sábado, 29 de abril de 2017



29 de abril de 2017 | N° 18832 
LYA LUFT

Intimidades

Quando menina, acreditei no Papai Noel até uns seis anos, no Coelho da Páscoa, mais ou menos isso, e na cegonha, até uns oito. Eram outro século, outras gentes, outras ideias e outras vidas. Além disso, sempre fui considerada meio pateta e desligada para esses assuntos. Até que um dia, num grupinho de amigas de oito e nove anos, do qual eu era a maior e mais novinha – e não me deixavam entrar em certos segredos –, alguém perguntou se era possível que eu ainda acreditasse na cegonha.

Não sei o que respondi, mas fiquei muitíssimo humilhada, ainda sinto vermelhos rosto e orelhas, e claro que as outras começaram a rir. A mais velha, gravemente, disse: “Então eu vou te ensinar”. A plateia fez um círculo, atentíssima. Gelei, entre curiosa e amedrontada. Ali vinha algo muito inquietante, e eu por qualquer bobagem me inquietava.

A história, grotesca, para mim então assustadora, era mais ou menos isto: “Os nenês são miudinhos assim, do tamanho de um grão de feijão, e estão na barriga do pai. Um dia, o pai os passa pra barriga da mãe por uma borrachinha, e depois de uns meses a gente nasce”. Fui poupada do detalhe da dor ou de abrirem a barriga com uma faca, mas mesmo assim passei dias imaginando, entre comovida a aterrada, os bebezinhos minúsculos passando pela tal borrachinha, e em que circunstâncias isso se daria.

Não acho que as coisas hoje sejam piores do que nossa ignorância de então. Mas comentários sobre sexo “fluido”, isto é, sem gênero específico, entre pré-adolescentes, além de beijo rolando à solta, e o comentário de um menino, “Ué, a senhora nunca ouviu falar em sexo casual?”, numa festinha outro dia, me fizeram pensar. Não fiquei muito espantada, mas mesmo assim depois ri de mim mesma: também, o que poderia esperar de quem acreditou na cegonha até os oito?

Acho bom sermos naturais e sinceros. Detesto hipocrisia e falso moralismo. É bom sermos instruídos e não abobados. Mas me preocupa um pouco esse sexo fluido ou casual entre jovenzinhos. Sei que não são todos, talvez nem a maioria, quem sabe ainda se preserva alguma coisa de mágico, romântico, como sexo com alguém muito especial – coisa que nem acho ridícula, nem ultrapassada, mas humana, madura, e bela. 

Lógico que sou antiquada. Minha adolescência foi há décadas atrás. Mas não fiquei com a alma enrijecida. Amo e prego a liberdade, que seja com cuidado. Com gentileza, com alguma sabedoria, pois, mesmo – ou especialmente – quando adolescentes, não somos obtusos.

As delícias e sustos do namoro, do amor, da paixão, do sexo com paixão, ternura e alegria, a graça de ver alguma graça em tudo o que implica relações humanas amorosas, mesmo em idade precoce comparando a anos atrás, tudo isso não deveria se perder. Há muita bazófia entre jovenzinhos: “Eu já transei, eu já beijei, já fiquei. Beijei quinze meninas ontem à noite, fiquei com seis rapazes ontem à tarde”. O que significa isso? 

Que sentimos carinho, encantamento, ou mesmo êxtase, com uma porção de parceiros e parceirinhas? Ou é uma moda, uma espécie de obrigação, que mais se finge e se fala do que de verdade se pratica? Não sei. Pouco sabemos uns dos outros. Mas, no fundo mais fundo, queria que algo se preservasse de íntimo na intimidade das gentes.



29 de abril de 2017 | N° 18832 
MARTHA MEDEIROS

Apoteótico

Nada de traje passeio ou passeio completo. Era assim mesmo que estava escrito no convite: “Dress code: apoteótico”

Recebi convite para uma festa, mas não qualquer festa. O aniversariante era um dos ícones da cena cultural brasileira e o evento prometia parar a noite de São Paulo. Me dei conta do tamanho da encrenca quando li o dress code sugerido: apoteótico. Nada de traje passeio ou passeio completo. Era assim mesmo que estava escrito no convite: Dress code: apoteótico.

Nem o descolado guia da Mauren Motta, Socorro! Com que Roupa Eu Vou? havia me preparado para esse desafio. O que seria uma roupa apoteótica? Teria que fazer uma busca no closet da Claudia Raia? Apelar para alguma rainha de bateria? Cheguei a pensar que um jeans rasgado e uma camiseta branca poderia causar um efeito triunfal às avessas, e já estava quase levando essa ideia a cabo quando minha mãe me mostrou uma foto da minha festa de 15 anos, em que aparecíamos abraçadas. Ela perguntou: o que você acha deste vestido?

Pânico. Até então sua atividade cerebral andava perfeita, como poderia ter degringolado tão rapidamente?

“Mãe, você está sugerindo que eu vá com o meu vestido de 15 anos?”

Ela: “Martha, você não guarda nem o recibo da conta de luz, acha mesmo que eu acreditaria que guarda um vestido que usou aos 15 anos? E mesmo que guardasse, ele hoje estaria completamente amarelado e com mais rombos do que esse jeans destruído que você não tira do corpo”.

Ufa. Atividade cerebral em pleno funcionamento.

“Estou perguntando sobre o meu vestido, Martha, o meu!”

Minha mãe guarda não só todos os recibos da conta de luz desde que Thomas Edison inventou a lâmpada, como tudo o que tiver valor afetivo, e pra ela tudo tem – incluindo roupas que inexplicavelmente não amarelam e não são devoradas por traças. Olhei bem dentro dos seus olhos a fim de detectar algum prenúncio de loucura, mas ela continuou me encarando como se estivesse em seu juízo perfeito.

Na festa havia mulheres deslumbrantes vestidas com muito brilho (uma inclusive com lampadinhas acesas por baixo de uma saia de tule – medo!), outras vestindo quase nada, algumas com roupas de princesa, outras fantasiadas de personagens que não conheço e adivinhe quem roubou a cena? Claudia Raia, claro. Poderosa numa túnica longa de tecido dourado reluzente e com um capuz misterioso na cabeça, de um glamour a toda prova.

Eu fui com o vestido preto que minha mãe usou na minha festa de debutante – há exatos 40 anos. Segui a tendência de Hollywood: moda sustentável, elegância vintage, espírito retrô – só a cara de pau ainda estava com a etiqueta. Apoteose? Temos.



29 de abril de 2017 | N° 18832 
CARPINEJAR

Vi e Mari

Sempre eu me espantava o tanto que os meus filhos cresceram. Nas roupas, nos gestos, nas tiradas, na defesa dos argumentos. Pasmo que o tempo vai nos empurrando para a frente e não traz nenhuma pausa para repetir as cócegas na barriga deles ou carregá-los na garupa durante os shows de música.

Vicente, 15 anos, ultrapassou a minha altura até então imponente na casa. Mariana, 22, decidiu corrigir meu português até então indefectível na casa. O pai idealizado vai sendo substituído pelo amigo humano, imperfeito e feito de falhas perdoáveis e cômicas.

