sábado, 24 de junho de 2017



24 de junho de 2017 | N° 18880 LYA LUFT
lya luft

As cracolândias da vida

Não acho graça nenhuma em drogas. Tenho, eu sei, pouca tolerância com isso. É tremendo, terrível, trágico o assunto adição, seja de drogas que incluem o álcool, droga estimulada em propagandas e marketing. Falo em adição, não em experimentar de vez em quando, como acontece em certas turmas e festinhas, ou mesmo a sós, para quem julga que alterado fica mais inteligente, mais sensual, mais engraçado e mais interessante. 

Muitas vezes criticada, digo e escrevo o que qualquer bobo sabe: existe o traficante porque existe o consumidor. Pior: cada vez que um de nós fuma seu cigarrinho de maconha, cheira sua fileirinha de coca ou injeta em suas veias seja lá que veneno for, está fazendo continência a um traficante – que um dia pode mandar meter uma bala em seu filho ou em outra pessoa amada.

A Cracolândia de São Paulo existe não só por aqueles, quase lixo humano, deitados no chão entre urina, fezes e vômito, alienados, atordoados e doentes – mas os que ali compram uns gramas de sua loucura e sua morte talvez para fazer uso dela em qualquer outro lugar, que pode até ser caro e chique, por que não? Sei de grandes festas em que papelotes de cocaína são oferecidos em bandejas junto com champanha francês.

Talvez o ser humano tenha desde sempre necessidade de sair do seu registro dito normal para algo mais intenso. Uma bela taça de vinho pode ter essa motivação: relaxar, ficar mais alegrinho, menos tenso. Uma taça, não várias garrafas, e regularmente. Comidas, bebidas, substâncias, remédios, em si, são inocentes: seu uso pode ser mortal. 

Visitei, anos atrás, várias vezes, uma chiquésima carésima clínica de recuperação de drogados, em outro Estado. Lá estava a filha de conhecidos meus, que me pediam que fosse junto, a menina chamava por mim. Eram quase todos jovens, quase todos com olhar vazio, muitos com curativos nos pulsos, muitos tendo saído e voltado muitas, muitas vezes: sem esperança, parecia estar tatuado em sua testa.

Alguns conseguiam lá dentro a droga que quisessem, transando com um funcionário, jardineiro ou operário que consertava telhados; muitos, voltando para casa, eram assediados por traficantes que chegavam a jogar papelotes de coca pela janela do quarto da vítima. Há quem possa usar droga aqui e ali, sem se viciar. Muitos, muitíssimos, não conseguem. E para esses, começar, ainda que de brincadeira, ainda que com a dita inocente maconha, é assinar seu atestado de morte prematura e horrenda.

Não é possível vigiar alguém constantemente. Sem ter receitas nem conselhos, talvez o exemplo, o afeto, a alegria, a confiança, certo conhecimento da turma, dos locais frequentados, se for um jovenzinho, umas boas conversas nada moralistas, mas amigas, podem ajudar. Porém, não há garantias: famílias amorosas e atentas podem ter drogados graves. Famílias doentes podem ter filhos saudáveis.

E se, apesar do amoroso cuidado, tudo der errado, então sofrem todos, então fortalecem-se as cracolândias pelo país, enriquecem os traficantes, multiplica-se o crime, e passeia com suas longas vestes a Senhora Morte recolhendo as vítimas de uma sociedade fútil e incompetente – ou da própria incurável condição humana.



24 de junho de 2017 | N° 18880 
MARTHA MEDEIROS

Paranoia

Dia desses, fui entrevistada por uma jornalista que eu não conhecia. Era uma moça nova, acho que não tinha nem 30 anos. Antes de começar a entrevista, fomos para o jardim da emissora para que pudéssemos ter uma conversa informal a fim de alinharmos, juntas, o papo que viria. Não foram necessários mais do que 15 minutos para virarmos amigas de infância. 

Ela me contou que sempre trabalhou fechada dentro de estúdios, criando pautas e redigindo textos, mas que agora passaria a apresentar matérias na rua, ao vivo, o que era um desafio maravilhoso, mas que a deixava apreensiva. Foi quando comentei que ela era linda, carismática e que tinha tudo para arrebentar. Tiramos uma selfie e pedi para ela enviar a foto para meu WhatsApp, assim já ficaríamos conectadas. Dei a ela meu número e, então, neste clima de camaradagem, fomos, finalmente, gravar nossa entrevista.

Uma hora depois, enquanto eu dirigia de volta para casa, lembrei o momento em que eu disse que ela era linda, carismática e dei o número do meu celular. E fiz um rápido exercício de imaginação. Suponhamos que eu não fosse uma escritora e, sim, um escritor. A cena não pareceria assédio?

Ok, a cena poderia parecer assédio mesmo eu sendo mulher, caso mulheres me interessassem sexualmente. Mas, se fosse um homem que dissesse para a repórter que ela era uma gata, que apostava em seu sucesso e ainda desse o número do seu WhatsApp, a garota poderia sair dali direto para uma delegacia e denunciar o abusado que a subjugou com elogios maliciosos.

Vai dizer que não colava?

São tempos de paranoia, esses. Fico imaginando quantos homens deixam de ser simpáticos e gentis com mulheres que recém conheceram, por receio de serem mal interpretados. Quantas pessoas ainda não saem do armário com medo de perderem o emprego e o amor da família. Quantos mentem sobre o que pagaram por um casaco (no caso de ele ser muito caro ou ridiculamente barato) para não darem pista da sua situação financeira. 

Quantos evitam dizer o que pensam sobre política a fim de não serem patrulhados. Quantos comem sobremesa escondido para não terem sua silhueta analisada. Quantos dizem que andam sem tempo e com a agenda lotada só para não parecerem vagabundos. Quantos saem de perto de um sujeito com aparência fora do padrão com medo de que ele seja um delinquente. 

Quantos trancam suas gavetas achando que podem ser roubados. Quantos não comentam seus projetos, certos de que terão suas ideias copiadas. Quantos não entregam a chave do carro a manobristas. Quantos não comentam que estão de viagem marcada para evitar olho gordo. Quantos ainda não compartilham copos e talheres. Quantos não deixam a bolsa pendurada na cadeira ao irem se servir no buffet. Quantos não dão informação na rua temendo ser um golpe.

A naturalidade agoniza, enquanto a paranoia está vendendo saúde.


24 de junho de 2017 | N° 18880 
CARPINEJAR

Vacas magras


Eu enganei a escassez da adolescência participando dos sorteios da rádio. Vivia sintonizado para receber um disco ou um par de ingressos. Meus ouvidos estavam colados na voz do locutor como se fosse números de um bingo.

Morava sozinho, não tinha dinheiro para sair e tampouco passaria a vergonha de pedir ajuda para os pais. O que eu fazia? Caçava enquetes nas rádios. Pulava de um quiz-show para o outro. Soprava nomes de atores, solucionava charadas, descobria letrista oculto em canções, improvisava declarações de amor; topava tudo. Os apresentadores reconheciam a voz e acabavam envergonhados com a minha constante frequência.

Lembro do diálogo: – Quem fala?

– Fabrício, do bairro Petrópolis. – Você de novo?

