sábado, 30 de junho de 2018


30 DE JUNHO DE 2018
PIANGERS

Amor de vô


Um avô me parou esses dias no final de uma palestra. Se você acha que amor de pai é grande, espere até se tornar vô, disse. Duvidei. Amor de pai é tão grande, ter filhos dá tanto trabalho, exige tanta dedicação, que amamos nossas obras como se fosse o projeto de nossas vidas. Mas depois de ser vô você percebe que não deveria ter se preocupado tanto. Amor de vô é amor puro, compreensivo e afetuoso. A gente olha pro nosso filho, pensa em tudo o que errou e tenta acertar com o neto, contou o senhor. A gente aprende que ser duro demais ou preocupado demais ou estressado demais com dinheiro é bobagem, disse. Amor de vô é puro amor, sem preocupações bobas.

Realmente, tenho tantas preocupações bobas. Obrigo as meninas a comerem todo o almoço. Exijo que ponham os pratos na pia. A mais velha lava louça, a mais nova, às vezes, seca (apenas os itens de plástico, já quebrou copos demais). Peço que digam "por favor", "com licença", "obrigado". Regulo o tempo vendo televisão. Cobro desempenho escolar. Não permito doce antes das refeições. Insisto para que lavem as mãos e escovem os dentes. Sou chato! Terrível! O pior pai do mundo!

Já ouvi mais de uma vez, de diversas pessoas: "todo amor que meu pai não me deu agora dá para meus filhos". Os netos parecem ser a redenção para pais que amaram de menos, trabalharam demais, foram duros e insensíveis. Agora se derretem com os bebês dos filhos. "Devia ter sido mais relaxado", parecem dizer.

Tenho medo de que minhas filhas sejam fúteis, comprometidas apenas com o próprio bem-estar sem olhar ao redor. Tenho medo de que valorizem o material, que não façam bons amigos. Quero que sejam bem-sucedidas na profissão que escolherem, é claro, e não sofram desilusões amorosas. Sou estressado demais, sem dúvidas. Preocupado demais. Devo ser menos pai e mais vô? Ou cada um tem a sua função? Devo estressar minhas filhas para que sejam boas e cumprir minha função de avô mimando meus netos? Terei netos? Ou ficarei esperando em vão o momento de amar crianças sem preocupações, como aquele avô me disse ser possível?

Amor de pai e mãe é cheio de culpa. Não sabemos nunca se estamos certos. Não sabemos se estamos mimando demais ou abraçando de menos. Se estamos formando anjos ou monstrinhos. Se seremos pais orgulhosos ou envergonhados. A insegurança nos acompanhará por anos. Até que nossos filhos cresçam e nos mostrem onde erramos e onde acertamos. Nossos netos serão nossa redenção.

PIANGERS


30 DE JUNHO DE 2018
CARPINEJAR

Quando caía a luz

Era fundamental, há duas décadas, ter uma gaveta em casa com velas e lanterna. Todo mundo conhecia o paradeiro de emergência na hora em que faltava luz. E faltava luz com muita regularidade.

Não contávamos com as luzinhas do celular e recursos tecnológicos. Tratava-se de artigos necessários para manter a segurança. Quase como uma malinha de primeiros-socorros.

Aprendíamos a apalpar os móveis. Treinávamos os movimentos no escuro. Dançávamos de olhos fechados pelos corredores. Driblávamos as quinas das mesas e as pernas das cadeiras.

O mais encantador da queda de energia vinha a ser o silêncio. Somos tão olhos que não reparamos no barulheira que nos cerca e que não nos permite em nos fixar em quem está próximo.

Os aparelhos desapareciam e nos reencontrávamos com a quietude. Começávamos uma busca pelo outro pela respiração. Significava uma trégua de grande intimidade com os pais. Sem a visão, queríamos estar perto deles, não desejávamos fugir para outros lugares e tarefas.

- Onde está? Fique aí que vou lhe resgatar.

Sentávamos no sofá, abraçados, amontoados, com as velas bruxuleando ao redor. Precisávamos nos ocupar com histórias. Não sofríamos com a concorrência de passatempos e distrações.

Predominava uma imprevisível exclusividade. Realmente prestávamos atenção no pai e na mãe, nas nossas lembranças de pequeno, nos causos e nas brigas engraçadas, nos nossos pequenos poderes. A mãe recordava que a Carla já sabia ler com três anos, de que o Miguel acreditava que poderia voar de super-homem segurando-se nos varais, de que o Rodrigo devorava a enciclopédia como se fosse uma história com início-meio-fim e que eu, um dia, me escondi numa cova aberta de cemitério de Caxias e me fingi de morto para dar susto nos outros como se estivesse ressuscitando.

E nos sentíamos especiais, amados, admirados, guardados. Eu me orgulhava de meus irmãos: havia esquecido de como eles eram legais.

Gritávamos de felicidade: - Contem mais!

Ríamos alto, batíamos palmas, enquanto os pais nos devolviam as nossas vidas, testemunhas privilegiadas de nosso crescimento.

Na hora em que voltava a luz, estranhamente, parecia que saíamos de um transe de ternura e cada um retornava para a sua solidão. Mas ainda guardo a certeza de que o apagão nos ressarcia a luz própria. Iluminávamo-nos pelas nossas vozes. E esperávamos, ansiosamente, pelo próximo escuro para nos dar as mãos de novo.

CARPINEJAR

30 DE JUNHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Marciana


Apaixonar-se é ganhar um visto para entrar em outro planeta. A gente descobre cheiros e sabores desconhecidos, um vocabulário diferente, histórias novas, lugares em que nunca estivemos, enfim, lidamos com o deslumbramento de estar em outro mundo o mundo do outro.

Há quem permaneça neste novo planeta por pouco tempo e logo retorne para o seu, e há quem se instale em definitivo: pede asilo e se naturaliza. Amar é sempre uma viagem. De ida e volta, ou só de ida.

Afora a aventura amorosa de explorar um universo diferente, não costumo me distanciar muito do meu território, pois não acho agradável me sentir uma marciana - e o fato é que me sinto, às vezes. Acontece quando leio o noticiário político, quando estou entre pessoas pedantes, quando testemunho preconceitos ou pieguices, e até em situações bem triviais, como quando alguém puxa um Parabéns a Você. Pois é, coitado do Parabéns a Você, tão inocente, mas é inevitável: a canção começa, e na mesma hora brotam duas antenas verdes na minha cabeça e um terceiro olho no meio da testa.

Cultos religiosos também têm esse poder de me transformar num ET. Oração, pra mim, é algo privativo e silencioso. Já em grupo, não consigo me encaixar. Gosto de igrejas vazias - e de teatros lotados. No entanto, até mesmo num teatro posso vir a me sentir estrangeira, nos casos em que a plateia ri por nada, como se rir fosse obrigatório. Uma vez, estava assistindo a uma peça trágica sobre um casal que havia perdido o filho, e, mesmo assim, algumas pessoas achavam graça. Refletir não basta? Se comover não basta? No meu planeta, basta.

Frequento desde churrasco na laje até festa em castelo, mas, se eu perceber que estou longe demais da minha turma e da minha essência, a marciana surge e me ordena: embarque logo na nave e vamos pra casa. Deve ser consequência da passagem do tempo, maturidade não é período para desperdícios. Tem sido cada vez mais fundamental me sentir inteira onde estou, e não uma turista.

E aqui dou um salto para falar de inclusão. Pessoas que sofrem de alguma deficiência costumam viver à parte da sociedade, em um planeta com o qual não interagimos. É por isso que o Clube Social Pertence está inaugurando uma ONG com a missão de promover a socialização e a independência de jovens que podem fazer tudo o que fazemos, bastando dar a eles uma oportunidade. 

No próximo dia 9 de julho, às 19h30min, na pizzaria Fratello Sole do Shopping Iguatemi, em Porto Alegre, isso será demonstrado na prática, com a garotada colaborando na cozinha e no serviço do jantar. Quem quiser conhecer melhor o projeto desta importante ONG, compareça. Ser portador de uma deficiência não deve impedir ninguém de se sentir inteiro onde está, e eles estão aqui, ao nosso lado, no mesmo mundo que a gente.