Logo mais cederei o meu lugar na cabeceira da mesa. Naturais o crescimento e a crítica cada vez mais exigentes.

Como não existe como segurar a idade, o que noto em mim é uma metamorfose do olhar. Há uma inversão de minha mirada diante dos filhos. Como eles amadureceram rapidamente, deixo de procurar em suas feições os adultos que se tornaram para reaver as crianças que um dia foram. Cato e recolho agora resquícios da infância em suas atitudes.

Mudei minha expedição: não perseguir mais o futuro, e sim a pureza e a magia da criancice intactas em alguma de suas frases e expressões. Folheio em seus rostos o nosso velho álbum de fotografias. Não me interessa mais saber se são parecidos com o pai ou com a mãe, com o avô ou avó, o que importa é encontrar semelhança com eles mesmos de antigamente.

Minha luta é identificar o que mantém de quando eram crianças: talvez a curiosidade, ou a risada desbragada, ou a teimosia de dormir tarde ou a pressa de comer quando amam uma refeição.

Minhas pupilas têm pinças e espátulas para não estragar as asas das borboletas do jardim do Éden.

Todo pai, depois de ser um profeta, converte-se num arqueólogo. Não está centrado em adivinhar quem serão os seus filhos, dispõe a proteger a ternura dos laços primevos.

Eu me esforço em não esquecer o começo. Serei a retaguarda deles por toda a vida. Irei guardá-los quando precisarem recuperar as suas identidades.

Enquanto avançam, recuo nostalgicamente. Não estranho que voltei a adotar os apelidos que usava quando ainda trocavam as fraldas: Vi e Mari. Recorro à diminuição proposital de seus nomes para preservar o amor da filiação.

Assim como meus pais nunca mais me chamaram de Fabrício, porém de Bito. Para não esquecer que serei eternamente uma criança para quem me criou e educou. Maturidade é jamais negar a nossa origem.

sexta-feira, 28 de abril de 2017


Jaime Cimenti

Gaivotas no triplex do Guarujá 

Antigamente, as gaivotas viviam tranquilamente entre as areias e as ondas do Guarujá, sem preocupações, comendo, voando, sentindo os dias, as noites, o sol, a chuva e as estrelas passarem naturalmente, aguardando, sem medo, a hora de desencarnar.

Aí então alguns líderes do grupo das gaivotas do Guarujá descobriram que havia um triplex desocupado, à beira-mar, e resolveram dar um voo alto e se instalar no terraço do apartamento. Não sabiam de nada sobre o local e foram permanecendo. Gaivotas são pacíficas, democratas, simples e não aspiram muito.

Para elas, viver, comer, dormir, saber voar e apreciar a natureza bastam. A não ser para o Fernão Capelo Gaivota, do livro célebre do Richard Bach, que resolveu inovar, voar mais alto e diferente e transformar a vida do seu clã. Mas isso é outra história, outra ficção.

As gaivotas do Guarujá sabem, meio por cima, das questões que envolvem o famoso triplex e aguardam, serenamente, que as coisas se decidam. No início, nem se preocupavam com o assunto, depois resolveram acompanhar os fatos e as notícias. Gaivotas não se preocupam com papéis, compras, shoppings, consumo, competição e outras modernidades dos humanos. Elas simplesmente vivem, voam e sobrevoam, desde nem sabem quando e até quando também não sabem. Não estão preocupadas com fim de mundo, distopias, utopias e outras considerações demasiado humanas para elas.

Mas no mundo as coisas mudam, evoluem. Na vida, na ciência e na arte, a coisa é assim meio tipo infinita, todo mundo sabe. Há quem diga que o bando de gaivotas do Guarujá está usando redes sociais e se comunicando com gaivotas de todo o País e até do exterior para uma realizar uma grande assembleia à beira-mar e pensar na realização de ações com vistas às reformas e mudanças necessárias.

Disseram que algumas gaivotas pensam em escolher novos líderes, se envolver com a realidade, dar uma renovada em velhos hábitos do mundo. Outros dizem que as aves chegaram a pensar numa revoada de milhares, milhões, em direção às sedes dos poderes para protestos, ocupações, bicadas e bombas de "napalm" intestinal nas cabeças dos poderosos e cobrança de novas atitudes. Há quem diga que isso tudo é ficção, fruto da imaginação de algum poeta ou escritor delirante ou devaneador.

Por enquanto, as gaivotas tomam sol, dormem e acordam no terraço do triplex. Se afastam para uns voos, pegar uma praia e buscar alimento. Algumas gaivotas mais experientes dizem que o futuro a Deus pertence, que é preciso ter calma, esperar pelo melhor. Outras, especialmente as mais jovens, estão impacientes pelas definições e assim, em meio ao choque de gerações, la nave vá. O gaivota professor-doutor Sócrates Tropical de Oliveira lembrou do filme Os pássaros, de Alfred Hitchcock, e espera que, se algo acontecer, não haja violência como no filme, mas lembra que uma união de aves revolucionárias pode trazer consequências imprevisíveis. a propósito...

Há quem diga que alguns líderes dos poderes, preocupados, estão pensando em conversar com o grupo de gaivotas para troca de ideias e entendimento em relação ao futuro. Não se sabe ao certo quem são os líderes, se realmente vai ocorrer a reunião e muito menos o local e a data. Não se sabe ao certo a pauta da reunião, mas todos sabem que essas conversas e mudanças são lentas, que é preciso calma, clareza, esperança e boa vontade. Uns dizem que isso tudo é produto da cabeça de algum sonhador.

O tempo, sempre o senhor da razão e de outras muitas coisas, dirá. Não se sabe o prazo. Mas as gaivotas, dizem, estão olhando para seus cronômetros, tipo árbitro de futebol no início do jogo.  - Jornal do Comércio

(http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/04/colunas/livros/559106-elogio-filosofico-e-literario-do-sexo.html)

Jaime Cimenti

Elogio filosófico e literário do sexo A profundidade dos sexos

(É Realizações, 264 páginas, R$ 59,90), do professor de filosofia e literatura Fabrice Hadjadj é, antes e acima de tudo, um elogio filosófico-literário à prática sexual, que encontra seu fundamento em um local onde menos se espera: na teologia cristã. Hadjadj colabora com o jornal Figaro Littéraire e dirige o Philantropos, instituto de estudos em Antropologia sediado na Suíça.

Casado, pai de seis filhos, de formação judaica e ascendência árabe, nasceu em 1971 na França, filho de revolucionários maoístas. Foi ateu na juventude e depois converteu-se ao catolicismo.

Recebeu inúmeros prêmios importantes, como o Grande Prêmio Católico de Literatura e o Espiritualidades de Hoje. Intelectual público, tem protagonizado debates com escritores do porte de Michel Houllebecq, a crítica Catherine Millet e o matemático Laurent Lafforgue. O tema sexo é dos mais comentados de todos os tempos. Hadjadj lhe reserva um olhar especial, profundo, que recupera e descobre aspectos escondidos, relações inusitadas e comparações surpreendentes.

O autor mostra a íntima associação do sexo com o cristianismo ou o catolicismo, desbravando e jogando por terra argumentos moralistas. Ele eleva o sexo a uma espécie de prece, de consagração, mostrando que a religião contém o sexo e este precisa do caminho daquela para chegar ao patamar do sublime.