A que mais me municiava o meu rebanho de vacas magras era a Rádio Cidade. Não foram poucas as vezes em que eu subi o Morro Santa Tereza para buscar cortesias. As namoradas do período não entendiam como arrumava entradas. Acreditavam na minha influência, mal sabiam da chinelagem disfarçada de glamour. Aparecia de repente com vales para lançamentos, shows e peças de teatro. Grande parte da minha vida social, eu devo para o dial. Jamais abri os meus truques e revelei a roda da fortuna. Mantive a mágica do mistério com um sorriso irônico.

Numa época sem celular e sem telefone fixo no apartamento de solteiro, terminava por me enganchar no orelhão. Rezava primeiro para ser atendido – milhares de pessoas tentavam como eu. Não dava para desistir diante do sinal de ocupado. Depois, quando selecionado para falar, rezava para que as fichas sustentassem a ligação. Não podia me demorar, escutava o aparelho engolindo os meus valiosos minutos com ansiedade e sofreguidão. Quando acertava a resposta no programa ao vivo, vibrava e já desligava abruptamente, antes de ser cortado pela falta de crédito.

Resolvia o final de semana perseguindo promoções. Carregava um radinho de pilha no bolso durante a universidade para não chegar atrasado nas ofertas.

Colecionava, igualmente, cupons de desconto em revistas e jornais. Acho que os meus olhos são feitos de linhas pontilhadas.

Nunca fui redundante, pobre materialmente e de espírito. Compensava a ausência de bens com voluntarismo. Nem tive tempo de ser tímido. Por pior que seja, valorizo a apresentação de um artista em minha cidade. Sei o quanto vale o ingresso. Ao longo da juventude, lutei enormemente com as palavras, e um pouco de cara-de-pau, por cada um deles.



24 de junho de 2017 | N° 18880 
DAVID COIMBRA

Quem inventou o sanduíche aberto


Para o que que é bom laranja? Como laranja todos os dias. Depois do Timeline, no meio da manhã, vou ali para a minha sacada acompanhado por uma laranja da Califórnia e uma faquinha de serra. Descasco a laranja e aprecio gomo por gomo, olhando as crianças que brincam na praça em frente. Trata-se de um momento de paz, sem dúvida. Mas o que meu combalido corpo ganha com isso, além da óbvia vitamina C? É o que gostaria de saber.

Meu filho agora está nesta fase. À mesa de jantar, quando a comida aterrissa na frente dele, ele começa a perguntar:

– Pra que que é bom feijão?

– Ah, o feijão tem ferro, te dá força, é um alimento importante, embora seja o que mais causa gases.

– Gases? – Pum.

Ele cai na gargalhada e passa a gostar ainda mais de feijão.

Portanto, devido aos deveres pátrios, tenho de estar informado sobre as propriedades dos alimentos. Tento me lembrar do que minha mãe e minha avó diziam ou do que eventualmente ouço por aí.

Segundo minha avó, a abóbora engrossa as pernas. As mulheres comiam abóbora por esse motivo, antes. Hoje não mais. Hoje é um tempo de pernas esguias.

O bife, se servido às dez da manhã, junto com um cálice de vinho do porto misturado a uma gema de ovo, acaba com qualquer anemia. Bife de fígado também é engrossador de sangue, mas quem vai comer bife de fígado?

A banana, diz minha mãe, evita câimbras.

Leite, todo mundo sabe, é ótimo para a solidez dos ossos.

Li em algum lugar que o tomate serve para prevenir contra o câncer de próstata, mas tem de ser o tomate do molho, não o da salada. Muita bolonhesa, pois.

O peixe, por ter grande dose de fosfato, ativa a memória. Quanto mais peixe você comer, mais inteligente você fica. E tem o ditado clássico: “An apple a day keeps the doctor away”. Quer dizer: se você comer uma maçã por dia, não precisará ir ao médico. Será? Devo trocar a laranja pela maçã? A laranja, bem sei, previne gripes, mas uma por dia deve proporcionar outros benefícios. Quais são? Outra: ainda não descobri por que raios a gente precisa comer alface. A alface me irrita.

Dias atrás, os cientistas revelaram que a cerveja ou o chope fazem o mesmo efeito do Tylenol. Isso me encheu de alegria. Botei todos os Tylenols fora. Até já intuía essa capacidade do chope, se você quer saber. Chope com sanduíche aberto, então, deve ser um poderoso analgésico. Você sabia que o sanduíche aberto é uma invenção porto-alegrense? Pois é! Meus amigos Neca e Admar Barreto contam que a criadora foi a mãe do Fred, que foi dono de famosos restaurantes alemães, entre eles o Bier Stube e o Max und Moritz. Esse genial acepipe foi servido ao público pela primeira vez em outro bar alemão, o Urso Branco, que se situava na Pinto Bandeira.

O problema é que, com a popularização, o sanduíche aberto se vulgarizou. Porque o verdadeiro sanduíche aberto não é apenas pão com queijo e presunto cortado em quadradinhos. Não! São indispensáveis o critério e a criatividade. O verdadeiro sanduíche aberto jamais é seco, ele foi adrede preparado, ainda que sempre no mesmo dia do seu consumo. E ele é variado, ele tem de um tudo, da cobertura simples, com um fio de azeite de oliva e um tomate vermelho, feito uma tapa, até a indispensável carne de porco.

Por sinal, criei um prato, certa vez, e entrei para o cardápio do velho Jazz Café, então dirigido pelo meu amigo Atílio Romor. Eram lâminas de lombinho de porco bem temperadas, servidas com pão preto, adornadas por eventual mostarda. “Lombinho à Coimbra”, estava escrito no menu, para gáudio meu. Tanto, que nem me importava com a brincadeira recorrente de meus amigos:

– Vamos comer o lombinho do David?

Para o que é bom lombinho, sanduíche aberto e chope todos os dias? Você não sabe? Eu sei: é bom para a alma. Lâminas de lombinho, o verdadeiro sanduíche aberto, chope gelado e amigos em torno à mesa. Definitivamente, bom para a alma.



24 de junho de 2017 | N° 18880 
MÁRIO CORSO

ACEITE-ME COMO SOU


Quem realmente me ama vai me aceitar como sou. Você já escutou essa frase de várias maneiras. O importante é o espírito do enunciado, comum a todas as suas versões: quem a diz espera encontrar um parceiro que receba a maravilha que essa pessoa já seria. Portanto, alguém que assim se julga não precisaria adequar-se, repensar-se, já estaria pronto para ser admirado e amado.

Para os que se aventurarem a amá-lo, só resta aceitar o kit completo, sem pedir mudança, sem reclamar. Se contestar, vai ouvir: quando me conheceste eu já era assim!

Aqui vai um conselho: se der, fuja dessas pessoas. Hoje mesmo, se possível. Alegue legítima defesa, até porque é, e vá embora. Digo como quem acolhe os amantes machucados, como quem já juntou do chão com colher caquinhos de egos partidos. Já troquei inúmeras ataduras dos feridos por esse caminhão sem freio de narcisismo. Todo cuidado é pouco, são sujeitos tão satisfeitos consigo mesmos, que soam persuasivos quando vendem-se com rótulo de autenticidade, espontaneidade e franqueza.

Não fosse a paixão humana pela devoção, estariam fadados à solidão. Ignoram que a vida é feita de poucas leis incontestáveis e uma delas é que amar é mudar. Ao deparar com alguém incapaz de entender isso, é provável que não haja projeto em comum. 