MARTHA MEDEIROS

30 DE JUNHO DE 2018
LYA LUFT

Pão & circo


Não falo apenas no pão e circo do velho Nero, que, diante da insatisfação dos explorados romanos, mandou que lhes dessem mais pão e circo. Essa verdade abrange séculos, quem sabe milênios. Gladiadores se mutilando, inocentes devorados vivos por feras, sangue e entranhas, miséria grassando lá fora, tiranos loucos, e a gente aplaudindo enquanto comia pão seco e torcia, berrava, aplaudia. Nas nossas vidas pessoais, pode acontecer algo parecido, sem feras sanguinárias nem tiranos loucos. 

Está tudo confuso, preocupante, assustador, então vamos às compras, uma camiseta de R$ 10 ou uma bolsa de vários milhares, uma ida ao shopping só pra olhar ou uma fugidinha pra Miami ou Nova York. Pode ser uma amante, um namoradinho, uma balada, um bom livro, um bom uísque, um bom papo com amigas ou amigos, um passeio de carro vendo o rio e as nuvens, ou simplesmente uma tarde no quarto chorando.

Mas, de preferência, uma das distrações acima, porque chorar dá medo de não conseguir parar nunca mais, sobretudo se for uma perda trágica que nos estraçalha apesar dos esforços e do tempo amigo, que nem sempre cura (abranda). Então também pessoas têm seus dias de pão e circo pra não desanimar, não enlouquecer, não fugir correndo, não se matar.

Nestes tempos de Copa do Mundo, eu, que não entendo de futebol, mas gosto e assisto, ouço comentar que o tempo pode ter sido escolhido para acontecerem alguns golpes baixos enquanto estamos distraídos torcendo ou secando. Alguém me diz: "Poxa vida, você gostar de futebol?". Bem, sinto muito, mas sou gente. Gosto de seriados como Criminal Minds, leio romances do gênero e, de momento, para descarregar minha agressividade (em geral moderada) com a situação aqui fora, entro no meu iPhone e releio o Ascensão e Queda do Terceiro Reich, de William Shirer. 

Em inglês, pra não perder o costume e não exercer o feio vício profissional de encontrar esquisitices na tradução (sim, eu às vezes também leio no iPhone, levando comigo para toda parte um livrão de mil e muitas páginas. Novos tempos, sem abdicar dos velhos hábitos).

Então, aqui, vejo futebol com Vicente, lembrando meu pai há tantas décadas ouvindo futebol no rádio nas tardes de domingo, entretido e fascinado, berrando a cada gol do seu time, enquanto minha mãe rondava, mal-humorada, reclamando baixinho que domingos à tarde ela não tinha marido.

Nestes dias difíceis que nos enchem de preocupação, é bom entrar nessa do pão e circo? Por que não? Pular, gritar, vestir a camiseta, botar chapéu ou óculos bizarros, vender a alma para poder viajar para a Rússia, tudo isso nos alivia. Quem sabe a gente tenha mais energia, mais lucidez, depois de um breve tempo esquecendo a pobreza, as dívidas, o emprego ameaçado, a mulher trabalhando em três turnos... a incerteza. 

Atualmente, nem bebo, nem danço, nem viajo, nem visto camiseta, mas aqui e ali vejo jogos, torcendo, sem entender nada das regras, mas encantada com as coisas humanas: a violência de alguns, a solidariedade de outros, o desânimo, a esperança, a glória, o abatimento, as manhas e tramas, e o marido de vez em quando me iluminando com algum bem-vindo comentário (ou eu ficaria demais nas nuvens).

Merecemos muito mais momentos bons e leves no dia, na vida, sem circo nem espetáculo, sem inocentes despedaçados enquanto nos distraímos com a arena.

LYA LUFT

sexta-feira, 29 de junho de 2018


Madonna: aos 60 anos, a maior 


Quase todo mundo concorda que Madonna, bem viva aos 60 anos, é o maior ídolo da música pop. "As pessoas dizem que sou controversa. Mas acho que a coisa mais controversa que fiz foi ficar aqui. Michael se foi. Tupac se foi. Prince se foi. Whitney se foi. Amy Winehouse se foi. David Bowie se foi. 

Mas ainda estou aqui. Aos que duvidam e aos que se opõem, e a todos que me apresentaram ao inferno: sua resistência me tornou mais forte, me impulsionou mais, me transformou na lutadora que sou hoje. Tornou-me a mulher que sou hoje", diz Madonna na nova edição revista e ampliada de sua biografia Madonna 60, da escritora Lucy O'Brien, autora de livros sobre mulheres e música. 

Madonna: 60 anos (Editora Agir, 536 páginas, tradução de Inês Cardoso e Carolina Rodrigues) traz os 40 anos de carreira da Rainha do Pop, a mulher mais importante para a indústria da música e do entretenimento, com hits mundiais como Like a virgin, Papa don't preach e Material girl. A obra mostra Madonna influenciando fortemente o mundo da música e atraindo a mídia e o público por seus relacionamentos amorosos, filhos, opiniões políticas, ativismo social, posições feministas e defesa de grupos LGBT. 

Nascida no estado de Michigan, em 1958, Madonna teve uma mãe ex-dançarina e amante de música clássica, angelical e bondosa, que na adolescência lia Anne Sexton, Virginia Woolf, Sylvia Plath e Frida Kahlo. Madonna tinha cinco anos quando a mãe faleceu, fato que a marcou. Em 1977, período de grande produção e experimentação para a dança, Madonna ganhou uma bolsa de estudos para dançar com a Alvin Ailey American Dance Theater, de Nova Iorque. Nos anos seguintes, com garra, foi caminhando no show business. 

A partir de 1982, iniciou-se a enorme quantidade de discos gravados pela diva e as dezenas de vídeos, filmes, peças e livros e turnês mundiais. Em certo período, a musa foi criticada, chamada de vadia, e sua arte foi contestada. Com o passar dos anos, a carismática artista foi reconhecida como a mais bem-sucedida de todos os tempos. Em 2016, Madonna apoiou Hillary para presidente e, em dezembro desse ano, ao receber o Prêmio de Mulher do Ano do Billboard Women in Music, fez um discurso amargo e triste sobre abuso e resistência, antecipando-se à campanha #MeToo. 

Em 21 de janeiro de 2017, na Marcha das Mulheres em Washington, falou para 500 mil pessoas: "Pensei em mandar a Casa Branca pelos ares". Madonna é um dos maiores fenômenos de nossa era. lançamentos O fogo e o relato - Ensaios sobre criação, escrita, artes e livros (Boitempo, 168 páginas), de Giorgio Agamben, filósofo italiano e um dos principais intelectuais de sua geração, traz reflexões sobre o que está em jogo na literatura, no que consiste o fogo que nossos relatos perderam e que alguns querem recuperar; e pergunta qual é a pedra filosofal dos escritores. 

A obra, enfim, trata da linguagem e da relação entre vida e obra. Imersão - um romance terapêutico (Harper Collins, 256 páginas), do psiquiatra, neurocientista e palestrante Diogo Lara, autor do best-seller Temperamento Forte e Bipolaridade, traz a jornada desafiadora de Amanda, 36 anos, médica estabelecida, que quer debelar seu abatimento num seminário intensivo em um castelo na Escócia. 

Lá conhece Mike, terapeuta que usa técnicas inovadoras para curar problemas psíquicos e se redescobre. Na direção das montanhas (AGE, 108 páginas), da jornalista e escritora Andréia Borges de Azevedo, natural de São Francisco de Paula e autora do romance Movidos pelos ventos, traz belas fotos e poemas que compõem um painel entre a natureza e as memórias. Cavalos, nevoeiro, montanhas, céu e pinheiros, entre tantos temas, estão na obra da autora que ama os Campos de Cima da Serra.   - 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/06/635096-madonna-aos-60-anos-a-maior.html)

29 DE JUNHO DE 2018
NÍLSON SOUZA

O maior espetáculo da Terra


O título acima era do circo, como sabem os mais antigos, pois as crianças de hoje carregam nos seus celulares mais atrações do que aquelas apresentadas em 200 anos de picadeiro por palhaços, trapezistas e domadores. Agora é do futebol. Uma Copa do Mundo, como esta que está sendo disputada na Rússia, reúne diversão, história, beleza, emoção, diversidade cultural e convivência pacífica entre povos de todos os continentes, tudo em tempo real e ao alcance de uma plateia planetária. Não há espetáculo mais belo e grandioso em nosso tempo.