Com elegância e humor, fala de dignidade do corpo e da beleza do amor, do senso do prazer, do dom e da vida conjugal, sem discursos estereotipados nem fingimentos. Cântico dos Cânticos, Homero, Baudelaire, Sade, Nietzsche, Foucault, Pasolini e Bataille aparecem nos textos, para apoiar a tese de que o sexo está no âmago da salvação do homem. Para o autor, o ato carnal não é essencialmente prazer, mas comunhão de duas pessoas e deve buscar equilíbrio entre prazer e dor.

O que moveu Hadjadj é a convicção de que prazer e significado são mesmo indissociáveis e só podem ser plenamente explorados pela síntese aparentemente paradoxal de uma "mística da carne". E não se trata de uma intromissão da teologia em um assunto em si mesmo mundano: o problema é, precisamente, que o sexo foi tornado etéreo, informe, desprovido de peso propriamente corporal.

A cibernética o tornou robótico, virtual. Psicanálise e sociologia transformaram-no em "sexualidade" e algo longe do toque. Como se vê, mais uma contribuição relevante para o eterno e milenar debate sobre um dos grandes temas da humanidade.

De quebra, uma bela crítica do hedonismo, uma busca de entendimento e equilíbrio.


lançamentos 


Dieta dos Casais (Sextante, 224 páginas), da conhecida nutricionista e proprietária de clínicas Patricia Davidson Haiat, traz um plano completo para emagrecer a dois, com saúde, baseado em princípios da nutrição funcional.

No instagram.com/patriciadavidsonhaiat ela tem mais de 300 mil seguidores. Espero por você (Novo Conceito, 382 páginas, tradução de Leonardo Gomes Castilhone) de Jennifer L. Armentrout, traz a jovem Avery fugindo de casa para buscar calma na faculdade, longe de acontecimentos fatídicos.

Lá está Cameron, olhos azuis, perigoso, mas que leva Avery a mudar de pensamentos. Contos contemporâneos (AGE Editora, 176 p.) são contos de Alda Paulina Borges, Amauri A Confortin, Clarissa Mazon, Cris Romagna, Fernanda Martins, Ione Russo, Lígia Messina, Luciana Zart, Lucio Feliciare Maria Codorniz, Maria Forneck, Nara Nubia Pereira, Roque Palermo e Sonia Ferreira, da oficina literária de Alcy Cheuiche. - Jornal do Comércio

(http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/04/colunas/livros/559106-elogio-filosofico-e-literario-do-sexo.html)

quarta-feira, 26 de abril de 2017



26 de abril de 2017 | N° 18829 
MARTHA MEDEIROS

Oásis

Os desertos me atraem. O silêncio absoluto em meio a um universo infinito. Nenhuma ansiedade, apenas o contato profundo consigo mesmo.

Vivo no oposto de um deserto, numa urbe habitada por muita gente, sonorizada por buzinas e freadas. Uma cidade que, como outras, induz a um comportamento automático e racional: trabalhar para ganhar meu sustento, trazer comida pra casa, combater meu sedentarismo com atividades físicas, socializar com meus pares, me informar sobre o que acontece no mundo, compartilhar minha opinião nas redes sociais, cuidar da minha saúde e da minha aparência. Nada disso é um castigo, mas toma todo o meu dia e, quando dou por mim, é hora de ir para a cama e dormir.

Algumas pessoas meditam, outras rezam, outras ainda se refugiam num bom livro – as escapatórias necessárias, uma volta para dentro de si, aquele momento chamado “seu”, fundamental.

Tenho os meus, e hoje em dia eles têm acontecido com mais regularidade dentro de uma sala de cinema. Nem Netflix, nem Now, nem DVD, nada se compara ao deslocamento físico e à introspecção buscada: ainda não abro mão do ritual do ingresso, assento, luzes apagadas, foco. É onde todos os meus instintos afloram (inclusive os assassinos: se você também não suporta quem faz barulho com sacos de balas e pipocas, testemunhe a meu favor caso eu vá a julgamento).

Nesta semana, assisti a Paterson, de um dos meus cineastas prediletos, Jim Jarmusch. Nada mais precário que um resumo de filme em três linhas, mas é sobre um motorista de ônibus que todos os dias, após o trabalho, leva seu cachorro pra passear pelo mesmo trajeto, toma uma cerveja no mesmo bar e volta para os braços da sua linda e mesma esposa, dormindo o sono dos justos – entrementes, escreve poemas num caderninho.

Só isso. Tudo isso.

Por tudo, entenda-se: todo dia repetitivo é também um novo dia. É preciso delicadeza na prática de qualquer convivência. Há poesia no cotidiano. Carinho também é amor. Ninguém é igual aos outros e ninguém é muito diferente dos outros. O que nos comove está sempre no subtexto.

Paterson é um oásis neste deserto às avessas, em que vivemos em meio a muito barulho sem sentimento, muito movimento sem pausa, muita relação sem entrega. Um momento seu para extrair de dentro da alma. Esta mesma alma que me escapa agora pela ponta dos dedos.

terça-feira, 18 de abril de 2017



18 de abril de 2017 | N° 18822
CARPINEJAR

Empoderamento masculino

A esposa elaborou uma lista de minhas roupas que pretende doar para a Campanha de Agasalho. São dois calções de futebol largos, a camiseta com uma homenagem ao restaurante Mocotó, de São Paulo, uma calça colorida e uma camisa psicodélica que coloco virada de propósito. Ela detesta. Já escondeu a pilha no cesto de roupa suja – eu lavava e ela colocava de volta como se estivesse suada. Já camuflou atrás de seus vestidos. Já ensaiou uma sacola para doação. Eu sempre encontro na última hora, como um Sherlock mendigo.

Desmontei os seus planos maquiavélicos de forçado desapego. Qual a graça da bondade emprestada? É como se ela fizesse ioga no meu lugar.

Fico matutando que o mau gosto é muito pessoal, ninguém mais usaria os meus trastes além de mim, mesmo se fossem dados.

Como ela demonstra indisposição, não há mais como me desfazer delas. Acabou a pureza do convívio, entramos na insana queda de braço. Aceitar prontamente o descarte seria sinal de fraqueza e de submissão de minha parte. É uma oposição divertida que alimento entre nós. Provoco o seu destempero e o festival de ataques. Minha vontade é de rir com as suas respostas inusitadas, porém mantenho o perfil sério para aumentar a graça da encenação.

O que realmente adoro é sair com uma das peças e ver sua cara de assombro. Ela chega a preparar um beiço todo especial:

– Você vai sair desse jeito?

É a pergunta mais deliciosa que o homem pode receber de sua mulher. Eu me sinto poderoso, independente, vingando a minha personalidade. Ela me analisa e desaprova, e não cedo um passo, não entro em parafuso, não declino. Ela quase enlouquece procurando me convencer de que estou jeca. Na última vez, ela me chamou de “pega-frango”. Coisa boa não é, ainda mais nesta crise de confiança da carne. Eu respirei fundo e não levei a ofensa para o particular. Fingi que era uma crítica a um personagem.

