia, da ascensão de jair Bolsonaro ao poder e do cenário de comunicação instantânea e pós-verdade, podem trazer nesse sentido? Em outras palavras, como fica o amadurecimento do brasil diante do que vimos em 2020?

Nossa democracia está sob severo teste, sobretudo no que se refere à relação entre os poderes. Ironicamente, o poder tradicionalmente menos bem avaliado, o Legislativo, melhorou sua imagem nos últimos tempos, particularmente em 2020. O Executivo tornou-se fonte de instabilidade graças aos ataques aos outros dois poderes. O Judiciário perdeu credibilidade pelo excesso de interferência e pelo exibicionismo de seus ministros. Felizmente, o receio inicial de danos à democracia advindo da excessiva presença militar no governo e da politização das Forças Armadas arrefeceu. Declaração recente do comandante do Exército deixou claro o perigo que isso representaria para as próprias corporações militares. Minha impressão é a de que o risco a curto prazo de uma ruptura institucional foi muito reduzido, embora a postura das Forças Armadas como garantidoras da harmonia entre os poderes ainda indique que continuamos a ser uma república tutelada.

Em A formação das almas, o senhor atenta para a importância dos símbolos e das questões cotidianas na constituição de uma identidade coletiva. Dado que vivemos em um momento de aceleração, em que o que é a grande notícia de um dia pode ser facilmente esquecido no dia seguinte, e também de aproximações (a internet nos dá a sensação de que as distâncias diminuíram), as identidades coletivas tendem a mudar ou, justamente por isso, a se fortalecerem?

A globalização dos mercados, a oligopolização da mídia eletrônica e a criação de blocos regionais já vêm corroendo há algum tempo o poder dos Estados nacionais, em que pesem surtos esporádicos de nacionalismo. As identidades nacionais vão-se apagando. A nossa nunca foi muito forte. Só começou a se formar durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Temos um Estado que abriga várias nações, que o digam paulistas, gaúchos, pernambucanos, baianos etc. Como dizia Nelson Rodrigues, a pátria no Brasil só se materializava quando a Seleção de futebol entrava em campo: ela era a pátria de chuteiras. Pesquisa de opinião feita na década de 1990 mostrou que a grande maioria dos entrevistados dizia ter orgulho do Brasil, mas citava apenas, como motivo de orgulho, as belezas naturais, o Rio Amazonas, as florestas, as praias, o céu azul. Ora, como observou uma vez Machado de Assis, nós não criamos essas coisas; elas não são mérito nosso. Na realidade, vamos sistematicamente destruindo matas, secando rios, poluindo as praias e os ares.

UM DOS GRANDES TEMAS DE 2020 FOI O RACISMO, A PARTIR DE CASOS COMO O DE GEORGE FLOYD E O DE JOÃO ABERTO FREITAS. AINDA FALANDO SOBRE OS SÍMBOLOS DE UMA NAÇÃO, HOUVE A PROBLEMATIZAÇÃO, POR EXEMPLO, DOS MONUMENTOS DE PESSOAS PÚBLICAS IDENTIFICADAS COM O RACISMO, SENDO O CASO DE BRISTOL (REINO UNIDO) O MAIS MIDIATIZADO NESSE SENTIDO. QUAL A SUA OPINIÃO SOBRE ESSES MONUMENTOS E O QUE ESSE LEVANTE SOCIAL SIGNIFICA DO PONTO DE VISTA HISTÓRICO?

A História se reescreve constantemente. Como disse Galileu sobre a Terra depois de ser forçado a renegar o heliocentrismo: eppur si muove, ou seja, "mas ela se move". Mudam-se os valores, os costumes, as instituições. A escravidão é um desses casos. Por séculos foi aceita no mundo inteiro. A partir do século 18 passou a ser contestada no Ocidente, mas sobreviveu nas práticas e nos preconceitos. Quanto aos monumentos, creio que a postura mais sensata seria levá-los para os museus, que é o seu lugar. O racismo, a homofobia, a misoginia caminham, embora lentamente, para o museu da História. Os positivistas ortodoxos brasileiros achavam que o mesmo aconteceria com os exércitos, mas creio que se precipitaram.

A humanidade já viveu anos turbulentos e impactantes em vários sentidos. Na sua opinião, 2020 é um ano importante nesse sentido? Como, na sua avaliação, o ano de 2020 entrará para a História? E como é possível conjecturar que sentiremos os impactos do que vivemos em 2020 a longo prazo?