Ou você cede tudo, ou nada acontece. Sequer receberá o bônus do reconhecimento por ter recuado, afinal, o caminho deles é a única direção “certa”. Nunca descobrirão que o amor tem duas mãos, é encontro, resultado de duas almas que fazem uma terceira coisa. O melhor do amor é ficar diferente, é deixar-se alterar por uma natureza distinta, é conhecer outros jeitos de ver a vida, com alguém que nos guia pela mão.

Um dos mais enganosos conceitos de psicologia é o de narcisismo: a primeira ideia que nos vem é de alguém que se enfeita, que quer chamar a atenção. Não necessariamente: aquele que se arruma para convocar a visão do outro sabe que não é perfeito e precisa de retoques. O verdadeiro narcisista acredita que sua natureza já é irretocável, passa por simples e despojado, mas é convencido.

Essas pessoas não amam ninguém. Pensam que sim, mas apenas apreciam a devoção recebida. Para essa adoração, terão mil olhos atentos. Porém, frente a qualquer deslize nesse amor dedicado, se sentirem alguma perturbação na força de seu reinado, ativa-se neles um tigre interior, uma ira que não desejo a meus inimigos. O afastamento do parceiro derruba o altar sagrado sobre o qual repousam e em seu lugar nascem chamas dignas das labaredas do inferno.

Por isso, se não quiserem seguir meu conselho, sem problema, nós, psis, precisamos trabalhar. Vai fundo, depois a gente cola tudo outra vez.



24 de junho de 2017 | N° 18880
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A GRATIDÃO TEM PRAZO DE VALIDADE?

A necessidade que as pessoas sentem de anunciar gratidão eterna com frases padrão como “O senhor vai estar para sempre nas minhas orações” ou a menos religiosa “Enquanto eu viver, vou agradecer todos os dias o que o senhor fez por mim!” expressa apenas o desejo inicial de que este sentimento se perpetue além do prazo exíguo que o tempo, um incorrigível borrador das boas lembranças, permitirá.

Baseado na minha larga experiência, a gratidão deixada quietinha, sem reforços periódicos, se dissipa numa proporção de mais ou menos 20% ao ano. De onde essa cifra? Da observação de que, a cada cinco anos, os presentes de Natal são progressivamente substituídos pelos dos novos agradecidos. E não seja inconveniente de se oferecer para refrescar a memória do agraciado, porque pior do que não ser lembrado é perceber que o outro está tentando, com um discurso sem emoção, parecer minimamente educado diante da saia justa do esquecimento involuntário. 

O tempo e a intensidade da gratidão também são variáveis e claramente diferentes entre pacientes que pagaram pelo atendimento, e se comportam com frequência como se no pacote dos custos estivesse incluída a disponibilidade ilimitada do médico, e o paciente do sistema público de saúde que, na sua humildade e subserviência, se mostra infinitamente grato pelo atendimento que recebeu com a consciência de que, por ele, nunca poderia pagar. Claro que as regras e as exceções moram dos dois lados da cerca, mas em geral, de onde menos se espera, daí mesmo é que não sai nada.

A Eulália trabalhava como representante de uma marca de produtos de beleza, que vendia de porta em porta. Numa dessas andanças, foi atropelada, sofreu lesões graves, esteve intubada durante semanas, recebeu uma traqueostomia e, depois de dois meses, foi para casa com esse buraco no pescoço porque um estreitamento alto na traqueia impedia a passagem de ar. Respirando por essa abertura e incapaz de emitir qualquer som, foi aposentada por invalidez. 

Cinco anos depois, quando a conheci no ambulatório do SUS e lhe disse que era possível reconstruir a passagem do ar de modo que ela pudesse respirar pela via normal e voltar a falar, ela me abraçou agradecida. Mesmo descontada a taxa de exagero que muitas vezes macula essas reações, aquele choro parecia do bem. Uma semana depois da cirurgia, respirando pelo nariz e se comunicando com uma voz levemente rouca, ela teve alta hospitalar. Na despedida, profundamente emocionada, jurou amor eterno, beijou-me as mãos abençoadas, e voltou para a vida. Ela parecia muito feliz, e eu estava, por ela e por mim.

Oito meses depois, recebi uma intimação para depor numa audiência em que uma paciente requeria indenização por danos morais porque, como consequência de uma operação que eu fizera, ela ficara com uma voz rouca, que lhe reduzia a condição funcional como vendedora. O advogado leu o arrazoado enquanto a Eulália encarava o assoalho. 

A juíza, estupefata e incrédula, pediu que ela resumisse a história e perguntou o que a movera a entrar com esta ação, e ela confessou: “Eu não queria processar o doutor porque ele foi muito bom comigo, mas o meu vizinho, que é advogado, me explicou que eu tinha direito a indenização porque o doutor deve ter feito alguma coisa errada, senão a minha voz teria ficado normal”. Arquivada a denúncia por ridícula e improcedente, fomos liberados. O tom de voz alto e forte com que ela anunciou a justificativa era o meu melhor elemento de defesa. Com aquela voz, ela venderia qualquer coisa. Menos dignidade, porque o estoque tinha acabado.

Voltei para o hospital aliviado, mas desconfortável. O desafeto machuca mais do que qualquer pedido de reparação financeira. Desconfio que a Eulália sabia disso, porque em nenhum momento ela me olhou. A vergonha, como se sabe, coloca chumbo nas pestanas dos envergonhados.


24 de junho de 2017 | N° 18880 
PIANGERS

Quem protege o protetor?


Há alguns anos, minha filha pequena ficou com medo do escuro. É assim que acontece: ela era uma menina feliz e confiante e, uma careta de tio ou episódio de Patati Patatá depois, não conseguia mais dormir de luz apagada. Todas as técnicas que usei com minha filha mais velha não funcionaram desta vez. 

Minha primogênita é cerebral e adulta desde que tinha meses de vida, portanto, explicar a irracionalidade do medo de escuro servia a ela. Perceba, não existe nada aqui no seu quarto nem em lugar algum da casa, as portas estão fechadas, temos guarita no prédio e papai e mamãe estão no quarto ao lado, eu dizia. E a garota entendia e dormia tranquila, com menos de dois anos de idade.

Não funcionava igual com minha menor. Ela acredita em fantasmas e lobos maus, vive em um mundo fantástico. Perguntei o que ela queria ser quando crescer e respondeu: “Um unicórnio”. Portanto, quando as luzes se apagam, acredita que figuras mágicas e malvadas podem sair de todas as frestas, que os bichos de pelúcia ganharão vida. Suas descrições do que poderia acontecer se eu deixasse as luzes apagadas eram tão intensas que, ao ouvi-las, eu mesmo ficava com medo. “Realmente, é melhor dormirmos juntos. E de luzes acesas!”, eu dizia.

Tenho um rosto bruto, mas tenho meus próprios medos escondidos. No geral, é medo de morrer ou me acidentar. Tenho medo de cobras e aranhas quando estou no mato (quase nunca). Tenho medo de bungee jump e qualquer esporte radical, que considero sem propósito algum. Tenho medo de viajar de carro em estradas do interior de madrugada. Tenho medo de estar em um acidente aéreo. 

A única coisa que me acalma, se estou com medo de alguma coisa, é outra pessoa com mais medo do que eu. Daí, então, viro um galo corajoso, explicando por A mais B o motivo daquele mato não ter cobra, a razão do bungee jump ser um esporte seguro, a garantia estatística de chegar ao destino a salvo.

