sábado, 28 de janeiro de 2017



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
LYA LUFT

O luxo do simples

Escutei na tevê essa frase tão óbvia e simples, que acabei achando um luxo: “Hoje em dia, a simplicidade é um luxo; e outro luxo é o tempo”. Postei no meu Face, muita gente marcou, pensa assim também. Fiquei elaborando isso com os botões que não uso: essa transformação para valorizar o simples – ainda que seja meio de mentirinha, porque em geral acaba sendo simples sofisticado – é na verdade uma coisa muito boa. Vira tranquilidade. 

Vira liberdade. É anticorreria, antiostentação, anti-ter-de-tanta-coisa. Não ter de obedecer a tantas regras, poder usar o aventuresco até na casa: cadeiras e copos desiguais de propósito, roupa descombinada, o estilo é o que agrada a cada um. Podermos viajar nas almofadas exóticas ou superdiscretas, tapete idem, folhagem enorme num grande vaso ou flor num copinho de cachaça, tudo ali do jardim ou do terraço, livro espalhado ou mal empilhado. 

Abrir a cortina e a manhã inaugurar a vida com sol, azul, e até o luxo de um leve nevoeiro baixo. E as amizades, ah, as amizades sem inveja nem ciumeira nem cobrança, nem ressentimento, quando dá a gente se encontra, inventa um happy hour, ou passa meses sem se ver mas continua se amando igual.

Quanto mais o mundo se complica com horários, compromissos, contas, impostos, serviços medonhos e política nauseante, fora as novas descobertas de milhões e milhões desviados enquanto as crianças não têm comida nem escola, e a bandidagem se diverte às custas da polícia e comanda o país, mais nós procuramos a paz. 

Uma certa paz, a paz possível. Ansiar menos pelos luxos antigos que exigiam uma dinheirama – não querer mais impressionar, mas nos sentirmos bem, de jeito leve. Vamos ter tempo de viver um pouco mais, não em anos, mas em felicidade, sem tantas exigências.

De momento, faço uma tradução de filosofia, sofisticada, mas tudo ao meu redor é simples, portanto é um luxo esse trabalho intenso que há tempos não fazia. Sem complicação. Sem resmungar. Até uma das funcionárias comentou: “A senhora está de novo muito tempo trancada no escritório”, e estou. Mas contente, porque se a crise exige mais trabalho, por outro lado foi minha profissão tantas décadas, e reencontro, nela, velhas alegrias.

Quando o difícil fica cada vez mais difícil na vida, podemos ser mais simples até no café da manhã: cada um prepara o que quer, depois bandejinha no colo cada um na sua poltrona, conversando, comentando notícias (haja estômago) ou olhando quietos as árvores com seu jogo quase sobrenatural de luzes e verdes. Porque para se amar, e estar feliz junto, não é preciso nenhuma aflição.

Isso enche meu coração: o luxo da simplicidade. Volta e meia um filho, filha, neto ou neta posta uma mensagem ou foto do seu iPhone pro meu, e a saudade já encolhe um pouco, pois no cyberspace estamos juntos. Nada daquele compromisso grave de tempos em que era dever visitar a avó, uma senhora de cabelo branco e vestido preto, a quem era preciso tratar com cerimônia – quando quem sabe ela estaria doida por uma brincadeira, uma risada, um encontro alegre?

Um luxo que dá um pouquinho de trabalho: desenrolar o fio cheio de nós das antigas complicações.



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
MARTHA MEDEIROS

Praia é ponto de encontro sem hora fixa pra chegar, sem convite impresso, sem répondez s’il-vou-plait

Qual é a sua praia?


Quando penso nos melhores momentos da minha infância, a memória me transporta para Torres. Foi lá que, menina, peguei muito jacaré com uma planonda de isopor, fiz castelos de areia, pesquei peixinhos que eram colocados em baldes, participei de piqueniques, deslizei pelas dunas, joguei frescobol. Dia de chuva era um desassossego, não havia gibi que fizesse o tempo passar, mas não chovia tanto naquela época: quase sempre o sol dava as caras desde o início de dezembro até o final de fevereiro, um esbanjamento de dias bons. Eu voltava das férias parecendo um pedaço de carvão, só apareciam o branco do olho e os dentes.

Hoje não pesco peixinhos nem deixo a pele desprotegida, mas é ainda na praia que sou mais eu. A proximidade com o mar me põe no meu devido lugar: não importa o que eu diga, faça, escreva – sou um grão de areia. É o que somos todos, o tempo inteiro, onde quer que estejamos: grãos de areia. Meu ego não se abala, inclusive concorda.

Falando em areia: há quem acredite que a praia ficaria mais perfeita sem ela. Misericórdia àqueles que não lembram como é relaxante sentar numa cadeirinha embaixo do guarda-sol e fazer curtos caminhos com o calcanhar, para frente e para trás, tendo uma caipirinha gelada em mãos.

Pode-se ter em mãos um livro também. Pois é, me sinto obrigada a incentivar a leitura, mas sendo perigosamente sincera: praia não é lugar para ler, a não ser que você esteja sozinha numa enseada esquecida por Deus. Aí, até recomenda-se, para dispersar os maus pensamentos. Mas em dia ensolarado e com gente em volta, não consigo prestar atenção numa única linha. Leio, leio, leio à beira-mar, e quando volto para casa releio, releio e releio as mesmas páginas.

Praia é ponto de encontro sem hora fixa pra chegar, sem convite impresso, sem répondez s’il-vou-plait. Balada aberta ao público, sem paredes, sem holofotes, o sorriso valendo como ingresso. Boca livre.

Praia é pra quem está de bem com a vida, embaixada internacional da liberdade, pátria do chinelo de dedo, passarela do biquíni, congresso mundial da tatuagem. O Brasil tem 8.000km de orla pra ninguém morrer de tédio e muito menos de rabugice.

Inferno emocional? Até isso praia minimiza. Quem já não deu uma choradinha em frente ao mar, num final de tarde, processando uma ardente dor-de-cotovelo? Você, eu, todo mundo, diante de ondas que avisavam: nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Para o bem e para o mal, um mantra.

As minhas, além de Torres: Bombinhas, Quatro Ilhas, Praia do Rosa e Ipanema. Me viram crescer, por dentro e por fora. Não há quem não tenha ao menos uma como cenário da própria história.