Não que eu queira não lhe agradar, mas não posso agradar-lhe sempre. Mantenho uma reserva de autonomia, senão estarei passeando com uma coleira no pescoço.

Concordo que essas roupas são péssimas, cafonas, chinelonas. Não falo, porém concordo silenciosamente no fundo da alma. Não coloco fora porque ela inventou de implicar com elas, daí virou uma questão de honra.


O amor é feito de dissidências. Quem concorda com tudo não tem opinião própria.

sábado, 15 de abril de 2017



15 de abril de 2017 | N° 18820 
LYA LUFT

Celebrações

Tem a deliciosa história do velho monge medieval que pediu ao mongezinho que o ajudasse a ir até o fundo da imensa biblioteca, pois tinha dificuldade em andar sozinho. Lá chegando, o velho dispensou o moço, dizendo que ia ficar ali pesquisando algo muito importante. Quando precisasse, daria um grito para que o jovem monge, no outro extremo da biblioteca, retornasse. Mas passaram-se duas horas e nada do chamado, de modo que, timidamente, o mongezinho voltou ao fundo da biblioteca, onde encontrou o velhinho batendo a cabeça na parede. “Irmão, o que foi?”. “Descobri, só aos 90 anos de idade, que a palavra não era ‘celibato’, mas ‘celebração’”. (Em inglês, língua original em que me contaram a história, fica melhor: celibate versus celebrate).

Com todo o respeito, sempre que lembro da fábula, eu me divirto enternecidamente. Lembrei dela nesta semana de celebração, pensando em quantos de nós ainda param para pensar de verdade na Sexta-Feira Santa, que significava tristeza, luto, quase jejum, só água e peixe para os mais crentes. Para os menos ou nada crentes, era dia de bolinhos de bacalhau desmanchando na boca, reunião da família. (Os mais atrevidos preparavam no quintal uma carninha assada, para mal-estar de muitos). 

Na minha remota infância, numa família luterana, a Sexta-Feira Santa era, sob comando de minha avó paterna, a devota avó Olga, amada por todos nós, um dia de luto. Não devíamos falar alto, correr, brincar – a não ser quietinhos. Comer pouco (criança um pouquinho mais) e nada que de longe lembrasse carne: nem presunto, nem salsicha, nem galinha. Só um discreto peixe. Sob o olhar de reprovação dela, meu pai ordenava aquela bacalhoada que todos comiam, reverentes.

“Por que a gente tem de ficar triste hoje, vovó?”. “Porque é o dia em que Jesus Cristo morreu. E no domingo a gente festeja, porque ele ressuscitou”. Meu pai, interrogado sobre esses assuntos, respondia diplomaticamente “Vai falar com sua avó”. Cedo aprendi que algumas coisas era melhor não questionar (em geral, mesmo assim eu insistia).

Talvez a gente devesse celebrar mais, em lugar de estarmos sempre nos queixando. Além de Natal, aniversários, casamentos, formaturas, celebrar, por exemplo, de repente a família estar reunida, ou termos encontrado velhos conhecidos. Celebrar, lá no fundo do coração, o fato que parece tão corriqueiro – e não é –, como acordar saudáveis, vidinha meio organizada, manhã ensolarada, ou, para os que preferem como eu, o fantástico rumor da chuva. 

Celebrar que os amados estão bem, ou razoavelmente bem, apesar das inseguranças no mundo e dos espantosos fatos por aqui. Celebrar a orquídea do ano passado que deu outra vez flores lindas! Celebrar que amigos queridos continuam nossos amigos, então eram amizades verdadeiras.

Celebrar um belíssimo livro que estamos lendo, uma música sublime (sim, música pode ser sublime), ou as paineiras em flor que se espalham logo ali sobre as outras árvores feito sorvete de morango derretendo neste calor. Celebrar sem grandes luxos, apenas respirando fundo e sentindo-nos bem. Há quem de vez em quando abra sem avisar um espumante com a família para celebrar: “O que a gente está celebrando hoje?”. “Nada, ora”.

Então celebremos: a Páscoa, as amizades fiéis, os amores bons, a saúde, o sol, a chuva, o trabalho, ou simplesmente, no meio de toda a confusão, a claridade de alguma esperança.



15 de abril de 2017 | N° 18820 
MARTHA MEDEIROS

Vampirismo

Para o bem e para o mal, tudo o que o artista sente é processado e traduzido de alguma forma para as obras que cria. Sorte da plateia

Outro dia uma pessoa me perguntou: você vampiriza as pessoas que conhece para escrever seus textos?

Vampirizar é um verbo ao mesmo tempo charmoso, por invocar algo cinematográfico, e nefasto, pelo seu potencial destruidor. Não me soou bem, parecia que eu era um personagem de filme noir, uma maquiavélica toda vestida de preto, sedutora, disposta a arrancar o sangue dos meus interlocutores e devolvê-los à rua feito zumbis, ocos por dentro.

Disse a ela: claro que tudo o que escuto aqui ou ali me serve de inspiração, a vida é minha matéria-prima, e não vivo isolada, minhas emoções são provocadas por gente com quem me relaciono e elas acabam incluídas no meu repertório criativo, mas...

Ah, o mas. Mas não exponho ninguém de forma maldosa, narro as situações com alguns acréscimos fictícios, não entrego nomes nem detalhes identificáveis – respeito a discrição alheia, e a minha, inclusive.

A não ser que seja um elogio público, aí quem não gosta de ser citado?

Lembro uma entrevista de uma importante compositora e cantora. O entrevistador perguntou se ela já havia transado com alguém só para extrair da transa uma música. Ela respondeu que não, mas que era inevitável que as coisas se misturassem, e contou que certa vez estava saindo com um cafajeste e ligou para uma amiga dizendo: “Ele foi embora! Ele me deixou!”. A amiga interrompeu e perguntou: “Quantas canções?”. A cantora respondeu: “Não fale assim, ele me deixou, isso é horrível!”. A amiga insistiu: “Quantas canções?”. A cantora respondeu: “Três”. A amiga: “Ótimo, nós amamos esse cara”.

É isso. Para o bem e para o mal, tudo o que o artista sente é processado e traduzido de alguma forma para as obras que cria. Sorte da plateia.

Nós amamos todas as garotas que fizeram os Beatles comporem She Loves You, I Want to Hold Your Hand e Oh, Darling. Todos os homens que piraram Tina Turner e Janis Joplin. Todos os pais opressivos de rebeldes que fugiram de casa e transformaram sua errância em acordes de guitarra. Todos os amigos que traíram Eric Clapton, todas as amantes de Mick Jagger, todos os sanguessugas com quem Billie Holiday e Amy Winehouse se meteram, todos os desalmados que fizeram Cazuza e Renato Russo atravessarem madrugadas curtindo uma fossa e rabiscando versos em guardanapos. Sem falar nos quadros, filmes e livros que nasceram de desavenças familiares, vinganças entre guetos, distúrbios emocionais inspirados por mães indiferentes.

Não há autor que não se abasteça da própria experiência e exorcize sua dor com o seu talento. Se isso é vampirismo, só nos resta erguer um altar para quem entrou com o pescoço.