Foi dessa forma que vencemos o medo da pequena. Transformei-a na minha protetora. “Tenho medo de escuro, filha”, eu dizia. “Mas você tem medo de quê?”, ela dizia, me mostrando que não havia monstros dentro do armário. “E se aparecerem monstros de noite?”, eu perguntava. “É só você se concentrar que eles desaparecem”, ela explicava. 

Dormimos até hoje juntos, contando histórias fantásticas um para o outro. Ela me ajuda a vencer dragões, contribui com ótimos plot twists. No breu do quarto, não temos mais medo do escuro. Estamos muito ocupados nos protegendo mutuamente.

quarta-feira, 21 de junho de 2017



21 de junho de 2017 | N° 18877 
MARTHA MEDEIROS

Desculpe aí, Louis Armstrong

Recebi um vídeo comovente pelo WhatsApp. Mostra uma sequência de cenas espetaculares da natureza: florestas, mares, vulcões, os animais, as flores, o melhor da National Geographic. Todo esse esplendor embalado pela voz grave de Louis Armstrong cantando What a Wonderful World, que você conhece, claro: “I see trees of green, red roses too, I see them bloom, for me and you, and I think to myself...” corta! 

Escutei bloom ou “BUM for me and you”? Pois certas notícias cotidianas me atingem feito um tiro, como a do garoto que foi torturado com uma brutal tatuagem na testa, pra ficar apenas com esse exemplo inovador de barbárie. O chamado “risco de vida” sempre nos rondou, mas agora ele está mais ameaçador e mais valente – ou mais covarde, dependendo do ponto de vista.

Dirigir automóveis em vias urbanas sempre foi arriscado, mas agora é arriscado também caminhar pelas calçadas, tal a quantidade de buracos e de pavimento assimétrico.

Sair à noite era normalmente arriscado por causa dos assaltos, agora é arriscado também de manhã e à tarde – violência democratizada em todos os turnos.

Receber em casa um funcionário de uma rede de TV a cabo pode ser um risco, mesmo ele usando uniforme e portando crachá. Se a visita foi sugerida pela “empresa”, você abre a porta para um meliante e o convida a entrar.

Atender ao telefone é um risco: você pode ouvir alguém que grita por socorro, anunciando-se como um filho sequestrado (golpe manjado, mas sempre perturbador), ou, pior, ouvir uma gravação com a voz do Moacyr Franco conversando com você como se fosse um primo querido.

Trabalhar é um risco: é possível que você não receba seu salário em dia. Não trabalhar, mais ainda: chegamos a 14 milhões de desempregados.

Não falei de política porque nesse setor vai tudo bem, obrigada. Estamos na mão de gente muito decente, que não perde tempo tramando para manter cargos e privilégios, e sim focada em colocar o país nos trilhos (ainda que sem trens) rumo a um crescimento sustentado pela educação e por uma honesta gestão pública. Tão sortudos quanto nós são os Estados Unidos, que também são presididos por um homem muito sensato e íntegro. 

Mas, se você não concorda, pode pegar um avião (consulte antes se os outros passageiros são coxinhas ou petralhas, para não haver turbulência interna) e viajar para algum país europeu. Basta ter cuidado ao circular pelas ruas – não pelo estado das calçadas, que lá elas são melhorzinhas que as nossas, mas para correr a tempo no caso de topar com um simpatizante do terrorismo pilotando uma van.

And I think to myself what a wonderful world.



21 de junho de 2017 | N° 18877
DIPLOMACIA

Por dentro do consulado americano

DIFERENTEMENTE DE SÃO PAULO, onde interessados em visto aguardam por horas, atendimento na Capital promete ser ágil

Quem já entrou no consulado dos Estados Unidos em São Paulo para fazer o visto americano sabe que a experiência não é das mais confortáveis. São filas e filas em espaços muitas vezes inadequados para receber tamanho afluxo de pessoas. Para os gaúchos, a boa notícia é que a seção consular de Porto Alegre, que abriu no início do mês, tem ótima estrutura para receber com conforto os solicitantes, que também gastam menos tempo no processo em relação à capital paulista.

Em antecipação à inauguração oficial, que será na próxima segunda-feira, com a presença do embaixador Michael McKinley, o consulado abriu as portas ontem à imprensa para mostrar, com detalhes, o passo a passo de quem solicitou o documento no prédio, na Avenida Assis Brasil, 1.889, bairro Passo D’Areia.

Quem acompanhou os jornalistas foi o chefe da seção de Imprensa, Educação e Cultura dos Estados Unidos em Porto Alegre. John Jacobs não deu números específicos sobre quantas pessoas já passaram pelo procedimento desde a abertura, mas garantiu que foram “mais de 500”, com a expectativa de serem “milhares” até o fim do ano.

– Temos o objetivo de ser o consulado campeão de vistos no Brasil, com um serviço eficiente e cordial – disse Jacobs.

ITENS COMO CÂMERAS E CELULARES NÃO ENTRAM

Nesse sentido, o esperado é que o atendimento seja muito mais ágil do que o de São Paulo, onde os interessados chegam a esperar várias horas. Jacobs não quis precisar o tempo que a pessoa gasta em todo o processo dentro da seção consular, mas guardadores de objetos que trabalham ao redor do prédio – itens como câmeras fotográficas, celulares e isqueiros, por exemplo, são proibidos de ingressar – afirmam que o tempo médio tem ficado entre 20 e 25 minutos. A ida ao consulado é a última etapa para a obtenção do visto, depois da passagem pelo Centro de Atendimento ao Solicitante de Visto (Casv), na Avenida Carlos Gomes, 1.501, onde são coletados os dados biométricos, e da solicitação online, no site br.usembassy.gov/pt.

Ao lado, confira o trajeto do solicitante no Consulado dos Estados Unidos, do início ao fim.

Chegada ao Consulado

-A entrada para os solicitantes de visto é feita pela Avenida Assis Brasil. Na porta, funcionários conferem se está tudo certo com o agendamento – só entra no prédio quem tiver hora marcada. Em seguida, é preciso passar pela segurança, com detector de metais e raio X. A lista de itens não permitidos é extensa (confira no quadro). Por isso, já floresceu nas redondezas um mercado de guardadores de objetos.

Sala de espera

-Depois da segurança, o solicitante passa rapidamente por um corredor com as paredes cheias de obras de artistas plásticos gaúchos e pôsteres norte-americanos. Dali, chega-se a uma ampla sala de espera, onde funcionários conferem se agendamento e documentos estão corretos. Se faltar alguma coisa, os solicitantes serão informados que deverão voltar em outro momento com a documentação completa.

Atendimento a americanos

-Saindo da sala de espera, os solicitantes passarão por um corredor onde, à esquerda, há uma sala reservada para o atendimento aos americanos, realizado no período da tarde.

Atendimento final

-No saguão principal, o solicitante passará primeiramente pelo guichê 1, onde pegará uma senha de atendimento. Depois, é chamado ao guichê 2, onde um funcionário americano confirma novamente o agendamento e os documentos. Então, pode sentar-se nas cadeiras para esperar que a senha seja chamada em um telão e também por meio do sistema de som. Nesse espaço, há banheiros e água disponíveis.

