sábado, 30 de maio de 2009



31 de maio de 2009
N° 15986 - MARTHA MEDEIROS


Nem pensar

Em Divã, ainda em cartaz nos cinemas, há uma cena que não existe no livro em que o filme foi inspirado. É uma cena em que a personagem de Lilia Cabral, desbundada com o caso amoroso que está tendo com um homem mais novo, experimenta um baseado pela primeira e única vez.

O cinema vem abaixo: o público se mata de tanto rir. A cena é realmente engraçada e quase infantil. Naquele momento, a maioria dos espectadores deve lembrar de ter passado por algo parecido: um ato de transgressão que não levou a nada, foi só uma brincadeira, um “ver qual é”.

Hoje sabe-se que o “ver qual é” tem consequências trágicas quando a droga em questão é o crack. Segundo especialistas, basta consumir uma ou duas vezes para que você deixe de ser dono da sua vontade. Você perde para o vício no primeiro minuto de jogo, e sua vida termina bem antes do tempo regulamentar. Num estalar de dedos, você já era.

Isso que estou escrevendo vai ser repetido exaustivamente daqui pra frente: está começando uma guerra contra o crack aqui no sul. Uma guerra necessária, diferente das outras: uma guerra para evitar mortos. Cerca de 10 anos atrás, nosso Estado não tinha um único caso de vício em crack. Hoje, já são 50 mil. A projeção é de que nos próximos dois anos haja 300 mil viciados. Sem recuperação. O crack não dá uma segunda chance. Não se trata de uma viagenzinha alucinatória – ele arrebenta com a sua cabeça.

As palavras soam dramáticas, alarmistas, mas o que se quer é que esse número atual de 50 mil reféns do crack não aumente como está previsto, e a única maneira de evitar um tsunami social é apelar para a prevenção, e prevenção significa não chegar perto. Nem de brincadeira, nem uma vez só. Podemos nos autoafirmar através de maneiras mais saudáveis.

Uma crônica não salva a vida de ninguém, uma campanha publicitária não muda sozinha a sociedade, uma empresa de comunicação não pode impedir que um criminoso ofereça uma droga barata a você ou aos seus filhos e tranforme a todos em zumbis que vão querer mais, mais e mais. Só quem pode frear essa epidemia é o usuário em potencial – basta que não seja usuário nunca.

Vesti essa camiseta porque, mesmo que o mundo jamais venha a ser um lugar idílico, alguma esperança temos que ter.

Nosso Estado, tão orgulhoso do seu nível cultural, tão orgulhoso da sua natureza, tão orgulhoso do seu Inter e Grêmio, tão orgulhoso do Erico e Luis Fernando Verissimo, da Lya Luft, do Vitor Ramil, do Nei Lisboa, da Eva Sopher, do Mario Quintana, dos Fagundes, do Xico Stockinger, do Iberê Camargo, tão orgulhoso dos nossos talentos e cabeças pensantes, precisa se orgulhar também dos gaúchos anônimos que possuem o brio de dizer: crack, nem pensar.

Que o seu domingo ainda que com chuva tenha muita luz e seja super lindo minha amiga.

Cristiane Segatto, Ivan Martins, Andres Vera, Marcela Buscato e Mariana Sanches

"Dói internar um filho. Às vezes não há outro jeito"

O poeta Ferreira Gullar, pai de dois esquizofrênicos, levanta uma das maiores controvérsias da psiquiatria: o que fazer com doentes mentais em estado grave?

Quando o escritor Ferreira Gullar publicou em 1999 o poema “Internação” (leia ao lado), já era um veterano na convivência com doentes mentais. Quem fez a observação sobre o vento foi Paulo, seu filho mais velho, que hoje tem 50 anos.

Ele sofre de esquizofrenia, doença caracterizada, entre outras coisas, por dificuldade em distinguir o real do imaginado. Desde os anos 70, Gullar tenta administrar a moléstia. Fazia o mesmo com Marcos, o filho dois anos mais jovem, que também tinha esquizofrenia e morreu de cirrose hepática em 1992.

Remédios modernos permitem que pessoas como Paulo passem longos períodos em estado praticamente normal. Sem alucinações, sem agitação, sem agressividade. Mas o tratamento só funciona se o doente tomar os medicamentos antipsicóticos todos os dias e na dose certa. Isso nem sempre acontece. O resultado são os surtos, quando o paciente se torna quase incontrolável.

Pode cometer suicídio ou agredir quem está por perto. Nesses momentos, esses doentes costumam precisar de internação. “Dói ter de internar um filho”, diz Gullar, hoje com 78 anos. “Às vezes, não há outro jeito.”

No Brasil, estima-se que haja 17 milhões de pessoas com algum transtorno mental grave – como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo. Em algum momento, eles podem precisar de um hospital psiquiátrico. Encontrar uma vaga, porém, tornou-se uma tarefa difícil.

Nos últimos 20 anos, quase 70% dos leitos psiquiátricos do país foram fechados. Sem conseguir quem os ajude a cuidar dos doentes, pais e irmãos afirmam ter várias dimensões de sua vida pessoal comprometidas, dos compromissos de trabalho às amizades.

É o que revela uma pesquisa feita em 2006 em Minas Gerais com 150 famílias com pessoas atendidas nos Centros de Referência em Saúde Mental. Em muitos casos, os doentes em surto fogem sem deixar rastro.

Podem acabar embaixo dos viadutos. O aumento da população de rua nas grandes cidades não é fruto exclusivo da desigualdade social. Uma pesquisa feita em 1999 com moradores de rua em Juiz de Fora conclui que 10% deles eram psicóticos sem assistência.

“As famílias, principalmente as que não têm recursos, não têm mais onde pôr seus filhos”, diz Gullar. “Eles viram mendigos loucos, mendigos delirantes que podem agredir alguém.

O Ministério da Saúde tem de olhar para isso.” Gullar decidiu expor publicamente um problema que não é só seu. Nas últimas semanas, escreveu três artigos sobre o assunto em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo. “Não pretendo liderar movimento algum. Sou um cidadão que tem uma tribuna e pode falar sobre o que está errado.”

Ele afirmou, no primeiro texto, que a campanha contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia. Foi o suficiente para fazer eclodir uma controvérsia latente.

Nos dias seguintes, dezenas de leitores enviaram cartas ao jornal. Representavam dois grupos. O primeiro, em apoio a Gullar, aponta as razões fisiológicas da doença mental e considera que a internação é um instrumento necessário nos momentos de surto.

O segundo, contra ele, afirma que os doentes devem ser atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Nesses locais, o paciente recebe medicação e acompanhamento semanal. A ideia é atendê-lo sem retirá-lo do convívio da família e da comunidade. Para esse grupo, mesmo nos momentos de crise, o doente deve ser atendido nos Caps.

Ele passaria alguns dias internado na própria instituição (ou em hospitais comuns, com alas psiquiátricas) e depois voltaria para casa. “O hospital é um lugar de isolamento, funciona como uma prisão.

As pessoas vão e não voltam”, diz Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia. “Algumas famílias querem que a pessoa fique internada. É a ideia da instituição como depósito.”

Gullar se ofende com comentários como esse, que ouve desde o final dos anos 80, quando a reforma psiquiátrica que levou à situação atual começou a ser discutida no Brasil.

“Essas pessoas não sabem o que é conviver com esquizofrênicos, que muitas vezes ameaçam se matar ou matar alguém. Elas têm a audácia de fingir que amam mais a meus filhos do que eu.”

Lya Luft

É o fim do mundo

"Se a menininha da televisão puder voltar a ser criança, os bugios forem deixados em paz, os gordinhos não se sentirem os últimos da face da Terra, quem sabe o fim do mundo ainda demore um pouco para chegar"

Fui uma das primeiras meninas a usar calças jeans na minha pequena cidade. Uma de minhas avós, luterana fervorosa, embora fosse uma mulher culta, exclamou: "Isso é o fim do mundo!". Nem o mundo acabou nem deixaram de acontecer coisas bem mais esquisitas, a me recordar aquele episódio, que na hora achei muito engraçado.

Ilustração Atômica Studio

Lembro-me dessa expressão com certa frequência. Por exemplo, quando uma criança de 6 anos serviu de atração num programa de TV, eventualmente chorando de medo, nervosismo ou cansaço. Ninguém interveio logo. Se levassem a um programa desses, semana após semana, um filhote de cachorro para fazer gracinhas, as sociedades protetoras dos animais já estariam reclamando. (Quem cuida dos humanos?) Finalmente, uma promotora impediu a criança de exercer esse "trabalho". Parabéns – e que não haja recurso.

Lembro-me de minha avó espantada quando assisto ao sofrimento de mulheres magras, muito magras, constantemente lutando para perder mais uns gramas, olhos ávidos da eterna dieta, sorriso forçado de automutiladoras. Para alegria de quem sempre foi fora do esquadro, leio (eu já sabia) que alguns já arriscam dizer que se pode ser saudável e feliz com algum sobrepeso.

Não precisamos nos odiar, mas ser naturais, ser quem nos fez a mãe natureza. Porém, a nova onda é a gente se torturar, por falta ou excesso: a bunda pequena, o nariz grande, a barriga balofa, os peitos caídos, os bíceps insuficientes (o ralo QI não preocupa tanto). Aí nos matamos de fome, ou ostentamos um novo nariz estranho à estrutura do rosto em que foi metido, damos uma lipinho de presente de 14 anos a nossa filha.

Nós mal conseguimos falar, com uma boca ginecológica, nada sensual. Um terço do nosso dia transcorremos suando e sofrendo muito além do recomendado em academias: não para ser saudáveis, mas para estar em forma, enquanto a alma passa uma fome danada e o tempo passa, a vida encolhe, nós nos desperdiçamos perseguindo modelos impossíveis e burros.

Minha avó acharia que o mundo está por acabar diante da confusão entre pessoa pública e propriedade do público: agora o normal é querer que o outro baixe até as calças da alma e mostre as feridas. Algumas chamadas celebridades parecem forçadas a anunciar o que fazem na cama, e com quem. Elas nem são "vistas" na rua, são "flagradas": o seu mero existir já é suspeito.

O mundo vai acabar, diria minha severa avó luterana, vendo que a política se troca por politicagem, o jogo de interesses infinitamente acima do bem do povo, a calúnia como ferramenta geral. Gente atirada como bicho (bicho, não, aí viria a defesa dos animais!) em pseudo-hospitais é fato menos comentado do que mosquitos, que podem trazer febre amarela (por isso pessoas assustadas e ignorantes matam saudáveis bugios no interior).

Meu amigo atropelou um simpático tatu e quase pegou cadeia; se matasse uma pessoa, sendo réu primário aguardaria em liberdade. Viva o tatu. Abaixo as pessoas. Também se comenta que moradores de rua e pseudocolonos vão ganhar Bolsa Família. Quem ainda vai querer pegar na enxada ou lavar o chão de uma casinha?

O mais novo anúncio do fim do mundo pode ser a recomendação de fazermos xixi no banho. É questão ambiental? Enquanto for só xixi que nos recomendam, estamos salvos.