Daqui a milênios, quando a humanidade estiver espalhada por outras galáxias sem saber o que fazer de sua vida eterna, alguém haverá de resgatar a imagem de um rosto colorido chorando lágrimas de tinta e se questionará: será uma religião? Por que eles se pintavam? Que construção circular é essa? Por que uns festejam e outros lamentam? O que significam os estandartes? Que batalha é aquela no gramado?

Isso se as imagens digitais armazenadas na nuvem forem efetivamente preservadas.

A Copa da Rússia já é a mais bela de todas as que tive a oportunidade de acompanhar, de perto ou de longe. Num cenário de contos de fada, com palácios, igrejas e torres desenhados por verdadeiros artistas da arquitetura, os personagens do mundo da bola desfilam alegremente pelas ruas, exibindo as cores de suas pátrias na pele, nas roupas e nas bandeiras. Cantam hinos, abraçam-se, festejam a vida e a oportunidade única de conhecer outros costumes e outras gentes, nas noites brancas e nos dias ensolarados da terra da Matrioska.

A lenda é linda: o carpinteiro artesão fabricou uma boneca de madeira falante, que lhe pediu uma filha, a qual, mais tarde, repetiu o pedido. Matrioska virou mãe de Trioska, que se tornou mãe de Oska, e esta, finalmente, mãe de Ka, que nasceu de bigode para não ter que gerar outra bonequinha. O brinquedo virou símbolo da fertilidade, do amor e da amizade. Segundo os russos, presentear alguém com a bonequinha grávida de outras bonecas é sinal de grande afeto e desejo de uma vida longa e feliz.

A Rússia também tem histórias terríveis para contar, como a da crueldade do czar que mandou cegar o construtor da catedral de Moscou para que ele jamais fizesse outra igual. Ainda que o ser humano seja mesmo capaz das maiores atrocidades, prefiro acreditar que esse conto de horror seja apenas uma narrativa ficcional para impressionar turistas. Gostaria que houvesse um árbitro de vídeo da História para conferir a veracidade desse lance.

Verdades ou mentiras, histórias ou lendas, o fato é que esses relatos encantam os visitantes e ampliam ainda mais as fronteiras abertas pelo futebol, com o seu poder mágico de, ao mesmo tempo, despertar paixões e apaziguar nacionalismos. Isso sem contar as surpresas do próprio esporte, como a queda dos campeões mundiais diante dos pequenos guerreiros coreanos. Vamos sentir um vazio quando esta Copa terminar.

*Até o dia 16 de julho, David Coimbra escreve no Jornal da Copa, encartado nesta edição.

NÍLSON SOUZA

sábado, 23 de junho de 2018


23 DE JUNHO DE 2018
CARPINEJAR


Os sinais de que se envolveu com um louco

Na paixão você só quer ver o que acredita. Os olhos são guardados no estojo dos óculos.

É comum não enxergar os sinais de que se envolveu com um perseguidor. Todo perseguidor simbolicamente mija no poste para demarcar território. Não quis reparar por educação, tão dedicado a acreditar na história de amor e idealizar o encontro.

Ninguém se envolve com um louco sem receber avisos. E não são poucas as advertências. O erro é fazer de conta que é uma exceção ou, mais grave, entender tudo ao contrário.

Se no primeiro encontro, a pessoa lhe morde, banca o Drácula em seu pescoço, deixa um chupão onde o colarinho da camisa não tapa, não significa que o sexo foi selvagem, não ache que é bonito, não são medalhas da paixão, não corresponde a uma entrega total de um animal no cio, não sinta orgulho da noite virada em claro, é o indício de que se envolveu com alguém histérico e ciumento.

É um stalker dando as suas primeiras demonstrações de desequilíbrio e de alternância de humor. Ao admitir as marcas e até se orgulhar, assumirá o papel de incentivador da possessividade.

Qualquer exagero sem intimidade prova uma carência descomunal e perigosa.

Quem arranha a pele arranhará o seu carro numa despedida. As unhas serão pontas das chaves depois em sua lataria.

Os ataques sadomasoquistas somente se agravam com a progressão da convivência, a ponto de normalizar discussões e barracos.

Se o par amoroso tem o costume de se irritar quando você visualiza as mensagens e não responde em poucos minutos, não compreenda como sintoma da saudade, ele será capaz de persegui-lo pelas ruas no fim da relação.

Se ele não gosta quando sai com decotes ou com o corpo mais à mostra, não aceite como preocupação pertinente ao seu modo de vestir, pois tratará de insultar a cada foto acompanhada de um colega de trabalho.

Se ele não suporta likes de amigos e comentários engraçados em suas redes sociais, não veja como vigília bem-intencionada contra prováveis críticas, é mais um trailer do filme de terror, inventará fakes para infernizá-lo no fim do namoro.

Há tipos que não acolhem a contrariedade e a recusa e se debruçam sobre a missão suicida de explodir com as suas conexões sociais. Mergulham no ressentimento puro e escolhem a vingança como uma forma de continuar amando. Não desejam a sua felicidade, mas dominá-lo a ponto de não ter mais ninguém por perto.

A polidez no início da relação e o receio de falar a verdade permitem a criação de monstros. Eles não crescem desprovidos de sua concordância e de seu carinho na cabeça.

Corte o mal pela raiz antes de ser obrigado a morder os frutos envenenados da obsessão.

CARPINEJAR


23 DE JUNHO DE 2018
PIANGERS

Quase uma obsessão

Eu já tinha tido oportunidade de segurar alguns, de outras pessoas, antes de ter o meu. E todas as pessoas que me mostravam os seus estavam deslumbradas. É incrível!, elas diziam. Você só vai entender mesmo quando tiver, garantiam. Do outro lado, quem não tem desconfia. A gente nunca imagina que seja tão deslumbrante, tão hipnotizador. A gente só entende mesmo quando chega o nosso. É transformador.

Como podem ter inventado alguma coisa tão perfeita? Você passa a cuidar dele com cuidado e carinho. Vai desenvolvendo uma dependência: você quer ele sempre por perto. Em qualquer evento social, você sempre irá se preocupar, dando olhadinhas pra ver se está tudo bem. Se ele desaparece do seu campo de visão, angústia. Perdê-lo, mesmo que seja por um segundo, fará seu coração disparar.

Qualquer coisa é motivo pra olhá-lo, deslumbrado. Você vai esquecendo sua vida. O trabalho não é mais tão importante. Você se torna um com ele. O que é importante pra ele é importante pra você. Ele se torna sua prioridade. Qualquer tempo de estudo será fracionado entre ler um pouco, olhar pra ele, ler um pouco, olhar pra ele. É provável que você passe mais tempo olhando pra ele do que estudando.

E não são só os estudos. Na verdade, depois que ele chega você não consegue fazer mais nada. Ele se torna a coisa mais importante. Ele irá sempre tentar chamar atenção. Se estiverem juntos (e você vai querer estar sempre junto com ele), irá gritar, fazer barulho, tudo pra chamar sua atenção. E você o olhará. E, quando você está com ele, parece que não existe mais nada ao seu redor. 

E, eu já vi isso acontecer, quando você olha pra ele, você sorri. Algo dispara dentro de você. Um prazer, uma alegria. Uma felicidade de tê-lo. De olhar pra ele e se sentir conectado. Ele será sua razão de viver. Crescendo, todos os anos. Imprescindível, inexplicável. Você não consegue mais se imaginar sem ele. Quem diria que existiu uma época que você viveu sem um smartphone.