Entrevista

-O solicitante, então, é direcionado a algum dos outros 12 guichês, onde um funcionário americano analisará os documentos e fará algumas perguntas sobre sua viagem (para qual cidade irá, o que fará nos Estados Unidos, onde irá se hospedar, o que pretende visitar...) e sua vida no Brasil (profissão, emprego, família...). Com base nessas informações, o agente aprova ou rejeita o pedido de visto. O solicitante não sai com o documento em mãos – deve escolher entre retirar o passaporte no CASV ou que ele seja entregue pelos Correios.

priscila.martini@zerohora.com.br


21 de junho de 2017 | N° 18877 
DAVID COIMBRA

Comidas fortes

Alguns americanos gostam de pendurar uma plaquinha de madeira nas paredes das suas casas. Nela está escrito: “I love you more than bacon”. Eu amo você mais do que amo o bacon.

Uma emocionante declaração de afeto à mulher amada. Porque os americanos realmente adoram o bacon. E, vou dizer, admiro tamanha devoção às comidas fortes. Houve um tempo em que se comia torresmo, no Brasil. Hoje, não se encontra torresmo em lugar algum. O torresmo foi banido. O torresmo é um pária.

As pessoas estão preocupadas lá com as suas artérias. Tudo certo, também gosto das minhas artérias, mas será que o torresmo é de fato inimigo delas? Semana passada, inclusive, os cientistas descobriram que o óleo de coco faz mal para alguma coisa. Até então, o óleo de coco era o queridinho do pessoal que anda preocupado com suas artérias. Bela Gil e tudo mais. Mas o óleo de coco não é tão inocente, como se vê, o óleo de coco não é o santinho que parece. E o torresmo é que vinha levando a culpa.

Ah, o Brasil! Tudo é assim, no Brasil! Não há meio-termo. Não há ponderação. Não se fazem concessões. Ou você é óleo de coco ou é torresmo.

Houve tempo em que éramos mais tolerantes. Tome, por exemplo, o caso do brigadeiro, também conhecido como “negrinho”, embora esse nome possa ser politicamente incorreto.

Ocorre que vi no Globo Repórter uma matéria sobre a origem do brigadeiro. Essa guloseima foi criada em 1946 por uma senhora de boa família carioca, que apoiava a candidatura à Presidência da República do brigadeiro Eduardo Gomes. Ela preparava amorosamente os docinhos com chocolate da melhor qualidade, leite condensado Moça e manteiga sem sal, a fim de vendê-los às amigas e conhecidas, arrecadando, assim, recursos para a campanha do seu candidato. O slogan de Gomes era sugestivo: “Vote no Brigadeiro, que é bonito e solteiro”. Apesar desses predicados e do sucesso do docinho, o Brigadeiro perdeu para o candidato getulista, o marechal Eurico Gaspar Dutra.

Uma lástima.

Dutra, aliás, passou à História como homem de poucas luzes. Durante seu mandato, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, fez uma visita ao Brasil. Como Dutra não sabia dizer um único the book is on the table em inglês, o cerimonial o orientou a apenas cumprimentar o americano, repetir rapidamente o que ele dizia e se perfilar para a foto oficial. Truman chegou e estendeu a mão:

– How do you do, Dutra?

Ao que o brasileiro replicou:

– How tru you tru, Truman?

A anedota é boa, mas não é disso que falava. Falava do brigadeiro, o doce, e o Brigadeiro, o candidato. Note que o Brigadeiro homem perdeu, mas o brigadeiro doce ganhou. Ou seja: a radicalização dos anos 1940 terminou com a consagração do derrotado. Para você ver como a História pode ser irônica.

Daqui a 70 anos, o que restará de toda essa confusão brasileira, gente brigando nos aeroportos, rompendo com parentes e se insultando mutuamente no WhatsApp por causa de notórios cafajestes?

A resposta é: nada.

Nada ficará disso, porque o que importa na vida são os dias vividos, são os pequenos gestos, nunca as grandes causas. Um brigadeiro é mais importante do que o Brigadeiro. A piada sobre o marechal é mais importante do que o marechal. Um chope em paz com o amigo é mais importante do que a opinião que ele tem sobre a situação nacional. E o torresmo talvez seja amiguinho das nossas artérias, afinal. Por isso, não deixe o torresmo morrer. Salve o torresmo!


21 de junho de 2017 | N° 18877 
PEDRO GONZAGA

A PLACA


Há certas pessoas, certos lugares, que encerram suas atividades sem anunciar o fim do contrato. É como se seguissem visitáveis, rebeldes às determinações do destino. Assim os funerais que nos põem inertes (só choraremos dias ou anos depois), as últimas mensagens trocadas feito um até logo, as portas fechadas do negócio onde passamos gloriosas horas baldias, portas que por meses nos parecerão excepcionalmente baixadas, como num longo recesso festivo.

Então um dia a vemos (havia muito ela estava ali), a placa de aluga-se.

É uma ação de despejo. O mundo nos pertence um pouco menos a partir de agora. Muitos veem nisso um sinal de velhice, mas quero discordar. Parece-me mais uma prova da precariedade de nossos esforços de permanência. Se há algo de velho, é que os velhos assistem a esse fenômeno repetidas vezes, até que não vejam mais o mundo, senão a si mesmos como as próximas vítimas da falência, um padrão gerado a partir da finitude individual e não a partir de um mundo que nos é de todo indiferente.

E é esta indiferença do mundo o que nos aflige, tanto mais quando nos golpeia tardiamente, tal no meio da tarde junina quando enfim fui capaz de notar, pela primeira vez, o cartaz de aluga-se na livraria que por anos foi minha segunda casa, a ponto de mandar meu correio aos cuidados do Carlão, um dos donos da Palavraria. 

Era o melhor escritório que alguém poderia querer, o cheiro amadeirado dos livros, espressos sempre à mão, os debates inúteis com os amigos, a generosidade das conversas com o Heron, os vivas ao doutor Jaime, as deliciosas polêmicas com a Carlinha. Ali ministrei minhas oficinas de escrita, ali escrevi alguns trechos de meus livros, ali, agora, o selo na porta fechada indica que será inútil bater, como tantas vezes fiz para me deixarem entrar antes do expediente.

Plantado em meio à Vasco da Gama, leio as tolas pichações que recobrem a casa, pregando a revolução por meio dos orifícios do corpo, assunto já velho nas inscrições da velha Roma. Depois sigo meu caminho.

Falei que não era sobre velhice, mas era. Nego a imagem que me fica das paredes, e penso num passado íntimo como o que se vê em certas construções de Pompeia, com aquilo que as cinzas tiveram a dignidade de preservar.

sábado, 17 de junho de 2017



17 de junho de 2017 | N° 18874 
DAVID COIMBRA

O dia da mudança

Os cientistas da universidade de Medford, que fica aqui perto de onde moro, enviaram um verme ao espaço e ele voltou de lá com duas cabeças.

Achei importante, embora não saiba por quê.

Vou ficar com essa informação gravada: o Platelminto, que é o nome do verme esse, desenvolveu uma segunda cabeça quando esteve passeando no espaço, fenômeno constatado pelos cientistas em junho de 2017. Algum dia isso será lembrado por algum motivo.

Afinal, quantos fatos decisivos ocorrem e não são registrados? Por exemplo: houve um dia de 1908 em que o diretor da Academia de Belas-Artes de Viena disse para um jovem candidato a aluno que ele não tinha aptidão para a pintura. O rapaz se chamava Adolf, ele mesmo, Hitler, e deve ter saído do encontro frustrado, querendo matar um.