Já houve várias catástrofes bem maiores na história da humanidade, inclusive na área de pandemias. Mas creio que muitos concordam em admitir que haverá algumas consequências importantes derivadas da crise sanitária atual. Uma delas, parece-me, será a inexorável valorização da ciência, tanto pela rapidez inédita com que se chegou à produção de vacinas quanto pelo protagonismo da Organização Mundial da Saúde (OMS) na avaliação das pesquisas e na orientação das políticas de combate à pandemia. Falou-se muito em pesquisas científicas em 2020, comunicou-se muito sobre isso ao longo do ano. Trata-se de uma boa consequência do que vivemos neste ano que está acabando.

 A consequência mais importante, no entanto, sobre a qual também parece haver consenso entre quem se propõe a pensar sobre o tema, é a que se refere à natureza do trabalho. O home office, que já dava os primeiros passos antes do início da pandemia, ganhou enorme avanço, em vários locais do mundo. Dificilmente se voltará totalmente ao trabalho presencial como o conhecíamos antes. O home office poupa gastos das empresas, reduz os incômodos do deslocamento dos trabalhadores, incentiva a permanência em casa. Pelo lado negativo, pelo menos no caso de países como o Brasil, de baixa qualificação da mão de obra, o home office pode limitar as oportunidades de emprego para muitos, assim como os algoritmos já estão afetando o mercado de trabalho até de profissionais liberais. Há um novo ajuste que se avizinha.

COMO O SENHOR ACREDITA QUE HISTORIADORES DO FUTURO AVALIARÃO O QUE OCORREU NO MUNDO EM 2020?

Olha... É maldade pedir a um historiador que fale sobre o passado do futuro. Já nos basta a dificuldade de interpretar o passado do presente!

Como alguém que pesquisou o Brasil do início da República, o senhor vê algum tipo de paralelo entre a chamada Revolta da Vacina do início do século 20 e os movimentos antivacinação deste início de século 21? Por que, mais de cem anos depois, a vacinação parece ter voltado a ser um tabu para certos setores da sociedade?

A reação da população em 1904 era compreensível. O conhecimento científico sobre as causas, a transmissão e o tratamento das doenças era bem menor. Os médicos positivistas do Rio de Janeiro chegaram a combater a vacina sob o argumento de que o Estado não a podia impor aos cidadãos. E boa parte da reação à vacina deveu-se à maneira drástica com que foi imposta, sem uma campanha de explicação e convencimento. Lembremo-nos de quanto tempo demorou para convencer as pessoas dos males do cigarro. Hoje, a ciência avançou muito, e as informações são abundantes. Era de se esperar menor reação. 

Ela se deve em boa parte graças à atitude irresponsável do chefe de Estado. Mas a questão da obrigatoriedade não é simples. Há um lado filosófico na questão: até onde vai a liberdade individual? No caso do cigarro, a descoberta do fumante passivo ajudou no convencimento e na aceitação da restrição a seu uso com base no argumento de que o direito de uma pessoa é limitado pelos direitos das outras. Se alguém não se vacina, está pondo em risco não só a própria saúde, mas também a saúde dos outros. Mesmo assim, será difícil impor a vacinação. Porém, podem-se introduzir penalidades aos que se recusarem, com base no argumento de que estão colocando em risco a saúde dos outros.

o senhor está entre aqueles que, de modo mais otimista, acham que o período pós-pandemia será de mais altruísmo e solidariedade entre as pessoas ou entre os que acreditam que a experiência vivida neste ano de 2020, em essência, não nos afetará como seres sociais?

Haverá, sem dúvida, alterações nas relações sociais, mas por outras razões. O grande aumento no trabalho na base do home office deve permanecer e aumentar. Muitas universidades já adotam o contato virtual para reuniões, defesas de teses, conferências e mesmo aulas. Muito disso continuará. Em consequência, as pessoas permanecerão mais tempo em casa, o que pode ser positivo. 

Mas, ao mesmo tempo, o home office reduzirá em muito a convivência extradoméstica e aumentará o isolamento social, o que pode ser negativo. Mais ainda, o trabalho e o estudo a distância exigem melhor treinamento, o que poderá ser um fator a mais a reduzir o emprego de muitos. Ao lado dos desempregados e dos subempregados, teremos os não empregáveis. O mais importante é que a pandemia afetou e continuará a afetar por algum tempo o crescimento econômico, que já era pífio. Os gastos de alguns bilhões em auxílio emergencial têm efeito positivo, mas não poderão ser sustentados por muito tempo. E o nosso problema máximo, que a pandemia agravou, é a desigualdade social, que o auxílio não afetará. O auxílio alcançou 66 milhões de pessoas, quase 60% da população. 

O que fazer com esses 66 milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis? Como incorporar essa massa de cidadãos, crescendo numa média de 2% ao ano? Nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para 2019 nos coloca na 84ª posição no ranking das nações. Somos o nono país mais desigual do planeta. Os 10% mais ricos respondem por 42% da renda do país. Só o Qatar nos vence nessa inglória disputa. A desigualdade é nossa grande e trágica pandemia, diante da qual os males do coronavírus empalidecem. Essa é a pandemia que põe em risco nossa viabilidade como nação.