28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
CARPINEJAR

Irmãozinho chegando


Depois do terrorismo familiar, estamos preparados para qualquer batalha. Quem é filho único não tem a mesma doutrinação militar.

Morar com irmãos exige resistência emocional. É fundamental suportar as oscilações dramáticas de uma vida coletiva, o que corresponde a errar, contornar o orgulho e pedir desculpa ou a de não assumir a falha, colocar a culpa no outro e fugir do castigo. São várias opções em cada cena, todas complicadas, com o diabinho e o anjo da guarda cochichando nas orelhas.

Além dos tradicionais e declarados bons sentimentos, existe o ciúme, a inveja e o medo, sentimentos que partem do insano ato de dividir brinquedos, a casa e os próprios pais.

Recordo a infância de Luiz Antonio. Ele era o segundo filho, sob a influência do conselho e da proteção do mais velho. A mãe estava grávida do terceiro rebento. A escadinha ganharia mais um degrau.

Luiz partilhava o quarto com o mano maior, distribuído em duas camas e um único armário. Não é que o primogênito lhe chamou para conversar sério.

- Olha, você notou que vamos receber mais uma pessoinha no nosso apartamento? Não terá espaço para você e será obrigado a ir embora.

O menino de quatro anos levou a sério a brincadeira. A ideia do orfanato da rua pesou em seus ombros. Enfrentou os meses finais da gestação de modo casmurro e lacônico. Mudou o seu comportamento na escolinha e na mesa. Mal falava. Mal ria. Mal fazia alguma pergunta com receio da clara resposta de despejo. O silêncio cobriu o seu semblante e não duvido que não tenha surgido a sua primeira ruga precoce.

Quando os pais foram para o hospital, Luiz tratou de fazer uma malinha. Botou dentro dela o pijama, o uniforme da escola, um par de kichute, as bolitas e o pião. Estava conformado com a partida.

Foi a mãe chegar com o bebê no colo que ele pediu licença, desculpou-se pela má hora e se despediu.

- Tchau, gente, amo vocês! - Que foi, filho? - Não há mais cantinho para mim, e o nenê é pequeno demais para dormir no chão. - Não, Luizinho, você fica e a gente arruma um jeito.

O pai resolveu a situação chorosa brincando, com espírito leve, acostumado a comandar a diplomacia dos meninos quando disputavam a bola e os talheres.

Já o irmão mais velho, malandro, pressentindo que sobraria para ele, ainda deu uma de herói e foi elogiado pela generosidade durante muito tempo:

- Pode ficar com a minha cama! Ninguém nunca soube a verdadeira história.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017



25 de janeiro de 2017 | N° 18751 
MARTHA MEDEIROS

Arte de rua

O que é arte? Difícil responder com precisão. Arte é expressão de beleza, inteligência, harmonia, subjetividade, inquietação, espiritualidade, transcendência. Arte é uma manifestação sensorial a serviço do lúdico sem desprezar o engajamento político e social que porventura tenha. Arte é tudo o que encanta, extasia, comove. 

Arte é o que nos transporta para longe do racionalismo limitado e das trivialidades, é a droga autorizada que acelera nossa pulsação e nossos batimentos cardíacos, é o colírio mágico que nos permite desenvolver um olhar mais abrangente para o que nos cerca, é o amplificador da nossa sensibilidade, é a autorização para fugirmos de enquadramentos restritos e expandir nossa existência.

Não significa que toda arte seja ótima e linda. As reações divergem, nunca haverá consenso, mas é preferível discuti-la a ignorá-la.

Grafite também é arte. Não são pichações aleatórias com intuito de vandalizar, e sim desenhos que transmitem um sentimento ou uma ideia que se deseja compartilhar com os habitantes da cidade. É uma forma de personalizar o concreto, de provocar alguma surpresa, despertar a atenção de quem não enxerga mais aquilo que todo dia vê – paredes nuas.

Aconteceu em São Paulo. O prefeito João Doria comandou uma operação limpeza na capital, tentando colocar “ordem na casa”: grafites apenas em locais predeterminados a partir de agora. Tudo bem regularizar, mas há que se ter bom senso e jogo de cintura: os grafismos paulistanos davam colorido à urbe, enchiam de vida o que antes era um espaço de fastio monocromático. 

Doria poderia ter discutido com a população as novas regras para a execução de arte de rua sem ter recorrido a uma atitude truculenta: destruir arte já realizada é sempre um crime. As cenas que estão circulando pelas redes sociais, mostrando funcionários da prefeitura pintando de cinza as paredes grafitadas da cidade, são dolorosas. É a volta do opaco em detrimento do vibrante. Antiexcitação. A eliminação do gozo.

As cidades crescem e se tornam opressivas. É preciso resistir com menos carros, mais verde, mais artistas de rua, menos buracos, menos fios enroscados nos postes, mais mesas nas calçadas, mais flores, mais segurança, mais facilitações para a caminhada e o encontro, menos angústia, mais feiras, mais graça de viver. Colocar ordem na casa é, antes de tudo, aceitar que a cidade é mesmo uma casa, e não um jazigo, uma jaula, uma cela. O Brasil anda precisando urgentemente fazer as pazes com a alegria.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017



24 de janeiro de 2017 | N° 18750 
CARPINEJAR


Apagava os livros para o meu irmão mais novo

Quando terminava o ano letivo, eu tinha a missão de reunir os livros usados em aula e apagar o que escrevi para oferecê-los ao caçula. Era uma obrigação limpar as respostas. Levava dias e duas borrachas brancas para desaparecer com aquilo que aprendi durante uma série inteira.

Da lista escolar, apenas comprávamos os cadernos. Estudávamos na mesma escola e reutilizávamos os livros de exercícios. O meu irmão mais velho reproduzia o gesto comigo. História, geografia, matemática, língua portuguesa e ciências, as obras migravam de um nome para outro na aba de rosto sem trocar o sobrenome. Folheava os fascículos e em cada pergunta constava o relevo da letra emendada do Rodrigo, como um adubo do meu conhecimento, papel vegetal de minha alma. Ele nunca deixava nada sem preencher – a sua inteligência e presteza me apuravam. Queria ser como ele, desta forma seria melhor do que eu.

Suas marcas me inspiravam a não desistir, a cavar a solução dos problemas e equações. Pois, se ele respondeu, é que existia a resposta, isso me confortava a continuar buscando o resultado no fundo da memória. Às vezes, quando não sabia a questão, tentava trapacear e passar a minha letra por cima da dele. Nunca estive sozinho na dúvida. Ele me apoiava secretamente, tal tutor da caligrafia.

Predominava na época uma grave consciência de herança, de que deveria seguir os seus caminhos curvos da palavra e retos de conduta.

Jamais recebia um livro inédito. As linhas sempre estavam pressionadas pela mão direita do Rodrigo. Quando realizava os temas, eu também mantinha o capricho de não afundar demais o lápis, para não atrapalhar Miguel no ano seguinte. Escrevia leve, acariciando a folha. Não podia estragar o conjunto, rasgar algo, prejudicar a capa, desenhar nas bordas, colar adesivos. A responsabilidade já aparecia na ponta de meus dedos.

Havia a noção de que o livro era coletivo, não pessoal. Representava um patrimônio de todos os filhos. Não seria posto numa caixa de pertences para nunca mais, nem jogado fora. Estudar significava cuidar. Assim eu fui educado a não ser egoísta e possessivo, a não me sentir dono da verdade, a ceder o espaço para quem vinha depois de mim.

Livro importante era livro passado adiante.

sábado, 21 de janeiro de 2017



21 de janeiro de 2017 | N° 18748 
LYA LUFT

Os bens ignorados

Coisas que a gente tem à disposição mas ignora, e ainda por cima se lamenta. Exemplo: a possibilidade de afetos e projetos, lema que repito em artigos e palestras há anos e anos. Do que a gente precisa para sentir-se bem na própria pele, que é um certo sentido de “felicidade”? E eu dizia e digo: afetos e projetos.

Certa vez, falando para um público bastante grande, na primeira fila levantou-se uma senhora de uns oitenta anos, olhos alertas, e, quase com dedo em riste, me disse como se eu fosse culpada: “Como a senhora quer que eu tenha afetos? Não tive filhos, sou viúva, quase todas as minhas amigas morreram. Como posso ter afetos? Um cachorro, um gato?”. E acrescentou já bem zangada: “E projetos? Pior ainda. Tenho mais de oitenta anos. Caminho com certa dificuldade (apontou a bengala) e já vivi muito. Que projeto posso ter?”.

Vou lhe dizer aquilo em que acredito, respondi, e que sei por experiência própria. Não funciona igual para todo mundo, mas em geral dá certo, dentro da realidade de cada um. Afeto: além de um bichinho de estimação, que se a senhora não tiver é boa ideia, não há vizinhos em seu edifício a quem cumprimentar com simpatia no elevador, puxar uma conversinha, inventar aquele velho pedido de uma xícara de açúcar para iniciar uma relação? No mercado, na quitanda, mesmo que não sejam amizades, a senhora não tenta conversar? Ligar para a amiga doente, ligar para um sobrinho e convidar para um café, coisas desse tipo? O mundo em geral não vem até a gente: nós temos de buscar, com tranquilidade e coração aberto. Porque desespero, como no tempo dos namoros, espanta os outros.

Projetos... bem, o primeiro é combater com unhas e dentes a amargura que ronda tantas vezes. Não cobrar nada, nem da vida, nem dos outros. A pessoa pode não viajar mais para a Europa, nem se interessar por uma praia no Caribe ou um diploma de Direito (e por que não?), mas pode frequentar um curso interessante, um ateliê de pintura. Ir a um cinema. Visitar uma livraria é um bom passeio sempre. Não imaginar projetos grandiosos, mas, até, como eu certa vez fiz, mudar de lugar sua poltrona para enxergar, em vez da parede do vizinho, um pôr do sol. Fazer trabalho voluntário pode ser extraordinariamente renovador: ser útil, em lugar de se sentir vítima. 

(Ela começava a me olhar com simpatia.) Além do mais, é talvez tempo de apreciar uma coisa que quando mais jovem a senhora não tinha, eu não tinha: ócio. Curtir não ter tantos horários, agitação, obrigações. Ficar quieta com suas belas memórias (feliz de ter tido tudo aquilo), um trabalho manual, um bom livro, sabendo que não vai ter de levantar correndo daqui a uns minutos para atender alguém. Nós esquecemos como o ócio, sem depressão mas bem entendido, pode ser renovador, até curativo. Temos o vício da atividade e do trabalho, lazer sendo irmão da preguiça. Aliás, por que alguma vez não se permitir ser preguiçoso?

No fim da palestra, hora dos autógrafos, ela se aproximou de mim, risonha, me abraçou, me chamou de “filha” e disse: “É, penso que de vez em quando eu sou meio chata...”. Àquela hora éramos velhas amigas. E eu me achei o máximo. O que às vezes é bem bom.



21 de janeiro de 2017 | N° 18748 
MARTHA MEDEIROS

ALMA

Sinto falta de uma integridade que vá além do profissionalismo, que ultrapasse o conceito de “correto” até alcançar, de novo, o experimentalismo e o risco

Tirando o resto, a alma é tudo o que sobra.”

Esse verso encerra um poema que escrevi há 15 anos, e desde então percebo que a alma vem sofrendo ações inconsequentes com o propósito de a aniquilarem. Meu manifesto a favor de sua resistência.

Em entrevista recente ao jornalista Fernando Eichenberg, o ator francês Jean Paul Belmondo fez uma reflexão sobre o bairro boêmio Saint-Germain-de-Près, em Paris, berço do existencialismo. Disse sentir saudades das noites de amor e das caves em que reinava uma vertigem de prazeres, segundo suas palavras. Hoje, o bairro foi tomado por butiques, e o Café de Flore e o Deux Magots são redutos de turistas.

Trata-se de uma observação sobre um bairro, apenas, mas podemos expandir essa ausência de alma para outras coisas mais, para quase tudo. Tenho escutado muita música e por mais que goste de novas bandas e intérpretes, parece que há um excesso de ensaio e tecnologia. Quase não se escuta mais um solo indócil de guitarra, uma voz afinada com a dor, a sensação de que do resultado daquilo depende a vida do artista. 

Sinto falta de uma integridade que vá além do profissionalismo, que ultrapasse o conceito de “correto” até alcançar, de novo, o experimentalismo e o risco, dando a volta completa. Shows ao vivo fascinam por isso. O teatro fascina por isso. É quando a alma escapa da prisão que a técnica impõe e dá uma piscadinha para a plateia.

Gosto de usar o exemplo de Picasso, que estudou muitos anos o desenho clássico, acadêmico, até se sentir seguro para trocar olhos e bocas de lugar. Estamos trocando olhos e bocas de lugar por modismo, por tendência de mercado, não por uma necessidade íntima de transcender e tocar em algo que ainda nos seja misterioso.

A alma é justamente isso, a casa do mistério, onde as emoções não são reconhecidas pelo nome, e sim pelo que provocam. Onde a simplicidade não reage às críticas, reconhece o próprio valor. Onde não existe juventude e velhice, tudo é atemporal. Onde a essência reside, ainda que meio escondida.

O resto? É ambição, exibicionismo, vaidade, angústia, medo da morte, rendição à opinião alheia, sensação de incompletude, vergonha dos fracassos, pudores, palavras demais, obsessão em cumprir metas, barulho excessivo para espantar o silêncio, negação dos próprios desejos.

Tirando o resto, a alma é tudo que sobra.



21 de janeiro de 2017 | N° 18748 
CARPINEJAR

Último samurai

Tenho uma nota de R$ 100 na carteira que já vem durando uma semana. Não vou entregá-la.

É só pagar algo, e ela desaparece. É só virar uma de R$ 50 e duas de R$ 20 que ela some e nem sei com o que consumi. É só uma balconista usar a expressão troco – “toma o seu troco” – que ela se sente diminuída e se desintegra. Uma nota de R$ 100 jamais poderia ser insultada de troco, é bullying.

A nota de R$ 100 é o último samurai da família, o derradeiro guerreiro do níquel. Fará a vingança do cofrinho quebrado, do porquinho desmanchado em pedaços, do porta-moedas vazio.

Lutarei por ela, e ela lutará por mim. Não deixarei a garoupa ser pescada ou a efígie da República ser pichada. Mesmo que seja necessário atravessar um shopping inteiro com os filhos, atalhar um parque e encarar as carrocinhas de cachorro-quente e churros como um vegano convertido.

As tentações são muitas, em especial no final de semana. Sábado e domingo são inimigos declarados da nota de R$ 100.

A vontade de cinema apertou, mas não cedi e esperei um bom filme aparecer na tevê. Preparei pipoca no micro-ondas, estendi os pés no sofá e não reclamei que a metade do milho não estourou.

Reclamar esvazia o bolso. É dizer que não está feliz que o descontentamento aumenta. É dizer que não tem dinheiro para nada que você gasta o dinheiro que nem tem.

No dia seguinte, estava cansado, pois dormi tarde, vi os imãs de tele-entrega sorrindo para mim na geladeira, mas resisti aos números fáceis. Guardei as propagandas no armário e fui cozinhar. Preparei uma massa para bodear os pensamentos, jiboiar os desejos, enjaular este safári de impulsos.

Decidi empenhar a faxina senão a nota ia embora na segunda. Pensei com ternura na faxineira que é minha amiga, coitada da Vera, mas as intenções não podem demonstrar misericórdia. Esmurrei os tapetes na janela enquanto o vizinho dormia, empurrei a geladeira e varri até o braço cansar, até desistir de erguer a nota de cem.

Não bastando, desci para lavar o carro todo empoeirado da recente visita à chácara de minha mãe, em Eldorado do Sul. Eldorado é agora a nota de R$ 100. A ânsia para repassar o trabalho ao lavador do bairro era imensa, não sei como me contive. Coloquei música alta para fingir que estava cantando e dançando, e não lavando o carro.

Nota de R$ 100 não é mais papel, não é mais uma simples cédula, mas uma armadura.

Tomara que eu mantenha a abstinência e bata o recorde de minha vida de oito dias com a nota de R$ 100 na carteira.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017



18 de janeiro de 2017 | N° 18745 
MARTHA MEDEIROS

Sobre cada um de nós

É difícil falar de um filme sem dar spoiler, ainda mais quando se trata de um thriller, então vou me reter a uma cena aparentemente sem importância do eletrizante Animais Noturnos, de Tom Ford. São três narrativas interligadas, e uma delas mostra o início do relacionamento entre um aspirante a escritor e sua jovem esposa. Cena: ela está deitada no sofá terminando a leitura do primeiro original do marido e ele rói as unhas aguardando o veredito. Quando ela termina, em vez de purpurina, joga um balde de água fria no coitado. A trama não a seduziu. Ela arrisca um conselho: “Não escreva sobre você”. No que ele rebate: “Todos escrevem sobre si mesmos”. E sai da sala frustrado.

Cerca de 20 anos depois, já não formam um casal. Ela está instalada num segundo e entediante casamento, quando recebe pelo correio o manuscrito de um novo livro do ex-marido, que pede mais uma vez a sua opinião. Ela então começa a ler e não consegue largar, pois, além de cativante, é uma história aterradora e com consequências trágicas, ou seja, nada do que foi escrito aconteceu de fato – pelo visto, ele seguiu o conselho dela.

E aqui tergiverso, levantando esta questão recorrente sobre o ofício do escritor. Sempre escrevemos sobre nós mesmos ou somos capazes de inventar uma boa história e contá-la sem nenhuma interferência do que nos passa dentro?

Quem se dedica a romances policiais talvez alcance o desprendimento total. Agatha Christie, George Simenon, Raymond Chandler e tantos outros que escreveram obras em série eram máquinas de produção de textos e suas questões particulares pareciam pouco influenciá-los. Alguns autores brasileiros, gaúchos inclusive, me dão a mesma impressão: não se misturam com seus personagens. Suas criaturas não revelam nada do que acontece na vida prosaica do criador.

Ainda assim, sei que estou enganada. Porque ao sentar em frente ao computador para escrever, fazemos uma escolha. Escolhemos o tom, escolhemos a atmosfera, escolhemos ir por um caminho e não por outro, e essas seleções vêm daquilo que nos move, interessa, apavora, incomoda ou diverte intimamente. Livros também têm DNA.

Bem disfarçado, mal disfarçado ou às claras: nossa ficção nos espelha – todo tipo de arte, aliás, é um manifesto pessoal. Pode ser transmitido com várias camadas sobrepostas, mas a nossa nudez está ali, encoberta e intuída. Animais Noturnos é, toscamente resumindo, um filme sobre um livro de suspense que parece não ter nada a ver com nada, mas o sentimento do autor grita e sua principal leitora escuta. Por mais longe que a imaginação vá, alguma coisa sempre é dita ao pé do ouvido.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017



17 de janeiro de 2017 | N° 18744 

CARPINEJAR

Filho ou um alien?

Pai e mãe não conseguem colocar fora nada do filho. Fracassam. É um esguicho de tinta no caderno e pretendem emoldurar.

Sofro da mesma síndrome e entendo direitinho a compulsão.

Nem me refiro a retratos desfocados ou aos primeiros sapatos de crochê.

Você ganha a coleção de desenhos das creches, todos os trabalhos realizados em aula, desde a mão com tinta na folha até a colagem de gravetos, e deseja achar um lugarzinho no armário abarrotado. Não há folga na estante, talvez seja necessário descartar a escritura e os documentos do imóvel, afinal filho é filho, filho é prioridade.

São pastas e pastas coloridas e você acha que descartar é como jogar o amor no lixo, que será estigmatizado como insensível, que o filho um dia irá descobrir: “Onde está o meu desenho de caramujo subindo na árvore?”.

Você mantém a montanha de rabiscos como se fosse a evolução artística e mirim de um Picasso. Para preservar o acervo escolar de dois filhos, por exemplo, você tem que comprar um outro apartamento. Estará entre a cruz e a espada, o desapego ou o despejo.

O que não raciocina é que, se o desenho fosse uma obra de arte, a creche ficaria com o material, mas ela faz questão de passar adiante. No final do ano letivo, a professora entrega o dossiê criativo de 600 páginas com um riso sarcástico:

– Pai, não esquece que é para mostrar para ele quando ficar adulto.

Guardar durante 15 anos, isso? Não conserva sequer os canhotos da reforma durante tanto tempo.

A culpa é uma colecionadora compulsiva.

O momento trágico ainda é quando inventa de estampar uma camiseta com foto do filho. Como se desfazer dela depois?

A imagem estará granulada, apagada, desbotada, já é a de um alien, não mais de um bebê, e não contará com coragem para o descarte. Ninguém mais lê o nome da criança e a manifestação mimosa, mas se engasga inteiro para se despedir dela. Comparativamente, o uniforme da pelada com os amigos, que serve para lustrar os móveis, tem mais condições de jogo.

A impressão é de que vem sendo perseguido por uma câmera registrando os seus movimentos pela casa e que o ato seria visto como um crime imperdoável. Não há como liberar o pano para a caixinha da campanha de agasalho discretamente, sem fungar de piedade. Você não possui uma recordação, é ela que possui você. Age desconfiado e paranoico com a sua sombra, como um guarda do Vaticano protegendo o sudário.

Amor de pai e amor de mãe desrespeitam o aproveitamento de espaço. Talvez porque ambos intuem que na adolescência dos filhos não receberão mais nenhum cartão e declaração emocionada e tremida de “eu te amo”. O excesso da infância termina sendo uma reserva de carinho nos períodos de longo silêncio.

sábado, 14 de janeiro de 2017



14 de janeiro de 2017 | N° 18742 
LYA LUFT

Não é dos espertos

“O mundo é dos espertos”, me disseram um dia, ou rolou numa conversa da qual eu participava talvez sem prestar muita atenção. Fiquei pensando nisso, e repensei muitas vezes nestes tempos bizarros em que o pano se abre, e o cenário é de que (quase) todo mundo era corrupto, (quase) todos com rabo preso, e se todos fossem apanhados na Lava-Jato (anda quietinha demais...) não sobraria quem nos liderasse.

Claro que não é bem assim, mas que as coisas andam mal, andam. Porém, há luz no fim do túnel ou já pelas beiradas do horizonte: nunca tanta gente importante foi presa, nunca tanta realidade vergonhosa foi exposta, nunca tivemos tanta esperança de que desta vez a coisa vai. Diante do fato de estarmos quase todos tão empobrecidos, calculando cada real, encolhendo os gastos mesmo não exagerados, repensando as idas ao cinema, cortando aquelas ao restaurante, irritados quando chegam as contas normais e tensos ao entrar no internet banking, acho que somos, sim, bastante corajosos. Pois continuamos vivendo. E não nos vendemos.

Vamos ao trabalho, almoçamos a marmita (neste universo dietético, até virou moda, pode ser marmita chique...), brincamos com filhos e netos, tentamos frear o mau humor porque mulher ou marido não têm culpa, e de repente, numa esquina, numa praça, respiramos fundo e olhamos uma árvore florida, ou abrimos a cadeira de praia na areia (ninguém é de ferro) e aspiramos fundo aquele cheiro de mar e aquele azul cristalino: nossa! A vida ainda pode ser boa.

Mas se a gente não cuida, se a gente não reúne alguma coragem, estes serão tempos de queixas intermináveis e infinitas aflições. Muitas vezes constrangida com o noticioso brasileiro, eu entrava na CNN, na BBC, e outras. O que no começo parecia piada (Trump? Essa é boa! Nem pensar!) se tornou realidade, e uma primeira coletiva nos deixou boquiabertos. Poxa, esse é o novo presidente dos States? E agora, e agora?

Então a gente reaprende o valor das pequenas coisas, como aquela árvore florida, aquele cheiro de maresia, aquele filho ou neto que passou no vestibular, a mulher ou marido que nos recebe com um sorriso e um abraço sem maior razão a não ser a do bem-querer. Um bom filme na tevê. Uma página instigante do novo livro (que ainda pode custar menos que uma ida à lanchonete). Sei lá. Até um sonho daqueles em que retornamos a algum lugar e momento da infância, da juventude, de apenas outro dia, e sentimos de novo todo aquele encantamento.

Se a gente não ficar pessimista demais, chata demais, burra demais, podemos ainda encontrar lá no fundo a coragem de abrir a janela, abraçar o mundo, curtir a vida do jeito que ela é, e agradecer. A quem? Sei lá, depende de cada um. A Deus, aos deuses, à vida, ao destino, a nós mesmos – que conseguimos tanto em meio a tanta confusão e carência: conseguimos ser pessoas legais, gerar sujeitos decentes, ter bons amigos, realizar um trabalho honrado, andar de cara limpa e cabeça erguida, e ainda, no fundo mais fundo, embalar sonhos. Como quem planta flores aparentemente inúteis num vasinho na sacada, e, vejam só, dizemos rindo, elas desabrocharam!

E ainda temos este luxo: a sensação incrível de que o mundo não é dos espertos, é dos corajosos.



14 de janeiro de 2017 | N° 18742 
MARTHA MEDEIROS

Almas mezzo gêmeas


Almas gêmeas, se existem, estão a muitos quilômetros de distância, com poucas chances de cruzarem olhares e fundarem a relação perfeita. Eu acredito na sorte, mas com parcimônia

Uma leitora perguntou se eu acredito em almas gêmeas e pediu a resposta por escrito, em forma de crônica. Então, atendendo a pedidos: não é que eu não acredite em almas gêmeas, acho até possível que existam duas pessoas com um grau de afinidade absoluto e temperamentos praticamente iguais, sem falar na química que faria corar as paredes do quarto. Se eles por ventura se encontrarem, será o relacionamento dos sonhos, mas o problema é justamente este: o encontro. 

Não seria muita sorte sua alma gêmea, sendo tão rara, frequentar o mesmo bar, estar no mesmo grupo de WhatsApp e ter amigos em comum no Face? Somos 7 bilhões no planeta. Não parece mais lógico que sua alma gêmea esteja vivendo em Macau, em Auckland, em Salzburg? Pense. Ela estaria justamente ali no boteco da esquina, comendo um pastelzinho de camarão com os olhos fixos em você? É mais provável que esse estranho com os olhos fixos em você seja uma alma oposta a ser desbravada. Nada contra. Das aventuras surgem amores não univitelinos, mas que divertem.

Almas gêmeas, se existem, estão a muitos quilômetros de distância, com poucas chances de cruzarem olhares e fundarem a relação perfeita. Eu acredito na sorte, mas com parcimônia. Poucas semelhanças – serve. Temperamentos conflitantes, mas que ajudam a equilibrar a relação – serve também. Diferenças que mantêm a vontade de explorar o universo do outro – serve. Querida leitora, esqueça almas 100% gêmeas, mais vale se contentar com algumas similaridades que dão conta do recado.

Uma biblioteca gêmea, por exemplo. Você entra na casa do cara e descobre que os autores na estante são os mesmos que estão na sua. Comemore. Vocês dois são almas gêmeas, em parte. Não importa se um gosta de cerveja e o outro é abstêmio, se um é crente e o outro um devasso: vocês leem os mesmos autores, estão sintonizados pela boa literatura, a conversa está garantida, não exija mais do que isso, case-se agora.

Uma discografia gêmea. O Spotfy traz a mesma playlist. O que arrepia os pelinhos do braço de vocês é a mesma guitarra de Jeff Beck, o mesmo vocal da Amy Winehouse, o mesmo cenário indie rock, ou o mesmo sertanejo, vá lá, sertanejos também amam, até mais do que roqueiros, reza a lenda. Você tem ideia de como isso facilitará na hora de viajar de carro?

Uma cinefilia gêmea. Vocês veneram os mesmos diretores, os mesmos tipos de filme, mesmo que, no reduto do lar, se desesperem na hora de educar os filhos (um liberal, outro repressor) ou na escolha do cardápio (um vegano, outro carnívoro). Mas, quando vão ao cinema, as mãos não se desgrudam no escuro. Acredite, isso faz mais por um relacionamento do que as promessas matrimoniais ditas no altar.

Sou romântica o suficiente para acreditar que partículas de afinidade bastam pra começar uma história de amor. Almas mezzo gêmeas – serve.


14 de janeiro de 2017 | N° 18742 
CARPINEJAR

Bom-dia, alegria


Não confio em pessoas sempre, mas sempre alegres. São mentirosas, megalomaníacas, exageram e distorcem os fatos. Não aceitam as pequenas derrotas, os números quebrados, as desilusões, não pedem desculpa, sufocam as contradições naturais do temperamento.

Quem sempre se acha não se conhece, está próximo da loucura.

Todos os meus amigos têm uma pequena melancolia no olhar. Uma tristeza nos fundos dos hábitos. Não são depressivos nem chatos, muito menos pessimistas. Não reclamam de tudo, só que não aboliram a contemplação de seus dias. Entenderam que a tristeza é fundamental, como a solidão, a fé, o amor.

Ficam quietos por horas a fio lendo um livro e vendo um filme, sem aquela ansiedade histérica e falsa do alegre em tempo integral.

A tristeza é como uma doença benigna, que não mata e não atrapalha, que apenas precisa tomar cuidado para não se agravar.

Meus amigos estudam a si mesmos, para as provas dos relacionamentos. Reservam um momento para examinar seus atos. Não somente põem a mão na consciência, lavam as mãos na consciência.

Essencialmente sadios porque conservam este sentimento reflexivo guardado. Já perderam alguém importante, já enterraram um familiar, já sobreviveram a romances errados. Não foram sempre felizes, descobriram que a felicidade acaba e se transforma em esperança.

Persevera neles uma honestidade da imperfeição que resulta nos conselhos mais ajuizados.

Meus amigos não experimentaram uma infância idealizada, cresceram entre encrencas familiares e não se fizeram de vítima. Não namoraram o menino e a menina mais famosos da escola, não há glórias unânimes no passado, sofreram bullying e não se diminuíram.

Doces porque deram espaço para amargura. Cumprimentam com ternura, abraçam com cuidado, mantêm um pouco da fragilidade de vidro na pele.

São meus soldados com cicatrizes das batalhas no corpo.

Não aplacaram essa sensação miúda de desencanto e humildade. É como assobiar sem querer, ou suspirar fundo sem motivo. Não acreditam no sucesso e no fracasso, ambos sinônimos da farsa.

Uma tristeza que é charme, que é simpatia, que convida para a conversa, engajada nos problemas e ruminando soluções em segredo.

Uma tristeza que se contenta com pouco, que oferece pão aos peixes. Uma tristeza subterrânea, necessária para melhorar o mundo. Uma nostalgia do futuro, de escrever cartas e não mandar.

Uma tristeza que veio de algum lugar longe da memória, de uma desconfiança, de uma lealdade quebrada, de uma viagem adiada.

Uma tristeza que não salva o pensamento, e sim conforta e acalma. Uma tristeza sábia, que não é excluída do contentamento.

Uma tristeza capaz de dizer bom dia para a alegria e esperar a resposta.

Meus amigos não choram com esta tristeza, podem estar rindo. E ninguém notar que estão tristes. Demonstram o sorriso sereno de descoberta das limitações de cada um.

Uma tristeza de saber que as coisas não são como a gente gostaria, porém são como a gente pode, que dar o melhor de si ainda não é dar o melhor para os outros e que tudo bem, a vida não é nossa, é somente emprestada para aprendermos a nos despedir.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017



11 de janeiro de 2017 | N° 18738 
MARTHA MEDEIROS

Acompanhantes

Já que recentemente lancei um livro com relatos de viagens, uma revista especializada pediu que eu definisse, em duas palavras, a melhor parceria para uma travel experience. Duas palavras? Andam confiando demais no meu poder de síntese.

Quando as pessoas decidem sair de férias, pensam no roteiro, no limite do cartão de crédito, na meteorologia, no que colocar dentro da mala, e estão certas, têm juízo: todos esses cuidados conduzem ao sucesso da empreitada. Mas sobre a companhia pouco nos dedicamos. Não estou falando da companhia aérea, mas a companhia propriamente dita, aquela que estará sentada no assento ao lado. Sendo íntima, estará salva a jornada? Não mesmo.

Pra início de conversa, ajudaria muito se ela não fosse, justamente, aérea. Sabemos que sempre há alguém que assume o papel de “chefe de excursão”, aquele que fica atento ao painel de decolagens, à chamada para embarque, à apresentação dos documentos. Até aí, normal: um desliga-se enquanto o outro se liga, mas o desligado que, uma vez estando no destino, acorda de manhã sem saber em que cidade está, que se perde ao dar a volta no quarteirão e sempre esquece o passaporte no banheiro do restaurante não deveria ser forçado a sair de casa, deixe-o seguro em seu hábitat.

Deduz-se que quem vai para o Caribe goste de mar, que quem vai para Nova York goste de agito, que quem vai fazer o caminho de Santiago de Compostela goste de andar, então preste atenção antes de convidar um albino para ir a Aruba, uma monja budista para percorrer todos os bares do East Village e um sedentário para peregrinar. Exemplos meramente figurativos a fim de sugerir: não seja teimoso, não queira mudar o estilo de vida dos outros a fórceps.

Mesmo que você esteja viajando com o amor da sua vida, pergunte-se: somos capazes de desgrudar? Até uma relação Superbonder precisa levar em conta a necessidade do “cada um na sua”, nem que seja por meia hora. Ele encasquetou de comprar uma chave-inglesa numa loja de ferramentas que um amigo indicou e cujo endereço fica duas ruas depois do fim do mundo. Em vez de ir emburrada, não vá. 

Aproveite a folga para revirar uma livraria ou experimentar todas as ofertas de uma loja de cosméticos – e no final da tarde encontrem-se num bistrô morrendo de saudade um do outro e com histórias novas para compartilhar. O mesmo vale para amigos, famílias, turmas – menos para crianças, lógico, não perca o tino.

Poderia escrever várias páginas a respeito, mas já me estendi o suficiente para quem foi estimulada a resumir o assunto em apenas duas palavras. Aliás, me ocorreram agora duas: bom humor. Se existe uma coisa que exige jogo de cintura é viagem – não queira estar ao lado de alguém inapto para o imprevisível.

sábado, 7 de janeiro de 2017


07 de janeiro de 2017 | N° 18735 
CARPINEJAR

Elogie a ex para nunca mais voltar

– Olá! – Quem é? – Você pode conversar?

– Quem é? Não identifico o seu número no WhatsApp. Parece estrangeiro.

– Falo do Panamá. – Explicado o número diferente. Quem é?

– Aqui é o namorado da Bianca. – Ela está bem?

– Sim, tudo bem. – Ótimo. O que houve, então?

– Queria saber se ela é confiável. – Por quê? Aconteceu algo?

– Não, ainda não. É que penso em assumir um compromisso sério e não tinha a quem perguntar.

– Como conseguiu meu celular? – Copiei do celular dela.

– É bom que ela não descubra, pois senão você já era. – O quê? Não entendo tudo.

– Olha, não costumo dar recomendações de ex-namoradas.

– É que somos um povo desconfiado.

– Ok, mas se alguém fosse falar com as minhas ex, elas só falariam mal de mim. Ninguém me pouparia. Por isso é ex! Ex é exu sem luz. Se fosse bom, estaríamos namorando até hoje.

– Não compreendo tudo o que está escrevendo. Mas depois procuro no Google.

– Esquece. Bobagem. – Você viveu com Bianca, ela é confiável?

– Sim, muito! É a melhor pessoa do mundo, perfeita para casar e ter filhos, equilibrada, companheira nas horas difíceis, amiga de verdade, compreensiva, cozinheira de mão cheia, jamais implicava, nunca bebia e fazia barraco, não sentia ciúme e me inspirava a viajar e descobrir novos caminhos, cuidava dos meus amigos como se fossem os dela, não me pressionava, não mudava de humor, sempre controlada e constante, uma maravilha de ânimo e otimismo.

– Ela é confiável, por aquilo que vem dizendo, ela é muito confiável.

– Muito! Nós só terminamos porque ela era perfeita demais, estava ficando monótono de tanto que eu a elogiava. Nunca brigávamos, nunca nos desentendíamos, acabamos como irmãos.

– Ah, lamento.

– Já é passado. Ela não era para mim. Estava precisando de alguém como você. Vocês nasceram um para o outro. Parabéns!

– Obrigado! Não imaginava que os brasileiros fossem tão civilizados no amor.

– Somos. O divórcio aqui é um querer bem, uma maneira de homenagear quem nos ajudou.

– Que diferente.

– Boa sorte! E me convide para as bodas de prata, não quero perder.

– Bodas? – Comemoração dos 25 anos de casamento.

– Ah, ainda falta. Só estamos 25 dias juntos. – Ih, passa rápido, nem vai notar. A alegria voa.

– Abraço, meu amigo.

– Abraço!



07 de janeiro de 2017 | N° 18735 
MARTHA MEDEIROS

Mas guardar-se uma horinha por dia é uma visita que se faz a si mesmo. Chá, cafezinho, um cálice de vinho? Aceito, obrigada


TOQUE de recolher

O WhatsApp não me regula, o Messenger também não. Nem o relógio de pulso, nem a timeline dos amigos, nem a Netflix. Ainda consigo manter certa desobediência civil, só aceito ordens de mim mesma meu toque de recolher particular é sagrado.

Quando escuto o sinal, desligo o mundo – off.

Então acendo uma luzinha interna e sossego em meio à penumbra dos meus devaneios, com os pensamentos em volume bem baixo, um sussurrar quase libidinoso de palavras que vêm e se vão, suaves.

Nessas horas, não estou para ninguém. Não estou à venda nem comprando nada.

Se estiver deitada, nem me levanto – posso me ferir pelo caminho. O banheiro está longe demais da cama, do sofá, da rede, do meu tapete. Medito. Aberta para dentro, ausente para fora.

Também não estou para o zelador, ele não precisa entregar o jornal em mãos, que o deixe em frente à porta, no meio do corredor, que me engane e traga o jornal de ontem que também não li, e o de anteontem e o de amanhã. Quando me isolo na quietude, não faz diferença a manchete que está na capa, só quero matar a curiosidade de mim.

Feito uma Greta Garbo que espia o mundo por trás das cortinas, de óculos escuros? É menos charmoso que isso: não é cena de cinema, não há enigma, não busco um esconderijo, não fujo de nada; ao contrário, retorno satisfeita pra rua, sempre volto dando risada. Viver é muito divertido, apesar de tudo. Mas guardar-se uma horinha por dia é uma visita que se faz a si mesmo. Chá, cafezinho, um cálice de vinho? Aceito, obrigada.

E essa música tocando bem agora... bingo. Música é silêncio em movimento (Fernando Sabino).

Os automóveis continuam circulando, o sinal abre e fecha organizando o fluxo das esquinas, há filas se formando em frente aos bares, sempre alguém atrasado, sempre alguém esperando, os garçons atendendo aos pedidos, o telefone tocando e nunca é quem você gostaria que fosse, os caixas eletrônicos, os ônibus, já é quase meia-noite e você nem viu o dia passar, amanhã tem tudo de novo, tem você de novo em meio a tudo.

Mas escute o sinal. E então, onde estiver – perto da praia, longe de casa, fora do quarto, dentro do carro – se autoimponha um afastamento do desvario. Off. Obedeça à sua ordem interna. Encontre o sentido perdido entre o tanto que foi pensado. É esse o toque.



07 de janeiro de 2017 | N° 18735 
LYZ LUFT

O HUMANO E O DESUMANO

Não, eu não costumo sofrer do chamado “bloqueio de escritor”. Exceto num período muito sombrio da minha vida, em que fiquei alguns anos sem escrever, só traduzindo, em geral a página em branco, ou melhor, a tela, é minha amiga. Talvez porque eu também não a aborreça demais. Se nada tenho a dizer, nada digo. Não complico, não sofro: o que há para escrever é meu, vem de mim, está lá dentro, e quando for hora há de aparecer. Vou ler, pintar, ver tevê, ligar para uma amiga. Fazer alongamentos no terraço.

De repente me dou conta de que tenho esta coluna por escrever: já? De novo? Sim, o tempo corre, tempus fugit, diziam os antigos. E eu, que gosto de escrever e tanto me divirto com isso, por que tardei? Acho que ando sem palavras diante do que acontece no mundo. Nestes dias, especificamente, aqui no meu país.

A chacina de Manaus em que se jogaram pedaços de corpos, e cabeças, sobre os muros de uma prisão, causando horror no país e uma torrente de discursos, promessas, projetos de parte das autoridades (não acredito em quase nada), na sexta foi acrescida pela chacina de Roraima: quase quarenta presos assassinados da mesma forma, decapitados, esquartejados, e um detalhe a mais: pelo menos três tiveram o coração arrancado. Sim, arrancado. Jogaram fora? Lançaram com um chute por cima do muro? Vão fazer um assadinho e devorar?

Não me espantaria. Pois eu, velha leitora de romances criminais e fã de Criminal Minds e outras séries, demorei a engolir esta grande pedra ainda por ser moída no meu coração e no estômago: ali, em Manaus e Roraima, não foram tenebrosos assassinos em série que cometeram os pavorosos crimes, nojentos. Foram pessoas. Foram colegas de prisão. Foram vários homens, bandos de homens, que têm pai, filho, namorada, irmão. Foram seres humanos, essas são coisas humanas?

Aqui mesmo nesta cidade minha, tão amada, que adotei e me adotou há tantas décadas, está quase normal encontrar cabeças num bairro e corpos em outro. Se assalta, se mata, quase naturalmente. Outro dia, tiroteio aqui do outro lado da rua. Muita coisa acontece em shoppings e restaurantes que não é noticiada: não podemos provocar pânico, e assim autoridades do país dizem que chacinas são acidente, ninguém se responsabiliza, há muito tempo se subestimam o poder do tráfico, a desordem generalizada, a falta de pulso firme, as fronteiras abandonadas, a grosseira irresponsabilidade geral.

Eu devia escrever aqui, como me pediram e eu prefiro, sobre coisas humanas. Então escrevo de família, encontros e desencontros, faço lá minhas filosofias pessoais. Mas hoje, de verdade, tenho de falar, bradar, gritar, escrever aos quatro ventos: o que fizeram e estão fazendo conosco, enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto humanidade, enquanto habitantes deste pobre país? Depois da derrocada econômica causada pela irresponsabilidade e roubalheira geral, que tanto nos empobreceram, agora a derrocada moral, nós correndo pelas ruas, escondidos atrás de nossas cercas, com medo de abrir a porta, o jornal e a televisão, porque a sensação de apocalipse se avoluma como essas nuvens de tempestade em cada fim de tarde.

Sinto muito: hoje escrevo sobre coisas desumanas. E que os deuses nos ajudem.