15 de abril de 2017 | N° 18820 
CARPINEJAR

Esporte peculiar

A mulher transforma a decadência do homem em esporte. Poderia ter uma Olimpíada toda particular para modalidades inusitadas pelas mãos femininas.

Dividiria em três grandes competições, um triatlo doméstico: espremer espinhas, catar pelos brancos e varrer as orelhas. Nenhuma mulher resiste a escarafunchar as vergonhas de seus parceiros. O que eles gostariam de esconder, elas têm um sádico orgulho de mexer.

Se fico de costas na cama, relaxado, sem camisa, lendo um livro, a minha esposa, disfarçada de carinho, logo insinua uma massagem nos ombros, mas está carregada do maquiavélico interesse para estourar as minhas espinhas. E é um vicio, explode uma, ri satisfeita da competência do trabalho e já parte para a próxima, não consegue parar, não escuta a sinceridade de minha recusa, entra na fixação infantil do plástico-bolha, apenas sairá dali carregada por seguranças.

Se fico de frente na cama, lendo a mesma página pela enésima vez, a minha esposa avança com a cabeça para derrubar a obra e encaixar a cabeça no colo. Acho fofo e deixo, não há como se defender de ronronadas. Mas é só me distrair que – ui! – ela começa a arrancar seletos pelos grisalhos de meu peito. Encontra um, endoidece para rastrear outros e não para mais, como uma pac-woman comendo pastilhas, apenas sairá dali engolida pelos fantasmas.

Se deito de lado, para recomeçar o livro empacado há semanas, a minha esposa se aproxima, absolutamente dengosa, e sopra juras eternas. Seguro o arrepio e me sinto o homem mais feliz do mundo. É bobear que ela está com a lanterna do celular consultando o meu canal auricular, com claras pretensões de tímpano. Verifica uma sujeirinha e se anima a cutucar, e não para mais, apenas sairá dali com uma diploma de medicina.

É óbvio que desisto de ler deitado, mas agora unicamente sentado, de preferência em uma poltrona sem encosto.

Nenhuma guerra, nenhuma discussão será capaz de cancelar a competição. Sua curiosidade cresce com a resistência. As medalhas de minha mulher são feitas de meu sorriso amarelo.

quarta-feira, 12 de abril de 2017



12 de abril de 2017 | N° 18817 
MARTHA MEDEIROS

Educando para o medo

Era meia-noite e quinze e minha filha de 25 anos, funcionária de um restaurante, voltava do trabalho a pé para casa. Caminhava sozinha por ruas escuras e pacatas, enquanto conversava comigo pelo WhatsApp. Segurando o telefone com uma das mãos e teclando com a outra, contava como tinha sido seu dia e, cansada, comentava que não via a hora de chegar em casa, tomar um banho e ir para a cama.

Você pode imaginar o que aconteceu.

Eu conto. Aconteceu que ela chegou diante do seu prédio, atravessou o gramado aberto que o separa da calçada, subiu um lance de escada, abriu a porta do apartamento, entrou, tomou um banho e foi descansar. Nem poderia ser diferente, sendo ela moradora de uma pequena cidade da Nova Zelândia, país que tem uma das menores taxas de criminalidade do mundo.

Enquanto trocávamos mensagens, eu imaginava essa cena acontecendo em Porto Alegre ou em qualquer cidade do Brasil. Uma filha de 25 anos caminhando sozinha à meia-noite por ruas desertas, e ainda dando bandeira com um celular na mão: qualquer pai ou mãe ficaria com o coração aos pulos. É como está o meu, agora que ela iniciou um trajeto bem mais perigoso: está a caminho do Brasil, onde voltará a morar por uns tempos.

Eduquei minhas filhas para correrem atrás de seus sonhos, para terem coragem, para permitirem-se o melhor que existe, sabendo que a palavra “melhor” tem significados distintos para cada uma delas. Para a Julia, sempre significou independência, liberdade, emoção. Depois de formada, tirou um ano sabático para viver às próprias custas, viajar, conhecer pessoas, ter novas experiências. 

E que experiências: morou em cima de uma montanha a dois passos de um vulcão, nadou ao lado de tubarões, pegou carona em estradas, passou cinco meses numa comunidade com outros 16 estrangeiros e agora retorna para os braços da família, dos amigos e de um país que não costuma ser muito cordial com pessoas destemidas.

Além de cobri-la de beijos e carinhos, como recepcionarei minha filha que há 14 meses tem seus direitos de cidadã respeitados, sem precisar preocupar-se com os riscos urbanos? Por amor, terei que lembrá-la de fechar os vidros do carro, não circular por regiões isoladas, não deixar equipamentos de valor à vista, ficar atenta à movimentação em volta, ter cuidado ao carregar sua bolsa e demais atitudes que são meramente paliativas, mas necessárias.

Deveríamos educar para a confiança, mas vivemos dias tão surreais, que terei que reeducar minha filha para o medo.



12 de abril de 2017 | N° 18817 
CARPINEJAR

Cheiro de bergamota pela casa


O amor chega de mansinho, não faz alarde, não quer nem falar alto para não acordar o coração de seu dono. Sai de nosso corpo a paixão gritona, barraqueira e escandalosa e o amor ocupa o seu lugar, respeitoso e suave, com cheiro de amizade eterna. É uma mudança total de inquilino na alma.

A paixão tinha modos de adolescente: arfava rebeldia e egoísmo, pedia pressa e urgência, riscos e aventura. Já aparece, de repente, de sua luz angustiada, a sombra do amor, um senhor de idade, cortês, com a sabedoria da paciência, não cobrando qualquer falta.

A paixão não ficava em casa, comia sempre fora, aparecia somente para trocar de roupa, viajava e gastava loucamente o que não tinha. Entra na pele um sentimento distinto, caseiro, disposto a maratonas de séries e filmes na cama, interessado em comprar panelas e almofadas, atento ao mundo e aos amigos de novo.

A paixão, antes selvageria, é substituída pela delicadeza do amor. É como o fim de um feitiço e o início de uma longa serenidade de aceitação e presteza. Na paixão, todo mundo se acha imortal. O amor é a mortalidade que se aproxima e o desejo secreto de envelhecer junto.

Instaura-se no temperamento um tempo de ternura. O amor surge do nada num suspiro na mesa ou numa chuva martelando a janela.

Você olha a sua namorada ou o seu namorado com uma tranquilidade que nunca existiu na vida, com uma certeza que nunca aconteceu. Conhece uma confiança de laço e percebe que quando dizia eu te amo ainda não era um eu te amo, era uma vontade de amar, e que agora desafia a rajada de vento para pronunciar o primeiro autêntico eu te amo. E a outra pessoa, acostumada a ouvir o eu te amo, não entende que é um inédito eu te amo e não nota diferença nenhuma e você terá que, portanto, repetir com toda a força para que ela acredite.

E não entregará um buquê de flores para celebrar o momento, não puxará uma joia de uma bandeja de veludo, os cuidados tornam-se discretos e constantes.

Pegará uma tangerina da cesta da cozinha e, em vez de pensar em si primeiro, será tocado por uma esquisita generosidade.