Com base em tudo o que o Brasil aprendeu nesses anos de História, que lições podemos tirar que nos indiquem um caminho para dirimir a desigualdade? Em que tipo de medidas práticas o senhor acredita?

Nossa desigualdade é estrutural. Tem origem no tipo de colonização: portugueses produzindo em grandes propriedades para o mercado internacional usando mão de obra escrava indígena e africana. Ficamos nisso por quatro séculos, variando do açúcar para o gado, para o ouro, para o café, para a borracha. Só houve alguma mudança com a imigração de trabalhadores livres, mas ela se limitou ao Sudeste e ao Sul. 

A abolição da escravidão foi feita sem política de integração dos libertos pela educação e pelo emprego. Formou-se aos poucos um campesinato dependente dos grandes proprietários, sem escolas e sem leis trabalhistas, até o século 20. A industrialização gerou uma classe operária militante, mas limitada aos grandes centros e sem a força política das que surgiram nos países europeus. Foi-se aos poucos acumulando uma grande massa de excluídos. Como somos também um país sem revoluções sociais, a redução da desigualdade só poderia vir da atuação de partidos de esquerda que adotassem políticas redistributivas. O antigo PTB tentou, mas deu no que deu. O PT só conseguiu fazer políticas distributivistas de natureza paternalista. 

O grande mistério é que a incorporação das massas ao sistema político pelo voto não tenha resultado na formação de governos de esquerda redistributivistas que deslocassem, por exemplo, por impostos sobre a renda, a herança, os dividendos, recursos dos mais ricos para os mais pobres. A faixa máxima do Imposto de Renda (IR) é de 27,5% no Brasil, quando nos Estados Unidos é de 35% e, na Holanda, de mais de 40%. Esse tipo de medida não é aprovado no Congresso, apesar da grande inclusão eleitoral. Os representantes eleitos por pobres não representam os pobres. Se o crescimento econômico é baixo, se a representação não funciona, enfim, se não conseguimos redistribuir, não haverá saída, estamos bloqueados.


26 DE DEZEMBRO DE 2020
BEM-ESTAR

"LIBERDADE É POUCO, O QUE EU DESEJO AINDA NÃO TEM NOME"

No centenário de Clarice Lispector, ela está mais viva que nunca. Ela vem sendo comemorada, celebrada, copiada e confundida numa expansão exponencial.

Merece ser eterna porque já era eterna quando a conheci pessoalmente, quando a visitei em sua casa e conversamos longamente. E já era eterna muito antes disso, quando ainda adolescente eu lia sozinha no quarto e seus livros me abriam as paredes para o mundo. Eu era uma menina, e os livros eram o meu descobrir a vida, entender, com grande surpresa, que existiam centenas de palavras, milhares de pensamentos, pessoas que eu nem sabia quem eram e que no entanto, eu as sentia tão perto, tão próximas e as amava do ponto mais fundo do meu coração.

Não eram estranhos, embora eu nem soubesse seus rostos, nem se ainda estavam vivos, se moravam perto ou se eram de lugares distantes e de outro século. E assim fui aos poucos me informando sobre quem eram esses autores, essas pessoas sem identidade por trás de tantas lindas histórias e frases, de tanta comunhão com as minhas emoções. Entre eles estava Clarice Lispector, um rosto marcante de uma mulher em preto e branco numa fotografia, que eu olhava tentando desvendar alguma coisa. Ela, a pessoa, permanecia um mistério mesmo que sua alma estivesse tão exposta e revelada no que escrevia.

Lembro de madrugadas, eu e minha melhor amiga, ainda adolescentes, de pijama, lendo Clarice. A gente se emocionava e comovida, compartilhava trechos de Perto do Coração Selvagem.

Clarice foi de uma generosidade inesquecível. Era imensa, uma alma que saia do corpo e te abraçava. Sua busca de autoconhecimento era tão forte, que tudo nela eram perguntas, questionamentos. Ela mesma dizia: "Eu sou uma pergunta". Acho que assim evoluímos, perguntando. Procurando dentro de nós as questões que nos afligem, que guiam a nossa curiosidade. Nos orientamos pelas dúvidas que moram no nosso âmago, pelo que não sabemos, pelo desconhecido.

Na mitologia, toda jornada do herói enfrenta o desconhecido. E os deuses sussurram que o maior desconhecido a desvendar habita dentro de nós. Essa é a viagem mais corajosa. Essa é a grande jornada.