PIANGERS

23 DE JUNHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Amores inocentes

Do primeiro, não lembro o nome. Era mais baixo que eu, mais moço que eu, e loiro. Usava uma camiseta listrada e um short. Nosso amor durou eternos 10 minutos. Eu estava brincando sozinha no pátio interno do edifício, a empregada me cuidando da janela do primeiro andar. Ele se aproximou e disse que tinha uma lesma nojenta na parede do prédio, perguntou se eu queria ver, eu não queria, mas ele estava falando comigo pela primeira vez e eu aceitaria ir até o fim do mundo com ele. Fomos. 

Era uma parede lateral, escondida, meu coração começou a bater. Chegando lá, não tinha lesma, não tinha ninguém. Acho que ela foi embora, ele disse, e eu nem estranhei a ligeireza da lesma, não pensava em mais nada, apenas que ele havia me levado para um lugar em que ninguém podia nos ver. Ali ficamos. Eu encostada contra a parede. Ele encostado contra a parede também, ao meu lado. Os braços encostando um no outro. Acho que não foram 10 minutos, foram menos, mas aquela tarde nunca acabou.

Do segundo, lembro que era mais alto que eu, mais velho que eu, e não esqueci o nome. Nossos pais eram amigos e nos levaram para a praia. Eu estava saindo do mar, ele entrando. Ele passou por mim, mas não foi para o fundo. Eu saí do mar, mas sentei na areia. Ele deu um mergulho, voltou e perguntou se eu conhecia uma música. Eu estava de maiô vermelho, ele de calção verde-musgo. Eu conhecia a música. Era minha música preferida, uma música em inglês que eu não entendia nem uma palavra. "Sabe o que significa o título?", ele perguntou? Eu achava que sabia, mas disse que não. Eu nunca havia conversado com um menino desconhecido. Estava nublado, mas nem parecia.

Do terceiro, lembro que eu tinha mais de 10, quase mocinha. Ele bem mais velho, uns 12. Me tirou pra dançar numa reunião dançante, eu de blusa preta e saia amarela, ele de camisa branca bem passada. Eu coloquei meus braços sobre o ombro dele, ele colocou os dele na minha cintura. Tocava um Barry White que começava lento, mas no meio a música ficava animada. Mesmo assim, ele não tirou a mão da minha cintura. Os outros casais dançavam separados, mas ele me abraçou um pouquinho mais. Eu rocei com minha mão num cacho dele. Que vergonha, eu pensei. Está todo mundo olhando. Abaixei a cabeça e sorri. Como estou sorrindo agora, recordando.

Depois a gente cresce e o amor apresenta sua lista de exigências. Adequações. Palavras certas. Compatibilidade. Discussão de relação. Salários. Planos. Ciúmes. Projeções. Contrato de união estável. Filhos. Bodas. Traumas. Expectativas. O meu ex, a sua. Terapia. Amantes. Lágrimas. Dor. Volta pra mim. Vai embora. Pensão. Cansaço. Destino.

Queria reencontrar o garoto que encostou o braço dele no meu quando fomos atrás de uma lesma que não existia. Dizer ao garoto da praia que eu gosto daquela música até hoje. Acarinhar a atual calvície do garoto dos cachos. E segurar a mim mesma pela cintura, me conduzindo de volta àquela inocência, àquele encantamento e àquele desejo que bastavam.

MARTHA MEDEIROS

23 DE JUNHO DE 2018
LYA LUFT

Outro tema


Eu realmente, na hora de escrever a coluna passada com número 1, indicando que este seria o 2, pensava em retomar e alongar o tema "autoridade", pois, naquele seminário de Direito de Família em Gramado, destacou-se a preocupação dos presentes com a questão da juventude e da infância, relativo a esse assunto. Mas as coisas acontecem, umas se sobrepõem às outras, ao menos momentaneamente, e fiquei dominada por dois outros assuntos:

1. O horror que se desenrola em fronteiras americanas com crianças e adolescentes separados de seus pais à moda Auschwitz (perdoem se exagero, mas considero isso apenas um começo... com os States saindo da Comissão de Direitos Humanos da ONU), porque Mr. Trump quer dar uma boa lição nos imigrantes ilegais ou refugiados. São famílias que tudo deixaram na esperança de uma acolhida humana em uma nova pátria. Como milhões fizeram décadas e séculos atrás, construindo o país mais poderoso do mundo. Mas, para o atual presidente, imigrantes em geral são predadores, criminosos, estupradores e, segundo um dos seus últimos nobres tuítes, "vão empestar" o país.

Uma dolorosa, pungente gravação mostrou ao mundo o desespero dessas crianças, clamando, urrando pelos pais. Senti uma profunda, triste vergonha de ser humana ao assistir a essa desgraça. Senti imensamente que muita gente por lá ou aqui ainda ache que isso é necessário e legal. (Há indícios de que a desumanidade com as crianças seria trocada por votos em favor do "muro" entre EUA e México...)

2. Meu segundo susto - nem sei por que essas coisas entre nós ainda me espantam - foi que vários senhores deputados federais, alguns conhecidos nossos, assinaram um importante documento liberando denunciados ou condenados da Lava-Jato, enfraquecendo a própria, para o mal de todos nós, sem saber o que estavam assinando!!! "Não prestei atenção...", "Nem li direito...", "Fiz o que me pediam e nem me dei conta do que era...". Foram as desculpas quando apanhados em flagrante. Outro ainda disse com franqueza "Se for pra prejudicar fulano, eu assino qualquer coisa".

Representantes do povo, muitas vezes reeleitos por nós, assinam em nosso nome documentos importantes. Apanhados, sem corar de vergonha, declaram com simplicidade que assinaram sem saber. Botaram num papel qualquer o seu nome, com o qual nos representam, portanto assinaram por nós, que de nada sabíamos. Assim caminha o Brasil. Assim chegamos onde estamos.

Hoje perdi a graça de escrever sobre autoridade em família, em escola, qualquer grupo, e nação. Ia comentar também um dos itens apresentados no belo congresso, a sexualização precoce da meninada, com pais perplexos, intimidados pela autoridade chamada "coerção social" - que não vem de uma pessoa, mas do grupo em que vivemos. Força insidiosa que ninguém assina, mas que diz, por exemplo, que não nascemos com gêneros definidos, que meninos devem brincar com bonecas e meninas com carrinhos e outras insanidades, que nada têm a ver com respeito a homossexuais, transgêneros e outros. Talvez o sagrado bom senso possa salvar a meninada: vou falar nisso algum dia.

A bizarra e cruel atitude do governo americano com famílias desesperadas e o descaso de ditos líderes com a importância de seu próprio nome pesaram mais sobre mim. E isso quis dividir com meus leitores.

LYA LUFT

quinta-feira, 21 de junho de 2018


21 DE JUNHO DE 2018
ARTIGOS

ROMPENDO FRONTEIRAS


Na segunda conferência desta edição do Fronteiras do Pensamento, ouvimos a escritora Leila Slimani, autora, dentre outras obras, do premiado romance Canção de Ninar. Destaco da sua fala o fato de a escritora ser frequentemente instada a dar explicações sobre quem, afinal, ela é, como se tivesse de fazer uma escolha por ser franco- marroquina. 

Demandada em entrevistas, revela o desconforto que sente em se autocategorizar em percentuais. Quanto por cento marroquina? Quanto por cento francesa? Questões étnicas, ideológicas, religiosas, culturais permeiam essas indagações de pesos e medidas. Acredita que nem tanto o que se é importa. Concordo com ela ao afirmar que aquilo que se faz, sim, é relevante.

Instigante ouvir que a multi- étnica Slimani se considera cem por cento marroquina, diante da origem familiar, do nome, local de nascimento, pele, identidade cultural. E, paradoxalmente, cem por cento francesa, por sua educação, formação intelectual, país de residência, e também identidade cultural.