Oferecerá a fruta, como se fosse recém colhida da árvore:

– Quer que eu descasque?

Diante do sim, tirará a casca lentamente com os dedos e entregará gomo por gomo na boca de quem finalmente ama.

Só o amor pode ser sublime na banalidade e não se intimidar com o cheiro de bergamota nas mãos.

David Coimbra está em férias. Neste período, irão substituí-lo Marcos Piangers, Fabrício Carpinejar, Nílson Souza, Cláudia Laitano e Humberto Trezzi.

sábado, 8 de abril de 2017



08 de abril de 2017 | N° 18814 
LYA LUFT

Direitos de todos, e todas

Já inventaram – inventam demais sobre a gente – que escrevo sobre mulheres, que falo para as mulheres... Só ainda não vi dizerem que escrevo como mulher. Mas há muitos anos, querendo me elogiar, um crítico de renome escreveu que, “embora sendo mulher, Lya Luft escreve com mão de homem”. Naquela época, ainda ficava aborrecida por um dia ou dois com essas eventuais bizarrices. Hoje, nem cinco minutos. (Nem tudo piora com o tempo...). 

Afinal, o que seria escrever com mão de homem? A alternativa seria: ou com coração de mulher? Um mais grosseiro, outra mais delicada? Um mais lógico, outra em devaneios? Um sobre temas importantes, outra sobre amenidades? Assisti a palestras e seminários sobre o tema, aqui e em outros lugares do mundo, e não vi chegarem a nenhuma conclusão razoável.

Mas, nessa gangorra natural nas coisas da moda, umas sérias, outras fúteis, a questão (grave) da mulher retorna sempre. Devo dizer – concordando com o que escreveu outro dia Cláudia Laitano aqui na ZH – que em minha casa, talvez sendo meu pai um intelectual liberal, nunca senti minha mãe inferiorizada, ignorada, ao contrário: ali havia respeito e parceria. Nem eu, na escola, na universidade ou na profissão, me senti submetida a algum patriarca. 

Talvez eu fosse demais distraída, ou simplesmente o fantasma saiba a quem aparece. Nunca trabalhei como funcionária de uma empresa: por estes dias, diante da minha curiosidade meio incrédula, dois amigos empresários me afirmaram que, sim, no início da carreira, muitas vezes a mulher ganha menos do que o homem, mas depois, “conforme mostra suas qualidades, ela ganha o mesmo”.

Quase não acreditei: ah, então, quando a inferior mostra serviço, ganha o mesmo que o mancebo, que, segundo essa afirmação, não passa por essa fase de experiência? Que mundo absurdo, atrasado. Que mentalidade diminuta. Que heroínas temos de ser nós, mulheres, se a sociedade do trabalho ainda pensa assim. 

Para não falar das grosserias eventuais com colegas, com amigas, com namoradas, com familiares, que se permitem isso, alguns trogloditas se achando o máximo. Apoio as atrizes que apareceram com camisetas iguais “Mexeu com uma, mexeu com todas” após incidente infeliz recentemente, numa grande empresa de comunicação, e apoiadas por ela.

Há muito pelo que lutar, porque às vezes aparecem manifestações patéticas de quem se diz “feminista”: “sou gostosa, tenho a boca vermelha, uso biquíni, mas sou capaz”. Tenho de ser gostosa? Usar batom cereja ou morango... ou não serei feminina?

O tema é sério e complexo, apesar das bizarrices e folclores que eventualmente se constroem em torno dele: o mundo precisa remover essa nódoa medieval e grosseira da nossa cultura, que ainda atinge tantas mulheres. Para que o bom combate possa se concentrar em dignidade e oportunidades para todos: velhos, crianças, homens, mulheres, de todas as etnias, orientações sexuais e classes sociais.

Com tanta coisa dramática nos convocando em tantos lugares e com tantas pessoas, violências indizíveis e brutais injustiças, ainda teremos que exigir e provar que, mesmo sendo “diferentes”, nós, mulheres, deficientes, negros, brancos, amarelos, gays ou outros, temos direito igual a manifestação, crescimento, oportunidade, realização e, sim, felicidade?



08 de abril de 2017 | N° 18814 
MARTHA MEDEIROS

Todos os sentidos da vida

No final das contas, o que somos? Matéria bruta esculpida por desejos, projeções e inocência

Assisti ao filme que deveria ter ganhado o Oscar se tivesse concorrido: Mulheres do Século XX, de Mike Mills, com a estupenda Annette Bening, que também mereceria a estatueta. Na verdade, o filme concorreu apenas na categoria roteiro, e não levou. E a Academia deve ter razão, claro. Eu é que tenho uma queda pelos alternativos.

A história se passa em Santa Bárbara, Califórnia, 1979. Dorothea, 55 anos, vive num casarão antigo que está sendo reformado, e cria sozinha um filho de 15, Jamie. Para ajudá-la a educar Jamie, Dorothea convoca reforços: a melhor amiga dele, uma lindinha de 17, e uma inquilina outsider de 24. É a força-tarefa que todo adolescente sonha.

Era uma época em que o cigarro ainda não era demonizado e o cinto de segurança não passava de um acessório supérfluo de Fuscas e Mavericks. Logo ali, dobrando a década, iríamos nos apavorar com a Aids, perder John Lennon e começar a ajoelhar para o politicamente correto, sem falar na internet, que viria mudar tudo. Era melhor naquele tempo ou avançamos? Não pergunte para essa minha alma riponga.

Há cenas inesquecíveis. Dorothea tentando entender a cultura punk, mas se rendendo, no máximo, ao Talking Heads. A palavra menstruação sendo invocada à mesa do jantar para “quebrar paradigmas” – em mais uma atuação carismática da atriz Greta Gerwig. A turma reunida em torno da tevê assistindo a um discurso histórico de Jimmy Carter. E o expressivo ator Lucas Jade Zumman, que interpreta Jamie, nos ganha do início ao fim. Um garoto cool descobrindo a vida e a sexualidade através de três mulheres malucas e divinas.

O título sugere um filme feminista, e também é. Vemos mulheres donas de seus narizes que recusam o título de piranhas por privilegiarem o sexo, mas também vemos mulheres modernas reivindicando o direito de serem mães e sentindo falta de romantismo e fantasia. Vemos tudo, porque vida é isso – tudo.

Ainda o filme: é sobre o que a gente pensa que seremos no futuro, sem cogitarmos que o destino nos levará para um caminho diferente do que sonhamos. É sobre um “sentido da vida” magnânimo que não existe nem nunca existiu: o sentido está na emoção e na perplexidade de cada dia. É sobre a dificuldade de conhecermos alguém profundamente, em suas fragilidades e grandezas. No final das contas, o que somos? Matéria bruta esculpida por desejos, projeções e inocência.

Mulheres do Século XX é divertido, terno, nostálgico, psicodélico, humano, inteligente, poético, encantador. Um mosaico de pequenas descobertas e um grande consolo: a vida não precisa de sentido. Basta vivê-la.


08 de abril de 2017 | N° 18814 
CARPINEJAR

Injustiça no lar

Você lava a roupa, estende, arruma as camas, ajeita os ambientes progressivamente dos quartos à sala, esfrega os banheiros, desmonta a bagunça generalizada, cozinha, limpa as panelas e a louça, seca e guarda os pratos, recompõe as prateleiras, varre, encera o chão, deixa o universo brilhando, lustroso, para não ser festejado.

Dedicou quatro horas do seu dia para absolutamente nada. Executou um cronograma rígido e hierárquico de faxina (uma tarefa de cada vez), cuidando para que sobrasse tempo para sair ao serviço, e não ganhará, ao final, um mísero “muito obrigado”.

Foi uma trabalheira inútil e anônima. Conheceu a essência da injustiça, que nasce da sobrecarga do lar. Como repetirá a rotina na manhã seguinte, estará escravizado pela sua disposição e força de vontade.

Não será admirado, não será elogiado, não receberá cafuné e salva de palmas. E, o mais grave, você que está errado. Pois não havia necessidade, ninguém pediu para que fizesse coisa alguma. Você fez porque quis, porque não conseguiu esperar. A casa se arrumaria sobrenaturalmente, comandado pela sombrinha e espírito da Mary Poppins. Antecipou-se de modo egoísta, por absoluto capricho.

O que incomoda é que, além da completa ausência de reconhecimento e recompensa, você ainda terá o estigma de doente. Acabará mal falado. Sofrerá bullying da família inteira. Todos dirão que é um neurótico, um maníaco por limpeza. E que deveria procurar tratamento terapêutico, já que jamais sossega.

Nas conversas com amigos, não escutará de sua esposa ou de seu marido que é um exemplo maravilhoso, que cuida de tudo e sempre facilita a vida. Ouvirá, por sua vez, que é autoritário, impositivo e não oferece chance para qualquer um demonstrar a sua boa vontade.

Os preguiçosos são tão preguiçosos que não cuidam nem de sua culpa e repassam a responsabilidade adiante. Esquecem que não há empregada doméstica para cumprir o serviço, esquecem que o descanso não vem primeiro do que o trabalho, mas depois, resultado e glória da ordem.

É como revivêssemos a crença da teoria da geração espontânea, que vigorou até meados do século 19. Rãs, cobras e crocodilos eram gerados a partir do lodo dos rios, assim o fogão, a pia e a geladeira ressurgem limpas de nosso abandono.

Não entendo como ocorreu a inversão. Limpeza hoje é doença, sujeira é independência. Limpeza é tirania, sujeira é democracia. Limpeza é invasão da intimidade, sujeira é respeitar a liberdade do próximo.

Aqueles que se dedicam a cuidar da casa e da criação dos filhos, simultaneamente ao seu emprego, são identificados como ansiosos. Matam-se de trabalhar e ainda aguentam o questionamento perverso de sua reputação.

Os preguiçosos nunca dão o braço a torcer. Nem os braços são torcidos nos baldes da gentileza.

terça-feira, 4 de abril de 2017



04 de abril de 2017 | N° 18810 
CARPINEJAR

Quem é mais dono da morte?

Vejo inventários que se prolongam por décadas, com famílias disputando judicialmente o que dividiriam naturalmente se o pai e a mãe mortos estivessem vivos.

É uma jornada perigosa e violenta, capaz de destruir o legado e manchar a harmonia de um sobrenome. Uma longa guerra de inveja e de ciúme entre crianças disfarçadas de adultos e com escudo dos advogados.

Da mesma forma como os irmãos concorriam pela atenção dos pais, pela predileção psicológica, enquanto todos existiam pacificamente, passam a brigar pela propriedade das lembranças. São filhos se odiando como nunca, sem castigo e sem cinto, selvagens no ato de possuir um imóvel ou um bem. Não pensam pelo morto, o quanto ele trabalhou para garantir paz e conforto, o quanto suou e sacrificou os seus finais de semana para assegurar tranquilidade aos pósteros. Pensam com a mesquinhez de arrematar os melhores brinquedos e as condições mais prósperas. Buscam os seus direitos e apagam os deveres familiares que continuam existindo, com ou sem os pais vivos.

Nesta conflagração de egos, a alegria de um é maior se criar também a tristeza na companhia. A satisfação cresce ainda mais ao abocanhar a maior parte e conseguir subtrair os demais dos privilégios.

Diante do falecimento do ente querido, os filhos esquecem que têm irmãos e se transformam em filhos únicos. Tem em curso uma esquisita e infeliz alienação filial.

Puxam para si as mangas da ausência da roupa maternal e paternal imitando as suas presenças durante a infância.

Tentam reconstituir em vão no colo da lei o aconchego dos abraços, mas apenas se distanciam dos manos que sofrem igual e que restaram ao lado. A partilha se converte em monopólio, a custo de isolamento e desconfiança.

Querem ser donos da morte do pai ou da mãe. Como se a morte possibilitasse algum dono. A morte é de ninguém. A morte é saudade de quem amamos, de quem nos habitará por toda a vida, independentemente de ações e liminares.

O que mais ansiava aquele que partiu era uma família unida, porém o que mais amarga com a despedida é o contrário: a dissolução dos laços. O espólio que serviria para acalmar as dores em tempos de crise é manobrado em xadrez de interesses e maquinações, em tabuleiro de vinganças e vitimizações.

Não se pretende perder o pai e a mãe pela segunda vez, agora simbolicamente para o irmão, e o herdeiro faz de tudo para manter a sobrevida moral dos falecidos.

O orgulho de filho mimado, de filho cheio de si, não permite cedências e recuos, desculpas e generosidade. Crê que será novamente enganado, pois entende a morte como uma trapaça, jamais como a grande prova de amor e de caráter moldado pela educação recebida.

sábado, 1 de abril de 2017



01 de abril de 2017 | N° 18808 
LYA LUFT

Escolhas


Sempre nos ensinam que a vida depende em boa parte de escolhas nossas. Isso também “depende”. Pois, se nasço branco e rico, negro e pobre, branco e doente, negro e saudável, oriental e talentoso, oriental e enfezado, se nasço no Norte mais pobre ou no Sul mais progressista, aqui no estranho Brasil ou em algum lugar muito carente da África mais remota, se meu pai é inuit num dos Polos ou banqueiro em Nova York, e assim por diante, digamos que a minha escolha não há de pesar tanto.

Essa é a base. Mas depois, aí vem o dilema – porque a gente não gosta de dilemas, que provocam escolhas. Depois das condições, não escolhidas, em que nascemos, vem um longo trajeto em que podemos seguidamente tomar decisões: droga ou trabalho, estudo ou boa vida, honra ou malandragem, afeto ou futilidade... enfim. Nada é perfeito.

Escolhas são aflição. Ofereçam ao seu pet um biscoito e um naco de carne, e ele poderá hesitar, perplexo: animais de estimação têm expressões assustadoramente humanas. Para os humanos, as escolhas são as mais diferentes e até absurdas: que roupa usar, no meu closet do tamanho de um bom quarto normal? Que arma vou usar no próximo assalto? Quem vou assaltar? O que vou comprar com o dinheirinho que me resta: remédio ou comida? Para onde devo me mudar? Por que me mudar?

Ainda falando de gente: existe um número imenso de alunos e professores que preferem uma aula bem digerida, nada de provocações por parte do mestre, pois os alunos podem exercer sua perigosa inteligência, sua inquietante liberdade, e argumentar, discutir... Talvez sejamos simplesmente preguiçosos, comodistas, lerdos. Queremos boa vida, nada de caminho pedregoso ou esburacado, nada de pais que impõem limite, professores ou patrões exigentes.

Pode ser delicioso ser filhinho do papai ou da mamãe, e não me refiro só à casa paterna, mas à vida em geral, também à profissão, aos estudos. Escolher é muito chato. Mas a vida não dá colo: passa muita rasteira, exige humildade, personalidade e resistência. Por outro lado – isso me provaram muitos jovens e alunos –, que alegria descobrir o próprio poder de decisão.

Crescer dói, e não só nos ossos infantis com a dita “dor de crescimento”. Dói na alma: “viver é lutar”, disse o poeta brasileiro ao filho, e é, sim. Mas tem umas compensações, como perceber que não somos totalmente ignorantes, incapazes e dependentes. 

Descobrir que nosso trabalho, por mais simples que seja, tem importância, isto é, nós temos importância. Descobrir que somos necessários também para pessoas que nos amam, amigos, família, parceiros. Talvez essa seja a base de todo tipo de felicidade, que para mim é sentir-se bem na própria pele – mesmo fora dos grandes entusiasmos policromados: saber-se apreciado, profissional ou pessoalmente. 

E todos somos. Nem precisam ser coisas grandiosas, ao contrário: o bom, o positivo, pode ser muito pequeno, e ainda assim essencial, como permitir-se ser amado, ser estimado, ser escolhido, ser eficiente. Mesmo que apenas (apenas?) para limpar a rua, trocar a atadura, estimular alguém, fazer alguém pensar por si, e saber-se capaz de fazer suas próprias escolhas.


01 de abril de 2017 | N° 18808 
MARTHA MEDEIROS

O nosso plural e o de vocês

Como quase sempre acontece, o “nós” se desmembra e volta a ser apenas eu e apenas você, dois personagens que já não contracenam

Um dia eu e você fomos nós.

Nós viajávamos juntos em busca de trilhas distantes, nós descobríamos os detalhes de uma nova cidade percorrendo-a de bicicleta, nós tomávamos litros de vinho tinto durante o inverno gélido e também quando não fazia tanto frio assim, nós éramos os anfitriões dos amigos que vinham nos visitar e éramos, depois, a visita aguardada na casa deles, em retribuição. 

Nós éramos torcedores do mesmo clube de futebol e, em alguns casos, não torcíamos para ninguém, apenas para nós mesmos. Nós – o nome do nosso time. Nós – uma espécie de identidade secreta. Nós – o elenco da peça em que atuávamos: uma história de amor para dois personagens principais.

Como quase sempre acontece, às vezes cedo demais, às vezes com atraso, o “nós” se desmembra e volta a ser apenas eu e apenas você, dois times distintos, duas identidades avulsas, dois personagens que já não contracenam. Um final triste, mas digerível – a vida é assim, fazer o quê.

E então um dia você telefona para seu antigo amor e escuta do outro lado da linha algo inacreditável como “Nós estamos de saída, poderia telefonar amanhã?”.

Você está falando com seu ex. Uma unidade. Que “nós” é esse que não se refere mais a você e ele juntos?

Seu antigo par formou um novo plural. Ele voltou a ser nós. Você ainda é só você, um singular.

Onde foi parar a misericórdia? A sensibilidade recomenda não anunciar a nova condição conjugal antes de todos os corações estarem cicatrizados. O uso do pronome pessoal pode ser uma forma sutil de dizer que a fila andou, mas não ameniza o golpe. 

Um amigo me contou esse baque pelo qual passou e estou tentando fazer uma narrativa refinada do seu desalento, transformá-lo em poesia, literatura, canção, sei lá, encontrar alguma análise confortante para esse “nós” que ele pescou no ar, durante uma conversa trivial, um “nós” que já havia sido dele e que agora não lhe pertencia mais.

Só que não há como confortar. É natural que sejamos exclusivistas e nostálgicos em relação ao “nós” que era nosso, aquele “nós” que depois entrou num vácuo, se desfez, silenciou. O fim simultâneo do que era seu e de outra pessoa foi o último ato de intimidade entre vocês. Até o surgimento deste outro “nós” que agora pertence só a eles dois – e que te dói.


01 de abril de 2017 | N° 18808 
CARPINEJAR

Porção para um ou para dois?

Um dos enigmas de minha vida é se o prato é para um ou para dois. Por mais que tenha amadurecido e frequentado restaurantes, ainda não desembaracei a questão e sou um eterno novato na caligrafia do cardápio. Sempre que conheço um lugar, erro a medida. Eu me apoio nas fotografias do menu, viro um analfabeto apenas lendo imagens e não chego a nenhuma conclusão.

Quando o garçom diz que é para um, sobra. Quando o garçom diz que é para dois, falta. Jamais acerto a quantidade de comida no prato. Ou me apresento avarento ou me descubro perdulário. Arranho a minha imagem diante da minha família.

No fim, qualquer que seja o resultado, a mulher me humilha com o seu sermão. Já aguardo o comentário com o cafezinho e a conta: – Podíamos ter pedido um só. (E sinto que não estou ajudando para combater o desperdício do mundo.)

Devíamos ter pedido mais. (E parece que sou um pão-duro.)

Certamente ela ensaiou a maldade com o garçom. Ou eu solicito demais ou solicito de menos, influenciado pela frase ambígua do atendente: é bem servido. Bem servido para quem? Para um rei momo ou para uma porta-bandeira?

Tento adivinhar como que o garçom me enxerga para enxergá-lo melhor, se devo aceitar a sua recomendação ou confiar em meu instinto, se ele acha que como muito ou pouco.

Pedir comida é jogar poker. E não há como desvendar se o garçom está blefando. Não sei qual a orientação que recebe. Não sei se ele me inspira à abastança para encorpar seu dez por cento ou que realmente pensa que a melhor propaganda é a honestidade. Procuro decodificar as suas sobrancelhas para verificar a veracidade do discurso, se é leal ou uma vontade de agradar ao seu chefe.

Porção para um ou para dois? Que trauma infindável, ser ou não ser Shakespeare.

Pior que o amor é igual. Quando começamos uma relação, no início mesmo, tateando às cegas, nunca definimos se a pessoa ama por um ou por dois, se está para o banquete ou para o lanchinho, se ela pretende construir um lar ou busca se divertir e manter a sua vida de solteira, se somos projeto sério ou distração, se somos candidato a moldura ou um rostinho colecionável do Tinder, se é caminho para a rodoviária ou conexão de aeroporto.

As confissões são controladas para não assustar nem decepcionar. Não dá para falar no primeiro encontro que deseja casar e ter filho, senão sobra comida. Assim como não dá para censurar os sonhos por completo, reduzindo o encontro ao sexo, senão falta comida. A generosidade com os desejos é malvista, assim como a mesquinhez.

Eu vou morrer sem entender se a porção é para um ou para dois, se o amor é para um ou para dois e como alguém acha bonita uma gravata-borboleta.