Sempre fui tateando por esse caminho, por mais difícil que fosse. Quando comecei a ler Clarice, percorri esses passos nos caminhos que ela propunha. A viagem de Clarice era pra dentro. Descobrir esse mundo que habita dentro de nós é tão complexo quanto se lançar no mundo em que habitamos. Requer um exercício paciente de solidão consigo mesmo. As respostas - e não todas, é claro - virão devagar, depois que a gente conseguir superar o medo. O medo de nós mesmos, o medo do outro, o medo do mundo.

Fui abraçada por Clarice. Tive a oportunidade de, sozinha com ela em seu apartamento, agradecer cada frase, cada respiração, cada troca que me ofereceu e continua oferecendo para o mundo. Viva, presente, complexa, curiosa, belíssima. Uma das mais lindas mulheres que conheci, das mais profundas, sensíveis e sábias. Obrigada, Clarice, por tudo.

BRUNA LOMBARDI , ATRIZ, ESCRITORA E COLUNISTA DE ZH

26 DE DEZEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

VACINAS EFICAZES

Nunca uma vacina foi aguardada com tamanha ansiedade. Por outro lado, nenhuma outra foi desenvolvida com tanta rapidez, quanto a do atual coronavírus, que já ultrapassou a marca de 1 milhão de mortes, pelo mundo.

No Brasil, contamos com duas vacinas em fase final de testes clínicos: uma que será produzida pelo Instituto Butantã em parceria com uma empresa farmacêutica da China; a outra, desenvolvida pela Universidade de Oxford, será produzida pela Fiocruz em parceria com a AstraZeneca.

Embora os estudos não tenham chegado ao fim, sabemos que nos dois casos a eficácia da vacinação foi acima de 90%, resultado bastante animador num mundo em que a Organização Mundial da Saúde admitia que qualquer preparação com mais de 50% de eficácia, já seria útil no combate à pandemia.

Dias atrás, a farmacêutica Pfizer anunciou que a vacina desenvolvida em seus laboratórios, com base na tecnologia do RNA mensageiro, também demonstrou mais de 90% de eficácia.

Na esteira dessas notícias boas, uma empresa americana de biotecnologia, a Moderna, divulgou os resultados parciais obtidos com uma vacina também obtida com a tecnologia do RNA mensageiro (mRNA-1273).

Do estudo COVE, desenvolvido pela Moderna, participam 30 mil pessoas. Durante o acompanhamento ocorreram 90 casos de COVID-19 entre os que receberam placebo, contra apenas 5 dos que foram vacinados - eficácia de 94,5%.

Os resultados foram confirmados por um comitê independente escolhido pelo NIH (National Institute of Health), órgão do governo americano.

A eficácia também ficou demonstrada na prevenção do agravamento da doença: 11 casos graves entre os que receberam placebo, contra zero entre os vacinados.

A intensidade dos efeitos colaterais foi de leve a moderada: fadiga (9,7% dos casos), dores musculares (8,9%) e dores nas juntas (5,2%).

No estudo, 37% dos participantes faziam parte de grupos étnicos e raciais não brancos; 25% eram adultos com mais de 65 anos; 17% tinham menos de 65 anos, mas apresentavam fatores de risco (hipertensão, obesidade, diabetes) para as formas mais graves da doença.

A apresentação desses resultados levou o diretor do NIH a dizer: "Esta é uma semana de contrastes dramáticos". Referia-se ao contraste entre o otimismo pela obtenção de mais uma vacina e a constatação de que os Estados Unidos ultrapassaram 11 milhões de casos e quase 250 mil mortes pela doença.

Enquanto a preparação vacinal anunciada pela Pfizer precisa ser mantida em freezers abaixo de - 70º C, a da Moderna pode ficar armazenada em geladeiras comuns, em temperaturas ente 2º C e 8º C.

A intenção da Moderna é produzir 20 milhões de doses até o fim deste ano, produção que deverá ser aumentada rapidamente para chegar de 500 milhões a 1 bilhão de doses, durante o ano de 2021.

As perspectivas para dispormos de uma ou mais vacinas contra a covid-19 são boas. Mas imaginar que ficaremos livres assim que começarmos a imunizar a população é irreal. A luta contra o coronavírus será longa.

DRAUZIO VARELLA, MÉDICO, CIENTISTA E ESCRITOR

26 DE DEZEMBRO DE 2020
REFLEXÃO

ANO-NOVO COM AMOR

Neste Ano-Novo, vamos passar por uma nova e desafiadora experiência. Em todos os sentidos. Estaremos longe de quem amamos por motivos de segurança sanitária. Mas vibrações positivas de quem gostamos estarão ali presentes onde as pessoas possam juntas colaborar com este momento atípico. Podemos vivenciar de uma forma totalmente criativa e amorosa. Realizarmos, por exemplo, chamadas de vídeos desejando a quem a gente gosta votos de um 2021 com saúde e amor. Que em breve estaremos juntos novamente.