Ouvindo-a, compreende-se o estranhamento que é capaz de provocar tanto no Marrocos quanto na França. Não opta por um país ou outro, não raro desagradando, por suas posições, a uns e outros. Sente pertencer a esses dois mundos e valoriza o quanto aprendeu e continua a assimilar dessas culturas tão díspares em determinados aspectos, buscando exercer com liberdade e olhar crítico sua particular visão de mundo.

Nesta edição de 2018, conheceremos mais de perto pessoas influentes como Catherine Millet, autora do corajoso relato em que retrata sua movimentada vida sexual, e o filósofo Pondé, autor, dentre outros livros politicamente incorretos, de A Era do Ressentimento e Contra um Mundo Melhor - estes dois os meus preferidos do escritor. 

Pensadores que mostram a complexidade da natureza humana, e que, por isso mesmo, têm muito a nos ensinar. Se construir unanimidades está longe de ser factível, é o conhecimento da perspectiva do outro que nos permitirá a construção de consensos básicos de modo a garantir a sobrevivência desta intrincada sociedade democrática moderna.

Procuradora de Justiça e cronista martalealpach@gmail.com - MARTA LEIRIA LEAL PACHECO

21 DE JUNHO DE 2018
ENTREVISTA

"Fui burra. Levaram tudo o que tinha"

IDOSA DE 74 ANOS - Vítima de golpe do bilhete na Capital


Em recente segunda-feira, uma idosa de 74 anos caiu em um dos golpes mais antigos que se conhece: o do bilhete premiado. Servidora estadual aposentada, retornava de consulta médica no centro de Porto Alegre quando uma mulher lhe abordou. Pediu ajuda para sacar o prêmio na agência bancária. Alegou ser analfabeta e sequer portar documento. Precisava de testemunhas. Em seguida, uma segunda mulher, bem vestida, apareceu. Disse que também a ajudaria, mas que precisariam confirmar a veracidade do bilhete.

Em rápida ligação, no viva voz, suposto atendente da Caixa confirmou os números sorteados. A partir daí, deu-se início a via-sacra pela Capital que duraria quatro horas. A dita vencedora do prêmio daria às mulheres recompensa, mas precisava de garantia em troca. Enganada, a vítima sacou os R$ 10 mil que tinha na conta corrente em três diferentes agências da Caixa. Ainda entregou o cartão do Banrisul para que comprovassem que o saldo estava zerado - e as estelionatárias fizeram compras que ultrapassaram R$ 2 mil.

De sua casa na Zona Norte, contou a ZH o que passou depois de ler sobre a grande operação no fim de semana que desarticulou quadrilha que atuava a partir de Passo Fundo, no Norte. Quer alertar outras pessoas para evitar que também sejam ludibriadas (leia entrevista ao lado).

Ontem, a Polícia Civil informou que quase R$ 5 milhões em bens foram apreendidos na Operação Pólis, que atacou no sábado rede de estelionatários do golpe do bilhete que tem como base Passo Fundo, e que age em diversas áreas do Brasil. Na segunda-feira, a polícia voltou a cumprir mandados de busca. Foram em revendas de veículos e em despachantes da cidade, que seriam usados para lavar dinheiro dos golpes. Foram apreendidos cinco carros dos investigados.

Como aconteceu o golpe?

Vinha pela Avenida Otávio Rocha de consulta médica para pegar a lotação na Rua Doutor Flores. Eram 11h40min. Uma miserável com papel na mão me abordou para saber onde era a tal de Travessa Santos. Disse que tinha de ir no endereço porque se encontraria com a pessoa que a levaria para receber prêmio e mostrou bilhete dobrado da Quina. De imediato, apareceu uma bonitona e perguntou se eu também podia ajudá-la como testemunha e ir ao banco. Essa mulher pegou o bilhete e ligou para um homem, no viva-voz, que disse que era da Caixa e confirmou os números. Passamos na casa dela, que pegou um pacote e disse que eram dólares. Tudo conversa fiada. Me acharam com cara de trouxa e eu caí.

Como você sacou R$ 10 mil?

Fiquei com elas até as 16h. Foram três saques. Queriam que comprovasse que tinha condições para não lográ-las. A mulher que chegou com o papel se fazia de pobre, miserável. Dizia que precisava de testemunhas para sacar dinheiro. Nem sei dizer como caí. Estava com a intenção de ajudar.

A senhora desconfiou?

Ela daria o bilhete para que tirássemos o dinheiro no banco porque não tinha documento, era analfabeta. Uma pobre coitada. Contou história fantástica e me envolveu. Se disser que por um minuto me dei conta que estava sendo lograda, seria mentira. Só percebi quando passava das 16h. Disseram que estavam indo ao banco, pararam em frente a um boteco de esquina e pediram que pegasse duas águas porque estavam com sede. Ainda pediram que pegasse umas sacolinhas para colocar o dinheiro. Quando voltei, não estavam mais.

Nas quatro horas em que esteve com as golpistas, a senhora chegou a passar em casa?

Sim, e passei um "171" no meu marido. Disse que a médica havia marcado exame e que precisava ir ao hospital. Peguei meus cartões e saí rapidinho porque elas diziam para não contar para ninguém. Meu celular tocava e diziam para não atender, não falar onde estávamos. Iríamos sacar muito dinheiro e era perigoso que alguém nos perseguisse.

O que lhe diziam?

Depois que viram que tinha sacado tudo, disseram que precisava comprovar que não tinha dinheiro na conta do Banrisul. A bonitona estacionou na Doutor Flores, deixou o carro ligado e pediu meu cartão. Dei a senha para ela comprovar que estava zerada. Mas sabe o que ela fez? Fez compras. Mais de R$ 2 mil. Em um momento, recebi mensagem no meu celular avisando sobre compra de R$ 600. Disse "ué, que compra, se não comprei nada". Aí, a miserável pegou meu celular e o meu cartão. Fui tão burra que nem questionei.

A senhora considera que foi enganada pela ganância?

Fiquei com compaixão daquela mulher que precisava de ajuda. Fui no intuito de ajudar.

Em algum momento, acreditou que ganharia dinheiro?

Ela dizia, mas falei várias vezes que só queria ajudar.

Por ser golpe antigo, muita gente sente vergonha de denunciá-lo. Por que decidiu falar?

Me senti envergonhada e deprimida, mas decidi ir na delegacia e falar a respeito. Depois que li (em ZH, na segunda-feira) que mais de 130 pessoas caíram... Para mim, foi um consolo. Fui burra. Levaram tudo o que tinha.

DÉBORA ELY

21 DE JUNHO DE 2018
+ ECONOMIA

JURO DE FUTURO INCERTO



Ao assinalar, como o mercado esperava, a mudança no balanço de riscos para o Brasil, o Banco Central (BC) adverte que as expectativas que valiam até agora devem ser revistas. O Comitê de Política Monetária (Copom) do BC manteve o juro no mínimo histórico de 6,5% ao ano, mas avisa que a incerteza cresceu. Nas 40 linhas do comunicado, mais longo do que o usual, a palavra risco é repetida 14 vezes.

Mas, afinal, porque o risco do Brasil cresceu tanto, sem um "evento" que justifique o fato de estar mais alto hoje do que na época da delação da JBS? Newton Rosa, economista-chefe da SulAmerica Investimentos, avalia que só um ponto no cenário interno explica: a falta de perspectivas eleitorais de um candidato comprometido com o ajuste fiscal. Os demais fatores são externos, principalmente a alta do juro americano e a guerra comercial aberta pelos Estados Unidos, que atinge países emergentes como o Brasil.

- Isso cria ambiente externo que não é mais benigno e se traduz em mudança de preço que é a taxa de câmbio.

Enquanto os diretores do BC batiam martelo na decisão, o dólar voltou a subir ontem, para R$ 3,783, confirmando que a moeda americana mudou de patamar. Isso significa, no médio prazo, alta na inflação. Há projeções de que o índice mais impactado pelo câmbio, o IGP-M, possa chegar a 7% neste ano.