Sou a favor de um ambientalismo sensato, que harmonize o convívio entre natureza e humanos, não dê mais atenção a baleias do que a crianças e aceite o progresso, fomente a educação e a higiene. A gente passa anos ensinando aos filhos: não façam xixi no banho nem na piscina. Xixi no chuveiro (e na banheira também?), sinto muito: aqui em casa, não.

Nesse cenário de absurdos, às vezes falta o botão para trocar de canal. Mas, se a menininha da televisão puder voltar a ser criança, os bugios da minha mata forem deixados em paz, os gordinhos não se sentirem os últimos da face da Terra, a gente não for multada por fazer xixi no vaso, quem sabe o fim do mundo ainda demore um pouco para chegar.

Lya Luft é escritora

Juliana Arini

40% do Pantanal já foi embora

Um estudo inédito mostra como a cana, o gado e a mineração estão acabando com o frágil equilíbrio que sustenta a região. Dá para salvar este paraíso?



CORES NATURAIS

Lagoas da planície do Pantanal unem beleza e diversidade biológica. Mas as jazidas minerais no subsolo criaram uma corrida à regiãoDesde a virada do século se discute qual seria a dimensão do estrago ambiental na região do Pantanal. Que há problemas, ninguém duvida.

Mas alguns produtores rurais diziam que o problema era pontual, próximo das regiões densamente povoadas. Alguns ambientalistas, ao contrário, alardeavam que 70% da região já estava comprometida. Um estudo ainda inédito, revelado com exclusividade a ÉPOCA, mostra o verdadeiro tamanho do problema: já perdemos 40% da cobertura vegetal da região.

É um índice preocupante. O que sustenta a beleza e a diversidade biológica extraordinárias do Pantanal é um equilíbrio frágil entre períodos de cheia e de seca. Esse equilíbrio está ameaçado pela expansão da pecuária e pela produção de carvão vegetal para siderúrgicas.

O mapeamento foi feito por cinco entidades ambientalistas – WWF-Brasil, SOS Mata Atlântica, Conservação Internacional, Avina e Ecoa. A conclusão: embora a planície esteja bem preservada, com 85% de sua vegetação intacta, a região das terras altas já tem 58% das matas comprometidas.

Nesses planaltos estão as cabeceiras dos rios responsáveis pelos ciclos de cheias que tornam o Pantanal a maior área alagada do mundo. Essas inundações são fundamentais para manter a biodiversidade da região – suas 263 espécies de peixes, 122 de mamíferos, 93 de répteis e 656 de aves, além de 1.132 espécies de borboletas catalogadas.

A ampliação de pastagens é uma das principais causas do desmatamento no Pantanal. Nos últimos seis anos foram abertos 12.000 quilômetros quadrados de novos pastos na região, o equivalente a dez municípios do Rio de Janeiro.

O processo deve se acelerar. “Só em Mato Grosso do Sul existem 22 milhões de cabeças de gado, que crescem a cada ano e são a base da economia local”, diz o engenheiro ambiental Michael Becker, do WWF-Brasil, um dos coordenadores do mapeamento.

Além de aumentar, o rebanho está migrando para uma área menos adequada. Antes, a pecuária se concentrava nos campos naturais da região de planície, a área alagável do Pantanal. Agora, os rebanhos estão seguindo para as partes altas, onde a vegetação natural precisa ser derrubada para a formação de pastagens. O que empurra o gado é o crescimento do cultivo de cana-de-açúcar nas planícies pantaneiras nos períodos de seca.

Esse estudo da vegetação se junta a outro, do Coppe (centro de pesquisa de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), que fez um diagnóstico de uma área crítica do Pantanal, um conjunto de morros perto de Corumbá, em Mato Grosso do Sul.

A região, conhecida como a Morraria de Urucum, tem montanhas de até 1.000 metros de altitude e guarda a terceira maior jazida de minério de ferro e manganês do país. A riqueza mineral atraiu dezenas de mineradoras e siderúrgicas nos últimos dez anos.

Se causam alarme por revelar uma devastação bem maior do que se esperava, esses dois estudos também trazem esperança. Agora que se sabe onde está a devastação, e como ela se espalha, é possível criar mecanismos e políticas públicas para combatê- -la.

Segundo o levantamento do Coppe, um dos primeiros impactos da mineração é a redução na quantidade de água. Dois rios da região de Maria Coelho, em Corumbá, já teriam praticamente secado.

“Não podemos afirmar que esse esgotamento foi todo gerado pelas empresas, pois a população também faz uso indevido da água e canalizações irregulares nos córregos”, diz Ricardo Melo, promotor do meio ambiente de Corumbá. “Mas estimamos que 70% do problema é causado pela mineração.

E agora sabemos o que as empresas podem fazer para reduzir seu impacto.” Melo afirma que as empresas vão ter de criar um ponto de captação de água diretamente no Rio Paraguai, que tem uma vazão maior, e prestar conta sobre o volume de água que consomem.

“Temos de aproveitar que, com a crise econômica, as empresas estão com suas atividades parcialmente suspensas para colocar em prática esses mecanismos de regulação”, afirma. “Assim, quando a demanda do ferro voltar a crescer, poderemos evitar o pior.”

A queima de vegetação nativa para a fabricação de carvão foi a segunda ameaça revelada pelo estudo. Esse carvão teria como destino a produção de ferro-gusa, principal matéria do aço.

Uma das surpresas foi constatar que 70% desse carvão seria vendido às empresas de Minas Gerais, e não para as siderúrgicas de Mato Grosso do Sul, como se acreditava.

“Precisamos descobrir como evitar que o Pantanal seja destruído para um fim tão pouco promissor como a produção de carvão. Estamos literalmente queimando biodiversidade, sendo que já existem opções de combustíveis mais sustentáveis para fabricar ferro-gusa”, diz Alcides Faria, diretor da ONG Ecoa (Ecologia e Ação), de Campo Grande.


30 de maio de 2009
N° 15985 - NILSON SOUZA


Labirinto de ilusões

Vou abordar hoje um tema pesado para os padrões deste caderno de amenidades, mas, como diz a mensagem televisiva, não tire as crianças da sala, por favor. Desde a última quinta-feira, estamos todos engajados numa árdua missão: trabalhar incansavelmente para interromper uma terrível epidemia que assola o nosso Estado e uma parte expressiva do país.

Refiro-me ao surto nacional de consumo de crack, uma droga letal que transforma seres humanos em zumbis descerebrados e a realidade de muitas famílias num verdadeiro filme de terror.

Mesmo para nós, que lidamos diariamente com as anomalias da vida no nosso ofício de informar, é estarrecedor constatar a frequência de tragédias familiares que eram raras até pouco tempo atrás. Não passa semana sem que um adolescente apareça acorrentado dentro de sua própria casa, na tentativa desesperada dos pais de mantê-lo afastado do vício.

Outro dia, uma mãe confessou ter matado o filho numa reação às agressões sucessivas que vinha sofrendo por parte do jovem. Se isso ocorre nos lares, na rua é muito pior: traficantes mutilam e executam dependentes endividados, lutam entre si pelos pontos de venda das drogas, matam e morrem por qualquer trocado.

Ninguém escapa dessa insanidade dos tempos modernos. Enfeitiçados pela pedra, crianças, jovens e adultos perambulam como mortos-vivos pelos desvãos escuros das cidades, habitam sarjetas, dormem sob pontes e marquises, reúnem-se em confrarias de desesperançados. São escravos da fumaça tóxica que lhes degrada o corpo e o cérebro.

A droga também está na origem dos achaques nas esquinas, dos assaltos e dos roubos, da violência indiscriminada que atinge a todos indiscriminadamente. Somos todos personagens deste filme de terror, tristemente real, que parece não ter fim.

Mas haverá de ter.

Neste momento, estamos todos sendo convocados para uma luta de libertação, destinada a interromper este ciclo vicioso de desgraças. O inimigo é forte, poderoso, cruel. Mas a causa é justa. E cada um de nós pode contribuir com a arma de que dispuser neste combate. Pode ser uma ideia, pode ser uma iniciativa, pode ser uma ação, pode ser apenas um grito de alerta.

Chegou a hora de dizer não ao engodo do prazer artificial, chegou a hora de exorcizar esta maldição de nossas vidas e do futuro das pessoas que amamos. Temos que encontrar a saída deste terrível labirinto de ilusões que já aprisionou tantas almas.

Uma ótimo sábado e um lindo fim de semana, especialmente para vc minha amiga.


30 de maio de 2009
N° 15985 - CLÁUDIA LAITANO


Perigo real e imediato

“As relações sociais são inteiramente interligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens modificam o seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, modificam todas as relações sociais.”

Com essa frase, escrita há mais de 150 anos, Marx sintetiza a tese central do materialismo histórico: o destino das pessoas é determinado, em grande parte, por fatos econômicos. Movida por outros ideais e em ritmo de musical da Broadway, uma canção celebrizada por Liza Minnelli daria mais ou menos o mesmo recado: “Money makes the world go round”.

E se o dinheiro faz girar o mundo, seguir sua trilha ajuda a entender algumas coisas. (Um professor meu de jornalismo, um velhinho espanhol com mais anos de imprensa do que eu tenho de vida, costumava ensinar aos jovens repórteres que, cobrindo qualquer assunto, a primeira pergunta a se fazer é sempre a mesma: quem (e como) está lucrando com isso.)

Por trás da explosão do crack no Brasil nos últimos 10 anos, a princípio na periferia e mais recentemente também na classe média urbana e em cidades do Interior, existe um fato econômico. Maconha e cocaína dão dinheiro, mas não tão rapidamente quanto o crack.

Como a pedra tem um poder de vício muito maior do que a maconha ou a cocaína, quem compra e consome não volta para casa para repetir a dose na semana seguinte: quem experimenta sempre vai dar um jeito de continuar comprando, até o corpo (e o bolso) chegarem ao limite – e ainda depois.

Em média, um papelote de cocaína custa cerca de R$ 20, enquanto uma pedra de crack sai por R$ 5. Um usuário de cocaína pode consumir em uma noite dois ou três papelotes, mas muitos dependentes do crack relatam fazer uso médio de 15 a 20 pedras por dia.

É só fazer as contas. A estrutura para comércio, transporte e armazenamento também é mais simples, e a base consumidora não se restringe a uma única classe social – do desembargador ao menino de rua, todo mundo é cliente em potencial. É tão fácil vender crack quanto DVD de filme pirata.

Do lado de quem consome, a engrenagem econômica também precisa funcionar. Depois de gastar o que tem e o que consegue tirar da família, a alternativa dos usuários são a criminalidade e a prostituição.

É aqui que quem nunca experimentou crack também se torna uma vítima em potencial da droga: toda vez que alguém é assaltado ou morto pelos R$ 5 que vão virar fumaça na próxima esquina, o crack faz mais uma vítima que não entra para as estatísticas oficiais da droga – que já são suficientemente assustadoras, dando ao problema ares de epidemia.

Esse mercado só não é perfeito do ponto de vista do traficante porque o consumidor de crack se torna uma vítima tão vulnerável à violência e a decrepitude física que ninguém sobrevive muito tempo ao vício.

É preciso, portanto, fazer novos clientes, espalhar o desejo de experimentar, “alargar a base de demanda” – como em qualquer negócio que quer se manter lucrativo.

Se deixarmos esse empreendimento livre para se expandir, ele vai continuar crescendo – como qualquer mercado onde há oferta e demanda. É por isso que a campanha “Crack, Nem Pensar”, lançada esta semana em todos os veículos da RBS, é tão oportuna.

Está mais do que na hora de encarar o tamanho do problema. A epidemia do crack é uma ameaça real e imediata – e pode nos apanhar, distraídos, na esquina da nossa casa. Crack, é hora de pensar.

quarta-feira, 27 de maio de 2009



27 de maio de 2009
N° 15982 - MARTHA MEDEIROS


A era do compacto

Estava num avião, voando do Rio para Porto Alegre. Ao meu lado, um casal. Ele lia Retrato em Sépia, de Isabel Allende. No finalzinho da viagem, fechou o livro e fez o seguinte comentário pra esposa: “Por mim, os livros não precisariam ter este número tão grande de páginas, um resumo da história estaria mais do que bom”.

Há quem escolha o livro pelo número de páginas. Se tiver mais que 200, não chega nem perto. Livrão: taí uma coisa que não me inibe. É bem verdade que um tijolaço não é lá muito agradável de segurar, mas nada impede que seja devorado com prazer. No entanto, é uma exceção que abro para a literatura. Para quase todo o resto, sou fã dos compactos.

Cinema, por exemplo. Não entendo por que esta mania agora de filme com três horas de duração. Dá pra imaginar o Woody Allen precisando de três horas para dar seu recado?

Era tão bom quando os filmes duravam no máximo duas horas. Sessões às 14h, 16h, 18h, 20h. Agora as sessões começam nos horários mais esdrúxulos: 14h10hmin, 17h25min, 20h50min. E o troço não acaba nunca.

Peça de teatro, nem me fale. Deveria ser lei: não durar mais do que 90 minutos – que o Zé Celso Martinez Correa não me ouça. Gosto muito de teatro, mas também gosto muito de jantar. Em tempo: tampouco gosto de me estender demais nos restaurantes. Não gosto de me estender em festas.

Não gosto de me estender demais fora da minha casa e fora da minha rotina. Não gosto de nada que extrapole o tempo regulamentar do meu humor e da minha capacidade de simpatia.

Reconheço que nada do que estou dizendo é digno de aplauso. Manda a etiqueta não se apressar, usufruir de tudo com calma, dar tempo para que as coisas se desenvolvam. Na teoria, concordo. Na prática, sou menos paciente. Não lido bem com situações que se arrastam, com falta de objetividade, com rodeios.

Fico nervosa com gente que fala muito pausadamente e leva 10 minutos pra dizer o que poderia ser dito em três. Pessoas que perdem horas ao telefone sem chegar logo ao ponto.

Música que repete à exaustão o estribilho – eu cortaria uns quatro “lá lá lá lá, hey, Jude...” no final da música homônima dos Beatles. Que heresia: sobrou até para os Beatles.

E o que dizer de um palestrante que ama a própria voz? E e-mails do tamanho de teses de mestrado? E teses de mestrado? E novelas? Alguém me explica por que ainda fazem novelas que duram oito meses?

Estou dando a impressão de que fui abduzida por esse mundo que não enaltece o prazer, que não se entrega à reflexão, que não curte as travessias. Mas a verdade é que eu ainda me regalo com prazeres, reflexões e travessias, sem achar que para isso seja necessário que elas me esgotem, que me obriguem a chegar à outra margem sem fôlego.

Para provar que não sou um caso totalmente perdido, algumas coisas ainda aprecio que sejam longas, como amizades, caminhadas, conversas em volta da mesa, nosso tempo de vida... E relações sexuais, claro.

Já sexo tântrico é outro exagero. Cinco horas pra atingir o orgasmo? Esse pessoal não tem que trabalhar no dia seguinte?

Dia Internacional do Sofá - Aproveite - Que tenhamos todos uma ótima quarta-feira e para você minha amiga que ela possa ser iluminada.

sábado, 23 de maio de 2009



24 de maio de 2009
N° 15979 - MARTHA MEDEIROS


A sedução da pilantragem

O documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei pode ser avaliado sob diversos aspectos. O sentimental deixarei para o final do texto. Prefiro começar por um aspecto menos relevante, ainda que também relevante: o deslumbramento diante do sucesso.

Simonal, que tinha uma origem humilde, se comportou como outros tantos que, impressionados com a fama súbita, desfilam com o maior número de carros e loiras que possam colecionar. O deslumbramento é sempre patético.

Demonstra total despreparo psicológico e desconhecimento sobre a montanha-russa que é a vida. Simonal deixou seu ego inflar e cometeu uma brutalidade que lhe custou a imagem pública: imaginando-se roubado pelo seu contador, contratou dois capangas para dar uma surra no cara, e ainda pecou pela soberba ao alegar, na delegacia, que era “amigo dos homi”, ou seja, blefou que era de direita em plena ditadura militar. Ingênuo, acreditando que sairia ileso desse carteiraço verbal, pagou com um boicote da classe artística que nunca imaginou sofrer.

Depois da overdose de aplausos, viveu sua overdose de ostracismo. Nunca mais foi convidado a mostrar o rosto em lugar nenhum, e muito menos sua voz. Morreu no limbo.

O outro aspecto incômodo do filme é o papel da imprensa, que não titubeou em expandir o boato de que o cantor era um dedo-duro a serviço do DOPS, fabricando assim um Judas perfeito para a primeira página.

Era uma época radical em que você precisava escolher de que lado estava, e se fosse o lado de lá - o dos milicos - não tinha papo. Se o governo torturava com pau-de-arara, os veículos de comunicação, sufocados pela censura e não podendo falar a favor dos “seus”, torturavam os “deles” com o único instrumento que possuíam: o desprezo absoluto, que foi o que sobrou para o cantor. Tudo era primitivo e emocional, o que sempre resulta em um flerte com a injustiça.

Afora essas reflexões, que logicamente são importantes, o que me encantou pra valer no documentário foi a chance de fazer uma deliciosa e nostálgica viagem no tempo.

Eu era criança e cantarolava Meu Limão, Meu Limoeiro pela casa, enquanto ouvia boquiaberta meus pais contarem que haviam visto Simonal num show ao vivo, e que ficaram rendidos pelo balanço daquele que chegou a fazer duo com nada menos que Sarah Vaughan. Ele tinha lugar de honra na nossa discoteca familiar e hoje entendo melhor a razão. O homem era puro suingue e personalidade.

Aquele tipo de sujeito que a gente ama odiar: bico-doce, folgado, com um pé na cafajestice, ou seja: um sedutor. Um cara que beija sua mão, numa atitude cavalheiresca, mas que no fundo é um debochado, e como todo deboche passa por graça, deixava homens e mulheres com um sorriso bobo no rosto. Tinha feitiço.

Cantava demais, e cantava a todos.

Pena que foi uma história sem final feliz, mas que bom que Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal resgataram esse fenômeno esquecido, dirigindo um documentário que não se propõe a transformar Simonal em anjo póstumo, e sim a homenagear seu endemoniado talento.


23 de maio de 2009
N° 15978 - CLÁUDIA LAITANO


O quadro da normalidade

Quando faltava pouco menos de uma semana para ela completar um ano, o negócio aconteceu. Poderia ter sido um mês antes, ou três meses depois, que tudo continuaria “dentro do quadro da normalidade”, mas foi com uma precisão cronológica espantosa que minha filha começou a andar exatamente conforme as instruções do manual – às vésperas do primeiro aniversário.

Caminhar, mais até do que falar, é uma espécie de inauguração oficial da capacidade humana de explorar e modificar o mundo, uma conquista saudada por todos em volta como um sinal da natureza de que tudo marcha exatamente como foi programado – e a infância é a única época da vida em que os sinais de que a natureza está seguindo seu curso são sempre recebidos com alegria.

(Esta semana, comprei meu primeiro par de óculos para perto, mas ninguém veio me saudar pela presumível conquista de sabedoria e experiência...)

Podemos atribuir a esses pequenos ritos de passagem – os primeiros passos, a primeira menstruação, os primeiros óculos para perto – a carga simbólica e cultural que quisermos, mas a protagonista silenciosa é sempre a natureza, comandante generosa (ou implacável) de boa parte das transformações pelas quais passamos ao longo da vida.

Você visita uma exposição como Corpo Humano (ainda em cartaz em Porto Alegre até a semana que vem) e se surpreende imaginando as milhares de chances que tudo tem para dar errado – quantos vasinhos para entupir, quantos ossinhos para quebrar e tecidos para absorver doenças inimagináveis.

A partir de uma certa idade, convivemos com o corpo como o Japão com suas placas tectônicas: tentamos levar a vida normalmente ignorando que tudo pode virar de cabeça para baixo de uma hora para outra, sem que ninguém tenha a gentileza de nos preparar para o abalo com alguma antecedência.

Talvez seja por isso que tantas culturas celebram o lado previsível da natureza – crianças caminhando perto de um ano, meninas menstruando perto dos 12, meninos mudando a voz por volta dos 13.

Como os primeiros homens que olhavam para o céu sem entender exatamente por que o sol desaparecia e sempre voltava no dia seguinte, celebramos a alegria singela de perceber algumas constantes em meio a um universo inteiro de variáveis imprevisíveis.

O tratamento contra o câncer de Dilma Rousseff tem sido tratado majoritariamente como fato político – e talvez isso seja inevitável, dada a dimensão que a ministra tomou no cenário das eleições de 2010. Mas ninguém que convive ou conviveu com essa doença consegue acompanhar o caso com a frieza de quem abstrai o fator humano dos fatos políticos.

As sessões de quimioterapia, as dores nas pernas, a peruca, o enigmático diagnóstico “dentro do quadro da normalidade”, cada um desses detalhes divulgados sem muita solenidade nas páginas de cobertura política do jornal são pequenos grandes dramas que assumem toda uma outra dimensão para quem já viveu essa história de perto.

Acompanhando a jornada de alguém que luta contra uma doença grave, mesmo que essa pessoa seja uma figura pública, distante de nós, é inevitável nos sentirmos um pouco mais frágeis e pequenos diante da natureza. Como quem assiste pela TV à coreografia furiosa de um tufão.

quarta-feira, 20 de maio de 2009



20 de maio de 2009
N° 15975 - MARTHA MEDEIROS


Don Mario

Era 1993 e eu recém havia desembarcado em Santiago do Chile, onde iria morar. Por casualidade, cheguei na mesma semana em que se iniciava a Feira do Livro, localizada numa antiga estação de trens.

Fui para a Feira sem saber o que procurar. Zanzava sozinha pelos corredores quando de repente percebi uma movimentação: alguém importante chegara, e a multidão não se continha. Aplausos, flashes, autógrafos. Me aproximei. Era Mario Benedetti.

O que eu conhecia da obra do autor uruguaio era insuficiente para entender a razão daquele agito. Mas, como eu não procurava por nada específico, aproveitei e comprei alguns livros de poemas daquele senhor que estava sendo homenageado a poucos metros de mim. Pensei: vai ser bom para eu aprender espanhol.

Foi bom para aprender tudo.

Aprender o quanto um único verso pode provocar uma emoção intensa, o quanto a poesia engajada pode falar em nome de todo um povo, o quanto a poesia de amor comove até aqueles que não amam, o quanto a calidez e a simplicidade comunicam, o quanto não é preciso ser rebuscado para ser respeitado, o quanto Drummond estava certo quando disse que é mais importante ser eterno do que moderno.

Daquele ano em diante, devorei tudo dele que me caiu em mãos, e sei que, apesar de eu possuir algumas antologias de sua obra, esse tudo ainda é pouco – foram 88 anos de vasta produção.

De sua ficção, destaco Gracias por el Fuego (a edição brasileira mantém o título em espanhol) e A Trégua, um relato escrito em forma de diário por um senhor de quase 50 anos em vias de se aposentar – na época em que foi escrito, era o retrato de um matusalém.

Hoje, aos 50 anos, os homens ainda surfam. Mas certas coisas não mudam, como o fato de o personagem, um funcionário público de rotina medíocre, solitário, sem maiores planos a não ser o de aguardar o repouso definitivo, se apaixonar quando menos esperava. Não é um tema novo, mas os autores verdadeiramente talentosos não precisam de temas novos.

Mario Benedetti faleceu anteontem, provavelmente aceitando o destino que lhe coube no tempo razoável de quase nove décadas de vida (a morte nunca é razoável, mas vá lá). Apesar de ter passado por alguns momentos difíceis, como o exílio na época da ditadura militar, e de viver num mundo sem mais lugar para utopias, nunca deixou de ser um homem comprometido com as causas sociais e com o amor por sua esposa, com quem foi casado por mais de 60 anos.

Duvido que algum dia tenha perdido tempo lamentando não ter seguido outro rumo, a julgar pelas palavras do personagem Miguel, do seu livro Quem de Nós, com as quais encerro essa minha homenagem.

“Mas existe verdadeiramente outro rumo? Na verdade, só existe a direção que tomamos. O que poderia ter sido já não conta.”

domingo, 17 de maio de 2009


DANUZA LEÃO

A vida não pode ser fácil

Quem é difícil não suporta a companhia de gente leve, e encontra sempre um tão difícil quanto ele para conviver

POR QUE será que para alguns a vida é tão fácil, tão leve, e para outros tudo é problema, complicação? Existem pessoas que estão gripadas, cheias de febre, e se levantam da cama, mesmo se sentindo péssimas, para ir ao dentista.

Qual seria o problema de desmarcar? Nenhum. Mas elas são exigentes com elas mesmas e, se deram a palavra -mesmo sendo uma simples ida ao dentista-, não podem falhar. Essas pessoas, se são duras com elas mesmas, são também duras com os outros.

Ai de você telefonar às 19 horas para desmarcar aquele jantar combinado na véspera. Jantar que não era nada, apenas um encontro de dois bons amigos que se falam quase todo dia no telefone; por mais que tenha havido um bom motivo, um complicado acha que isso não se faz.

Ele cria expectativas -para o bem e para o mal- que não podem ser frustradas, sob pena de cair em profundo sofrimento. Se um desses complicados programar uma viagem maravilhosa para as ilhas gregas, quando voltar ele vai falar apenas de como é difícil viajar nos dias de hoje, dos aeroportos cheios, da bagagem que demorou a chegar na esteira, e vai se esquecer de contar as coisas maravilhosas que viu, até porque talvez ele não tenha visto nada, apenas olhado, o que não tem nada a ver.

Mesmo boas notícias que não estavam programadas contrariam os viciados em sofrer.

O imprevisto, mesmo -e sobretudo- em se tratando de coisas boas, transtorna certas pessoas; a vida para elas é difícil, dura. Não se pode ser feliz porque o castigo vem depois. Elas adiam qualquer prazer por nada, ou talvez para não terem prazer.

Quando veem alguém com pouco ou nenhum futuro pela frente, um empreguinho de nada, sem perspectivas, tomando uma cerveja e dando não uma, mas várias gargalhadas, elas se sentem quase ofendidas.

E sempre encontram uma outra pessoa para dizer o quanto aquele cara é irresponsável, que depois não se queixe e, sobretudo, que não venha pedir nada, já que vive pensando que a vida é fácil.

O lema deles é esse: "A vida não é fácil". A visão de uma pessoa que acha que a vida pode ser fácil e leve faz mal aos difíceis. Só que a vida ser fácil ou difícil depende, e muito, de como se é. Quem é difícil não suporta a companhia de gente leve, e encontra sempre um tão difícil quanto ele para conviver.

E o que é uma pessoa fácil? É aquela que, se você passar na casa dela na hora do almoço e não tiver nada na geladeira, diz, alegremente, que não tem problema, que em cinco minutos resolve tudo, e pergunta o que você quer: se um pão fresquinho, com um presunto cortado na hora e um guaraná, ou se prefere uns ovos mexidos e uma cerveja.

Mas isso nunca vai acontecer: uma pessoa difícil nunca chega à casa do outro sem avisar, para que o outro nunca, jamais, faça isso com ele, que só de pensar nessa possibilidade já fica estressado; difícil lidar com pessoas difíceis.

Não há quem não tenha uma amigo difícil; eu tenho alguns, e você também deve ter, claro. E o mais inexplicável é que continuo gostando deles, me dando com eles, telefonando para eles, como provavelmente acontece com você. Por que será?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de maio de 2009



17 de maio de 2009
N° 15972 - MARTHA MEDEIROS


Uma alma boa

Recentemente assisti no teatro A Alma Boa de Setsuan, comédia de Bertolt Brecht com a versátil e carismática Denise Fraga no papel principal e direção do premiado Marco Antonio Braz.

Fiquei maravilhada não só com a atuação do elenco e a concepção da peça, mas também com a qualidade da cenografia, do figurino, da luz, da direção musical, enfim, não é uma encenação econômica, daquelas franciscanas em função do baixo orçamento. A Alma Boa de Setsuan não só é um espetáculo bom, como é farto, de encher os olhos.

Há uma certa fartura na duração também – poderia ter 15 minutos menos, mas esse assunto fica para outra crônica: a nossa impaciência atual para com a extensão de certas obras, incluindo também filmes longos, livros enormes, palestras intermináveis. Estamos em plena era do compacto.

Voltando à peça. A história trata sobre a dificuldade de se fazer o bem para si e para os outros ao mesmo tempo.

Eu procuro sempre fazer o bem para mim e para os meus e nunca considerei que isso significasse ser má para os outros. Se estou dentro da lei e não estou tirando nada de outra pessoa, seja algo material ou moral, então não posso me considerar uma egoísta. Ou será que devo?

Supondo que uma ala da minha família fosse composta por pessoas muito porra-loucas, que se metessem em confusões brabíssimas, eu teria duas opções: ficar na minha e manter a paz da minha rotina, ou me envolver com a insanidade alheia, correndo o risco de receber telefonemas, visitas e pedidos estapafúrdios a qualquer hora do dia e da noite, já que teria me disponibilizado para tal.

É só um exemplo. Repare que não falei em emprestar dinheiro, em consolar alguém aflito, em oferecer hospedagem, essas gentilezas que fazemos aos outros sem nenhum prejuízo a nós mesmos (se considerarmos que temos dinheiro, tempo e espaço suficiente para repartir com quem não tem).

Envolver-se é outra coisa. É o verbo que muda tudo. Pois no momento em que você se envolve numa briga, ou se envolve numa disputa judicial, ou se envolve numa campanha política, ou o que for que chame você para o meio do ringue, você estará tomando partido e adeus tranquilidade.

Na hora que nos convocam, temos que optar entre um sim e um não, e sabemos como é difícil dizer não. Não, eu não vou tumultuar a minha vida, os meus negócios, os meus estudos, a minha família, para me envolver com os seus problemas.

Tem de haver uma saída, dizem os atores da peça ao final da apresentação, intimando a plateia a pensar a respeito. Será que nesse mundo individualista é possível se comprometer com o outro sem sacrificar o comprometimento consigo próprio? Ou será que, cuidando da nossa vida sem incomodar ninguém, estamos colaborando o suficiente?

Nosso isolamento pode ser uma forma de dizer “não atrapalhando, já estou ajudando”, mas isso ainda soa como conversa pra boi dormir. Como mudar o mundo, se não abandonarmos um pouco o nosso confortável sofá?

Sempre achei que não fazendo o mal, já estava fazendo o bem. Presto reverência àqueles que vão muito além disso, fazendo o bem de forma muito mais atuante.


Mouse ao alto!

Larápios da internet invadem contas bancárias, vendem produtos que não existem e fazem do Brasil o quarto país do mundo mais contaminado por programas que furtam senhas

Laura Diniz - Montagem sobre fotos de D. Hurst e Imagina Photography/Alamy/Other Images



Aviso aos navegantes: o mar não está para incautos. No oceano em que singra o 1,6 bilhão de usuários da internet, as águas andam tormentosas: como as sereias da mitologia grega, que atraíam para armadilhas os marinheiros seduzidos por seu canto, ladrões aguardam um clique imprudente para invadir contas bancárias, larápios acenam com ofertas tentadoras de produtos que jamais serão entregues e uma infinidade de pragas contagiosas trafega livremente a bordo de e-mails instigantes e arquivos irresistíveis. O resultado disso são números assustadores.

No Brasil, o volume de notificações relacionadas a fraudes, furtos, vírus destruidores, invasões e tentativas de invasão de computador quadruplicou em cinco anos (veja o quadro). No ranking dos crimes eletrônicos que mais crescem, o que atenta contra o patrimônio ocupa o primeiro lugar: só os programas destinados a invadir contas bancárias infectam 195 computadores por hora no país.

Isso significa que a rede virtual é um campo minado e que usá-la para fazer compras ou transações bancárias se tornou um comportamento de risco? Absolutamente, não. Quer dizer apenas que o mundo virtual está mais parecido com o mundo real: em ambos, as ameaças existem. E, em ambos, é preciso se precaver contra elas.

O Brasil é o quarto país mais contaminado por vírus e programas capazes de furtar informações, alterar ou destruir dados dos computadores, segundo relatório divulgado pela Microsoft em abril. Em primeiro lugar estão Sérvia e Montenegro (computados juntos), seguidos por São Tomé e Príncipe e Rússia. Os Estados Unidos, onde o uso da internet é mais disseminado, aparecem no 54º posto. Seriam os brasileiros especialmente ingênuos e desprevenidos?

Pouco familiarizados com a rede é a melhor resposta. Segundo uma pesquisa feita no ano passado pelo Comitê Gestor da Internet, 63% dos 62 milhões de usuários brasileiros não sabem utilizar mecanismos básicos como o de busca – ainda que o nome do mais famoso deles, o Google, seja usado até como verbo ("dar um google": digitar uma palavra no site com o objetivo de encontrar informações relacionadas a ela na rede).

"O conhecimento rudimentar de grande parte dos brasileiros sobre computadores faz com que muitos não tenham a dimensão dos riscos de, por exemplo, abrir e-mails de desconhecidos ou visitar sites não confiá-veis", diz o advogado Spencer Toth Sydow, especialista em direito informático.

Além disso, como a maioria dos usuários não conta com nenhuma orientação na hora de descobrir as possibilidades da rede, o método mais utilizado é o de tentativa e erro. "Isso contribui para que o usuário vá experimentando e clicando sem pensar muito", explica a psicóloga Rosa Maria Farah, responsável pelo Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O uso disseminado de programas piratas no Brasil é outra agravante. Eles tornam os computadores mais vulneráveis a ataques, já que, ao contrário dos programas legais, não são atualizados pelos fabricantes à medida que os criminosos inventam novas formas de infiltração.

Por fim, ajuda a explicar o grande número de vítimas de golpes virtuais a alavanca que move o mais pedestre dos contos do vigário: o desejo da vítima de levar vantagem. Música gratuita, jogos idem e ofertas de produtos a preços incríveis são alguns dos cantos de sereia largamente usados pelos tapeadores.

Zoriah/Zuma Press

ATAQUE REDIRECIONADO



Depois de promoverem uma explosão de invasões de contas bancárias na década de 90, hackers americanos migraram para o ramo das vendas on-line: "Pague e não receba"

Para o bandido, o negócio do crime virtual é fantástico. "É mais fácil e menos arriscado", resume o delegado Carlos Eduardo Sobral, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal. Segundo o policial, nas últimas cinco grandes operações da PF de combate a fraudes bancárias eletrônicas, cerca de 35% dos presos tinham antecedentes por furto ou roubo. Ou seja, os ladrões do mundo real estão migrando alegremente para o mundo virtual.

E por que não, se o envio maciço de um programa que rouba senhas bancárias pode ser suficiente para arrancar milhares de reais de diversas pessoas ao mesmo tempo? O golpe da falsa página bancária é hoje o mais disseminado no Brasil. Ele é responsável por grande parte dos 130 milhões de reais de prejuízo com fraudes pela internet registrados pelos bancos em 2008.

A preocupação dessas instituições com o crescimento dos ataques pode ser medida pelo volume de dinheiro que elas vêm investindo em segurança digital: em 2008, o gasto chegou a 1,5 bilhão de reais, segundo a Federação Brasileira de Bancos. Já é um quinto do total despendido por ano com a segurança física das agências.

No entanto, se a evolução do crime eletrônico no Brasil seguir a mesma trajetória da americana, os bancos poderão em breve respirar mais tranquilos. Segundo o professor Douglas Salane, diretor do Centro de Estudos de Crimes Cibernéticos da Faculdade John Jay de Justiça Criminal, de Nova York, esse tipo de golpe – que começa com um e-mail enganoso e termina com o furto e uso da senha bancária do usuá-rio – diminuiu muito nos Estados Unidos.

"O motivo é elementar: quanto mais as pessoas aprendem a utilizar a rede, mais difícil fica enganá-las", diz Salane.

De acordo com o Centro de Denúncia de Crime Cibernético (IC3), ligado ao FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, golpes bancários pela internet e outros tipos de estelionato eletrônico foram responsáveis por 15% das reclamações em 2001 e apenas 3% em 2008.

Lya Luft

A sordidez humana

"Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós, que ri quando o outro cai na calçada?"

Ando refletindo sobre nossa capacidade para o mal, a sordidez, a humilhação do outro. A tendência para a morte, não para a vida. Para a destruição, não para a criação. Para a mediocridade confortável, não para a audácia e o fervor que podem ser produtivos.

Para a violência demente, não para a conciliação e a humanidade. E vi que isso daria livros e mais livros: se um santo filósofo disse que o ser humano é um anjo montado num porco, eu diria que o porco é desproporcionalmente grande para tal anjo.

Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós (eu não consigo fazer isso, mas nem por essa razão sou santa), que ri quando o outro cai na calçada? Quem é esse que aguarda a gafe alheia para se divertir? Ou se o outro é traído pela pessoa amada ainda aumenta o conto, exagera, e espalha isso aos quatro ventos – talvez correndo para consolar falsamente o atingido?

Ilustração Atômica Studio

O que é essa coisa em nós, que dá mais ouvidos ao comentário maligno do que ao elogio, que sofre com o sucesso alheio e corre para cortar a cabeça de qualquer um, sobretudo próximo, que se destacar um pouco que seja da mediocridade geral?

Quem é essa criatura em nós que não tem partido nem conhece lealdade, que ri dos honrados, debocha dos fiéis, mente e inventa para manchar a honra de alguém que está trabalhando pelo bem? Desgostamos tanto do outro que não lhe admitimos a alegria, algum tipo de sucesso ou reconhecimento?

Quantas vezes ouvimos comentários como: "Ah, sim, ele tem uma mulher carinhosa, mas eu já soube que ele continua muito galinha". Ou: "Ela conseguiu um bom emprego, deve estar saindo com o chefe ou um assessor dele". Mais ainda: "O filho deles passou de primeira no vestibular, mas parece que...". Outras pérolas: "Ela é bem bonita, mas quanto preenchimento, Botox e quanta lipo...".

Detestamos o bem do outro. O porco em nós exulta e sufoca o anjo, quando conseguimos despertar sobre alguém suspeitas e desconfianças, lançar alguma calúnia ou requentar calúnias que já estavam esquecidas: mas como pode o outro se dar bem, ver seu trabalho reconhecido, ter admiração e aplauso, quando nos refocilamos na nossa nulidade? Nada disso! Queremos provocar sangue, cheirar fezes, causar medo, queremos a fogueira.

Não todos nem sempre. Mas que em nós espreita esse monstro inimaginável e poderoso, ou simplesmente medíocre e covarde, como é a maioria de nós, ah!, espreita. Afia as unhas, palita os dentes, sacode o comprido rabo, ajeita os chifres, lustra os cascos e, quando pode, dá seu bote.

Ainda que seja um comentário aparentemente simples e inócuo, uma pequena lembrança pérfida, como dizer "Ah! sim, ele é um médico brilhante, um advogado competente, um político honrado, uma empresária capaz, uma boa mulher, mas eu soube que...", e aí se lança o malcheiroso petardo.

Isso vai bem mais longe do que calúnias e maledicências. Reside e se manifesta explicitamente no assassino que se imola para matar dezenas de inocentes num templo, incluindo entre as vítimas mulheres e crianças... e se dirá que é por idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá em compensação o paraíso para si e seus descendentes.

É o que acontece tanto no ladrão de tênis quanto no violador de meninas, e no rapaz drogado (ou não) que, para roubar 20 reais ou um celular, mata uma jovem grávida ou um estudante mal saído da adolescência, liquida a pauladas um casal de velhinhos, invade casas e extermina famílias inteiras que dormem.

A sordidez e a morte cochilam em nós, e nem todos conseguem domesticar isso. Ninguém me diga que o criminoso agiu apenas movido pelas circunstâncias, de resto é uma boa pessoa. Ninguém me diga que o caluniador é um bom pai, um filho amoroso, um profissional honesto, e apenas exala seu mortal veneno porque busca a verdade.

Ninguém me diga que somos bonzinhos, e só por acaso lançamos o tiro fatal, feito de aço ou expresso em palavras. Ele nasce desse traço de perversão e sordidez que anima o porco, violento ou covarde, e faz chorar o anjo dentro de nós.

Lya Luft é escritora

Reportagem: Mariana Lucena; Edição: Luís Antônio Giron

A volta do Pequeno Príncipe

Livro inédito de Saint-Exupéry revela a paixão do escritor por uma mulher casada no último ano de sua vida e mostra que o escritor tinha muito em comum com seu personagem mais famoso

A volta

"Contos de fadas são a única verdade da vida", diz o escritor Saint-Exupéry

Enquanto o mundo lembrava em mais 80 milhões de exemplares - e em 160 línguas - o amor entre o principezinho de um planeta distante e a sua rosa, uma outra paixão que perpassava esta história ficou esquecida. Recentemente essa história foi contada em O amor do Pequeno Príncipe.

O livro é uma compilação de cartas enviadas pelo autor de O Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry, e uma mulher por quem se apaixonou logo antes de morrer. O episódio só se tornou público em novembro de 2007, por ocasião da venda de diversos documentos do autor que faziam parte da coleção do Museu de Cartas e Manuscritos, em Paris.

As cartas que o escritor e aviador escreveu à sua amada mostram que muito havia em comum entre o autor e seu personagem. As comparações são feitas pelo próprio Exupéry, que assina suas mensagens ilustradas como O Pequeno Príncipe. A correspondência revela um homem que, assim como seu personagem, é sensível, reflexivo e um pouco deprimido quando está distante do objeto de seu amor.

Dela pouco se sabe. Tudo o que se pôde ter certeza a respeito de sua identidade é que era uma jovem de 23 anos, nascida no leste da França, casada e oficial da Cruz Vermelha. Exupéry a conheceu no trem, em março de 1943, quando ia da cidade de Oran a Argel, na Argélia, a serviço da aeronáutica francesa. Foi amor à primeira vista. Os documentos sugerem que, de então até sua morte, eles mantiveram um relacionamento. Mas indicam também que esta foi uma paixão que o fez sofrer.

Em um dos trechos do livro ele até a acusa de matar o Pequeno Príncipe. "Não há Pequeno Príncipe hoje e não haverá nunca mais. O Pequeno Príncipe morreu. Ou então tornou-se muito cético". Hoje as palavras parecem proféticas.

Poucos dias depois, em 31 de julho de 1944, o escritor desapareceu a bordo de seu avião no Mediterrâneo. Nunca pôde ver o Pequeno Príncipe publicado em seu país Natal... nem ver sua amada misteriosa novamente.

O livro saiu do acervo museu francês e foi direto para a lista de best-sellers. No Brasil, estava entre os mais vendidos já na primeira semana. O segredo desta volta de sucesso do Pequeno Príncipe (se é que algum dia ele chegou a partir) é o talento inexplicável de Saint-Exupéry, que transbordou de paixão cada linha de sua obra.

Um escritor que sabia muito bem uma lição importante que registrou neste novo livro: "Os contos de fada são assim. Uma manhã, a gente acorda e diz: 'era só um conto de fadas...' E a gente sorri de si mesmo. Mas, no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fadas são a única verdade da vida."

Título: O amor do Pequeno Príncipe - Cartas a uma desconhecida
Autor: Antoine de Saint-Exupéry
Preço: R$ 24,90


16 de maio de 2009
N° 15971 - NILSON SOUZA


A mensagem

O Papa depositou no Muro das Lamentações, em Israel, uma mensagem para Deus. Em tempos de internet, o sistema de comunicação escolhido pode parecer um tanto arcaico, mas ninguém duvida de que a mensagem tenha chegado ao destinatário.

Foi, na verdade, uma carta aberta, uma espécie de prestação de contas da visita do Sumo Pontífice a Jerusalém e um pedido de paz não apenas para a Terra Santa, mas para toda a humanidade.

Tudo muito apropriado, mas o gesto, fartamente documentado pelos jornais, me despertou uma curiosidade: que língua teria utilizado o Papa para se comunicar com Deus?

Cheguei a pensar que ele tivesse escrito o seu texto em latim, que é a língua oficial do Vaticano. Também supus que ele pudesse ter redigido em alemão, seu idioma natal. Ou até em aramaico, que era a língua falada por Jesus.

Mas não: fui pesquisar e descobri que Bento XVI escreveu a sua mensagem em inglês. Isso mesmo, o texto impresso num papel com o símbolo do Vaticano começava com uma saudação respeitosa, na inconfundível língua de Shakespeare: “God of all the ages...”

Inglês? Aqui embaixo, tudo bem. Afinal, esta língua virou o esperanto moderno, quem não sabe pelo menos arranhar algumas palavras acaba ficando fora do mercado. Está em todo lugar, nas vitrines das lojas, na música, no cinema e nos manuais de instrução de qualquer equipamento eletrônico.

Mas já terá virado língua oficial no céu também? Será que a prova do Juízo Final terá, ao menos, tradução simultânea?

Tenho um amigo tão antiamericano, que é bem capaz de trocar o seu passaporte para um lugar mais quente se souber que os anjos se comunicam apenas em inglês. Em compensação, fiz o meu próprio teste com uma colega de trabalho e recebi uma resposta inspirada. Perguntei-lhe que língua utilizaria para falar com Deus.

– A língua do coração! – me respondeu de bate-pronto.

Como estou no embalo das perguntas, aqui vai outra: Qual é a profissão mais estressante? Já pensei algumas vezes que poderia ser a minha, pois jornalista funciona como uma espécie de para-choque de más notícias.

Também não é a de policial, controlador de voo ou motorista de ônibus, que enfrenta trânsito ensandecido com aquela campainha no ouvido o tempo todo.

Minha amiga psicóloga me informa que recente pesquisa da organização para a qual trabalha apresentou uma resposta surpreendente para a questão: padres e freiras sentem-se mais pressionados do que profissionais de atividades reconhecidamente angustiantes. Diante da revelação, não resisti:

– Também, com um patrão perfeccionista, que não tira o olho deles nunca.

quarta-feira, 13 de maio de 2009



13 de maio de 2009
N° 15968 - MARTHA MEDEIROS


A arte de recusar um original

Não há como negar que um livro com este título, A Arte de Recusar um Original, chama a atenção. Ainda mais se você faz parte do meio literário e conhece bem o monstro chamado “Não” que acompanha o início de carreira de todo escritor.

O livro traz um apanhado de cartas fictícias escritas por editores que fecham as portas para um estreante. Cada editor com seu estilo: tem o agressivo, o conciso, o paranoico, o maternal, o sarcástico, o psicanalítico...

O problema do livro é que ele começa engraçado, mas a piada logo se esgota e a leitura fica enfadonha, até porque algumas cartas são constrangedoramente simplórias. De qualquer forma, é uma boa ideia editorial e o autor, Camilien Roy, não é estreante, então não deve ter tido dificuldade em publicar essa obra.

Eu já tive a fantasia de trabalhar em uma editora para promover a carreira de talentos desconhecidos, mas, hoje, nem que me pagassem. Mesmo não sendo uma profissional desse ramo, recebo uma quantidade considerável de textos para avaliar, e é um transtorno.

Claro que fico honrada por me julgarem capaz de dar um empurrãozinho, mas é um transtorno, e explico por quê:

1) eu não posso fazer nada pelos textos bons que chegam, a não ser incentivar a pessoa a continuar escrevendo;

2) eu não tenho coragem de dizer “desista” para a maioria de textos ruins que recebo, e acabo enrolando;

3) eu posso muito bem estar enganada quando penso que um texto é ruim – não esqueçamos que Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, foi recusado várias vezes, só para dar um exemplo entre tantos talentos que não foram inicialmente reconhecidos; 4) eu já escrevi textos fracos e estou aqui, não estou?

Meu editor não vai me perdoar, mas vou entregá-lo assim mesmo: meus primeiros poemas, lá nos distantes anos 80, coloquei à disposição da gaúcha L&PM. Os versos ficaram mofando numa gaveta por mais de um ano, até que me foram devolvidos – o que já é uma vitória, poderiam ter sido incinerados. Aí resolvi mostrá-los para uma editora de São Paulo, a maior do país na época, e acabei sendo lançada pela mesma coleção que publicava Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, Chacal, Cacaso e Caio Fernando Abreu.

Foi só então que a L&PM me piscou o olho, estendeu a mão e hoje temos uma parceria de mais de 20 anos, com 11 livros meus no seu catálogo. Mas, no início, o monstro do “não” fez as honras da casa. Normal.

Hoje, além dos blogs que servem como meio de divulgação, existe uma coisa bacanésima chamada oficinas de literatura, onde o candidato a escritor exercita seu dom (caso o tenha) e recebe dicas preciosas de autores como Assis Brasil, Charles Kiefer, Cintia Moscovich e Fabricio Carpinejar, entre outros.

É um início muito mais seguro do que ficar enviando original para editoras que talvez nem tenham tempo para ler seu trabalho ou então para colunistas que não entendem nada de nada, e podem acabar cometendo o deslize de não reconhecer que você, vá saber, pode vir a ser um Proust.

Aproveite o Dia Internacional do Sofá. Namore. Um ótimo dia a você.

terça-feira, 12 de maio de 2009



12 de maio de 2009
N° 15967 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


De sons e de cores

Por alguma misteriosa razão – que talvez tenha a ver com o saldo bancário da família –, em Cachoeira não possuíamos discos. Tínhamos um imenso rádio Telefunken que de dia multiplicava mal as emissoras de Porto Alegre e à noite reproduzia, de um jeito que só posso chamar de cristalino, as estações de Buenos Aires.

Quando nos mudamos para Porto Alegre, e o estado das finanças domésticas tornou-se ligeiramente melhor, compramos na Casa Victor um toca-discos que se transformou no centro de nossas atenções. Meus pais tinham enfim o seu Bach, o seu Beethoven e o seu Brahms.

Nós, as crianças, tínhamos de Lupicínio Rodrigues a Ari Barroso – sem esquecer aquela cantora esfuziante que nos conquistou desde a primeira audição: Maria do Carmo Miranda da Cunha, ou, mais docemente, Carmen Miranda.

Mas então a roda do consumo começou a girar mais rápido – e, não tardou, foi introduzida na casa a nossa primeira eletrola. Era um avanço e tanto, a começar pelo lado estético. Uma eletrola era um móvel de linhas clássicas, concebido para combinar com o sofá e as poltronas da sala de estar.

Mas havia ainda o ângulo técnico. Por motivos que minha vã filosofia não alcança, o som era puríssimo, quem sabe pela afinação das agulhas, quem sabe pela potência do jogo de alto-falantes, milagre de encher um palco.

Meus pais se foram, surgiu o hi-fi, mas nós já estávamos mais interessados em outro prodígio da tecnologia – e que à época atendia pelo nome de televisão. Havia um tio que era comandante da Varig. Era uma pessoa terna, compassiva – e aliás não encontro outras palavras para descrevê-lo senão como um homem bom.

No princípio, nos trouxe aparelhos em preto-e-branco. Depois descobriu em Nova York um plástico que transmitia as imagens em cor – ou pelo menos dava a impressão disso.

E aí desembarcou aqui, avassaladora, a TV ao vivo e a cores. Não a festejei. Pois, muito mais do que seu milagre, restava em minha memória a lembrança dos discos de vinil da primeira eletrola e a do plástico que inventava a primeira ilusão da cor.

Uma ótima terça-feira - Aproveite o dia ainda que com chuva que está sendo super desejada por todo o Estado.

segunda-feira, 11 de maio de 2009


Martha Medeiros

I N T I M I D A D E S

Houve um tempo, crianças, em que a gente não falava de sexo como quem fala de um pedaço de torta. Ninguém dizia Fulano comeu Beltrana, assim, com essa vulgaridade. Nada disso. Fulano tinha dormido com ela. Era este o verbo. O que os dois tinham feito antes de dormir, ou ao acordar, ficava subentendido. A informação era esta, dormiram juntos, ponto.

Mesmo que eles não tivessem pregado o olho nem por um instante. Lembrei desta expressão ao assistir Encontros e Desencontros.

No filme, Bill Murray e Scarlett Johansson fazem o papel de dois americanos que hospedam-se no mesmo hotel em Tóquio e têm em comum a insônia e o estranhamento: estão perdidos no fuso horário, na cultura, no idioma, e precisando com urgência encontrar a si mesmos. Cruzam-se no bar.

Gostam-se. Ajudam-se. E acabam dormindo juntos. Dormindo mesmo. Zzzzzzzzzzz.
A cena mostra ambos deitados na mesma cama, vestidos, conversando, quando começam a apagar lentamente, vencidos pelo cansaço.

Antes de sucumbir ao mundo dos sonhos, ele ainda tem o impulso de tocar nela, que está ao seu lado, em posição fetal. Pousa, então, a mão no pé dela, que está descalço. E assim ficam os dois, de olhos fechados, capturados pelo sono, numa intimidade raramente mostrada no cinema.

Hoje, se você perguntar para qualquer pré-adolescente o que significa se divertir, ele dirá que é beijar muito. Fazer campeonato de quem pega mais. Beijar quatro, sete, treze.

Quebram o próprio recorde e voltam pra casa sentindo um vazio estúpido, porque continuam sem a menor idéia do que seja um encontro de verdade, reconhecer-se em outra pessoa, amar alguém instintivamente, sem planejamento.

Estão todos perdidos em Tóquio. Intimidade é coisa rara e prescinde de instruções. As revistas podem até fazer testes do tipo: “descubra se vocês são íntimos, marque um xis na resposta certa”, mas nem perca seu tempo, a intimidade não se presta a fórmulas, não está relacionada a tempo de convívio, é muito mais uma comunhão instantânea e inexplicável.

Intimidade é você se sentir tão à vontade com outra pessoa como se estivesse sozinho. É não precisar contemporizar, atuar, seduzir. É conseguir ir pra cama sem escovar os dentes, é esquecer de fechar as janelas, é compartilhar com alguém um estado de inconsciência.

Dormir juntos é muito mais íntimo que sexo!!!

sábado, 9 de maio de 2009



10 de maio de 2009
N° 15965 - MARTHA MEDEIROS


Carta ao Rafael

Rafael, teu irmão nasceu cerca de quatro anos atrás, no finalzinho do mês de julho. Na época eu aproveitei que logo em seguida seria Dia dos Pais e escrevi uma carta pública ao João Pedro, aqui nesse mesmo jornal, homenageando não só o teu, mas o meu irmão também – teu pai. Agora você, meu segundo sobrinho, nasce colado ao dia das mães, e imagina se vou te privar de recepção semelhante.

Bem-vindo, Rafa. O mundo é legal, desde que a gente saiba lidar com suas contradições. Tem muita beleza e miséria, dias de sol e temporal, pessoas que dizem sim e que dizem não, e muitos gremistas e colorados infiltrados dentro da tua família. Mesmo assim, não pense que você vai ter opção. Não se deixe enganar pelas roupinhas azuis, essa não será sua cor preferida.

Desde que você saiu da barriga, está escutando votos de saúde e felicidade (mesmo que, por enquanto, tudo não passe de um barulho incompreensível e que você já esteja com saudade do silêncio uterino). Pois saiba que são votos clichês, mas os clichês são sábios: saúde e felicidade é tudo o que você precisa nessa vida. Só que tem que dar uma mãozinha.

Então, pratique esportes, se alimente bem e não fume: a saúde já estará 50% garantida, o resto é sorte. Quanto à felicidade, o jeito é tentar fazer boas escolhas. Como fazê-las? Ninguém sabe ao certo, mas ser íntegro e não se deixar levar por vaidades e preconceitos promove uma certa paz de espírito. Ser feliz não é muito difícil, basta não ficar obcecado com esse assunto e tratar de viver. Quem pensa demais, não vive.

Não brigue muito com seu irmão, ele será seu melhor amigo, mesmo que você não acredite nisso quando ele não quiser emprestar alguns brinquedos – o carro dele, por exemplo.

Você vai ser louco, apaixonado, babão por sua mãe. É natural. Mas não deixe que suas namoradas percebam.

Cada vez mais o dinheiro controla os desejos. É importante ganhá-lo, porque sem independência não somos donos de nós mesmos, mas para ganhá-lo você não precisa perder nada: nem escrúpulos, nem caráter, ou você estará se deixando comprar. Não se deixe controlar por ele. Pelo dinheiro, digo, porque pelos desejos você não só pode como deve se render. Mas não seja um heartbreaker profissional, a mulher da sua vida pode lhe escapar das mãos.

Ia esquecendo: estude inglês.

Uma vida sem arte é uma vida árida, sem transcendência, um convite à mediocridade. Então desfrute de muita música e cinema, e quando suas garotas tentarem lhe arrastar para um teatro, vá sem reclamar, há 30% de chance de você gostar. Importante: se alguém disser que ler é chato, mande se entender comigo.

Tédio é para os sem inspiração. O mundo oferece estradas, passeatas, eleições, aeroportos, ondas, montanhas, campeonatos, vestibulares, desafios, churrascos, festivais, feriadões, roubadas, gargalhadas, madrugadas e declarações de amor.

É assim mesmo, tudo misturado e barulhento. A saudade do silêncio uterino vai lhe surpreender muitas outras vezes. Busque esse silêncio dentro de você.

Então é isso, Rafa, seja corajoso e grato: nascer é um privilégio concedido a poucos, ainda que sejamos bilhões. Não desperdice a chance e esteja consciente de duas coisas: que sem alegria não vale a pena, e que Rafa é um apelido do qual você não escapa.


A arte de ser avó
Rachel de Queiróz

Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.

Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças?

Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”.

E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.

Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…

No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo.

Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia.

Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina.

Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!

Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! - bateu com a bola nele.

Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro.

Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.


VAI RENDER MENOS

Herança da indexação, o rendimento da poupança é fixado em lei. A queda na taxa de juros tornou esse anacronismo insustentável

Benedito Sverberi - Fotos Marcos d’Paula/AE

ECONOMIA POPULAR


Fila para depósitos em 1982: hoje, 93% das cadernetas têm saldo inferior a 5 000 reais

Resquício dos tempos de inflação descontrolada e indexação, o rendimento da caderneta de poupança é tabelado por lei. A ideia foi proteger o poupador dos mirabolantes planos heterodoxos que, com uma frequência assustadora, infernizavam a vida dos brasileiros. Funcionou.

A poupança tornou-se uma instituição nacional. Mexer nela dá pavor a qualquer governante. Esse é o medo que agora assola o Planalto. Há ali uma luta intensa entre a necessidade econômica de reduzir o rendimento da caderneta e o pânico de passar à história como mais um governo a solapar o suado dinheirinho do poupador.

Como se chegou a esse dilema? O drama tem vários ingredientes. Vive-se hoje no Brasil em novo ambiente econômico. A inflação está sob controle, a heterodoxia morreu e não existe mais a indexação automática de preços e salários. Além do mais, a taxa básica de juros chegou ao nível mais baixo da história.

Paradoxalmente, isso tem tudo a ver com o pânico do governo. A caderneta compete com o Tesouro pela poupança do brasileiro. A remuneração oferecida pelo Tesouro é baseada na taxa básica de juros. Se ela cai, a remuneração do investimento nos fundos de renda fixa tende a diminuir. Por outro lado, protegida por lei, a caderneta continua remunerando o poupador tão bem ou melhor que os títulos do Tesouro.

O problema é que o governo precisa captar recursos com a venda dos títulos. É assim que ele financia sua dívida sem emitir dinheiro e produzir inflação. Por isso a equipe econômica tem de encontrar uma maneira palatável de tornar os fundos lastreados nos títulos da dívida pública mais atraentes que a poupança. Mas como fazer isso sem produzir uma crise política?

A melhor ideia do governo até agora é fazer com que a caderneta se transforme em uma aplicação direcionada apenas aos pequenos poupadores. Uma das propostas em discussão é passar a cobrar imposto de renda dos grandes investidores, mantendo a isenção apenas para os pequenos.

Pela nova fórmula, continuariam isentas as aplicações de até 5 000 reais – que já respondem por 93% do total. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, lamenta que não se busque uma reforma mais profunda: "O método de cálculo do rendimento da poupança é mais uma das jabuticabas nacionais. Só existe no Brasil".


Claudio de Moura Castro claudio&moura&castro@cmcastro.com.br

Uma Mona áspera

"Na educação, apesar dos resmungos de alguns, muito pode ser feito sem que sejam necessários recursos extravagantes"

A Mona Lisa resplandece no Museu do Louvre. Sua xará, Mona Mourshed, assina pesquisas na famosa empresa de consultoria McKinsey. Com seu sorriso enigmático, a primeira Mona é suave, é lisa. Já a segunda é áspera, pelo impacto dos seus estudos.

Seu ensaio sobre educação ("Como os sistemas escolares de melhor desempenho chegaram lá") é um admirável sumário dos resultados de centenas de trabalhos que se acumulam nos últimos anos. Embora seja voltado para países desenvolvidos, suas apresentações no Brasil tiveram grande repercussão.

Ilustração Atômica Studio

Vejam que situação curiosa. Lendo o ensaio, não discordo de nada. Mas temo que tenha causado mais mal do que bem nas terras tupiniquins. Como assim? Um remédio potente precisa ser receitado com muito cuidado e para o paciente certo. A poção de Mona não serve para o Brasil. Isso porque o tema do primeiro capítulo polariza toda a mensagem: "A qualidade de um sistema de educação não pode exceder a qualidade de seus professores".

Nas discussões das quais tive notícia, o debate não foi além desse capítulo. Considerando que a educação da maioria dos estados americanos não está à altura da sua extraordinária riqueza, Mona lembra que seus futuros professores provêm do terço mais fraco dos graduados de suas high schools. Em contraste, Coreia e Finlândia recrutam os melhores graduados e têm ótimos resultados. Para quem já tentou quase tudo, falta atrair excelentes professores.

Quando esse resultado aterrissa no Brasil, registramos que a grande maioria dos nossos professores é também recrutada entre os mais fracos do ensino médio – além de receber péssima formação. Porém, não há dinheiro para pagar salários muito mais elevados. Mesmo que o fizéssemos, seriam trinta anos para renovar o quadro, já que eles são estáveis. Tal diagnóstico é uma bomba atômica de pessimismo.

Estamos condenados, pois o ensaio começa com o epitáfio: bom ensino só com excelentes professores. Mas vejam o segundo capítulo: "A única maneira de melhorar os resultados é melhorar a instrução". Contradiz o primeiro! Ou seja, com os mesmos professores é possível obter muito mais. De fato, traz conselhos para tornar mais produtivos os professores existentes. O problema é que essa mensagem ficou obliterada pelo impacto derrotista do início.

Lemos no segundo capítulo: "O papel da escola é assegurar que quando o professor entra na sala de aula tenha todos os materiais disponíveis, junto com o conhecimento e a vontade de melhorar o ensino". É preciso ajudar o professor a empregar as práticas apropriadas, motivá-lo e fazer com que conheça suas deficiências. Igualmente proveitoso é selecionar para a direção da escola os professores mais entusiasmados, criativos e com capacidade de liderar.

É necessário ter programas explícitos e livros excelentes. A formação dos novatos se completa dentro da sala de aula, sob a supervisão de mestres experientes que sabem manejar a classe e usar os materiais de ensino.

De fato, é possível fazer bastante em pouco tempo. Em alguns municípios de Minas Gerais, entre 2007 e 2008, os testes de alfabetização (na 2ª série) mostraram uma queda substancial na proporção de alunos com desempenho baixo ou intermediário (ou seja, que não aprenderam a ler). Há casos espetaculares.

Em Ouro Branco, por exemplo, uma escola baixou de 42% para 10%. Em Maravilhas, de 43% para 1%, e em Itabirito, de 23% para 0%. Isso aconteceu em municípios participantes do sistema de gestão da Fundação Pitágoras – sem trocar professores! Colocando todos a remar na mesma direção, definindo e dando foco às prioridades, todos colaboram para identificar os problemas, resolvê-los e valorizar os sucessos. Gestão é isso.

Essa é a leitura correta do ensaio de Mona. Não adianta sonhar com professores finlandeses e ser engolfado pelo pessimismo. Na educação, apesar dos resmungos de alguns, muito pode ser feito sem que sejam necessários recursos extravagantes. De fato, como mostra o artigo, gastar muito não assegura boa educação.

Se houver a "Grande Reforma da Educação Brasileira", será o somatório dos ínfimos gestos que corrigem erros do passado e introduzem práticas eficazes. Será fruto da insistência obsessiva em melhorar o "feijão com arroz" da sala de aula, ano após ano. Na tradução zen, "todo dia melhorar um pouco, todo dia fazer um pouquinho melhor".

Claudio de Moura Castro é economista


De onde vem a inteligência

Os cientistas começam a desvendar os fatores que tornam o cérebro mais eficiente. O que podemos esperar dessas descobertas
Marcela Buscato. Com Ana Aranha e Rafael Pereira

O ENIGMA DO GÊNIO

Amostras do cérebro do físico Albert Einstein conservadas para pesquisa. Há 54 anos, os cientistas tentam decifrar as origens de uma mente brilhante O americano Thomas Harvey disse ter se sentido sortudo ao deparar com o corpo do físico Albert Einstein em cima da mesa de autópsias do Hospital de Princeton, nos Estados Unidos.

Não se tratava apenas da empolgação de um patologista – esses detetives da medicina que a cada nova necropsia procuram pelas causas de uma morte. Naquela manhã de 18 de abril de 1955, sete horas depois de Einstein morrer, aos 76 anos, em decorrência de um aneurisma abdominal, Harvey vislumbrou a possibilidade de uma descoberta histórica.

Sem a autorização em vida de Einstein ou de sua família, ele abriu o crânio de seu “paciente” mais ilustre. Sugou o liquor do cérebro pelo nariz e com uma das mãos envolveu o bolo de massa cinzenta que revolucionara a ciência ao redefinir os conceitos de espaço e tempo. Harvey cortou as fibras que o prendiam ao corpo e o suspendeu. Acreditava que o cérebro de 1,2 quilo em suas mãos – mais leve que o da média da população – responderia à pergunta que já desafiava pensadores 400 anos antes de Cristo. Qual é a essência da inteligência?

Cinco décadas depois do dia de sorte de Harvey, o cérebro de Einstein – dividido em 240 finas fatias – flutua em dois potes de vidro no Centro Médico de Princeton. Durante todos esses anos, Harvey dedicou-se a enviar alguns desses pedaços a vários especialistas. Caberia a eles investigar o cérebro de um gênio e divulgar para o mundo a receita de tanta inteligência. Alguns deles arriscaram publicar seus achados.

O primeiro: a região encarregada da habilidade matemática, chamada lobo parietal, era 15% maior no cérebro de Einstein. A segunda conclusão: as circunvoluções, aquelas dobras que dão uma aparência rugosa ao cérebro, eram distribuídas em um padrão que aproximava os neurônios, facilitando a transmissão de estímulos nervosos. A terceira descoberta: os neurônios eram mais bem alimentados. Einstein tinha uma proporção maior de células fornecedoras de nutrientes em seu cérebro.

O cérebro é como uma estrada. Em algumas pessoas, asfaltada. Em outras vezes, feita de paralelepípedos

Foram constatações curiosas, sem dúvida. Mas pouco revelaram sobre o segredo da genialidade. Como garantir que as particularidades encontradas no cérebro de Einstein foram responsáveis por sua inteligência fora do comum? Há poucos cérebros tão geniais quanto o dele – e um número muito menor chega às mãos dos pesquisadores.

Sem base de comparação, não há como provar cientificamente que um cérebro com as mesmas características faria de alguém um gênio. Um fim triste para o bem mais precioso de Einstein e para o ato ousado de Harvey – que morreu em 2007, aos 94 anos, dizendo-se cansado da responsabilidade de ser o guardião de um cérebro tão privilegiado.

Os cientistas de hoje podem não contar com uma matéria-prima nobre como essa, mas ironicamente estão mais perto de revelar a essência da inteligência do que Harvey jamais esteve. Eles têm acesso direto a algo que confere brilho a um cérebro: as modernas técnicas de ressonância magnética. Essas técnicas, desenvolvidas na última década, colorem as regiões ativadas durante a realização de cada tarefa. E mostram a intrincada rede de interações que produz a inteligência.

O psicólogo americano Richard Haier, da Universidade da Califórnia em Irvine, conseguiu descrever a rota de um pensamento dentro do cérebro usando as imagens obtidas nesse novo tipo de estudo (confira a ilustração). “Os diferentes níveis de inteligência estão relacionados a quão bem as informações percorrem esse caminho”, afirma Haier.

“Em algumas pessoas, elas podem pegar atalhos ou viajar a uma velocidade maior.” É como se o cérebro fosse uma estrada. Em algumas pessoas, ela seria cheia de ramificações, pavimentadas com asfalto da melhor qualidade. Em outras, o pensamento andaria por uma trilha longa, feita com paralelepípedos.

No mundo da neurociência, o asfalto corresponde a um maior número de conexões entre os neurônios, mais substâncias químicas para transportar as informações pelo cérebro e mais vasos sanguíneos para levar alimentos e oxigênio para as células nervosas. Os paralelepípedos correspondem a cérebros em que esses fatores aparecem alterados, acarretando um desempenho pior.

Uma série de estudos publicados nos últimos dois meses colocou à prova a teoria da estrada. E comprovou que aspectos como rota e qualidade do asfalto fazem a diferença. O neuropsicólogo alemão Jan Willem Koten, da Universidade Aachen, mostrou que as pessoas usam estratégias mentais diversas para executar a mesma tarefa. E que algumas dessas táticas são, de fato, mais eficazes: se traduzem em pensamentos velozes e certeiros.

No estudo, os voluntários que usavam áreas do cérebro encarregadas do processamento visual e espacial para decorar uma sequência de dígitos tinham mais facilidade para lembrá-la que as pessoas que empregavam uma região ligada à linguagem. Paul Thompson, um neurologista da Universidade da Califórnia, descobriu que a qualidade do revestimento dos neurônios está diretamente ligada ao nível de inteligência.

Quanto mais grossa a camada de mielina, um tipo de gordura que reveste os neurônios, mais rapidamente a informação é transmitida entre as células nervosas. Na Universidade McGill, no Canadá, os cientistas constataram que crianças e adolescentes com algumas áreas do cérebro mais espessas tinham um desempenho melhor em testes de inteligência. Elas teriam um maior número de conexões entre os neurônios.

Agora, os pesquisadores estão começando a investigar o que está por trás dessas diferenças. O que faz com que algumas pessoas usem estratégias mentais mais sofisticadas que outras? Ou tenham um revestimento mais espesso de mielina? Ou mais conexões cerebrais? A resposta está escrita no genoma, a sequência de códigos químicos que tornam cada pessoa tão única. Essas variações na rede neural seriam determinadas pelos genes.

Isso significa que a inteligência é em boa parte transmitida dos pais para os filhos. Em seu estudo, Koten, da Universidade Aachen, descobriu que gêmeos idênticos, que compartilham os mesmos genes, têm mais chances de usar a mesma tática mental para decorar a sequência de números do que seus outros irmãos, que compartilham em média 50% dos genes.

Outra pesquisa da Universidade da Califórnia mostrou que as regiões cerebrais que controlam as habilidades de linguagem e leitura são iguais em gêmeos idênticos. E alguns levantamentos sugerem que filhos adotivos costumam desenvolver um Q.I. (quociente intelectual) mais próximo ao dos pais biológicos, com quem não mantiveram contato, que ao dos pais adotivos, com quem convivem.

Esses indícios de hereditariedade e a criação de novos métodos para analisar milhares de sequências de DNA simultaneamente desencadearam uma busca pelos genes da inteligência. Os geneticistas já anunciaram a descoberta de pelo menos cinco. Sem dúvida, um avanço.

Mas também uma amostra de quão difícil é determinar as causas da inteligência. Entre todos os genes descobertos, nenhum tem uma influência arrebatadora sobre o desempenho intelectual. “É provável que existam muitos genes que interfiram no desempenho, cada um com uma influência pequena”, afirma o psicólogo americano Robert Plomin, do King’s College London.

Em suas pesquisas, Plomin confirmou esses caprichos da genética. Ele empreendeu a maior busca já feita por genes da inteligência. Analisou o DNA de 7 mil crianças, usando uma técnica que procura por até 500 mil marcadores genéticos de uma só vez. E o gene mais influente que conseguiu encontrar, o IGF2R, determinava uma variação de apenas 0,4% na pontuação de testes de inteligência. Na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, uma equipe de pesquisadores diz ter descoberto um gene, o CHRM2, com influência maior.

A diferença de Q.I. entre uma pessoa que tenha todas as versões do gene que influenciem negativamente as habilidades cognitivas e alguém que carregue as mutações com influência positiva poderia chegar a 20 pontos. Os cientistas americanos afirmam que é muito difícil comprovar estatisticamente esse dado porque há poucos casos conhecidos de pessoas com essas configurações genéticas extremas.

Entender o papel exato desses genes é outro desafio. Eles parecem ter outras funções além de influenciar na habilidade de raciocínio. O caso mais intrigante é dos genes DARP-32 e DTNBP1. Eles são encontrados em pessoas com esquizofrenia, um transtorno psiquiátrico caracterizado por alucinações, e, por isso, são associados à doença.

Estudos recentes sugerem que eles também podem ter alguma ação sobre a inteligência. Portadores de uma versão específica do DARP-32 processariam de forma mais eficiente as informações no córtex pré-frontal, o que melhoraria o desempenho intelectual. Já as pessoas com uma mutação específica no DTNBP1 teriam dificuldades de raciocínio. Ainda não se sabe por quê.

Ao mesmo tempo que avançam as descobertas sobre a influência da genética, também avançam os estudos sobre o papel do meio ambiente na formação da inteligência. “O nível de inteligência de uma pessoa é resultado da interação entre genes e fatores ambientais”, afirma o psicólogo Ian Deary, diretor do Centro de Epidemiologia Cognitiva da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Até beber leite materno pode ser decisivo.

Pesquisadores britânicos sugerem que, em crianças com determinada versão do gene FADS2, a amamentação pode elevar o Q.I. em até 7 pontos. Esse gene estaria relacionado à transformação de nutrientes da gordura do leite importantes para o desenvolvimento do cérebro.


09 de maio de 2009
N° 15964 - NILSON SOUZA


A indignação de Prates

Rola na internet, em ritmo viral, como gostam de dizer os iniciados, o vídeo do comentário que o colega Luiz Carlos Prates fez sobre a farra das passagens aéreas no Congresso Nacional. Prates é colunista do Diário Catarinense e comentarista da RBS TV em Florianópolis desde a década de 80, quando resolveu atravessar o Mampituba para ficar por lá.

Mas é gaúcho, narrava e comentava futebol por aqui no início de sua carreira. Eu mesmo, quando também era cronista esportivo, tive a oportunidade de cobrir uma Copa do Mundo junto com ele, na Argentina. Sempre foi uma figura polêmica, de opiniões fortes, sem freios na língua e com muita coragem para expressar suas ideias e sua visão do mundo.

Confesso que nem sempre concordo com suas opiniões, algumas delas um tanto, digamos, impetuosas para o meu gosto. Assusto-me cada vez que ele dá um murro na mesa para não deixar dúvidas de que está indignado. Mas, neste caso dos parlamentares que pagavam viagens de parentes, amigos e amantes com o dinheiro do contribuinte, Prates interpretou perfeitamente o sentimento dos brasileiros.

Seu comentário é um primor de repulsa a um fato realmente repulsivo. Ele disse exatamente o que as pessoas queriam ouvir e muito do que elas próprias gostariam de dizer. O xingamento final, acompanhado de um tapa na bancada, é quase histriônico, mas adequado para a situação: “Safados!”.

Já recebi várias mensagens com o comentário de Prates no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=8-gfYN61WRM). Quando as pessoas repassam um vídeo ou um texto para amigos, parentes e até para desconhecidos, estão querendo dizer que aquele conteúdo vale a pena ser visto.

Mais do que isso: estão rubricando aquele recado, dizendo que ele contém algo de seus próprios pensamentos, de sua própria vontade, de seu desejo de agir. Potencializadas pela internet, as palavras de Prates se multiplicam de tal maneira, que parecem estar se transformando na reação coletiva exigida em sua incendiária manifestação.

Uma vez passei constrangimento por causa de Prates. Quando a delegação da Itália chegou à Argentina para disputar a Copa, foi precedida por um grupo folclórico chamado Gli Sbandieratori Di Arezzo, que se apresentava com bandeiras coloridas numa rua de Buenos Aires.

Prates, entusiasmado e impetuoso como sempre, colocou na minha mão uma máquina fotográfica e saltou para o meio dos dançarinos. Tive que segui-lo, para não perder a imagem que, espero, ele tenha guardado de lembrança entre as suas fotos de viagem. Assim como vou guardar o vídeo deste seu comentário ensandecido de justa indignação.