Os abraços serão trocados por belos sorrisos e suaves beijos teleguiados. Mas que esse beijo de longe chegue acalorado e confortador.

A entrada de ano é tempo para celebrarmos nossa vida, nossa saúde e, dependendo do credo de cada pessoa, nossa fé. Celebramos também a oportunidade que temos de estar ao lado de quem passamos o ano inteiro e que nos ajudou a sermos pessoas melhores.

No Réveillon, quando a família tradicionalmente se reúne, pode haver conversas e situações que deixam alguns integrantes desconfortáveis. Mas podemos pensar juntos em formas de trazer assuntos mais sérios. Uma delas é falar numa boa e em um bom tom que, naquele momento, é interessante cultivarmos os sorrisos e as boas histórias de família mais do que os problemas que ocorreram durante o ano. Os desentendimentos podem ser conversados e resolvidos em outra hora. Trabalhe essa pauta com humor. Abertamente, convide o seu familiar a celebrar aquele momento de união com histórias curiosas, lembranças e gratidão.

O bom humor é uma ótima estratégia para enfrentarmos situações de última hora que possam nos deixar mais ansiosos. Desconversar um assunto que esteja em roda no momento não quer dizer desrespeito. Se você não se sente confortável em falar, apenas sinalize que gostaria de continuar conversando sobre outro assunto.

u lembranças de entes queridos vão surgir

Neste 2021, não compre brigas que não são suas. Lembre-se de que o almoço ou o jantar são momentos de confraternizar e não guerrear. Deixe as diferenças no quintal, para fora de casa. Da porta para dentro, traga o amor e o bom senso. Sim, o clima de Réveillon mexe muito com o emocional das pessoas em nossa volta. Neste momento, pare e pense que cada um de nós está fazendo um balanço do seu ano mesmo que reflexivamente pontuando os seus acertos, erros e questionando as suas atitudes.

Lembranças de entes queridos que faleceram e suas histórias de afeto vão surgir. Seja um bom ouvinte. Ser é participar. Procure escutar e emprestar o seu eu, confortando com um olhar e continência no acolhimento. Um gesto simples faz diferença, como, por exemplo, alcançar um lenço de papel para a pessoa enxugar as suas lágrimas e agradecer o seu compartilhamento de emoções.

Um feliz Ano-Novo, com votos de saúde, paz e amor.

MICHEL ANDREOLA, PSICÓLOGO

26 DE DEZEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

O QUE SE LÊ E O QUE SOMOS

Ser leitor é uma condição que, sem rigorosa autodisciplina, exclui a possibilidade de isenção. Por uma razão muito simples: nós escolhemos o que ler. Evitamos as revistas inimigas e jamais assinamos os jornais deles. E quando não concordamos com o texto tendemos a abandoná-lo rapidamente. Existem muitas evidências de que esta seleção preconceituosa do que merece ser lido é o embrião para a chamada imunização cognitiva, uma síndrome fartamente estudada na sociedade contemporânea, em que tanta gente se apoia na fé e a partir daí boceja nesta zona amorfa e impenetrável ao raciocínio lógico.

O passo seguinte rumo à atrofia cerebral é evitar pessoas que tenham opiniões contrárias, e só ler ou ouvir as que professam dos mesmos credos.

Então, uma condição essencial para que a leitura não seja meramente lúdica e enriqueça o espírito do leitor é o acesso ao contraditório, oferecendo alternativas que podem eventualmente colocar em xeque as convicções de quem se aventurou a espiar o mundo pelas frestas da curiosidade.

Numa revisão histórica, nunca fica bem claro quanto o mundo foi influenciado por alguma obra clássica, ou quanto os escritores de uma certa época se deixaram arrastar pelas tendências culturais daquele determinado período.

Nesse contexto, parece muito natural, para quem vê de fora, que criador e criatura se misturassem e, assim imiscuídos, se completassem. Difícil saber o quanto uma onda literária foi determinante de uma revolta cultural ou uma mera consequência dela.

E sempre coube aos leitores intelectualmente saudáveis saborear a literatura mais autêntica daquele momento, porque só a autenticidade assegura a permanência de um texto.

Quando começou a era da literatura pedagógica, esta que pretende orientar os leitores de como devem viver e agir nas suas vidas privadas para alcançarem um modelo teórico de felicidade, nasceu a patrulha ideológica que subestima a inteligência de quem já aprendeu que não pode haver modelos padronizados para orientar personalidades diferentes, e que, invariavelmente, os comportamentos extremos não brotam por geração espontânea, ao contrário, representam uma resposta proporcional ao passado recente.