Vi aquarelas que ele pintou. Francamente, não achei ruins e, embora seja provável que conheça menos de pintura do que um diretor da Academia de Belas-Artes de Viena, penso que a rejeição de Hitler foi um erro. Menos para a arte, mais para a humanidade. Antes um pintor medíocre do que um ditador sanguinário bem-sucedido.

E aquela data se perdeu na História... Que dia terá sido?

Agora pense que, milênios atrás, em algum lugar do Iraque, uma jovem suméria foi fazer o jantar da família e, ao abrir o pote de cerâmica em que havia guardado os cereais, deparou com uma surpresa desagradável. Ela devia ter deixado o pote destapado, dias antes, e a água da chuva entrou, inutilizando as provisões.

A família da moça provavelmente era pobre, não tinha mais o que comer, porque, em vez de jogar fora os cereais molhados, ela resolveu experimentar a sopa que havia se formado. Provou o resultado da alquimia e... surpresa! Adorou! O cereal fermentado havia se transformado em uma bebida deliciosa. Mais tarde, ela serviu para o marido, e ele gostou e também os amigos dele e toda a aldeia. E mais: depois da ingestão da beberagem, todos ficaram alegres, disseram que se consideravam pra caramba e terminaram a noite cantando Trem das Onze. Logo a Suméria inteira consumia aquele líquido precioso. Alguém deve ter dito:

– Essa é uma bebida dos deuses!

E como a deusa mais popular do país era Ceres, o sumério passou a chamar a bebida de “ceresia”. Ou: cerveja!

Mais do que todas as obras do Homo sapiens, eu gostaria de saber exatamente quando aquela suméria descobriu a cerveja. Mas não sei.

O dia da mudança. O dia em que tudo ficou diferente. Isso acontece também na nossa vida. Já contei sobre aquela moça que era magra e tornou-se gorda diante dos meus olhos. Porque funciona assim: você, assustada leitora, é magra e vai engordando. Todo mundo diz que você é magra. Magra, magra, magra. Mas chega um dia em que todo mundo diz que você é gorda. Quando você trocou de condição? Esse momento é um marco.

Pois com aquela moça foi assim. Ela era magra, embora forte. Mas, em 26 de janeiro de 1994, às 16h , ela se dirigiu ao bar da Redação e pediu um quindim. Deu uma mordida naquele quindim. Então, bem na minha frente, ela virou uma gorda. Eu vi. Por Deus. No instante em que aquela pequena cota de lipídios se incorporou ao seu ser, blop!, ela se transformou. E, não, não vai aí nenhuma crítica ou chacota, não me acuse de inimigo da gordura. Até não duvido que ela, mais possante, tenha se tornado também mais feliz. Parabéns, portanto, à neogorda dos anos 1990. Torne-se você também uma, e viva alegre em meio aos mil-folhas e aos brigadeiros da existência.

Tento estabelecer as datas marcantes da minha vida.

Não faz muito, tive de me submeter a uma operação dolorosa, e sabia que seria dolorosa. E lá estava eu, deitado na maca, a caminho da sala de cirurgia, quando uma enfermeira se aproximou, perguntando:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Trata-se de um procedimento comum entre os americanos. Eles conferem e reconferem a fim de evitar erros e futuros processos judiciais. Respondi que sabia e descrevi a operação. Minutos depois, veio mais um:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Falei de novo.

Passados mais alguns minutos, chegou outra enfermeira:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Da maca, tasquei:

– Sei: troca de sexo.

Por um segundo, ela e os auxiliares que a cercavam ficaram perplexos, mas depois todos caíram na gargalhada. Ri também e congratulei a mim mesmo: era um alívio saber que, mesmo numa situação complicada, continuava achando graça da vida.

É uma convicção que tenho. O dia em que acordar de manhã, abrir a janela, olhar o sol ou a chuva lá fora e não achar graça no que vejo, esse será um dia de mudança. Será o dia em que direi para mim mesmo: hoje, envelheci.

quarta-feira, 14 de junho de 2017


14 de junho de 2017 | N° 18871 
MARTHA MEDEIROS

A moça do colar de pérolas


Foi no dia 3 de maio último. Eu havia acabado de realizar um talk show promovido por uma joalheria de Porto Alegre. Estava conversando com um grupo durante o coquetel, quando ela se aproximou. Era uma mulher da minha idade, mignon, discreta. Estava vestida com elegância e usava um colar de pérolas. Tudo parecia frágil nela, a começar pela voz e pela sua fala pausada. Mas, assim que ela se apresentou, vi que a fragilidade era aparente e circunstancial. 

Na verdade, ela era uma fortaleza lutando contra uma insuficiência cardíaca grave, diagnosticada ainda na infância. Depois de inúmeras internações ao longo da vida, nada mais a fazer: só mesmo um transplante de coração lhe garantiria um futuro. De coração! Quase não acreditei quando ela comentou sua situação assim, como se normal fosse, sem melodrama algum.

O que ela estava fazendo ali? Não deveria estar em casa, em repouso, grudada em seu celular à espera da chamada que salvaria sua vida? Ela disse que estava com a mala pronta para o hospital, aguardando o aviso da chegada de um doador compatível, mas não iria abrir mão de alguns de seus prazeres, ao menos dos que exigiam pouco esforço físico. Ela estava ali simplesmente para me conhecer e ouvir.

Pode haver homenagem maior?

Conversamos alguns minutos e logo ela se despediu. Desejei-lhe sorte e não a vi mais.

No dia 31 de maio, abri o jornal e, para meu desalento, vi sua foto no obituário. Usando o mesmo colar de pérolas e com o mesmo sorriso com que me abordou menos de um mês antes.

São inúmeros os pacientes que aguardam na fila para um transplante. Cada um deles tem uma família, uma história. Todos são importantes para seus amigos, para seus colegas. Nós, que exercemos uma atividade pública, acabamos entrando em seu rol de afetos sem nem entender bem por quê. 

Estive com Ângela por um breve momento – uma mulher que, mesmo ciente da gravidade da sua situação, buscava manter acesa sua alegria, sua curiosidade, e saiu de casa naquela noite atrás de alguma gratificação. Não lembro sobre o que falei no evento para as pessoas que foram lá me ouvir, mas espero que tenha valido a pena pra ela. O que me resta agora, a não ser prestar-lhe uma homenagem em retribuição?

Já deixei claro para minha família: quero ser doadora de órgãos, se houver essa possibilidade. Apelo para que você deixe isso claro para sua família também. Não perpetue preconceitos e dogmas que impedem a cura de quem precisa de um transplante. Por Ângela, por todos e, vá saber, por nós mesmos, que um dia talvez precisemos: sejamos doadores. E que esse gesto seja uma pérola a mais em nosso colar.



13 de junho de 2017 | N° 18870 
CARPINEJAR

O sofá da sala

A felicidade familiar pode ser medida pelo índice de frequência do sofá da sala.


Quanto mais a família se encontra na sala, seja para ver televisão, seja para suspirar pelos excessos do almoço e da janta, mais ela estará unida. Significa que todos preservam um tempo para se olhar nos olhos, para implicar, para se atualizar de afeto. Todos se procuram para conversar e saber como está a vida. Todos são todos, não cada um em seu quarto, não cada um em seu celular, não cada um em seu computador. Por um momento, ainda são todos.

O sofá da sala é filho da mesa de jantar. O sofá da sala é uma segunda cama, uma cama suplente para cochilos fora de hora. O sofá da sala é a preguiça coletiva. É o nosso lounge pré-histórico.