Mesmo assim, Rosa mantém sua projeção de juro básico em 6,5% até o final do ano - embora avise que está aberto a mudar a qualquer momento. O problema é que a estimativa decorre da percepção de que a atividade econômica se manterá tão fraca que não deve dar espaço para repasse de preços:

- A ociosidade deve seguir alta até o final de 2019 e avançando em 2020. Isso sugere menor pressão sobre os preços e inflação ainda abaixo da meta.

Apesar de longo, o comunicado do Copom frustrou quem esperava ler mensagens sobre o futuro: "os próximos passos da política monetária continuarão dependendo da evolução da atividade econômica, do balanço de riscos e das projeções e expectativas de inflação".

donald trump mostrou ontem que é capaz de voltar atrás, SE PRESSIONADO O BASTANTE. A IGNOMÍnIA DA SEPARAÇÃO DAS CRIANÇAS DOS PAIS MIGRANTES PODE TER SIDO A GOTA D?ÁGUA PARA A TOLERÂncia dos próprios correligionários em relação ao presidente. ainda dá tempo de subir a pressão para o fim da guerra comercial.

MARTA SFREDO

21 DE JUNHO DE 2018
INFORME ESPECIAL

CAI MAIS, NEYMAR


Entendo que os suíços acusem Neymar de cair demais em campo. Eles perseguiram o maior craque brasileiro organizadamente, com a disciplina de um relógio que nunca atrasa. Não entendo como nós, brasileiros, passamos a repetir essa balela. Neymar caiu pouco. Se tivesse antevisto a joelhada criminosa do colombiano na Copa passada e se jogado antes, não teria fraturado uma costela e ficado fora do jogo contra a Alemanha.

Neymar é um jogador técnico e de constituição muscular mais frágil. Não poderia fazer o que faz se fosse um brutamontes. Sofre por isso, não por culpa sua. É constantemente caçado em campo e seus adversários fingem esquecer-se de que o brasileiro tem o direito constitucional de se defender. Neymar tem duas opções - ou senta o cotovelo no rosto do agressor antes de apanhar, ou relaxa o corpo e desaba.

Estranho, ainda mais, nós, gaúchos, repetindo essa papagaiada europeia de que Neymar simula faltas demais. D?Alessandro cai demais? Luan cai demais? Não. Na maioria das vezes, eles se defendem. Os europeus inventaram o futebol e, com raríssimas exceções, não conseguem jogá-lo com graça, leveza e criatividade. Aparece aí um outro fator que atrapalha Neymar e todos aqueles que resistem ao embrutecimento com técnica.

Os árbitros privilegiam, nos critérios de decisão, o choque e a força, como se o uso excessivo dela fosse permitido até os 30 minutos do segundo tempo. Escrevi antes da Copa que o personagem mais importante na Rússia seria o juiz. Meu argumento: se tivesse que exercer apenas uma função, essa seria a de preservar os craques e o espetáculo. O que se vê, nesse quesito, é um fiasco. Neymar mancando no treino de ontem é apenas mais uma prova. Também escrevi antes da Copa que o problema do uso do vídeo não seria a dúvida, mas o erro convicto. Dois a zero para mim.

Cabe à Fifa e a sua estirpe de homens de negócios decidir o que querem do futebol: um esporte no qual os craques encantem as multidões ou uma batalha em que os brucutus saiam de campo acusando suas vítimas de simuladores.

Pela quantidade de pontapés que Neymar recebe, ele cai pouco. Corre o risco, por isso, de ficar machucado na segunda Copa consecutiva. E ver, pela TV, seus algozes levantando a taça.

TULIO MILMAN

sábado, 16 de junho de 2018


16 DE JUNHO DE 2018
LYA LUFT

Tema sem muita variação (1)

Na semana passada, falei em Gramado para um público de uns 800 advogados, advogadas e juízes, num congresso do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

Tenho aceitado raros convites para palestras, mas geralmente me fazem bem, pelo carinho, pelo debate e a troca de ideias e valores, pela renovação que me proporcionam. O público do congresso era excepcionalmente preparado e participante. Qual o tema que propuseram, já que nada entendo de Direito? Obviamente, "família". Optei por "Família em transformação", de que tanto hoje se fala.

O assunto "família" é um tema eterno, sobre o qual escrevi vários romances e artigos. Mesmo com as mudanças vertiginosas dos valores, usos e costumes da sociedade, a essência é sempre a mesma: afeto, respeito, dificuldade de convivência, autoridade e amor e derrubada de preconceitos - esta talvez a mais complicada, porque em nada ajuda sairmos feito iconoclastas, quebrando tudo.

Tenho uma amiga, já escrevi, professora universitária nos Estados Unidos, professora Jenny Boylan, casada, dois filhos adultos, que há muitos anos era professor James Boylan. Figura que inspira respeito e afeto, editou alguns livros e criou, com sua amiga (ex-esposa), uma família como poucas em matéria de amor, camaradagem e solidariedade.

É uma história longa e complicada, que deu certo no final. Mas não é o habitual, sobretudo entre nós, país do samba, do futebol e do preconceito. Eu poderia acrescentar da malandragem, do atraso, da miséria, mas também do combate atual contra a roubalheira institucionalizada. Levaremos anos, décadas, para podermos voltar a confiar em autoridades, líderes e em nós mesmos.

Família, escrevi várias vezes, é aquele terreno onde começamos a nossa trajetória: se for bom e amoroso apesar das naturais discordâncias, teremos mais chance de caminhar com segurança e fazer escolhas não muito trágicas. Se for frágil, onde predominam a indiferença, o rancor, a violência, vamos tropeçar mais, com mais chance de quebrar a cara e a alma.

Nesse congresso sobre Direito de Família, o que me impressionou, além da organização e qualidade, foi o interesse, e a preocupação, daqueles especialistas por qualidade de vida, convívio, educação e, digamos, "felicidade" (sei que a palavra anda desmerecida) nas famílias. A dificuldade entre as gerações. A perplexidade e o sofrimento dos pais com relação a droga, bebida, precocidade sexual e diversidade de gênero (a mais complexa).

Nunca foi fácil viver numa família. (Sem ela, em geral, pior ainda.) A relação entre gerações sempre produziu conflito. O que mais se percebe, agora, é a dramática invasão de sugestões, "ensinamentos", ordens quanto à "liberdade" da meninada. Começamos a parecer - mais do que pais ou professores - réus para quem às vezes pretensos especialistas apontam um dedo fulminante. Sendo o primeiro quesito a derrubar aquele sobre o qual escrevi na semana passada ou anterior - a autoridade. 

Porém, sem um elemento que sirva de apoio e estímulo, ombro, colo, escuta boa, isto é, sem limites, sem regras, sem confiança, nunca amadureceremos. Não seremos capazes de formar positivamente nossa vida, nossa mente, nossa saúde, nosso grupo, nosso país. Eternas crianças mal-educadas, confusas, queixosas, transformando em problema por vezes trágico esse núcleo chamado "família": em que nascemos e que um dia, talvez, vamos construir.

Mas... como obter e exercer minimamente essa "autoridade"? Na semana que vem, a gente fala.

LYA LUFT


16 DE JUNHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Seleção sênior


Lembro quando acabou o jogo entre Alemanha e Brasil, aquele do 7 x 1. Diante das cenas de meninos e meninas nas arquibancadas, enxugando as lágrimas na bandeira nacional, comentaristas perguntavam: quanto tempo essas crianças levarão para se curar do trauma?

Dias depois, a garotada responderia com outra pergunta, sem tirar os olhos de seus tablets: que trauma? Não teve tragédia nenhuma. O que houve foi uma seleção perdendo para outra de forma humilhante diante da expectativa que havia sido criada, mas tragédia, que eu saiba, é coisa diferente.

Em 2014, durante a Copa, dois jornalistas argentinos perderam a vida em acidentes de trânsito, uma moça de 26 anos e um rapaz de 38. E enquanto comíamos pipoca em frente à TV, milhares de pessoas perderam não apenas suas TVs, mas a casa inteira por causa das enchentes que castigaram o Rio Grande do Sul. Desculpe aí, só pra contextualizar.