Como assumir que possamos, em algum momento, ter errado exige uma humildade intelectual que a totalidade dos fanáticos nem imagina o que seja, estabelece-se um clima de revanche, e inicia-se assim um ciclo de irracionalidade em que cada um ouve e ecoa o que gostaria que tivesse sido dito. Para vaiar ou aplaudir. Às vezes, constrange verificar que os mais "indignados" com a situação atual não passariam incólumes por um julgamento sério que revisasse comportamentos de uma década da história recente.

Só seremos uma sociedade madura quando tratarmos a opinião alheia com respeito, e essa atitude merecer reciprocidade.

Fora disso, seremos vistos como reles baderneiros intelectuais e merecedores de censura. Essa forma humilhante de monitoramento social que não existe em países desenvolvidos, nem nos regimes totalitários, onde a repressão é intrauterina.

J.J. CAMARGO


26 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

As previsões da cartomante

Outro dia, uma amiga veio me contar que foi a um pai de santo para saber do futuro e pedir aconselhamento, talvez até algum encantamento. Fiquei animado.

- Ele disse alguma coisa de mim? Hein? Disse? Disse?

Ela tergiversou: - Não diretamente, mas... - Como assim, "não diretamente"? Tu não perguntaste nada sobre mim???

Fiquei decepcionado com minha amiga. Sempre que alguém que conheço vai a um pai de santo ou a uma cartomante ou a qualquer outro tipo de vidente, fico atento para saber se algo foi dito a meu respeito.

Eu, em pessoa, levado por minhas próprias pernas, não iria a um desses profetas - sentiria vergonha, porque a imagem que faço de mim mesmo é a de ser um homem que se guia estritamente pela razão. Cerebral, entende? É isso que acho que sou: um homem cerebral. Como diria Belchior: sei que nada é divino, nada é maravilhoso, nada é sagrado, nada é misterioso.

Exatamente!

Só que volta e meia constato, com melancolia, que não sou tão cerebral assim. Que crenças e superstições se insinuam na minha alma e me fazem ficar aflito ou ansioso ou até alegre se o vaticínio ou o presságio forem bons. "Ela disse que sou um príncipe? Sério?"

Felizmente, muitas mulheres não sentem vergonha de ir a cartomantes. Quando elas se separam ou estão enfrentando algum outro problema na vida, não poucas buscam a ajuda de videntes. O que mais gosto é quando uma amiga relata que foi a uma cartomante famosíssima, que muitas pessoas conhecidas consultam, uma cartomante tão boa, que é preciso marcar hora com ela e leva um mês para abrir vaga. Ela vê tudo, essa cartomante, ela acerta sempre. Sempre! Inclusive, quando a minha amiga foi lá, a cartomante, de cara, antes que minha amiga sequer abrisse a boca, observou:

- Tu perdeste uma pessoa muito querida há pouco tempo... Uma pessoa da família...

- Meu avozinho, David! Ela estava falando do meu avozinho!

Sinto reverente respeito pelas cartomantes infalíveis. Então, fico na expectativa:

- E de mim? Ela falou algo de mim???

Como gostaria de ter coragem de consultar uma cartomante infalível. Mas não tenho, sou um pusilânime. A única vez que estive cara a cara com um vidente do gênero foi quando trabalhava no Diário Catarinense, nos anos 1980. Um médium fazia trepidante sucesso em Maracajá, no extremo Sul. Em frente a sua casa, pequenas multidões se reuniam em busca da cura de algum mal ou, simplesmente, de paz. Era boa pauta. Fomos lá, conferir a história, eu, o fotógrafo Ezequiel dos Passos e o motorista Salézio Vasconcelos. Passamos o dia no lugar, acompanhamos cirurgias espirituais e consultas, entrevistamos as pessoas. Por fim, interpelamos o médium. Ele deitou falação. Discorria acerca de seus poderes mentais, das façanhas que era capaz de cometer e tal. Em meio à conversa, olhou bem para mim e falou, com voz grave:

- Vejo que você é um espírito cético. Você não acredita... - estremeci. - Vejo, também, no brilho dos seus olhos, que você vai longe... Mas, atenção: você deve acreditar... Você deve acreditar...

Saímos de lá impressionados, eu, o Ezequiel e o Salézio. Aboletado no banco traseiro do carro, eu repetia, imitando a voz do homem: "Você deve acreditar... Deve acreditar...".

Bem. Não é do meu feitio. Sou um cerebral, você sabe. Um cerebral. O problema é que, às vezes, quando me distraio, até acredito. É verdade. Mas não conte para ninguém.