A manta que o sofá recebe, devido a um rasgão, é condecoração pelo uso. Família feliz tem manta no sofá. Pela estima, o sofá transforma-se no móvel mais difícil de ser trocado. Pois é um santuário das lembranças. Cria-se uma compaixão com a sua velhice. Pode estar puído e gasto, com as molas frouxas ou almofadas viradas para tapear os furos, e não se joga facilmente fora, ele é a cola da casa, o rejunte dos laços, o bote salva-vidas nas crises. 

Os filhos e pais pulam no sofá nas tempestades financeiras, esperando o sol voltar. É o sinônimo também de festas e da bonança. No sofá, visitas frequentes assumem a condição vitalícia de amigos e conselheiros, parentes enxergam um refúgio para sorrir e preservar as histórias engraçadas da linhagem.

Família desunida não fica no sofá. Seus integrantes fogem para os seus quartos, fecham a sua solidão em fones de ouvido, realizam a refeição em separado, mexem na geladeira em escalas diferentes, mal se partilham, mal se abraçam, mal se beijam. O sofá é imovelmente novo e triste, como numa loja de decoração para ser vendido. 

Não é arrastado, não caminha com o peso da algazarra. Sem cheiro de ninguém. Sem farelos de pão e salgadinhos. Sem pipocas perdidas debaixo de sua base. Sem os círculos dos copos gelados. Sem conhecer produtos milagrosos de tira-manchas. É apenas um sofá, em vez de simbolizar o patrimônio da alegria caseira.

Na minha infância, os quartos eram sempre menores do que a sala. As camas eram menores do que o sofá. Para aprendermos a conviver e jamais nos escondermos no castelo das individualidades.

sábado, 10 de junho de 2017



10 de junho de 2017 | N° 18868 
ARTIGO - Lya Luft

O diabinho no ombro

Outro dia, dei a uma amiga, de presente de aniversário, uma caixinha marchetada de madrepérola, que comprei há muitos anos, talvez na Espanha. Por que não comprei algo novo para lhe dar, amiga antiga e querida que é? Talvez por isso mesmo: dei uma coisa que aprecio muito, que trago comigo há longos anos, onde eu poderia guardar um anel, até cartãozinho carinhoso mandado por alguém – mas estava vazia. Gosto de às vezes passar para alguém especial algo meu, especial. Tenho algumas caixinhas, pequenos potes, que exponho pela beleza ou pelo que significam. Nem todos estão ocupados: alguns, como a caixinha que dei para minha amiga, servem apenas para guardar belos momentos.

“Como se faz isso?”, me perguntou outro dia ironicamente alguém que gosta de mim, mas implica com meus romantismos. “Não sei direito”, respondi, “sei que olho para eles e ali estão guardadas memórias de momentos luminosos”. “Coisa da sua imaginação exagerada e romântica”. “Bem”, respondi como tantas vezes, “a imaginação paga minhas contas, me faz trabalhar”.

O mundo, a vida, nos oferecem uma sucessão de glória e danação, de alegrias e dores, de coisas medíocres ou gloriosas, tédio ou entusiasmo. A vida é assim, e pronto. Só que nós tendemos a prestar especial atenção ao ruim, escandaloso, doloroso, à desgraça, por exemplo, de um vendaval que mata pessoas que dormiam em suas camas, destrói centenas de lares, de plantações, de sonhos e duros esforços. 

Queremos saber como acabou afinal uma eleição num país estrangeiro, que poderia causar uma reviravolta em alguns aspectos deste mundo. Como foi o depoimento de um importante e digno figurão americano que talvez derrube o presidente? Quantos mortos no novo assassinato de dezenas de inocentes por um homem-bomba, cujo desejo de destruir não entendo nem quero entender?

Confesso que, embora mantendo-o sob certo controle, trago sentado no ombro um diabinho que faz careta e sussurra no meu ouvido: “Ainda bem que foi longe, que não foram seus filhos, netos, você mesma, seu marido. Sua casa ficou poupada”. Sentimentos quase inconscientes, mas nada louváveis. Enfim. Não somos boa coisa, em geral. Prefiro acumular lembranças felizes em minhas caixas e potinhos que parecem vazios.

O mal fascina? O abismo atrai? O medo nos faz espiar atrás da porta apesar de tudo, e nos leva a olhar para trás, para ver se estamos sendo seguidos por uma sombra, uma pessoa? Nestes tempos, alias, é de bom alvitre... O diabinho no ombro, entre outras loucuras e maldades, às vezes nos inspira a curtir inconscientemente mais os horrores. 

Não que a gente goste, aprove, não sinta compaixão, raiva e desejo de evitar tudo aquilo: é uma espécie de frenesi interno que faz com que à beira da estrada os carros parem para ver um acidente – ainda que polícia e bombeiros já estejam ajudando –, faz com que muitos deem risada quando alguém tropeça e cai (detesto isso) ou aprecie filmes violentos onde o sangue jorra e espirram os miolos.

Todos somos muitos, eu sei: somos o bom e o mau. A natureza, que tanto nos maltratou nestes dias, é assim também. Uma amiga minha costumava dizer: “A natureza é bela e cruel. Sublime, só Mozart”. Então, nesta manhã em que depois de tanta sombra o sol se esforça por abrir frestas nas nuvens, xô, diabinho.



10 de junho de 2017 | N° 18868 
MARTHA MEDEIROS

O AMOR

Que seja celebrado esse 12 de junho pelo motivo mais que suficiente de o amor ser o responsável por todo esse admirável esforço de tentarmos merecê-lo

É ele o protagonista da semana, o amor, e não os bandidos da nação. Esqueçamos por um momento este Brasil infiel com quem temos feito longas DRs. Ao menos nesta segunda-feira, o amor estará em alta, mesmo que alguns acreditem que ele tenha morrido.

Morrer como? O amor tem a melhor campanha de marketing do universo, já que todos nós estamos aqui por causa dele. Todos nós. Nascemos porque um homem e uma mulher se amaram – mesmo que tenha sido um amor de verão ou que nem tenha merecido esse nome, amor. De qualquer forma, ele foi o álibi para que nascessem você, seus amigos e seus inimigos, do amor nasceram judeus e antissemitas, por causa dele vieram ao mundo os que votam na direita, na esquerda e em branco.

Já dizia Fernando Pessoa: “A gente ama porque ouviu falar do amor”. É o marketing se confirmando. Desde pequenos, preparamos o terreno para ele entrar na nossa vida como entrou na de nossos pais. É dado como certo que alguém se encaixará em nosso ideal romântico, mesmo que não seja o primeiro a surgir. Talvez seja o segundo. Talvez o terceiro. 

Talvez ninguém se encaixe totalmente, talvez todos se encaixem mais ou menos. Todo homem ou mulher que fizer disparar nosso coração, mesmo que por pouco tempo, será promovido a grande amor pelas razões mais diversas: ou pra suprir nossa carência, ou pra abrandar nossa solidão, ou pra realizar nosso desejo de procriar, ou por nossa obediência às convenções – não importa, atravessará a porta destinada a ele. É sempre aguardada a sua chegada.

O amor está no DNA dos sete bilhões de habitantes do planeta. Ateus amam, assassinos amam, até políticos amam: é a verdadeira religião universal, a que faz todos ajoelharem sob o mesmo chão sem precisar de livros sagrados, deuses, dogmas. De onde vem tanta potência?