Tudo indica que será diferente neste ano, e, mesmo não estando muito embalada, vou torcer pelo grupo do Tite e, mais ainda, vou torcer para que tenhamos amadurecido de lá pra cá. Um torneio mundial de futebol não pode ser superdimensionado a ponto de nos transformar em sentimentaloides. Colocar nossa esperança nos pés de alguns atletas em vez de nas mãos de quem conduz o país: isso sim é um desastre. Demonstra que o título esportivo é tudo o que teremos para comemorar neste ano. Se não vier o título, sobrará o quê? O Brasil de sempre. E se vier, também. Só começaremos a deixar de ser um fracasso a partir das próximas eleições, e não pelo resultado em Moscou.

Desculpe aí, de novo. Não quero estragar a festa. Adoro Copa e futebol, e às 15h deste domingo vou parar tudo pra ver nossa estreia. Mas (ai, porque não mantenho a boca fechada?) espero não ter que assistir àquela cena embaraçosa de 2014: nossos jogadores entrando em campo com as mãos sobre os ombros uns dos outros feitos meninos de jardim de infância. Professores costumam usar esse recurso para que os alunos não se dispersem, mas estádio não é colégio, e quatro anos atrás, que eu me lembre, não funcionou, perderam-se todos.

Também espero que não transformem a hora do Hino num The Voice Brasil. Que não se esgoelem nem percam o foco. Nosso país encanta pela simpatia, então que todos sorriam em vez de apelar para a falsa consistência do melodrama. Não é uma guerra, poxa. É apenas a celebração de um esporte apaixonante (vamos esquecer os milhões envolvidos em marketing etc). 

Aconteça o que acontecer, todos eles voltarão ilesos para suas casas em Roma, Madri, Londres. Então, que a gente não se dedique tanto à demonstração de uma emoção descabida, mas simplesmente mostre serviço com ginga, raça e talento, que é o que interessa. Menos drama e mais alegria. Menos coração e mais pernas. Menos sentimentalismo e mais maturidade. Menos fricote e mais gols.

MARTHA MEDEIROS


16 DE JUNHO DE 2018
PIANGERS

Quinze anos

Dia 12 de junho não é apenas o Dia dos Namorados, mas também aniversário da primeira vez em que a gente ficou. Eu e ela solteiros. Eu e ela trabalhando na mesma empresa. Eu e ela jornalistas. Quem é jornalista sabe: são tantas horas extras e tantos horários malucos que é difícil a gente se relacionar com outra pessoa que não seja alguém da mesma empresa. É o que chamamos de reprodução em cativeiro. Não tínhamos o que fazer naquele Dia dos Namorados. Saímos para beber cerveja barata. Não deu três meses estávamos morando juntos. Fez 15 anos na última terça-feira.

Ser casado há 15 anos nos constrange um pouco porque escancara a nossa idade, mas, pior, nos coloca em um seleto grupo de casais que perduram. Nossos amigos todos começam e acabam relacionamentos. Não posso negar o ar de modernidade que vejo nisso. Parecem tão contemporâneos, trocar de parceiros de três em três meses, usar aplicativos de relacionamentos, ter relacionamentos abertos, estar feliz com a solteirice. Admiramos, é claro. Gostamos de ver pessoas felizes.

Mas com a gente não funciona.

O que eu posso fazer? Nunca conheci uma pessoa como a Ana. Engraçada, inteligente, de astral inabalável e uma risada deliciosa. Tivemos duas filhas lindas, ambas absorveram qualidades notáveis da Ana. Alegria, generosidade, uma ternura que me derrete. Tivemos tantos altos e baixos, quase nos separamos uma vez. Seria a coisa mais triste da minha vida. Procuraria a Ana em todas as outras mulheres do mundo. Não teria com quem conversar sobre nossas piadas internas. Teria que me adaptar a esse mundo aí, que existe do outro lado das paredes do nosso apartamento orgulhosamente simplérrimo. Como já disse, não somos modernos. Temos um relacionamento há 15 anos. Existe algo mais démodé que isso? Talvez, usar a palavra démodé.

Queremos conhecer a Grécia juntos. Ver a Aurora Boreal. Queremos ver nossas filhas crescerem. Me embarga a escrita imaginar elas vivendo suas próprias vidas sozinhas. Sem eu e a Ana cortando suas unhas, tirando a pequena do banho, ajudando a mais velha a estudar formação celular para a prova de Biologia. Um dia, seremos somente eu e ela de novo, cabelos brancos e vinhos tintos. De vez em quando, um amigo mais antigo nos olha admirado. Pergunta: "Caramba, faz quanto tempo que vocês estão juntos?".

Não o bastante.

PIANGERS

16 DE JUNHO DE 2018
CARPINEJAR

A invencível camiseta colorada

Sou capaz de me desfazer de qualquer roupa, qualquer peça. Não serei materialista com calças, camisas, ternos. Estragou, rasgou, gastou, dispenso sem piedade nem compaixão.

Só não consigo jogar fora a camiseta de futebol, a camiseta de meu time. Nenhum homem é frio e indiferente o suficiente.

Ainda mais quando é o manto da sorte, das batalhas e guerras emocionais no estádio. Tenho uma camiseta colorada da minha adolescência, de lã, quente. É a minha preferida nos dias de jogo.

A asa já não se desgruda com a lavagem, mesmo que despeje um litrão de amaciante em cima. Desodorante não faz mais cócegas. É um acúmulo de décadas de suor frio. Eu a coloco e sinto o cheiro de CC vencido da época de Escurinho e Falcão. Bloqueio instintivamente as narinas.

Já recebeu cerveja e mijo nas arquibancadas, os fios foram puxados nas axilas, a gola branca é mostarda, os meus filhos, quando eram pequenos, regurgitaram em seus ombros, mas não há como descartá-la.

Nenhuma sujeira, mancha, furo me convence de seu fim. Ela é baby-look em mim, engordei com o tempo, o umbigo está à mostra, sou um Hulk prestes a explodir a cada gol, porém não há terapia e templo budista que me leve ao desapego.

Livrar-se dela contraria a minha superstição, a crença absurda de que interfiro no destino de meu time. Compreendo a desolação de minha esposa, que me deu de presente a nova camiseta do Inter, mas é inútil explicar o que sinto para ela.

Jurava que tinha superado a minha birra, destruído os trapos mendigos e que eu abandonaria o fetiche malcheiroso. Quando me viu saindo de casa para o Beira-Rio, uniformizado com a indumentária antiga, gritou pela janela do nosso edifício:

- Vou começar a torcer contra! Virei o rosto, a sua secação não me atingiria, estava protegido pela imorredoura simpatia.

CARPINEJAR




16 DE JUNHO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO


SÍ, SE PUEDE

Se o feminismo fosse um meio de transporte (e em certo sentido é), minha mãe (1933) andava de charrete, eu (1966) dirijo um bom carro e a minha filha (1998) pilota um avião. Cada uma de nós se deslocou, e se desloca, da maneira possível para sua época e seus talentos, mas, consciente ou inconscientemente, estamos abrindo caminho para que as gerações seguintes andem um pouco mais rápido e cheguem um pouco mais longe.

Minha mãe estudou pouco e parou de trabalhar quando se casou, no final dos anos 50, mas foi muito mais livre e independente do que a mãe dela, que nasceu no século 19 e criou 11 filhos. Minha filha completa 20 anos em algumas semanas, e costumo brincar que o plano profissional mais modesto dela é se tornar presidente dos Estados Unidos - e quem a conhece sabe que a brincadeira tem lá um certo fundo de verdade.

Entre os sonhos possíveis da minha mãe e os sonhos ilimitados da minha filha, faço parte da geração que se beneficiou das primeiras ondas do feminismo e se surpreendeu com a radicalidade das novas demandas - que envolvem sutilezas de linguagem e de atitude que seriam consideradas impensáveis há 10 ou 15 anos. Ou seja: não somos as mulheres que fizeram (ou estão fazendo) a história. Somos a coluna do meio, as mães e avós das mulheres que, oxalá, viverão em um mundo em que a violência de gênero não será tolerada, e os salários e as posições de poder serão distribuídos com mais equilíbrio. Ou assim deseja a maior parte de nós.