DAVID COIMBRA


26 DE DEZEMBRO DE 2020
POLÍTICA +

Planalto, um sonho distante para Leite

Há alguns meses, quando era questionado sobre a possibilidade de concorrer ao Palácio do Planalto, o governador Eduardo Leite desconversava. Neste final de ano, mesmo cheio de ressalvas, o discurso mudou. Leite admite que vai trabalhar para quebrar a polarização entre esquerda e direita, buscando uma alternativa de centro, e não descarta ser candidato a presidente ou a vice.

A resposta à pergunta é dada de forma ainda vaga, mas parte da premissa de que qualquer político que goste do que faz tem o direito de sonhar com o cargo mais importante da República. Na entrevista que deu na quarta-feira a ZH (confira a síntese nas páginas 6 e 7), repetiu a frase atribuída a Tancredo Neves e citada por todos os que sonham com o Palácio do Planalto, mas sabem que chegar lá depende de uma combinação de variáveis:

- Tenho claro que Presidência é destino. Tantas pessoas se prepararam tanto para ser e não foram e tantas outras não se preparam e acabaram sendo.

Leite passou a admitir a hipótese de ser candidato depois de ser procurado por líderes que buscam um nome capaz de evitar a reprise de 2018, com um segundo turno entre Jair Bolsonaro e o candidato do PT.

- É verdade que tenho sido procurado por pessoas que entendem que posso ser uma alternativa. Estou com 35 anos e é uma grande honra, um sinal de reconhecimento. Como candidato? É muito cedo, absolutamente prematuro, para dizer. Eu participo das discussões, quero ajudar a construir uma alternativa e naturalmente participaria como candidato, mas não é o que me move no trabalho aqui no Estado.

Quando fala em "destino", Leite recorda que sua principal referência na política, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, só chegou ao Planalto porque estava no Ministério da Fazenda de Itamar Franco, quando o Plano Real debelou a inflação. Sem isso, mesmo com todo o preparo que tem, FHC não teria sido presidente. Leonel Brizola, Mario Covas, José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves chegaram a ser considerados favoritos, mas os brasileiros optaram por candidatos improváveis, como Fernando Collor, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro.

Leite está longe de ser o candidato natural do centro em 2022. Pesam contra ele a pouca idade (35 anos hoje), a falta de força (e de unidade) do Rio Grande do Sul, a crise que impede o Estado de ser vitrine para um projeto inovador, a concorrência do governador de São Paulo, João Doria, e do apresentador Luciano Huck, mais conhecido no Nordeste.

ROSANE DE OLIVEIRA

26 DE DEZEMBRO DE 2020
CARTA DA EDITORA

Um 2021 de boas notícias

A cada final de ano, ZH tem a missão de olhar para o retrovisor e sintetizar para seus leitores o que de mais impactante ocorreu no mundo, no país e no Estado ao longo de 12 meses. Todo ano que fica para trás costuma deixar um legado e, muitas vezes, um recado. E as retrospectivas que fazemos buscam captar essas mensagens.

A deste ano, que está publicada no caderno DOC, teve o desafio de mostrar que, apesar de uma pandemia que levou milhares à morte e fez a economia brasileira despencar, acentuando o desemprego e a miséria, também trouxe reflexões que antes não eram feitas, mudanças de hábito até então impensáveis e, principalmente, esperança.

Como bem destaca a editora de Cultura e Comportamento e responsável pelo projeto, Patrícia Rocha, a retrospectiva de 2020 resume um ano que não esqueceremos, por tudo o que impactou a vida de cada um de nós, mas que marcou também aqueles que têm como missão diária informar e contar histórias.

- As páginas do caderno DOC nos fazem lembrar que coube a nós, jornalistas, dar notícias duras, dos primeiros casos aos quase 200 mil mortos no Brasil, mas também fazer alertas importantes, levar informações úteis para prevenção e busca por soluções, desde os desafios de confinamento à retomada da economia. E aproveitamos cada chance de oferecer momentos de leveza, da programação de lives para quem queria desopilar a relatos inspiradores de solidariedade em meio à crise. E agora podemos levar esperança narrando o passo a passo até a chegada da vacina - diz Patrícia.

Torcemos para que já no comecinho de 2021 possamos não só narrar a chegada da vacina ao país, mas também noticiar o esvaziamento das UTIs, a retomada da economia, os avanços da ciência, os gestos crescentes de solidariedade.

DIONE KUHN

26 DE DEZEMBRO DE 2020
INFORME ESPECIAL

Sebastião Melo e as rachaduras

Enquanto se esforça para construir pontes sólidas na política, o prefeito eleito da Capital, Sebastião Melo, terá de se preocupar com as rachaduras nos viadutos de concreto. Uma inspeção iniciada há mais de cinco anos se transformou no primeiro desafio do governo Melo na relação com o Tribunal de Contas do Estado.

Em agosto de 2015, durante a gestão de Cezar Miola no TCE, foi assinada uma parceria com o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia para fiscalizar a manutenção das chamadas obras de arte especiais - pontes, viadutos, passarelas e túneis sob responsabilidade das prefeituras gaúchas. Em dezembro daquele mesmo ano, os resultados preliminares de 10 municípios nos quais mora um terço da população do RS indicaram a existência de "rachaduras, desgaste de concreto e falta de proteção de guarda corpo", mas "sem perigo iminente", apesar da preocupação com eventuais problemas nos médio e longo prazos. Dentro desse mesmo esforço, uma cartilha com orientações aos gestores foi elaborada pelo TCE.

Agora, no final de 2020, o Tribunal de Contas, em decisão unânime, decidiu "Determinar ao administrador do Executivo Municipal de Porto Alegre a apresentação (...), no prazo de 120 dias, de plano de ação acerca das medidas que pretende adotar com vistas ao equacionamento dos apontes (...), com a indicação dos responsáveis e dos prazos para implementação de cada ação". Ou seja, Sebastião Melo tem até abril de 2021 para entregar ao TCE o plano para conservação permanente dos equipamentos urbanos descritos na decisão.

O conselheiro Cezar Miola, responsável pelo tema no Tribunal de Contas, defende a pertinência da decisão, não apenas pelos eventuais custos financeiros que a ausência ou deficiência de manutenção geram aos cofres públicos, mas também pelo risco à segurança das pessoas que moram e circulam nos centros urbanos. É uma lição que a política e a gestão pública precisam aprender com a engenharia. Não basta construir pontes e viadutos. É preciso garantir que não desabem.

TULIO MILMAN

sábado, 19 de dezembro de 2020

19 DE DEZEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Três damas

Nestes tempos em que nos sentimos mais sozinhos e ameaçados, alguém reclama de que falo demais na Senhora Morte, que tanto já me roçou com suas largas mangas.

Não creio no que se enxerga, mas nisso que se disfarça por mais que se tente olhar: assim fico seduzida. Eis o jogo que eu persigo, meu jeito de ser feliz, o desafio que me embala: sempre que escrevo "morte", quem sabe estou falando da vida.

Não sou apenas devaneio. As lentes que me deram ao nascer são lúcidas como chuva que tornasse tudo áspero - não doce. Engano pensar que a arte afaga: ela me puxa pelos cabelos, me lança no olho da ventania. Combate meu grande inimigo, o tédio. Não durmo, não tenho complacência: cada palavra pesada, cada entrelinha apurada para que não escape nada do que vejo e sonho (e, às vezes, desejo). Tudo muito grave, tudo muito urgente.

A parte dura desta humana lida é dizer sim na hora do não, escolher mal entre silêncio e grito, entre a noite e a explosão do dia. Ceder quando devíamos negar, dizer não em lugar de afirmar, partir quando era bom amar, fechar-se em vez de resgatar a vida. Sermos incertos e indecisos, perdendo o trem, a hora, o agora: mas a gente não sabia.

Escrevo um conto sobre a Senhora Vida? Era uma vez um corredor de amores e uma casa ancorada no tempo para não naufragar. Era uma vez viagens e descobrimentos. Era uma vez uma infância dourada e um quebra-cabeça impossível de armar. Era uma vez - e ainda respira em mim como um cavalo alado - aquele mar. Quando perdi quase tudo, descobri que a dor não era maior que o sonho. Quando esqueci o caminho, vi que o horizonte ficava do lado errado. Quando só o meu rosto sobrava em cada espelho (e nada do lado de cá), juntei desalento e desejo e me reinventei com alguma audácia.

Pois o meu é o reino das palavras: nele tudo pode ser dito - a cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios. Este é o lugar do impalpável que a muitos incomoda: são os que fecham meus livros, sacodem a cabeça - e não entenderão.

Porque eu falo para os da minha raça: os que atuam nos palcos ou nos computadores ou nos ateliês, salvam vidas, varrem as ruas, arrumam os quartos, lidam na cozinha, mas vagam pela casa, coração pulsando forte, quando os outros ancoraram no sono. Sentindo-se guerreira ou mendiga, insuficiente ou esplêndida - esta que escreve não sou eu, mas algo que escorre dos meus contornos como o som transbordava de uma concha na mão, naquela dourada infância.

E minha alma, inocente menina ou feiticeira perversa, desenrola este novelo de caos e luz soprando em teus ouvidos esses nomes, Senhora Morte, Senhora Vida, e, talvez mais importante e menos lembrada, a Senhora Esperança.

LYA LUFT