O mundo é hostil, cruel. Até mesmo a poderosa natureza – mares, selvas, montanhas – nos coloca em risco, nos exige estado de alerta. Onde nos refugiar, onde nos conectar com a nossa verdade e com a nossa beleza interior? No amor, não há outro lugar. Sem ele, nossa existência fracassa.

Que seja o amor por filhos, por pais, pelos amigos, por mascotes, por um Deus: é tudo amor em sua abrangência, e pode bastar. Mas havendo um amor exclusivista, erótico e conjugal, a vida ganha um contorno mais fascinante, somos convocados a lutar por aceitação, e não é um desafio qualquer. Exige concessões, resiliência e variadas técnicas de sedução. Dá uma trabalheira. Mas, ainda que o amor seja um projeto de vida racional, os picos de paixão irracional que ele proporciona fazem valer a vida a dois.

A gente nasce, pensa, pira, sonha, cai, levanta, sorri, chora, desiste e insiste. A gente acorda, dorme e acorda outra vez. A gente ganha, perde, corre, alcança, não alcança, descansa e recomeça. Então, que seja celebrado esse 12 de junho pelo motivo mais que suficiente de o amor ser o responsável por tudo isso, por todo esse admirável esforço de tentarmos merecê-lo.



10 de junho de 2017 | N° 18868 
CARPINEJAR

Perigosa falta de palavras

Não deixe que a outra pessoa imagine, imaginar não é conversar.

Imaginar é quando não há conversa. Imaginar é desistir da conversa.

Todas as vezes em que sofri na vida, desde a separação dos pais até namoros rompidos, foi em função de algo que não foi dito e tive que imaginar o que aconteceu de errado. Não recebi as informações para aliviar a minha dor, a minha dor permaneceu burra, forçada a deduzir as respostas. Uma dor bem informada para de sofrer pois entende melhor a realidade.

Poderia alcançar sozinho a solução do problema, mas jamais contaria com a confirmação de que pensei certo. O engano é preencher as lacunas com os próprios medos, é completar a história com os recalques.

Não deixe os seus filhos imaginarem o que vem dentro de seu silêncio, só vai atrapalhar a pureza da relação. Quem imagina é capaz de ir para outro caminho e depois será tarde e cansativo chamar de volta.

Não deixe que a sua esposa ou seu marido imagine o que está passando pelo seu coração, a angústia é não ser útil nem para ajudar.

Não subestime o entendimento de sua companhia. Não falar é menosprezar o conselho. Dramas aumentam com a incompreensão.

Seja didático, seja direto e diga com todas as palavras, ainda que sejam provisórias, para evitar desconfianças e suspeitas.

Quando alguém confessa “eu imagino”, desfaça a confusão enquanto é tempo.

Imaginar é solidão, intimidade vai além: é explicar o que estamos sentindo. O que estamos sentindo unicamente será verdade quando é partilhado. Versões não são verdades, são suposições. Por hipóteses, sacrificam-se relações honestas.


10 de junho de 2017 | N° 18868 
PIANGERS

Faça um pedido


Tínhamos um acordo aqui em casa de nunca brigar na frente das meninas e nunca ameaçar separação quando não estávamos realmente dispostos a pedir o divórcio. Rompimento é uma coisa muito séria pra você usar levianamente. Resultou em duas coisas: quando discutimos nossa separação, há alguns anos, sabíamos que a coisa era séria (que bom que não tão séria, ainda estamos juntos); e, em segundo lugar, sempre que falamos um pouco mais alto um com o outro, nossas filhas acham que estamos brigando.

A mais nova não aceita nem que a gente discuta roteiro de filme, já vai dizendo: “Parem de brigar”. A mais velha fica só analisando a conversa e dizendo: “A mamãe tá certa” ou “O papai tá certo”. É uma juíza de 12 anos, tentando encerrar qualquer discussão. No fundo, as duas já sabem que existe separação entre pais, não sabem bem como as pessoas chegam a esse ponto, mas sabem que existe e não querem que aconteça conosco. Sempre que assopra uma vela ou vê uma estrela cadente, minha filha deseja a mesma coisa: “Que nossa família nunca se separe”.

Acredito que as crianças lidam bem com separações se os pais forem maduros e amigos, mas, em outros casos, um rompimento deixa marcas. Nos separamos por orgulho ou raiva, por erros e mágoas, porque achamos que tem algo melhor. Mas talvez o algo melhor seja essa mesma pessoa, com os ajustes necessários. Quando algo estraga lá em casa, a gente não joga fora. A gente arruma.

Esses dias, estávamos todos no carro. Fazemos brincadeiras que, tenho certeza, vou sentir falta quando elas crescerem. Contamos carros de outras cores; citamos um país com cada letra do alfabeto; falamos uma palavra e os outros têm que adivinhar que música tem aquela palavra. 

A Aurora disse que queria ter filhos, mas só depois que soubesse todas as músicas do mundo. Rimos. Quando estamos juntos, não precisamos de nada mais. Eu agradeço por termos passado por todas as dificuldades, por estarmos ali reunidos fazendo coisas desimportantes. Pela vida ser boba e sem propósito. E, especialmente, por todas as velas e estrelas cadentes.



10 de junho de 2017 | N° 18868 
L.F. VERISSIMO

Cigarreira


Ainda existe cigarro de chocolate? Quando eu era criança, não lembro mais em que século, compravam-se cigarros iguais aos de verdade, em maços, com chocolate dentro em vez de fumo. Eles também serviam para a gente brincar de adulto. 

Antes de comê-los, “fumávamos” os cigarros, gesticulando com eles como gente grande, dizendo coisas pseudoimportantes e tragando e expelindo fumaça imaginária. Nada era mais invejável nos adultos do que a liberdade para fumar e sonhávamos com o dia em que poderíamos assumir todas as poses de fumantes, mas fumando de verdade.

Tinha um ritual de fumantes que me fascinava. O homem tirava uma cigarreira – lembra cigarreira? – do bolso de dentro do paletó, abria a cigarreira, escolhia um dos cigarros enfileirados, fechava a cigarreira com um sofisticado clic, depois batia com a ponta do cigarro no tampo da cigarreira, antes de guardá-la, colocar a ponta compactada do cigarro nos lábios e buscar o isqueiro em outro bolso do paletó. No dia em que eu pudesse fazer aquele pequeno teatro com naturalidade, eu seria um homem e, mais do que isso, um homem autossuficiente e elegante, um homem de dar inveja.

Outro gesto muito adulto era, segurando o cigarro entre o dedo indicador e o médio, usar o anular e o polegar para catar um fragmento de fumo na língua. Este eu imitava depois de cada tragada nos meus cigarros de chocolate.

Um dia, decidi que não ia esperar crescer para ficar adulto. Roubei um cigarro da minha mãe, peguei fósforos e fui para o fundo do quintal. Bati com a ponta do cigarro na caixa de fósforos. Acendi o cigarro. Traguei. 

Me sentia um ator de cinema (naquele tempo se fumava muito nos filmes), um Tyrone Power depois de acender o da moça, um Humphrey Bogart depois da briga. Mas a pose não durou muito. Foi interrompida por um acesso de tosse. Era horrível, encher a boca de fumaça daquele jeito. Nunca mais botei um cigarro na boca. Nem de chocolate.

Mas sei não. Às vezes, penso que faltou uma cigarreira na minha vida.