Aos 52 anos, começo a pensar que talvez não viva para ver o Brasil sair da lista dos países com os maiores índices de feminicídio do mundo (em 2017, estávamos na quinta posição) ou para ver um Congresso com uma representação de gênero mais próxima da realidade (em 2014, apenas 9,9% dos deputados federais eleitos eram do sexo feminino), mas ainda não desisti de ver a legislação brasileira sobre o aborto chegar ao século 21.

Muita gente acredita que legalizar o aborto é mais difícil do que acabar com a corrupção ou resolver o problema da violência. Eu não. Por mais que o assunto seja um veneno eleitoral, evitado por todos os candidatos que encaram chances concretas de eleição. Por mais que muitos homens se deem ao luxo de poder ignorar o assunto, e muitas mulheres evitem o debate por motivos religiosos. Por mais que o conceito de "vida" seja manipulável, e os direitos das mulheres de decidirem sobre o próprio corpo sejam facilmente colocados em segundo plano: os sinais estão chegando por todos os lados. No caso do Rio Grande do Sul, bem do lado.

A lei que permite o aborto até a 14ª semana, apenas por decisão da mulher, aprovada na madrugada histórica do dia 14 na Câmara dos Deputados da Argentina, vai agora para o Senado. Se tudo der certo, a Argentina pode passar a ser um dos três países da América Latina, junto a Uruguai e Cuba, que permitem o aborto em qualquer circunstância e por decisão da mãe nos primeiros estágios da gravidez. Atualmente, todos os países ocidentais do norte têm legislações de aborto mais avançadas do que os latino-americanos. Mas esse quadro pode estar começando a mudar. Pelo Sul.

Não é sonhar alto demais esperar que a minha geração possa ser aquela que vai ganhar um pé de página na história como a que ajudou a diminuir o mapa do atraso no nosso continente. Sí, se puede.

CLÁUDIA LAITANO

16 DE JUNHO DE 2018
J.J. CAMARGO

EMPRESTEM-ME OS OUVIDOS


Todos os que têm experiência com pacientes terminais aprenderam há muito tempo que, quando, ao ser perguntado "Como está se sentindo hoje?", o paciente responde: "Um pouco melhor, doutor!", o médico está livre temporariamente das perguntas massacrantes de quem, fugindo do usual, resolva discutir a desgraça de estar sofrendo à espera da morte. Questionar a proximidade do fim é triste para o paciente, que se sente vulnerável como nunca, e desagradável para o médico, que é colocado na parede para que assuma a sua inegável impotência. Então, a negação que é adotada pelos pacientes, na maioria das vezes como estratégia de sobrevivência, funciona, ainda que precariamente, como uma trégua fugaz no desespero de um e uma prorrogação no desconforto do outro.

Conhecia o Fernando, um jovem e conceituado psiquiatra, apenas socialmente. Fui chamado para avaliá-lo num hospital da cidade e encontrei-o numa situação dramática. Tinha sido submetido a uma cirurgia abdominal e desenvolvera, em função de uma imunossupressão provocada pela quimioterapia, uma rara e trágica complicação: ocorrera gangrena da parede anterior do abdome, a partir da qual as vísceras passaram a ser contidas por uma tela. 

Minha participação no atendimento estaria relacionada com o tratamento de uma extensão da tal infecção para a pleura. Encontrei-o extremamente deprimido e fiquei impressionado com a naturalidade com que anunciou a sua certeza de que ia morrer, porque descobrira a baixíssima contagem de glóbulos brancos que, como médico, sabia bem, apontava para uma septicemia grave em paciente com defesas imunológicas comprometidas.

Enquanto tentava, em vão, animá-lo com a perspectiva de que, resolvido o foco novo de infecção, as coisas poderiam reverter, chegou para visita um colega da unidade de psiquiatria que o visitava pela primeira vez e não tinha a mínima ideia da dramaticidade do caso. Chocado com a gravidade da situação, o visitante foi ficando cada vez mais ansioso, até anunciar que devia voltar ao hospital para uma tradicional reunião com os residentes. 

Prometeu voltar no dia seguinte e abriu a porta do quarto para escapar do desconforto de constatar o quanto deixara o colega de trabalho desassistido. E, então, do umbral, fez uma última pergunta: "Fernando, alguma coisa mais que eu possa fazer?". Ninguém estava preparado para a resposta: "Bom, eu gostaria mesmo é de tirar esses curativos podres, sacar estes drenos e sondas, ir para casa, tomar banho com sabonete Johnson, transar com minha mulher e depois tomar minuano limão, bem gelado. Você acha que pode me ajudar com isso?". Fulminado pelo imprevisto, o coleguinha debandou. Pela pressa, imagino que para sempre.

Ainda sem a experiência que a idade me ensinou, fiquei em silêncio. Ele destilou a amargura de estar por morrer tendo apenas 36 anos, uma esposa amada e dois filhos pequenos. De vez em quando, fazia uma pausa e recomeçava depois de uns soluços de olhos secos. Entraram na lista dos lamentos o doutorado em fase de conclusão, a possibilidade de aperfeiçoamento em Philadelphia e, como era de se esperar, a perda da chance de ver seus filhos prontos para a vida e os netos encaminhados para alegrá-la. 

Não lembro bem quanto tempo durou nossa conversa, mas arquivei para sempre o comentário da despedida: "Estou internado aqui há 10 dias e você foi a única pessoa que me ouviu sentado, como fazem as pessoas que não têm pressa. Obrigado por isso!" Aprendi com o sofrimento do Fernando que, quando a palavra trancada na garganta não pode mais oferecer esperança, que ao menos os ouvidos representem a promessa solene de parceria. E incondicional.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO

16 DE JUNHO DE 2018
ARTIGO

AS EMOÇÕES

Agora, em 40 dias no Exterior, emocionei-me ao ver o que conhecia de longe. Em Berlim, o Memorial do Holocausto e o cemitério dos 20 mil soldados soviéticos mortos na libertação da cidade se juntam à emoção infinita do Pergamon Museum, com milhares de anos desfilando à nossa frente. A 40 quilômetros de Praga, o antigo campo de extermínio de Terezin tem hoje, lado a lado, a estrela de David e a cruz cristã nas valas comuns em que Hitler fez enterrar judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, católicos e luteranos.

As emoções não se medem nem há maiores ou menores. Algumas, porém, florescem e passam a nos habitar. Senti-me assim ao visitar o número 263 da Rua do Canal de Prinzengracht, em Amsterdã. Ali, escondida com a família num anexo diminuto nos fundos da casa, sem sair à rua durante três anos, Anne Frank escreveu seu diário, iniciado a 14 de junho de 1942, dois dias após completar 12 anos. Estudava latim por correspondência, o que pode ter levado a Gestapo nazista a descobrir a família judia fugida da Alemanha e enviá-la ao extermínio. Além do diário, a casa-museu mostra dezenas de cartas em que a madura lucidez se soma à ternura da infância.

Como outros a meu lado, vi tudo isso quase aos prantos. Anne nasceu na Alemanha em 1929, a 12 de junho, no mesmo dia em que nasci no Brasil, anos mais tarde. Não me incorporei a ela pela data, mas na emoção de senti-la irmã.

Agora, as emoções se concentram na Copa do Mundo. As medíocres candidaturas a presidente e governador fazem esquecer o Brasil e, assim, o eixo da vida se desloca para a Rússia.

A TV mostra a beleza e exuberância de Moscou, São Petersburgo e outras cidades, Galvão Bueno fala "das grandes experiências russas na política do século 20" e me lembro de 1954, quando lá estive. Em plena Guerra Fria, contar dos palácios, museus, igrejas e parques ou do ensino dedicado à pesquisa científica era, no Brasil, "visão comunista" e pecaminosa.

Anos depois, fomos campeões do Mundo no futebol, os russos lançaram o Sputnik e Gagarin fez o primeiro voo espacial. Emoções diferentes, mas emoção enfim.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES