sábado, 29 de julho de 2017



29 de julho de 2017 | N° 18910
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

É PRECISO CORAGEM PARA SER DIFERENTE


A vontade de fazer o bem, de ajudar, não encontra nas pessoas uma uniformidade de atitudes. Pelo contrário, raramente somos tão heterogêneos. Há os que se refugiam até em lojas de artigos infantis se veem a distância o patrono da festa da paróquia, os que ajudam se não tiverem mais nada para fazer, e quase sempre são as pessoas mais ocupadas do mundo, e os voluntários das obras sociais que têm na cara a inconfundível expressão do “deixem comigo”. 

Esses seriam todos os modelos disponíveis se não houvesse, para a redenção da espécie e compensação das nossas pobrezas de espírito, os adictos da generosidade, umas raras criaturas que, possuídas pelo bem que o bem faz a quem o pratica, não conseguem mais parar sem se sentirem em falta consigo mesmo.

A atitude obstinada dessas criaturas comove todos, até os tais que, disfarçados, entram nas lojas de artigos infantis, oxalá em busca de um modelo mais digno de si mesmo, que talvez se tenha perdido lá na infância.

Até o Último Homem, um dos filmes que concorreram ao Oscar, conta uma história baseada em fatos reais e descreve a odisseia de Desmond Doss durante a sangrenta campanha do Pacífico nos últimos meses da II Guerra. Esse jovem soldado se alistou porque lhe pareceu indigno que seus melhores amigos se arriscassem por ele, mas provocou uma convulsão entre os instrutores quando se negou a tocar num fuzil porque se prometera que jamais atiraria em alguém. 

Quando defendeu emocionado seu direito de combater para ajudar os feridos porque, apesar de não ter conseguido estudar, sempre quisera ser médico, recebeu autorização para embarcar, debaixo de deboches e suspeitas de covardia.

No final da guerra, depois de ter salvado dezenas de colegas feridos, arriscando a vida debaixo de fogo cruzado nas batalhas mais ferozes, compensado pelo respeito de todos, recebeu a mais alta comenda militar por heroísmo em campo de batalha. No final do filme, com o olho lacrimejante a confirmar uma história ocorrida há quase 75 anos, é apresentado o autor daquela façanha, que já bem velhinho relembrava o pensamento que o mantinha em pé numa noite sem fim, arrastando ou carregando nas costas os feridos mais graves até um lugar seguro, e voltando para apanhar o próximo: “Meu Deus, por favor, me permita salvar mais um, só mais um”. 

Ao amanhecer da terrível Batalha de Okinawa, dezenas tinham sido salvos, e ele, num verdadeiro transe, continuava repetindo o mantra que o mantivera acordado, apesar de exausto: “Por favor, só mais um!”.

    Ser igual aos outros é mais fácil. Para ser diferente, é preciso ter coragem. E isso não consta do rol das escolhas. Que pena.


29 de julho de 2017 | N° 18910
PIANGERS

Avós

Minha vó servia pão de trigo aberto com as mãos, sem faca, lambuzado de geleia de pera, que ela mesma fazia no quintal detrás da casa. Por trás dos óculos enormes, com aqueles quadradinhos estranhos na parte de baixo provavelmente pra ajudar a ler, ela olhava empolgada os nove primos sentados, misturando farelos e restos de lama embaixo das unhas e geleia de pera por toda a cara. Ela perguntava:

 – Está boa a chimia? Todos os primos respondiam ao mesmo tempo: “Sim!”, menos o Timóteo, meu primo gordinho, que quando estava comendo parecia estar numa missão sagrada de se agarrar no alimento e empurrá-lo goela abaixo. A matriarca fazia outra pergunta retórica:

 – Então, a ‘chimia da fó’ é melhor que a chimia Fritz e Frida?

Todos em uníssono (menos Timóteo): “Sim!”. Então ela concluía:

 – Então, a ‘chimia da fó’ é a melhor chimia do mundo. Porque dizem que a Fritz e Frida é a melhor chimia do mundo e a chimia da fó é melhor que a Fritz e Frida.

A manipulação psicológica dos meus avós nos levava a outras situações semelhantes. Meu vô sempre defendeu que a pipoca doce que ele fazia era a melhor pipoca doce do mundo. Anos depois, eu ainda lembrava do cheiro e do sabor daquela pipoca suave. Meu vô também abominava cervejas muito geladas. Deixava a geladeira com potência bem baixinha (dava a desculpa das cervejas, mas provavelmente era pra economizar dinheiro na conta de luz). O fato é que tomei uma Kaiser da geladeira dele, num domingo infernal, e estava surpreendentemente deliciosa.

Ele gostava de repetir o tempo todo as seguintes histórias: como construiu duas casas e uma garagem com as próprias mãos; como eram edificações tão bem construídas que estão de pé até hoje; como foi astuto nas negociações para comprar os terrenos; como era honesto na época que cortava cabelos no centro da cidade (se não apareciam clientes ele colocava cinco reais do próprio bolso pro chefe não pensar que ele estava roubando). 

Na época em que foi caminhoneiro, ele dirigia o melhor caminhão do mundo e conheceu o Brasil todo com o barulho do motor de trilha sonora. Por isso, explicava ele, tinha um zumbido constante no ouvido direito e fazia concha com a mão do lado da cabeça na hora de assistir ao “noticioso do 12”.

Meu vô morreu dia 15 de abril de 2012, às 19h, de desistência múltipla de planos. Ele completaria 93 anos 14 dias depois. Enterrinho bem deprimente numa gaveta logo abaixo de um outro morto chamado Romário. Número 665 do cemitério de Novo Hamburgo. Imaginem o susto da família que enterrou o próximo defunto na gaveta 666.

Voltamos pra casa dele, paredes incrivelmente bem construídas, sentamos ao redor da velha mesa pra beber as últimas cervejas quentes do vô, comer as últimas laranjas do quintal, estourar os últimos milhos para pipoca. Minha mãe trouxe uns biscoitos de manteiga feitos na casa dela. Tirou da bolsa, ofereceu pros primos, ótimo acompanhamento pro chimarrão.
Todos comemos. O Timóteo com o vigor habitual. Então, minha mãe perguntou:

– Estão bons os biscoitos?


29 de julho de 2017 | N° 18910
CARPINEJAR

VOCÊ NADA TEM A VER COM O ORGASMO FEMININO


Você se julga responsável pelo orgasmo feminino, então comete um erro primário. Você não faz uma mulher gozar, ela goza sozinha. O prazer dela não tem nada a ver com o que fez ou deixou de fazer. Não é uma tela onde, ao final, assina o nome. Não é um poema onde registra a autoria. Não adianta contar aos amigos a façanha, a proeza não é sua.

Pode assistir de camarote. Pode ter a honra de vê-la se amando. Mas o show é dela, o palco é dela, todo homem será sempre um espectador.

Não é algo que se leva para o currículo amoroso ou destinado a fortalecer a vaidade. O orgasmo feminino acontecerá com ou apesar de você. Ela mesmo se completa. O que pode ocorrer felizmente são dois inteiros se encaixando e transbordando. Duas autonomias convergindo e encontrando a liberdade do movimento.

O jardim é dela, e ela é a única jardineira. Ela é que se planta e floresce. Ela é que se conhece e se poda.     Respeite o direito dela de ter ou não ter prazer, de fingir ou de ser autêntica, de estar com vontade ou perder a vontade.

Dê tempo em vez de censurar. Dê os braços e as pernas para que ela possa cumprir as suas coreografias. Use o corpo inteiro e não somente um membro. Mais que isso é desnecessário.

Não existe fiador ou dependente. Não existe menor ou maior. Não existe passivo e ativo. Não existe caridade e provedor no sexo. Não caia na conversa machista de que você manda, e ela obedece. Ambos mandam e obedecem na mesma hora.

Não é apenas estar junto, é saber estar junto. É mais do que contar histórias, é ser a própria história. O contexto, a gentileza, o apego, a garra, a força e a fissura se misturam e se interpenetram no caldeirão de sentimentos.

Não esqueça de que a mulher tem um ouvido imaginativo, um ouvido musical. É pela audição que ela sonha e se observa. Não passe pelas sucessivas transas repetindo o repertório de bichos e ofensas. É um tédio atravessar anos de relacionamento escutando quatro palavras recorrentes sem parar no quarto. Amplie o vocabulário. A fala é o motor da língua.

Nem ouse ser preconceituoso e supor que ela é delicada e frágil, a mulher é selvagem e tem outras várias por dentro. No sexo, todos somos bipolares.

Você só tem uma única missão na cama: não atrapalhar o orgasmo dela. E não é uma tarefa fácil.



29 de julho de 2017 | N° 18910
MARTHA MEDEIROS

CIGARETTES AFTER SEX


 “Acho que você vai gostar. É como uma brisa entrando pela janela.” Era o que dizia o e-mail. Apenas essas duas frases e um link, enviados por um leitor que eu não conhecia e do qual não lembro o nome. Normalmente, eu deletaria sem conferir, mas alguma coisa, da ordem do inexplicável, fez com que eu abrisse aquele link que poderia conter um poema enfadonho, uma foto apelativa ou, risco fatal, um vírus que detonaria meu computador. Mas o que havia ali era o som de uma banda chamada Cigarettes After Sex. Desde então, não consigo deixar de escutá-la um só dia.

Foi novidade pra mim, mas talvez não pra você, já que este grupo surgiu em 2008, no Texas, e atingiu o reconhecimento em 2015, no Brooklyn. De qualquer forma, tivemos nossa primeira vez no início deste ano, e falar em primeira vez, neste caso, se justifica, sendo Cigarettes After Sex um título tão sugestivo.

Pouca gente fuma hoje em dia, e, se fuma, é expulso do ambiente quando se atreve. Portanto, o famoso cigarro depois do sexo deixou de ser um hábito para virar um clichê, mas mantém seu significado: após o gozo, é a vez do suspiro – aquele que Mario Quintana disfarçava entre uma tragada e outra.

O cigarro pode ter se tornado metafórico, mas o relaxamento é real. Um relaxamento que uma amiga minha, ao escutar as canções que recomendei, confundiu com tristeza. Ora, o pós-sexo só é triste quando você não está com quem deseja. Se é de amor que falamos, o momento que vem depois da finalização do ato só pode ser comparado com plenitude, languidez, entorpecência. A vida em modo de espera antes de se reconstituir.

Cigarettes After Sex é a tradução musical da penumbra do quarto, do suor dos corpos, dos poros abertos, dos lençóis amarfanhados, da calcinha no chão, das taças vazias. Cigarettes After Sex é câmera lenta, preguiça, sussurros, o barulho da cidade trazendo vestígios longínquos de outro planeta. Cigarettes After Sex é quando se presta atenção no formato das espaldas, na penugem da coxa, nos fios de cabelo grudados no pescoço de quem está ao nosso lado na cama. 

Cigarettes After Sex é quando o relógio para, não é dia nem noite, o celular se mantém silencioso e os problemas se aquietam também. É aquele instante sublime em que não somos pessoa física nem jurídica – apenas espiritual. Cigarettes After Sex é a beleza do nada, a pulsação da calma, a sensualidade do que já aconteceu.

Uma brisa que entra pela janela e nos conduz a alguns minutos de entrega à nossa própria ausência saciada.


29 de julho de 2017 | N° 18910
LYA LUFT

Antes que os enquadremos

O mundo anda complicado, o Brasil idem. Então resolvo dar ao leitor um brinde carinhoso, logo depois do Dia dos Avós (sim, eu curto essas datas), em que meus sete netos e netas me visitaram – em pessoa ou pelo cyberspace, de várias partes do mundo.

Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio “de verdade”, dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. Tinha um ar sonhador, e de vez em quando passava a mão no pacote:

– Parece mentira, né, mãe? – estava encantado, olhar de um azul indescritível. – Mãe, que igreja é essa?

– Nossa Senhora Auxiliadora.

– Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?

– É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes.

– E o Nosso Senhor é São Pedro, né?

– Não, é Jesus, ora. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo de Jesus – a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso.

– Ah... e por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? – a mãe foi ficando um pouco inquieta, o ônibus agora atento.

– Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.

– Mas o São José não era o pai dele?

– Não era de verdade, o pai dele era Deus. São José foi o pai adotivo.

– Então Jesus não nasceu da sementinha do São José? – o silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.



– Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.

– Ué, então não foi como nas pessoas? – a mãe se fez de distraída, mas o menino pensava concentrado e não ia desistir. – Mãe, como é que antigamente, beeeeem antigamente, as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter neném, se ninguém tinha ensinado a elas?

– Ora, filho, essas coisas a natureza ensina.

– Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente...

– Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si.

Aí ele muda o assunto:

– Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui!

– Ele quem?

– O Mozart, mãe, ora. Quem ia ser?

– Não, filho, ele viveu na Europa.

– Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, porque as pessoas mais importantes do mundo inteiro moram lá.

– Nada disso! Você não está aprendendo piano? Muitos dos músicos mais importantes, e filósofos, e escritores, moram na Europa.

Ele reflete. Depois, incansável perguntador (como a mãe fora em menina),volta à carga:

– Mãe, o que é mesmo a gente ser um filósofo?

– Uma pessoa que pensa muito. Pensa por todo mundo. Ensina a gente a pensar.

– Ah... Meu irmãozinho pensa muito, será que ele é um filósofo?

– Filho, acho que sim, mas todas as crianças são meio filósofas – não acrescentou: “Antes que os adultos as enquadrem”.

Finalmente desembarcaram. O menino retomou seu ar sonhador, ainda segurando o pacote:

– Mãe, como eu tenho um pai bom, né? – e logo acrescentou: – Mãe também, claro.

quarta-feira, 26 de julho de 2017


26 de julho de 2017 | N° 18907 
MARTHA MEDEIROS

A vez dos avós


O veto migratório proposto por Trump aos cidadãos de Síria, Irã, Líbia, Somália, Sudão e Iêmen chamou a atenção não só pela discriminação religiosa, mas também por liberar a entrada apenas de imigrantes e refugiados que fossem pais, irmãos ou filhos de norte-americanos: avós não foram considerados parentes próximos. Como sandice tem limite, o presidente teve que voltar atrás e incluir os velhinhos na liberação.

Eu disse velhinhos?

Velho é uma palavra que não se usa mais. Uma pessoa pode ser antiga, mas isso não significa que seja um matusalém – pode ser antiga aos 15, aos 26, aos 32. Se a questão for apenas a idade, ninguém mais é velho, e sim maduro. Algumas de minhas amigas já têm netos, o que não as impede de fazerem trilhas, dançarem até às cinco da manhã, postarem suas aventuras nas redes, trabalharem e se apaixonarem. São avós porque esse é o nome que se dá quando os filhos da gente começam a ter seus próprios filhos, mas a atmosfera caquética se dissipou. Hoje é dia dos avós e não será comemorado com avental, fogão e agulhas de crochê, e sim com jeans, boteco e cílios postiços.

“Que ridículo, mãe”, talvez diga a mulher de 50 para sua mãe de 75 que é ala de um time de basquete veterano. “Que ridículo, mãe”, talvez diga a garota de 25 para sua mãe de 50 que vai passar o fim de semana na Praia do Rosa com o namorado surfista. “Que ridículo, mãe”, talvez diga a garota de 14 para sua mãe de 40 que está fazendo sua primeira tatuagem. “Que ridículo” é a forma condensada de os mais moços demonstrarem o medo de que seus “velhos” estejam pensando mais em si mesmos do que em seus descendentes. 

É infantil, mas compreende-se: todos querem ser cuidados por quem chegou antes, ser a razão da vida de seus predecessores. Difícil aceitar que quem nos colocou no mundo está casando pela terceira vez, está se preparando para estudar inglês na ilha de Malta, está fazendo planos. Planos! Os maduros estão humilhando as novas gerações. Quanto mais idade, mais ativos, enquanto que seus filhos e netos ainda não sabem o que serão quando crescerem.

Talvez do que a garotada esteja precisando é ter uma dimensão mais aproximada da morte. O fim ainda está longe pra eles, então ficam meio prostrados, esperando alguma garantia antes de se aventurarem. Temem escolher errado, temem fracassar e, enquanto isso, o tempo passa. Tempo que seus avós não têm mais para esbanjar: jogam-se sem precisar de garantia pra nada. O fato de os “velhinhos” estarem mais dinâmicos não fragiliza seus vínculos, continuam sendo parentes próximos, ainda que viajem, excursionem, pedalem e corram – pra longe dos estereótipos.

sábado, 22 de julho de 2017



22 de julho de 2017 | N° 18904 
CARPINEJAR

Vizinho à moda antiga

Podemos passar a vida inteira sem conhecer os nossos vizinhos. Cumprimentando apenas no elevador, armando fofoca pela aparência ou registrando reclamações no condomínio pelo excesso de gritaria de uma briga ou pelo volume alto de uma festa. Não conhecer é falar mal.

Mas tenho um vizinho à moda antiga. Como se morássemos no Interior. Seu Carlos. O Seu é um título de nobreza. Um dia, do nada, ele me ajudou a carregar as compras do mercado. Ele me viu transportando 20 sacolas em duas mãos, foi fisgado pela compaixão e emprestou os seus braços. Em seguida, o recompensei com cervejas geladas de minha preferência. Eu disse que não precisava, ele disse que não precisava. Gentileza é fazer quando não precisamos.

Criamos uma cumplicidade de corredor. Numa noite, ele confessou que cozinhava. Eu elogiei e comentei que adorava dobradinha. Não é que ele apertou a campainha com uma cumbuca de mocotó? Não imaginava uma tele-entrega tão rápida do primeiro ao terceiro andar: o prato ainda fumegava, para inveja da rapidez dos motoboy. Retribuí com meu lombinho de queijo e molho barbecue. Eu disse que não precisava, ele disse que não precisava, seguíamos não precisando, pois cordialidade é um excesso de bom humor.

Quando falta arroz em casa e me bate uma preguiça de caminhar até o mercado, desço e pego um pouquinho do pacote do Seu Carlos. Já o abasteci também de feijão e sal. Brindamos a amizade com xícaras de grãos.

Somos irmãos de andares, da esquina do olhar e de endereço. Para nos comunicar, usamos o interfone do coração, como duas crianças deslumbradas com o alcance surpreendente de Walkie-talkies.

Sempre preparo almoço pensando em um prato a mais, imaginário, destinado a ele. Vá que ele goste. Ele não se dá por rogado e aparece de repente com uma fôrma de nega maluca. Os filhos soltam uma gritaria com o doce inesperado para o café da tarde. Seu Carlos, para eles, já é tio Carlos. Uma nova honraria adquirida pelo convívio.

Estamos próximos sem entender direito como começamos a lealdade – nos ajudamos a pregar quadros, a trocar lâmpadas, a arrumar chuveiro. Trocamos receitas de construção, limpeza e culinária. Confio nele a ponto de deixar a chave do apartamento em minhas férias. Ele confia em mim a ponto de abrir a porta de seus segredos. Poderíamos passar a vida inteira sem nos conhecer. Mas não precisávamos e precisamos hoje cada vez mais um do outro.



22 de julho de 2017 | N° 18904
MARTHA MEDEIROS

Colocando-se na pele


“Não sou racista”, dizem todos, mas alguém assumiria? Não temos amigos negros porque não tivemos colegas negros na escola particular em que estudamos, e é só por isto que eles não fazem parte do nosso convívio, a não ser como empregados. Não somos racistas, o distanciamento deve-se apenas à desigualdade social. Será mesmo?

Ainda consideramos que ser branco é normal e que ser negro é outra coisa. Ainda pensamos na África como um lugar exótico que produz bons vinhos, que é ótimo destino para fazer safáris cinco estrelas e cujo artesanato é perfeito para decorar nossas paredes e estantes. Não estudamos nossa ancestralidade e não conhecemos todas as versões da nossa própria história, apenas a escrita pelos brancos, que ignoram a cultura africana difundida de forma oral. Nossos olhos se voltam para a Europa como se lá estivesse toda a nossa origem.

Temos falado muito em empoderamento da mulher, um processo que tem conquistado vitórias importantes, mas, para sermos uma sociedade moderna, igualitária e justa precisamos estar atentos também à questão dos negros (questão, aliás, que não é só deles, e sim de todos). Nossa cabeça tem que mudar. É fundamental trocar experiências e acabar de vez com estereótipos e preconceitos. Nunca foi tão necessário um humanismo expandido, agregador, pacífico – único antídoto contra a crise generalizada em que vivemos.

Convivo com pouquíssimos negros, mas tenho o privilégio de ser amiga da escritora e atriz Elisa Lucinda, uma mulher lúcida, engajada. Através dela, aprendo sobre valores, tradições, orgulho racial. Outro artista a quem devemos escutar é o ator Lázaro Ramos, que acaba de lançar um livro chamado Na Minha Pele, em que faz um relato sensível sobre a realidade do negro no Brasil, chamando nossa atenção para atitudes vexaminosas que nem percebemos. Um exemplo banal: incontáveis vezes ele foi cumprimentado pela sua atuação em Cidade de Deus, mesmo não tendo participado do filme. Simplesmente é automática a associação entre negro e violência. Lázaro também salienta manchetes de jornal que lemos todos os dias, sem perceber a sutil troca de uma palavra: “Traficante preso com 30 quilos de cocaína” e “Estudante preso com 30 quilos de cocaína”. Adivinhe a razão de um ser qualificado como traficante e o outro não.

Estas percepções equivocadas demonstram o tamanho do nosso atraso e impedem o país de crescer – não é só a política que nos afunda, mas toda uma mentalidade ainda escravagista que nos prende a um modelo antigo de nação. Como começar a evoluir? O caminho é longo, mas fica a sugestão de leitura do livro de Lázaro Ramos para começar a perder o medo de enxergar o que há por baixo da pele de todos nós.



22 de julho de 2017 | N° 18904 
LYA LUFT

Viver, morrer

“Se isso acontecer, eu vou me matar!” “Juro que, se for verdade, eu me mato!” Quantas vezes se dizem coisas assim, mas na brincadeira, aqueles exageros em que nem o seu autor acredita. Da mesma forma, dizemos a um amigo, na galhofa: “Eu te mato!”. Não são frases para se levar a sério, então a gente nem se impressiona. Rimos juntos. Mas isso que dizemos de troça é para outros uma realidade insuportável, que não só leva alguém amado (sempre tem quem nos queira bem) como destroça famílias e machuca amigos.

Por que nos matamos? Que último passo no abismo disso que imaginamos ser a tranquilidade eterna é esse e por que o realizamos? Dor insuportável? Uma amiga querida, diante de um sofrimento que parecia além da sua capacidade, pensou em se jogar lá de um 11º andar. “Foi só um lampejo”, ela disse, “mas lembrei que tinha filhos a quem causaria sofrimento.” E, afinal, ela amava a vida com suas tragédias e maravilhas. Muitos passam por isso e não se matam. É quase como, em criança, diante de um castigo ou de uma dessas injustiças bobas – que para uma criança parece homérica –, se pensava em fugir de casa. “Vou fugir de casa. Mas para onde vou?” A saída é a casa dos avós, mas... não seria uma grande façanha.

Porém, quando se trata de nos jogarmos nos braços da Senhora Morte, que nos esconderá em suas largas mangas e, pensamos, nos livrará de todo o desespero, não são devaneios infantis. É drama, é tragédia, é o inominável e incompreensível. “Que pena”, a gente pensa ao saber, “que pena!”. Pois, muitas vezes, dias ou horas depois do suicídio, o drama talvez se resolvesse. Se tivéssemos aberto o coração para alguém digno dessa confidência extrema, quem sabe nos salvaria um ombro amigo ou uma palavra de conforto verdadeiro.

Conheci alguns suicidas. Conheci famílias de vários deles. Fiquei envolvida nessa dor misturada com incredulidade e revolta, de quem foi deixado para trás, talvez sentindo-se traído: “Por que não me procurou?”. Mas não somos onipotentes.

Matou-se muito tempo atrás um adolescente amigo de meus filhos, todos naquela idade. Ainda lembro a tristeza e inquietação deles: “Quando foi que poderíamos ter ajudado? Quando ele quis pedir ajuda e a gente não percebeu, e só falamos bobagem e chamamos pra jogar bola?”. Lembro do suicídio do paciente de um amigo psicanalista, que lhe dera alta dias antes: “O que eu deveria ter visto? Onde falhei com ele, eu, profissional e pessoa que o estimava tanto?”. E o experiente médico chorou.

Nesses dias, mataram-se amigos de amigos meus: cada vez, espanto e dor, e a insensata culpa: “O que eu poderia ter feito, se soubesse?”. Provavelmente nada. Não sei o que leva alguém a se matar enquanto outros superam crises até mais graves. Há pessoas que nascem mal equipadas para a vida. Sua pele é tão delicada, que qualquer brisa pode ser o bafejo da morte. Há coisas que nem a melhor terapia, o melhor médico, o melhor pai ou mãe ou parceiro pode resolver: a busca de alívio e esquecimento, de um sono sem sonhos. Há um poço na alma humana onde ninguém penetra. Entrar lá significa para alguns o gesto final.

O jeito é acolhermos a todos, ainda que tardiamente, no mais respeitoso silêncio. Muita coisa nesta vida não faz sentido. Mesmo assim, é preciso querer viver.

domingo, 16 de julho de 2017



15 de julho de 2017 | N° 18898
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

  • À CATA DOS NOSSOS PEDAÇOS

    Um componente extremamente limitante no aprendizado do novo é o medo de errar, que pode ser disfarçado num debate coletivo, mas se revela inteiro na inquisição individual. Pergunte a um aluno qualquer coisa na frente da turma e ele, pressionado, por mais simples que seja a questão, só pensa em livrar-se do fardo estressante por meio do caminho mais curto, o do não sei.

    Quando o professor aceita a desistência, sem insistir, está se omitindo de ensinar duas lições importantes: que aprendemos mais corrigindo erros do que colecionando acertos fortuitos, e que a escola é o lugar onde errar causa menos danos.

    Ensinar alguém é prepará-lo para as escolhas que, certas ou erradas, marcarão o destino do indivíduo que se lança à vida, muitas vezes tendo como única arma o desejo de acertar.

    Muitos estudantes de Medicina fogem da alta complexidade, em que a margem de erro cresce exponencialmente pela instantaneidade da decisão e a chance de reparação é menor. Só esta percepção já é suficiente para espantar a maioria dos alunos que prefere se refugiar no trivial, que gratifica pouco, mas em compensação, não assusta nem castiga ninguém.

    Se a alta complexidade envolver alguma emergência, a ansiedade é ainda maior, e muitas vezes eclode sem considerar que o pobre paciente pode estar desperto o suficiente para captar a dúvida médica, esta que é a mais massacrante das percepções de quem esteja ameaçado de morte.

    O Rafael tinha ao redor de 20 anos, o cabelo comprido, a cara bonita e uns olhos enormes, provavelmente ampliados pela descoberta súbita de que a morte podia ser real, ainda que duas horas antes parecesse a coisa mais improvável do mundo. A última lembrança tinha sido a acelerada para aproveitar o sinal amarelo, a batida lateral que fizera o carro rodopiar e o volante que assumira vontade própria e começara a girar loucamente.

    Depois, não lembrava mais nada até chegar nesta sala com luz em demasia e uma sensação de umidade nas costas, de onde a mão esquerda voltou vermelha. Como não sentia nada, fantasiou que o sangue devia ser de outra pessoa.

    Percebendo que estava consciente, com o pânico na vitrine daqueles olhos enormes, apressei-me em explicar-lhe que este estágio do atendimento era muito importante porque estávamos determinando as prioridades para que ele ficasse bem. Ele, então, estendeu-me a palma ensanguentada e implorou: “Esta mão é a única parte do meu corpo que eu estou sentindo. Podes tomar conta dela, que é prioridade para mim?”.

    É difícil cuidar dos pedaços de um corpo destroçado e simultaneamente preocupar-se com o que o dono dele esteja pensando.

    Mas quem disse que ser médico seria fácil?


15 de julho de 2017 | N° 18898
MARTHA MEDEIROS
  • Quando eu estiver louco, SE AFASTE

    Há que se respeitar quem sofre de depressão, distimia, bipolaridade e demais transtornos psíquicos que afetam parte da população. Muitos desses pacientes recorrem à ajuda terapêutica e se medicam a fim de minimizar os efeitos desastrosos que respingam em suas relações profissionais e pessoais. Conseguem tornar, assim, mais tranquila a convivência.

    Mas tem um grupo que está longe de ser doente: são os que simplesmente se autointitulam “difíceis” com o propósito de facilitar para o lado deles. São os temperamentais que não estão seriamente comprometidos por uma disfunção psíquica – ao menos, não que se saiba, já que não possuem diagnóstico. São morrinhas, apenas. Seja por alguma insegurança trazida da infância, ou por narcisismo crônico, ou ainda por terem herdado um gênio desgraçado, se decretam “difíceis” e quem estiver por perto que se adapte. Que vida mole, não?

    Tem uma música bonita do Skank que começa dizendo: “Quando eu estiver triste, simplesmente me abrace/ quando eu estiver louco, subitamente se afaste/ quando eu estiver fogo/ suavemente se encaixe...”. A letra é poética, sem dúvida, mas é o melô do folgado. Você é obrigada a reagir conforme o humor da criatura.

    Antigamente, quando uma amiga, um namorado ou um parente declarava-se uma pessoa difícil, eu relevava. Ora, estava previamente explicada a razão de o infeliz entornar o caldo, promover discussões, criar briga do nada, encasquetar com besteira. Era alguém difícil, coitado. E teve a gentileza de avisar antes. Como não perdoar?

    Já fui muito boazinha, lembro bem.

    Hoje em dia, se alguém chegar perto de mim avisando “sou uma pessoa difícil”, desejo sorte e desapareço em três segundos. Já gastei minha cota de paciência com esses difíceis que utilizam seu temperamento infantil e autocentrado como álibi para passar por cima dos sentimentos dos outros feito um trator, sem ligar a mínima se estão magoando – e claro que esses “outros” são seus afetos mais íntimos, pois com colegas e conhecidos eles são uns doces, a tal “dificuldade” que lhes caracteriza some como num passe de mágica. Onde foi parar o ogro que estava aqui?

    Chega-se a uma etapa da vida em que ser misericordioso cansa. Se a pessoa é difícil, é porque está se levando a sério demais. Será que já não tem idade para controlar seu egocentrismo? Se não controla, é porque não está muito interessada em investir em suas relações. Já que ficam loucos a torto e direito, só nos resta se afastar, mesmo. E investir em pessoas alegres, educadas, divertidas e que não desperdiçam nosso tempo com draminhas repetitivos, dos quais já se conhece o final: sempre sobra para nós, os fáceis.


15 de julho de 2017 | N° 18898
LYA LUFT
  • Melhor nem saber

    Impressionante nossa obstinação por entender, por resolver, por não ter dúvidas, por obter todas as explicações. Um mundo totalmente explicado seria como um deserto sem graça, sem desenhos de luz e sombra, sem vento levando areia, sem um oásis aqui e ali. Mas nós desesperadamente insistimos: “Como é que eu não entendo isso? Espera um pouco, ainda não entendi. Pode explicar de novo? O que significa isso? O que você, ou ela, ou ele, queria dizer?”.

    A não ser em questões de ciência, isso me parece obtusidade mental ou delírio. Pior: mesmo numa obra de arte, nos espantamos se tudo não for de uma obviedade pobre e rala: o que significa? Como você explica isso? (E a obra de arte nem foi feita por nós...) Talvez a arte não se deva dissecar feito cadáver, mas nos fazer sentir, recriar, nos instigar? Mesmo alunos, até universitários, às vezes detestam aulas em que as coisas os levam a pensar, em vez de serem oferecidas mastigadas e regurgitadas na mesa... embora educar deva ser, sobretudo, ensinar a pensar.

    Freud, o Velho, sorriu com aquele seu jeito de velho pai divertido com as maluquices dos filhos, respondendo à pergunta mais boba do mundo – se o seu inseparável charuto era um objeto fálico: “Às vezes, meus caros, um charuto é só um charuto”. Virginia Woolf, com seus enigmas e labirintos, pressionada, quase tentou se desculpar porque não era explicável: “Eu trabalho com símbolos e emoções. Se tudo for desvendado, não terei mais por que escrever”.

    E esta que aqui lhes fala escreveu há décadas: “Se digo flor é flor, se digo água é água. Mas pode ser disfarce de um segredo. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da interpretação”.

    Mas nós queremos tudo claro, simples, fácil. Pensar cansa! Mil vezes escutamos ou afirmamos, em tom de protesto, quase indignação: “Não entendi. Não entendo mais nada. O que quer dizer isso?”. O obscuro, o nebuloso, por pouco que seja, nos ofende. Queremos sol batendo de chapa, nada de nuvens ou névoas. As bizarrices ou banalidades nos dão ímpeto de desmontar, examinar, esfolar, quem sabe roubar o que nos intriga, isto é, matar.

    Pois eu começo a achar que nestes confusos dias pode ser melhor não querer explicar. Logo, tudo há de se complicar ainda mais, e se fundir, se confundir, se desfazer e desdizer: ações humanas, loucuras públicas, vexames pessoais ou enigmas transcendentes, andam mudando como a brisa, recuando como a maré vazante.

    Desistam de entender: ou tudo perde o restinho de graça e interesse que ainda nos ilude Clarice, a Lispector, durante um evento literário no Rio, sentada na primeira fila enquanto doutores em Teoria Literária discorriam sobre sua obra, se levantou, segurou a bolsa nas duas mãos, virou-se para o público e disse naquela sua voz rascante com erres singulares: “Essa de que aí estão falando não sou eu”.

    Virou-se e saiu, acompanhada de dois ou três de seus jovens admiradores. Na calçada, disse laconicamente: “Quero comer camarão”. Ferreira Gullar, querido, sofrido, brilhante, sarcástico e sutil, diz essa maravilhosa frase, “a arte existe porque a vida não basta”. Não faltará quem proteste: “Mas o que ele quis dizer com isso?”.

sábado, 8 de julho de 2017



08 de julho de 2017 | N° 18892 
PIANGERS

Crime e castigo

Fiquei sem palavras quando me disseram que castigo era algo não recomendado para crianças. Gente, eu preciso que as minhas filhas me obedeçam!, foi o que eu pensei. O castigo é uma ótima forma de resolver tensões. Se a mais velha responde de forma mal-educada, perde o celular. Se a mais nova se recusa a tomar banho na hora certa, fica sem televisão. Com uma frase mágica, vai ficar de castigo, as meninas se ajeitavam e me obedeciam na hora. É ótimo! É prático! Por favor, não me tirem o castigo!

Já nos tiraram tantas coisas! A palmada, as escolas focadas em conteúdo, os iPads, os desenhos nas manhãs da Globo. Não me tirem mais esta ferramenta para terceirizar a educação dos meus filhos e me abster da responsabilidade de conversar com eles. Por favor, não!

Foi mais ou menos o que senti quando me disseram que castigo é algo ruim para as crianças. Me explicaram calmamente que, quando castigamos uma criança, ela se comporta pelo motivo errado: em vez de entender o que fez de errado e nunca mais repetir, finge estar arrependida apenas para não ser mais castigada. E volta a fazer errado, porque acha que está certa. E, o pior, faz errado escondido, para não ser castigada.

Dureza, senhores. Estes cientistas que fazem pesquisas comportamentais com crianças estão aqui apenas para complicar nossas vidas. Isso é fato!

Fui posto à prova no domingo passado. A de cinco anos chorava porque um primo tinha pego sua bicicleta. Chorava indignada, alto, daqueles choros que constrangem os pais em público. Minha vontade era enfiar a menina no carro e deixá-la lá por cinco minutos (uma vez me disseram: “um minuto de castigo para cada ano de idade”). Resolvi ouvir os cientistas. Evitei o castigo. 

Fui até a menina chorona, me abaixei, ouvi o que ela tinha pra me dizer, expliquei que eu também ficaria muito irritado se fosse comigo. Ela se acalmou. Nos abraçamos. Disse que fosse até o primo explicar que a partir dali cada um brincaria por cinco minutos com a bicicleta. Um pouco pra cada um. Ficou tudo certo no final.

Criar filhos está cada vez mais complicado. Só não me digam que Peppa Pig faz mal, pelo amor de deus.


08 de julho de 2017 | N° 18892 PALAVRA DE MÉDICO
J. J. Camargo é cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre

A SUTILEZA DO DISCURSO

Toda informação precisa ser direcionada ao público-alvo com sensibilidade. Desde que aprendemos que o melhor tratamento da doença é a prevenção, estamos sendo coerentes em divulgar as práticas que, com fundamento científico, mostraram-se efetivas. De qualquer maneira, toda informação séria, sabidamente útil, ainda precisará ser direcionada ao público-alvo com sensibilidade e sutileza.

É completamente previsível que a mesma recomendação acatada com ávido interesse pela população de meia idade será desdenhada pelos jovens que estão vivendo a maravilhosa fase da vida em que predomina a certeza da imortalidade.

Por isso, não perca tempo e trate de fugir do ridículo de ameaçar com doenças degenerativas adolescentes embalados pela fantasia de que tudo o que não tem chance de ocorrer na próxima semana não tem a menor importância. E não há como decodificar para o entendimento deles essas mensagens assustadoras que falam de doenças que, no máximo, evocarão a lembrança dos avós, já bem velhinhos e, portanto, vítimas daquela idade que para eles nunca chegará.

Aprendi essa lição ao ser convidado para falar dos malefícios do fumo para uma turma de adolescentes de uma escola da classe média alta. Meu projeto didático era o de causar impacto, porque estava influenciado pelas campanhas publicitárias do Ministério da Saúde, que decidira colocar nas carteiras de cigarro as fotos mais horripilantes das patologias provocadas pelo tabagismo. 

Eu devia ter interpretado melhor uma história que me contara um paciente, irreverente e debochado, da sua estratégia para seguir fumando sem sentimento de culpa: sempre selecionava a carteira da sua marca preferida pela advertência. Aos 55 anos, fumante desde os 12, só comprava cigarros com o rótulo mais inofensivo para si: “Fumar faz mal para o desenvolvimento do feto”.

Ao ser indagado na conferência sobre quanto tempo de fumo era necessário para colocar uma pessoa na condição de candidato de risco, e eu respondi, honestamente, que pelo menos 20 anos, percebi que as ilustrações de tumores gigantes e enormes bolhas de enfisema não causariam mais do que a sensação de enfaro numa plateia que se sentia separada da ameaça pela proteção de uma eternidade. 

As coisas começaram a mudar quando trouxe o problema para mais próximo, descrevendo os mecanismos de envelhecimento precoce da pele, acelerando o surgimento de rugas e celulite e, então, pela primeira vez, ganhei a atenção das meninas. Mas os garotos continuavam debochados, e os risinhos só cessaram quando impiedosamente descrevi o efeito danoso da nicotina sobre a intensidade e o tempo da ereção. Atingindo o território sagrado de ambos os sexos, a conferência finalmente começou depois de um tempo perdido com informações ingênuas e inócuas. 

E, então, caiu no colo um presente inesperado: um jovem saradão, com uma cara bonita e uma namorada linda que lhe beijava a orelha com frequência, sentado na primeira fila, resolveu fazer uma pergunta provocativa: “E você, cara, nunca fumou?”. A resposta foi a minha redenção: “Olha, meu filho, quando eu tinha a sua idade, arranjei uma namorada que era quase tão bonita quanto a sua (era de se ver o deslumbramento da moça com o comentário!). 

Naquela época, eu não sabia onde pôr as mãos, e comecei a fumar. Assim que descobri o que fazer com elas, parei de fumar”. A julgar pelas risadas, ele não devia ser o mais querido da turma, e isso talvez tenha contribuído para a quebra do gelo, que instantaneamente instalou a promissora condição de parceiros confidentes. Foi a sensação que tive nos 40 minutos de perguntas que se seguiram. É mais fácil tirar dúvidas com quem se parece com a gente.



08 de julho de 2017 | N° 18892 
MARTHA MEDEIROS

Admitir o fracasso

Eu estava dentro do carro em frente à escola da minha filha, aguardando a aula dela terminar. A rua é bastante congestionada no final da manhã. Foi então que uma mulher chegou e começou a manobrar para estacionar o seu carro numa vaga ainda livre. Reparei que seu carro era grande para o tamanho da vaga, mas, vá saber, talvez ela fosse craque em baliza. Tentou entrar de ré, não conseguiu. Tentou de novo, e de novo não conseguiu. E de novo. 

E de novo. Por pouco não raspou a lataria do carro da frente, e deu umas batidinhas no de trás que eu vi. Não fazia calor, mas ela suava, passava a mão na testa, ou seja, estava entregando a alma para tentar acomodar sua caminhonete numa vaga que, visivelmente, não servia. Ou, se servisse, haveria de deixá-la entalada e com muita dificuldade de sair dali depois. Pensei: como é difícil admitir um fracasso e partir para outra.

Para quem está de fora, é mais fácil perceber quando uma insistência vai dar em nada – e já não estou falando apenas em estacionar carros em vagas minúsculas, mas em situações variadas em que o “de novo, de novo, de novo” só consegue fazer com que a pessoa perca tempo. Tudo conspira contra, mas a criatura teima na perseguição do seu intento, pois não é do seu feitio fracassar.

Ora, seria do feitio de quem?

Todas as nossas iniciativas pressupõem um resultado favorável. Ninguém entra de antemão numa fria: acreditamos que nossas atitudes serão compreendidas, que nosso trabalho trará bom resultado, que nossos esforços serão valorizados. Só que às vezes não são. E nem é por maldade alheia, simplesmente a gente dimensionou mal o tamanho do desafio. Pensamos que daríamos conta, e não demos. Tentamos, e não rolou. 

“De novo!”, ordenamos a nós mesmos – e ok, até vale insistir um pouquinho. Só que nada. Outra vez, e nada. Até quando perseverar? No fundo, intuímos rapidinho que algo não vai dar certo, mas é incômodo reconhecer um fracasso, ainda mais hoje em dia, em que o sucesso é superfaturado por todo mundo. Só eu vou me dar mal? Nada disso. De novo!

Desista. É a melhor coisa que se pode fazer quando não se consegue encaixar um sonho em um lugar determinado. Se nada de positivo vem desse empenho todo, reconheça: você fez a escolha errada. Aprender alemão talvez não seja para sua cachola. Entrar naquela saia vai ser impossível. Seu namorado não vai deixar de ser mulherengo, está no genoma dele. Você irá partir para a oitava tentativa de fertilização? Adote. 

E em vez de alemão, tente aprender espanhol. Troque a saia apertada por um vestido soltinho. Invista em alguém que enxergue a vida do seu mesmo modo, que tenha afinidades com seu jeito de ser. Admitir um fracasso não é o fim do mundo. É apenas a oportunidade que você se dá de estacionar seu carro numa vaga mais ampla e que está logo ali em frente, disponível.

Desista. É a melhor coisa que se pode fazer quando não se consegue encaixar um sonho em um lugar determinado. Se nada de positivo vem desse empenho todo, reconheça: você fez a escolha errada.


08 de julho de 2017 | N° 18892 
LYA LUFT

Atrás do biombo


Raramente comento aquilo que estou escrevendo. Há meses, comecei um novo livro, e posso até ter partilhado com os leitores desta coluna alguma coisa como: o nome seria A Caixa de Pandora, o assunto seriam os sentimentos humanos. Se não comentei, agora está dito. Acontece que, ao menos com esta aqui, o livro surge quando quer. Certa vez, o velho querido professor Guilhermino Cesar – eu ainda nos primeiros romances – me disse algo como “uma de suas virtudes é que você só escreve o livro que quer ser escrito, e termina antes que acabe a respiração”.

Nenhum elogio convencional, do tipo “você escreve muito bem”, ou crítica arrasadora, como “melhor que tivesse ficado quieta”. Ainda penso no que disse o mestre. Um livro meu, razoável, tem de querer ser escrito, e aquela Caixa não estava a fim. Claro que alguém que se aventura na escrita precisa no mínimo escrever direito, com naturalidade, pois tem de manejar seu instrumento básico assim como o cirurgião precisa saber manejar seu bisturi. Mas não basta. E aquela Pandora não simpatizou comigo. Eu escrevia, e tudo saía sem graça. Talvez porque, como eu disse numa palestra, “quando é demais, até a desgraça perde a graça”.

Ainda por cima, apareceu um ramo da Lava-Jato chamado A Caixa de Pandora, e a minha foi imediatamente deletada, para não pensarem que eu entrava de novo nessas areias movediças. Desisti do livro, avisei o editor, “sem problemas, um dia você escreve outro”. Tempos depois, eu naquela falsa vagabundagem lírica que parece uma preguiça fenomenal, surge o novo livro, este que agora escrevo: A Casa Inventada. Não vou falar dele. Apenas revelo que, a certo momento, em certo lugar dessa casa, há um biombo. Nem alto, nem baixo, nem claro, nem escuro, nem fechado, nem rendado, nem real, nem imaginário. Lá está, intrigante e um pouco deslocado.

Por trás dele, abre-se uma das coisas mais preciosas que temos: o espaço do silêncio. Esse, temido por tantos, desejado por alguns, aproveitado por poucos de nós. Primeiro, aquele silêncio que é alívio, como quando a gente entra numa sala e todo mundo está falando alto, assuntos diferentes, TV ligada com volume espantoso, alguém rindo, criança chorando, cachorrinho latindo (quem sabe um gato miando), e a gente pede “pelo amor de Deus, podem baixar esse volume todo?”. E todo mundo se cala, nos olha, alguém desliga a TV, e imediatamente todos, todos, suspiram. Que maravilha, o silêncio.

Atrás desse meu biombo, que ainda estou construindo, abre-se o reino em que podemos escutar a nossa própria voz, ou as vozes de dentro: que nos encantam, nos assustam, nos atordoam, das quais queremos beber o segredo ou fugir em disparada. Gosto do silêncio, muito. Desde que ali perto estejam as vozes amadas, em alguma parte um barulho de chuva e, ainda que longe, o rumor do mar. 

Como nos espelhos permanecem para sempre as figuras que um dia ali se refletiram, acredito que guardamos no nosso silêncio a memória de todas as vozes ouvidas: amorosas e sábias, cretinas ou hostis. As vozes do mundo. E a nossa voz perguntando baixinho: “Afinal, o que é tudo isso que chamamos vida – e o que estou fazendo com a minha?”.

sábado, 1 de julho de 2017



01 de julho de 2017 | N° 18886
LYA LUFT

Vale a pena

Viver é andar de conflito em conflito, buscando a harmonia que nos dê sossego ao coração sempre agitado, em raras ocasiões ancorado num momento tranquilo. Na vida pessoal ou profissional, lutamos. Buscamos. Perseguimos. Achamos, perdemos, realizamos, fracassamos, às vezes desacreditamos ou pensamos desacreditar de tudo: “Eu não acredito em mais nada”, me pego afirmando – era mentirinha. Porque, afinal, vivemos de acreditar: que teremos comida na mesa, teto sobre a cabeça, alguém amado perto, porta para entrar e para sair, alguma ocupação e, mais do que tudo, alguma importância... ainda que para uma só pessoa.

 “Com as perdas, só há um jeito, perdê-las” – escrevi certa vez, não lembro onde. Acredito nisso. Há que se persistir por algum tempo, mas há que se ter a sabedoria, ainda que rara e rala, de saber quando é hora de deixar que a corrente da vida carregue o que não pôde (ou não pode mais) ser nosso.

Alguns andam desanimados, e não é para menos. Além dos horrores da coisa pública, quando se tem algumas décadas de vida, amigos adoecem ou se vão em definitivo. Talvez a pior coisa do tempo passando seja perder amados e amigos, alguns de uma vida inteira. Mas os que ainda sobram, não apenas sobram: eles vivem, se agitam, pelo menos em emoção e pensamento, leem seus livros, veem sua televisão, convocam seus filhos, amam seus netos, lembram as amizades e telefonam ou, em geral – viva eles –, comunicam-se no WhatsApp.

E ainda conseguem ter os seus conflitos: briguinhas, fofocas indevidas, curiosidades infantis, reclamar do açougueiro, do cabeleireiro, do jornal, da TV, do filho que demora a ligar, dos netos que, vibrando em suas idades magníficas, não se lembram de que alguém, ali, vai adorar ver suas belas carinhas e se divertir com suas conversas que às vezes nem entendem. Surpreendo-me pedindo aos netos e netas que falem mais devagar ou mais alto, “porque a vovozinha aqui tá meio surda”, e todos achamos graça. Brincadeira minha, e a velocidade dessas jovens e belas vidas me livra de qualquer tédio. 

Aliás, ando cada vez mais contemplativa. Feliz olhando a paisagem, feliz ouvindo a chuva, feliz lendo esse novo livro bastante difícil, feliz porque ainda consigo pintar nuvens e mar e até começar a escrever um novo livro... Feliz porque daqui a pouco a chave na porta de entrada anunciará que o maridão chega do trabalho.

Incrível como, a certa altura, se não formos do tipo lamuriento e resmungão, as coisas mínimas nos dão prazer: não precisamos mais visitar as ilhas gregas, andar na bela Londres, percorrer de carro a amada Itália, visitar os mais espetaculares museus, voltar aos jardins de Giverny aspirando Monet, um de meus prediletos. Ao menos, não sofremos por isso.

    Ficar quieto (não demais) também é bom: curtindo o tesouro acumulado na alma – porque o que se perdeu continua ali, se a gente souber ver: os afetos, as memórias, as descobertas, as alegrias e a capacidade de novas alegrias –, por que não? Então, mesmo que o mundo ande confuso e ameaçador e estejamos quase todos mais pobres, se a gente não bobear, toda a conturbada, fascinante, assustadora, intrigante vida humana continuará se desenrolando diante de nós.

E minha lulu da Pomerânia, Melanie, deitada no tapete a meu lado, nunca deixa de me contemplar com esse ar de adoração – que já faz valer a pena iniciar o dia.



01 de julho de 2017 | N° 18886
MARTHA MEDEIROS

O fusca amarelo

Não faço a mínima ideia aonde essa crônica chegará, mas a arrancada se deu por causa de um fusca amarelo. Foi no estacionamento subterrâneo de um clube que o vi pela primeira vez, com os quatro pneus vazios e a carcaça começando a apodrecer. Foi deixado em uma vaga, como ficam os automóveis que nos levam a uma aula de natação, a uma partida de tênis, a uma sessão de academia, certos de que logo terão seus motores acionados e que reconduzirão seus donos aos seus lares. Mas não foi esse o destino do fusca amarelo. 

Ele foi estacionado e abandonado como um cão numa estrada em véspera de feriado. Jogado fora como se não tivesse em seu currículo vários anos de serviços prestados, como se não tivesse testemunhado idas à igreja, não tivesse buscado filhos em escolas, não tivesse levado a família para a praia, não tivesse engolido fitas k-7, não tivesse ocultado amassos, não tivesse feito seu dono chegar pontualmente ao trabalho.

Um carro pode ser considerado lataria, ferro-velho, mas um dia ele foi o sonho dourado de alguém. Posso imaginar o Renato, o Luiz, o Carlos – ou a Suélen, a Elvira, a Carmem – paquerando o fusca amarelo na concessionária ou cobiçando-o num quadradinho dos classificados, juntando os trocados para a primeira prestação, e então, numa abençoada manhã, levando-o para casa, buzinando rente à calçada, bi, bi, fon, fon, o novo integrante do clã dos Santos, dos Silva, dos Cardoso, dos Pereira, dos Assunção. Que nome e sobrenome constavam no documento que confirmava sua aquisição? Quem era seu dono, afinal?

Terá ele estacionado o fusca e então morrido afogado na piscina do clube, e o corpo nunca encontrado? Terá estacionado o fusca e depois saído para comer num restaurante do bairro e morrido de congestão ou envenenado? Terá estacionado o fusca e voltado a pé para casa, primeiro indício de um Alzheimer ainda não diagnosticado? Terá estacionado o fusca e roubado o Jaguar que estava dando mole na vaga ao lado? Terá estacionado o fusca e deixado impressões digitais que para a cadeia o teriam levado? Quem resiste a imaginar uma história que seja secreta e deliciosamente mal contada?

Vai ver o dono do fusca amarelo ou sua proprietária tenha acumulado carnês a pagar e acreditou que alienar o produto saldaria o débito automaticamente – ah, os inocentes, sempre encalacrados.

Em que data o fusca entrou no estacionamento coberto e nunca mais saiu, quanto haverá de dívida acumulada nessas centenas de diárias não cobradas, onde diabos se meteu o motorista que se irritou bestamente por uma bateria que morreu e não foi trocada?

Ou, vai ver, foi nada disso. Ainda assim, presto minha reverência a este mistério que me deu carona até chegar aqui, na última linha, sua última corrida.



01 de julho de 2017 | N° 18886
CARPINEJAR

Retrato de Dorian Gray na web

É pelas fotos das redes sociais que as pessoas revelam o seu problema com a idade. Nem é questão de filtro e da tradicional maquiagem digital.

Eu me refiro a imagens que postamos em nossas identidades no Facebook, no telefone, no WhatsApp, no Instagram. Quando deixamos de lado a nossa atualidade para fazer estranha repescagem e publicar fotos de cinco anos atrás. É um sinal claro e evidente de que o medo de envelhecer chegou pulando com os dois pés cantando Ilariê.

Quem usa fotos antigas já está sofrendo da síndrome de se esconder do tempo.

Verifica-se alguém feliz, pena que absolutamente desatualizado, reinando em cena ancestral e paradisíaca em algum lugar do passado. Quem é careca ainda tem cabelo. Quem é gordo ainda tem cintura. Quem é enrugado ainda não virou ceia de natal com os pés de galinha.

Luta-se para manter a aparência de antes, numa mentirinha visual, numa pequena e venial desonestidade. Tenta-se enganar a passagem do calendário congelando os rostos.

O perfil não traz a melhor fotografia, e sim a que expressa e encarna a juventude de outrora.

É o que mais acontece na web: a falta de aceitação da mortalidade e dos efeitos da vida.

Porém, percebo casos mais graves que esse: de quem coloca foto de um detalhe (o lado mais fotogênico da boca, uma porção bonita do lóbulo e um recorte do olhar) e, ainda, aquele que não acha mais nada que preste em seu álbum e puxa um bonequinho da infância. Numa hierarquia possível, são os que menos admitem o seu atual estágio do corpo.

O que não encontro mesmo nas páginas dos quarentões, cinquentões e sexagenários é foto da adolescência. Não há fotos da adolescência. O que prova que a adolescência não existe. A adolescência é um purgatório da personalidade. Eu, por exemplo, devo ter queimado os registros do meu penteado Chitãozinho e Xororó, dos brincos de cruz de Nina Hagen, da barba de espinhas, dos coletes new wave. Ninguém é perfeito, mas a adolescência exagera nos defeitos.