sábado, 28 de setembro de 2019


28 DE SETEMBRO DE 2019
LYA LUFT

Pode ser mais simples

Almas aflitas, inseguros no turbilhão de informações corretas ou tresloucadas que nos confundem, em que até altas figuras fazem e refazem, decidem e se enrolam, vivemos vulneráveis a toda sorte de famigeradas "receitas" baseadas na futilidade geral: seja bem-sucedido, segure seu marido, enlouqueça sua mulher, tenha pelo menos dois orgasmos a cada relação, jamais envelheça etc. Como tudo está cada vez mais complicado, e andamos desgovernados, encalhados ou jogados por marés imprevistas, desistindo de prever qualquer coisa porque tudo se levanta e desmorona em questão de horas, acabamos nos aferrando a algum desses preceitos espalhados por toda parte.

É a era das receitas, das frases feitas e clichês, adaptados a milhares de desiguais como se assim carimbados não tivessem individualidades. Somos uma manada, o que oferece conforto, mas aniquila o espírito. Rouba a liberdade, mata a originalidade. É essencial - nos aconselham - fazer como todo mundo, frequentar o restaurante da hora, o cabeleireiro idem, ler aquele best-seller sem saber do que trata, conhecer as Bahamas, dar uma passadinha em Paris. Transpirando e lutando para pagar as reles contas do dia a dia, corremos ofegantes em busca disso que não podemos avaliar nem alcançar, eternamente frustrados.

Se prestarmos atenção a muitas mutantes e loucas recomendações, havemos de nos divertir: Não beba muito café; café faz bem. Não tome aspirina demais; tome uma por dia (a infantil, claro). Vitaminas não ajudam; tome esse moderno complemento de vitaminas. Faça exames a cada poucos meses; não faça exames demais. Álcool faz mal; uma taça de vinho faz bem. Exercite-se diariamente; não se esforce demais. Coma só carboidratos, evite carboidratos; fuja das gorduras, coma bacon e ovo frito todo dia no café da manhã... além dos grotescos conselhos sobre sucesso profissional, sexual, e ser linda(o), "ser famoso".

Mesmo em assuntos mais sérios, há declarações duvidosas, como "Quem não lê é uma pessoa triste". Desculpem, amigos, leitores, ex-alunos e colegas escritores, mas isso é mais uma empulhação. Quem não lê sabe menos, se diverte menos, tem menos bagagem interior, visão bem mais estreita de mundo, talvez fique mais solitário (livro é um belo companheiro) - mas não precisa ser "triste". Os mais ignorantes, quem sabe, andam mais alegrinhos por não fazerem ideia do festival de enganos e desfaçatez em que nos enredam.

Atenção: não estou dizendo que a gente não siga ao menos essa receita, de ler mais. Mas não reside nisso nossa tristeza: apenas, lendo, nossa alma se expande, cria varandas como dizia um amigo meu; aprendemos história, arqueologia, psicologia, saboreamos beleza, nos intrigamos, nos conhecemos melhor, curtimos "as franjas das palavras", seus muitos sentidos - se soubermos ver. Tudo pode ser mais simples do que nossa aflição com receituários financeiros, psicológicos, sexuais.

Numa palestra, me perguntaram por que alunos deveriam estudar. Não precisei refletir. Do fundo dos meus tantos anos e experiências, fracassos e tolices cometidas, respondi o que julgo ser a verdade mais simples: "Devem estudar para não ficarem burros".

De modo geral, em quase tudo a simplicidade nos salva. Coluna publicada na edição de 10 e 11 de dezembro de 2016

LYA LUFT

28 DE SETEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Levante e vá


Estava em minhas mãos o convite para assistir à palestra de um pensador contemporâneo que tem feito diferença com suas ideias e experiências. Deu vontade de ir. Mas em rápidos segundos conjecturei: está previsto chuva, o local não tem estacionamento, se eu for de Uber vai ter um montão de gente se amontoando para chamar o seu no final, e ainda por cima posso ver esse cara dando entrevistas pela web, ler tudo o que ele pensa em sites e livros. Me abalar até lá pra quê?

Aí lembrei de uma conversa que tive certa vez com um chatonildo que dizia que nunca ia a shows porque considerava um crime o preço dos ingressos e que podia tranquilamente escutar música em casa, a todo volume, sem esperar em fila, sem passar por revista na entrada, sem ninguém pisando no seu pé ou tapando sua visão. Não me conformo até hoje com essa escolha asséptica de viver regido pelo conforto, abrindo mão de estar no meio da muvuca.

Poucas coisas merecem ser adjetivadas como vibrantes. Shows são muito vibrantes. A energia já se espalha pelos arredores, começa a ser sentida durante a aproximação coletiva daquela multidão que se dirige ao mesmo lugar e com o mesmo propósito, como se estivesse peregrinando até uma igreja. Você já esteve num estádio de futebol? Numa passeata? Mesma coisa. É emocionante deixar de ser uma unidade para virar torcida, plateia, massa - fazer parte de algo maior do que o nosso eu.

Dentro de um estádio ou de um auditório lotado, ninguém pensa no que está acontecendo do lado de fora. Pode o mundo acabar que não importa. Fomos capturados pela magia estupenda de uma apresentação ao vivo, pelas vozes, suores, entrega de quem está no palco. É uma consagração, e o sagrado está sendo dedicado ao público, à divindade presente.

Então, que tal se desacomodar um pouco? Vamos sair de grupos de WhatsApp e fazer mais festas. Trocar um chat por uma conversa num bar. Não apenas curtir postagens de fotos, mas estar lá, ver com os próprios olhos. Dá trabalho, custa uns trocados e vencer a preguiça é uma guerra, mas você é um ser humano ou um rato?

Acabei indo à palestra. Não só pelo convidado grandioso, mas para somar meu aplauso aos dos outros, para trocar comentários com quem estava ao meu lado, sentir a pulsão do momento e principalmente para não me habituar a ver o mundo só pela tela do computador. É por isso que vou tanto ao teatro também, uma arte que não se realiza sem presença. É um privilégio ter uma conexão real e imediata, ser arrebatada por uma paixão momentânea que ao final evaporará sem deixar registro, a não ser na minha alma.

Sugestão de prioridade: continuarmos sendo testemunhas oculares da própria vida.

MARTHA MEDEIROS


28 DE SETEMBRO DE 2019

CARPINEJAR


Aquilo roxo


Fui convidar um amigo para sair. Estava em dívida com ele. Fazia meses que não colocávamos o papo em dia. Vivia adiando a conversa pelo excesso de trabalho. Ele surgiu com uma proposta um tanto estranha: - Vamos tomar um açaí amanhã de tarde?

Como assim açaí? Onde está a amizade da cervejinha? Onde está a cumplicidade da ceva gelada após o expediente?

É o fim do que conheço como parceria masculina. Convivência boa entre marmanjos trará quilinhos a mais, em nenhum momento quero controlar a aparência e evitar a barriguinha - isso já faço em casa.

É para beber despreocupado com o amanhã e depois filar uns bolinhos de bacalhau de recompensa, dividir umas frituras, experimentar tira-gostos do cardápio.

Com açaí, não tem saideira. Com açaí, não tem gargalhadas. Com açaí, não dá para ficar mais de meia hora numa mesa. Com açaí, ninguém vai se abrir, não haverá debate sobre futebol, confissões sobre casamento, indiscrições do emprego, contação de segredos difíceis. Não iremos olhar o movimento da rua com leve embriaguez, com direito a piadas e ironias de rápida espontaneidade.

Açaí rima apenas com pede para sair. Não nos encontraremos à vontade para dizer bobagens, para expor o que passa pela cabeça, para sermos autênticos.

Trocar o copo prismático de vidro pela sobriedade de uma colher de plástico constrange a intimidade das implicâncias.

Por mais que encha o pote de toppings, não teremos tempo para debater a fundo nenhuma última polêmica de nossas vidas. Acabaremos o conteúdo da fruta antes de começar a desvendar as raízes dos problemas.

Assim como acho um pouco inadequado e desconfortável comer moranguinhos na frente de alguém.

O companheirismo fitness não tem o mesmo valor das trovas botequeiras, das confidências do trago, do conclave ao entardecer, das horas perdidas e inconsequentes das verdades.

Amizade depende da recreação da memória, da desobrigação das toalhas de papel e dos cuidados com a etiqueta. Amizade é garrafa vazia e cabeça cheia de bobagens.

Porque não há nada mais consagrador do que só interromper o assunto para levantar o braço e incluir, corajosamente, mais uma na conta.

O que será do destino de nossos laços sem antes descobrir se o amigo gosta de ser servido com ou sem colarinho? Não saber disso é desconhecer inteiramente a companhia, é o bê-á-bá da confiança.
Desculpe, irmão, mas açaí não.

CARPINEJAR



28 DE SETEMBRO DE 2019
CAPA

"Vestir-se bem não é só uma questão de vaidade, é uma vontade de estar bem consigo"

Em seu novo livro, você afirma que a "deselegância é prolixa". No mundo de excessos das redes sociais, há espaço para a elegância?

Sou uma pessoa de outra geração, portanto não tenho essa intimidade (com as redes). Quer dizer, tenho para trabalhar, é útil, e realmente mudou a vida da gente. Quem me obrigou a começar foi Nelsinho Motta. Quando era casada com ele, me obrigou a ter um computador (risos). O negócio é que não fico atrás dessas conversas na internet. Eu me informo, porque a gente precisa saber o que está acontecendo, e sou curiosa, estou interessada na política mundial e local. Mas discussão entre pessoas acho deprimente, perda de tempo.

Onde está a elegância hoje?

Na empatia. Você precisa se interessar pelo outro. A elegância está em você não invadir o espaço do outro. Sei que é difícil a gente deixar de observar a si próprio para observar o outro.

Também no novo livro, você se preocupou em resgatar "rituais de dignidades sociais" que caíram no esquecimento. O que a gente perde quando ignora esses códigos sociais?

Não é que se perderam, nunca foram conhecidos (risos). Esse é o drama! As pessoas acham que moderno é não ter regrinhas do bem viver. Então você pisa no outro, fala o que quer, grita no telefone, ocupa o espaço que não é só seu. Tá difícil... E não é só no Brasil, não.

O quanto isso é cultural?

Acho que é muito do contemporâneo. Se você olha para a moda, é muito simples. Saímos do século 19 muito formais. Depois, ainda imitamos a burguesia durante a primeira parte do século 20. De lá para cá, tudo se tornou mais casual, não somente a roupa, mas o comportamento. Não temos mais esse formalismo. Por outro lado, não sabemos mais nem cumprimentar as pessoas direito. Ou exageramos, o que também não é necessário. As pessoas da minha geração, quando querem ser bacanas, são muito formais. Tem que conhecer as regras e ter uma certa, digamos, suavidade na adaptação.

Como você avalia a cobertura de moda no Brasil?

A moda está encontrando outra maneira de existir. Fiz minha carreira na editoria de moda de revista impressa. Você sabe muito bem que mudou totalmente o panorama. As revistas que sobreviveram tentam incluir, na discussão, outros valores que não somente a moda. A cobertura ficou um pouquinho menos interessante porque você encontra tudo na internet ou pelo menos aquilo que interessa saber para a vida de hoje, que é menos formal, com menos ocasiões. Só tem roupa de festa quando tem casamento.

A internet é um grande mosaico. Não faz falta uma curadoria inteligente de tudo o que está disponível hoje?

Acho que faz. Houve tentativas interessantes que fizeram muito sucesso no começo, tipo o (site norte-americano) Refinery 29, que misturou comportamento a moda. Mas hoje você tem tantas imagens na internet, sobretudo no Instagram, que é mais fácil acompanhar uma blogueira ou influenciadora que tem a personalidade parecida com a sua. Assim como as atrizes eram um espelho da gente na época, hoje são essas meninas influenciadoras. E tem uma de cada gênero. A minha filha Consuelo (Blocker), de 55 anos, tem um público superfiel. Conheço bem a Camilinha, as duas Camilas (Coutinho e Coelho), e elas estão o tempo todo se mexendo, avançando, mudando a maneira de comunicar. Porque não é só moda, é comportamento. E o que é a moda senão o retrato do comportamento de uma época?

Você também é próxima de outras jovens influenciadoras, como a Luiza Brasil e a Jana Rosa.

Adoro! Elas são minhas amigas. Elas me atualizam, sabe? Eu não tenho preconceito. Preconceito é horrível porque a gente não vai pra frente, né. Pré-conceito, quer dizer, ter um conceito antes de ver o que é. Elas me dizem como as coisas são. A Luiza me policia até na linguagem (risos). Porque o politicamente correto é meio complicado. Desde que comecei a escrever, a ortografia mudou cinco vezes (risos)! E ainda tem o politicamente correto! Além disso, estou sem memória, então, você imagina, ela tem que repetir muito (risos). A gente se diverte à beça.


28 DE SETEMBRO DE 2019

LEANDRO KARNAL

Língua e vida

A língua é viva e poucas coisas envelhecem tão rapidamente nela como a gíria. Nascidas de um termo da moda, de uma tendência passageira ou de algum leve agito na superfície dos vocábulos, as gírias raramente permanecem. Mais: saber algum termo denuncia idade. Uma propaganda, por exemplo, fundiu o termo bocó com mocorongo e surgiu "boko-moko" e ninguém jovem tem a mínima ideia de que era algo para indicar brega, cafona, kitsch.

Indicar um amigo querido como bicho já foi afetivo. Hoje implica ser fã de Roberto Carlos. Você ainda elogia alguém como batuta? Há chance de a pessoa se ofender se for mais recente seu nascimento. "Batuta é a sua mãe, filho de uma batuta!" Seu amigo dança com habilidade? Se você disser que ele é um pé de valsa, pode soar como algum tipo de joanete específico para muitos. "Chegou serelepe à festa supimpa?" Isso hoje pode ser que usou "bala" ou "doce" antes do evento? Se você nunca imaginou que "doce" se refira à droga LSD ou que "bala" possa se referir ao universo das anfetaminas, parabéns, você está "limpo", outra gíria do gueto dos "brisados". Grupos específicos criam muitas gírias.

Vai beber? Se pedir goró, mé, caninha, cachaça, birita, pinga, solicitar algo para molhar o bico ou para calibrar (retirei o "já") indicará que tem idade legal para consumir. Falar birita, aliás, já quase sinaliza que você poderia passar à frente da fila do bar protegido pelo estatuto do idoso. Está na hora de buscar sua patota, a turma que assistia ao Patrulheiro Rodoviário na adolescência.

Sinal claro de testosterona em declínio: "Aquela menina é um broto". Se ela retribuir e disser que você é um "pão", convide-a para sair, pois vocês pertencem à mesma geração e podem compartilhar seus remédios de controle de colesterol.

Há termos superados pela tecnologia. "Cair a ficha" ou "virar o disco!" não apenas perderam o sentido, distanciaram-se do real porque quase nada mais usa ficha e o disco de vinil é peça pouco comum. Novas tecnologias causam novos termos. Na internet, alguém pode "hitar" (fazer sucesso) ou um novato no grupo de game: "Noob".

Volto a repetir mesmo não sendo da área: a gramática e o dicionário de uma língua são museus; a vida pertence à rua e aos usuários nativos que usam, moldam, transformam e "deformam" os sentidos.

Da mesma forma que a dinâmica linguística é fascinante e bela, existem palavras que atravessam os séculos com força. As gírias/palavrões com conotação sexual são as mais notáveis. Mestre Houaiss registra que o termo mais vulgar e comum para descrever o ato sexual começa com f. e tem origem no século 13. Incrível! Algumas pessoas nem imaginariam que houvesse sexo na pudica e piedosa Idade Média, mas não só havia intercurso, conúbio amoroso e fornicação, como havia f.

O que feria ouvidos da época ainda não pode ser descrito totalmente em ambientes sofisticados e puritanos. Porém, de todos os termos, o infinito e o particípio passado de f. é o mais plástico e amplo. Em si, designa verbo que envolve prazer. Pode ser indicativo também de uma vingança de pessoa abandonada por amante: "Eu vou f. com sua vida".

Pode ser um poderoso elogio quando substantivado: "Você é f., cara!". Caracteriza o fundo do poço existencial no particípio passado: "Estou f.". Assinala absoluta indiferença com certa negatividade: "Eu quero mais é que se f.". Há sentidos mais complexos, como "está de f. o orifício anal do palhaço". Indica, no último caso, tarefa árdua, com dificuldades extremas. Normalmente, nas ruas e praças ou WhatsApp, orifício anal é substituído pelo símbolo do elemento cobre na Tabela Periódica.

Língua é viva, ampla, pulsa muito além da sala de aula. Se você é jovem ou mais maduro, adepto de vocabulários sofisticados ou busca neologismos de internet, saiba, sempre, que a comunicação vai além do indivíduo e do seu mundo. Língua é ponte e muitos a querem como muro. Língua comunica e há quem insista que ela deve ser tão fossilizada que impeça a comunicação. Quando você estuda a fundo a gramática, isso deve ser um trampolim para entender qual a dinâmica de uma língua, muito mais do que supor que as proparoxítonas devam ser todas acentuadas. As proparoxítonas, antigamente chamadas de esdrúxulas, têm uma sílaba tônica na antepenúltima sílaba e, na língua usual, esse ritmo de sílaba forte é pouco comum.

Assim, ao estudar gramática, você percebe a melodia da língua, suas exceções e saltos, sua vida e a história dos mais fundos conceitos que regem nosso cérebro com a sua respectiva língua materna. Nossa língua pode ser "rude e dolorosa" como especificou Bilac, pode usar gírias de internet ou antigas, pode ter a cadência camoniana ou o brilho dos termos em iorubá: sempre será a nossa, viva, rica, multicolorida, mestiça, com pai latino, vibrantes tios africanos e indígenas, invasão de algum software e, sempre, sempre, acima de tudo, a língua que ouvimos da nossa mãe.

Amar a língua nunca será acompanhá-la à sala de necropsia, todavia expandi-la em novos gritos de vida. E, ao fim, com sorte, depois de termos dado nossa vida com ela e através dela, assinalará, em sonoro português, que "aqui jaz" um usuário da língua portuguesa e que, momentaneamente, não pode mais receber seu WhatsApp. É preciso falar da palavra portuguesa esperança. É um termo lindo.

LEANDRO KARNAL

28 DE SETEMBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

A CIDADE IDEAL

No século XV, apogeu do Renascimento italiano, teóricos e pintores imaginaram como seria a nova cidade, animada pela ciência greco-romana, então reconquistada com entusiasmo. Sobreviveram daquele movimento três quadros, de autoria disputada, hoje exibidos em Baltimore (EUA), Berlim (Alemanha) e Urbino (Itália). Cognominados La Città Ideale, apresentam a imagem do centro de cidades racionais, clássicas, bem iluminadas e ventiladas, com pavimentos geométricos, ampla área pública, prédios belos simetricamente dispostos e eixos do espaço, que conferem perspectiva e ordem à urbe idealizada. 

Nas imagens, há pouca circulação humana, mas vê-se ambiente que convida a uma vida urbana sofisticada. No núcleo cultural desta imaginação da cidade temos o icônico Homem Vitruviano, desenho de Leonardo da Vinci (1452-1519) que representa o sistema de proporções e medidas que une o corpo humano ao espaço edificado, a partir do umbigo que é também centro da habitação, dos templos, da cidade e do cosmos.

É na nave cidade que nos movemos neste ciclo cultural em que estamos há 5 mil anos. No ciclo anterior, período Neolítico, houve cidades na Anatólia (interior da Turquia), como Çatal Hüyük e Göbekli Tepe, que colapsaram após cinco milênios, por razões que são hoje investigadas também com interesse em nosso mundo, gravemente ameaçado. A partir de c. 3100 a.C., as cidades mesopotâmicas evoluíram entre muralhas, com plano geométrico e hidráulico, e se tornaram a matriz do urbanismo antigo. 

Em Creta, no segundo milênio a.C., houve palácios como Knossos, com vários pavimentos, sistemas de água potável e servida e corredores, como se fossem condomínios compactos. Foi com o grego Hipódamos de Mileto (498-408 a.C.) que o urbanismo tornou-se teoria moderna, para planejarem-se cidades saudáveis, aeradas e ensolaradas, com quarteirões proporcionais, origem do plano urbano que hoje predomina. O arquiteto latino Vitrúvio (morto em 15 a.C.) herdou aquela teoria e acrescentou-lhe elementos romanos, descritos na obra De Architectura, relida na renascença. Desde então, desenvolvem-se várias ciências para dar forma a um produto máximo do espírito humano, a cidade.

Entregar o destino da cidade ao acaso, a demagogos ambiciosos ou à voracidade sem limites de especuladores imobiliários é o mesmo que entregar uma orquestra sinfônica para que um símio a reja, com a ressalva de que um macaco pode fazer mais regendo do que um despreparado governando. 

É preciso que se aplique em grau contemporâneo e com unidade o conjunto de ciências da cidade, do fundamento arquitetônico à vida democrática, dos serviços públicos de educação, cultura e saúde à circulação viária, da infraestrutura ao planejamento de longo prazo. É arte complexa, política, e sua finalidade é promover o espaço público, hoje degradado por gestores incapazes.

Nós, brasileiros, estamos nos acostumando a sofrer sob o jugo de governantes péssimos, como se fosse destino imperativo. Talvez seja a hora de começarmos a imaginar com cultura o que é a cidade ideal, antídoto aos males do Estado, jardim em que realizamos nossas travessias.

FRANCISCO MARSHALL


28 DE SETEMBRO DE 2019
ESPIRITUALIDADE - (Mestre Dogen)

PRIMAVERA

"O desabrochar da ameixeira é a primavera." 

A flor não desabrocha na primavera, mas o desabrochar da flor é a primavera. Não há uma estação do ano chamada primavera independente do desabrochar das flores.

Nos países temperados, a primeira árvore a desabrochar é a ameixeira branca. A árvore ressecada parece morta, sem folhas, com galhos e tronco tortos. De repente um pequenino botão de ameixeira branca surge, outro e mais outros. A fragrância volta a existir depois de meses de neve e gelo. A ameixeira branca é o símbolo da resiliência, uma das árvores utilizadas nas cerimônias especiais de congratulações. As duas outras árvores são o pinheiro, da longevidade, sempre verde em todas as estações do ano e o bambu com sua flexibilidade e respeito aos que surgiram primeiro (cresce em nódulos). Há um poema antigo japonês:

Ume wa kanko ete. Senko o hasu. (A ameixeira suporta o frio terrível

E desabrocha em fragrância.)

Resiliência é a capacidade de suportar dores terríveis, perdas, doenças graves, atropelamentos, depressões, lutos e desabrochar _ depois do frio e da falta de sentido da existência _ para ressignificar a vida.

"O desabrochar da ameixeira é a primavera."

Foi uma frase deixada pelo Mestre Eihei Dogen Zenji (1200-1254), fundador da ordem Soto Zen, no Japão medieval. Perceba que há uma sutil mudança de olhar.

Essa mudança transforma todos os nossos relacionamentos internos e externos.

Todos os nossos olhares. Pois nessa frase está o ensinamento básico de que tudo que existe é o co-surgir interdependente e simultâneo.

Nsta semana, as flores estão desabrochando, por todo o hemisfério sul do planeta _ primavera.

Já no hemisfério norte, as folhas que caem são o outono.

Segunda-feira, 23 de setembro, foi o dia do Equinócio, quando a noite e o dia têm a mesma duração. Entretanto, a noite não é igual ao dia, nem o dia igual à noite. O dia tem começo, meio e fim. O dia tem suas características únicas: sol, claridade. A noite tem começo, meio e fim. A noite tem sua característica de céu escuro, lua, estrelas.

Durante o Equinócio, noite e dia têm a mesma duração, mas não são iguais. Assim nós, seres humanos, não somos iguais _ cada um é único, mas todos temos o mesmo valor.

A mente da sabedoria perfeita é a mente da equidade. Ou seja, percebemos as diferenças e também percebemos que todos os seres são o todo manifesto.

Não somos iguais, mas podemos compreender, entender nossas diferenças.

A mente da equidade está além dos apegos e das aversões. É capaz de identificar cada criatura, respeitar suas características e agir de forma adequada às circunstâncias, sempre para o bem de todos os seres.

A mente da equidade é manifestação das Seis Perfeições: Dana - doação, caridade, amor, presença pura; Sila-_ preceitos, vida ética, fazer o bem a todos; Ksanti - paciência; Virya - força, perseverança; Diana - zen, meditação; Prajna - sabedoria.

As seis perfeições são como uma flor de seis pétalas, que desabrocham e são a primavera.

As seis perfeições são como seis folhas caindo e manifestando o outono.

Que o despertar da mente humana nos liberte da ganância, da raiva e da ignorância.

Que todos possam ser felizes e encontrar a plenitude. Mãos em prece

Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço - MONJA COEN


28 DE SETEMBRO DE 2019
JJ CAMARGO

TODOS TEMOS RAZÃO

Não é tolerável achar que todo mundo que pensa diferente é careta, radical ou demente . Que a gente conviva com mais certezas do que dúvidas, parece uma coisa bem razoável, porque, afinal, valemos pelo que acreditamos. Então, é ótimo que estejamos assim, convencidos. O que não é de nenhuma maneira tolerável é a tendência moderna de achar que todo mundo que pensa diferente está irrecuperavelmente equivocado e é careta, ou radical, ou demente.

Certamente, essas manifestações de intolerância estridente têm a ver com a predominância de jovens metralhando nas redes sociais, com aquelas certezas da juventude que vão se diluindo com as dúvidas da maturidade, e a tal ponto e tão continuamente, que os precipitados julgam que as decisões do velho, cheias de ponderações, são apenas a expressão da decrepitude, quando na maioria das vezes são a mais rica manifestação de sabedoria.

Todo mundo se lembra do quanto a juventude foi a era das certezas absolutas, e, sem espaço para dúvidas, éramos os árbitros sempre disponíveis e implacáveis.

Essa evolução antropológica saudável me remete a uma parábola da milenar cultura judaica, que considero primorosa:

Um jovem procura o velho rabino para relatar uma briga feroz que travara com um colega de trabalho. Conta em detalhes o que considerava uma atitude mesquinha e desqualificada. O rabino o escuta em silêncio e pondera: "Meu filho, eu acho que você tem razão. Só recomendo que, se planeja tomar uma atitude, aguarde uma semana. As represálias no calor da indignação, a médio prazo, costumam magoar mais o agressor do que o agredido. Vai em paz e que Deus o acompanhe!".

No final da tarde, o objeto da discórdia procura o mesmo rabino e narra a sua versão do ocorrido e do quanto aquilo exigia uma reparação. Da mesma forma, o rabino, cofiando a barba branca, atribui-lhe a razão e repete a recomendação de prudência na resposta. A esposa do rabino, que, tendo ficado curiosa com a história do primeiro, acompanhou furtivamente e com máximo interesse o depoimento do segundo, assim que este saiu irrompe na sala do marido para confessar seu espanto: "Como pode um rabino que, em princípio, deve ser um árbitro imparcial das rusgas dos integrantes da sua comunidade, dar razão a duas atitudes opostas? Sinto muito, mas acho que hoje o seu desempenho foi constrangedor!".

O rabino, com aquela calma que nasce da fusão de experiência com sabedoria, confessa: "Não se choque tanto, minha querida, porque eu preciso admitir que você também tem lá a sua razão!".

Os indivíduos normais, que cresceram bem amados, e, por boa sorte ou educação adequada, se mantiveram distantes de ideologias escravizantes, e beberam da cultura que abomina a servidão mental, se dão conta que viver é apurar a capacidade de julgamento. E que o juízo precoce, em geral, desmerece quem o emitiu. E só saberemos que a maturidade chegou quando se tornar cada vez mais frequente o uso de dependes antes de um juízo definitivo. Porque a afoiteza é o caminho mais curto para o arrependimento, ou o remorso.

JJ CAMARGO


28 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O pinguim apaixonado

O pinguim, quando está apaixonado, convida a fêmea para passear na praia. Eles caminham lado a lado pela areia, ela faceira, ele olhando para baixo, como se estivesse procurando algo. E está mesmo. Está procurando a pedra ideal. De repente, encontra-a e a oferece para a pinguinha. Ela analisa o presente detidamente. Se recusa, o pinguim foi rejeitado. Ele vai embora, cabisbaixo, chateado, com aquele jeito engraçado de andar dos pinguins. Mas, se ela pega a pedra, gol do Brasil. Eles começam a namorar e nunca mais se separarão.

Meu filho descobriu isso sobre os pinguins, dias atrás, e veio falar comigo:

- Papai, tenho uma dúvida.

- O que foi, guri?

- Qual foi o primeiro pinguim que inventou essa tática da pedra? Tem que ter um primeiro, não é? Ele fez e os outros imitaram, e continua assim até hoje.

Fiquei refletindo. É provável que ele tenha razão. Deve ter existido um pinguim pioneiro, que conquistou a amada oferecendo-lhe uma pedra, e os outros acharam boa ideia. Porque, afinal, dar uma pedra para a pinguinha não parece um ato instintivo, como comer, beber e fazer sexo. Há bichos que se exibem para as parceiras em danças de acasalamento, outros cantam e o pavão abre aquele rabo dele, mas uma pedra é algo externo. É um instrumento, pode-se dizer, e só o Homo sapiens usa instrumentos.

Sim, houve, um dia, um pinguim genial, que moldou o comportamento de todos os outros pinguins do mundo.

É verdade que as nossas fêmeas também gostam de pedras, tanto que o ritual tradicional do pedido de casamento humano é bastante semelhante ao dos pinguins: o macho oferece um anel com uma pedra bem cara engastada e, se ela aceita, começou o compromisso. Mas nós temos o irritante hábito de subverter hábitos. As coisas são feitas sempre de um mesmo jeito e volta e meia aparece alguém para mudar tudo. Por que tanta inconstância. Por que não podemos ser previsíveis como os animais? Tudo seria mais fácil. Nós sempre saberíamos o que fazer. E, o melhor, não precisaríamos de governantes, legisladores ou juízes. Porque os costumes seriam as leis, como era antes, nos primórdios da civilização. Algo acontece e você já sabe qual será a consequência, sem discussões, sem sobressaltos. Seria útil no mundo inteiro, mas muito mais no Brasil. Porque, puxa, um país em que procuradores planejam matar juízes dentro do tribunal não é um país confiável.

O dromedário triste

Meu filho estava atento às ocorrências do mundo animal, nesta semana. Logo depois de descobrir os estratagemas românticos dos pinguins, contou-me sobre um caso assombroso: uma mulher deu uma mordida nos testículos de um camelo na Louisiana.

Na verdade, não era um camelo; era um dromedário - o camelo tem duas corcovas e o dromedário apenas uma.

Primeira pergunta: o que um dromedário estava fazendo na Louisiana? Isso é fácil de responder: estava confinado em um pequeno zoológico de estrada.

Pois bem. Deu-se que a tal mulher, seu marido e o cachorro do casal, que é surdo, foram ver Casper no zoo (Casper é o nome do dromedário). Eles gostaram tanto de Casper que começaram a jogar comida para ele. O cachorro, que devia estar com fome, considerou a comida apetitosa e entrou na jaula, com a evidente intenção de partilhar com Casper o seu lanche. Temendo que Casper se assustasse e fizesse mal ao cachorro, o casal o chamou. Mas o cachorro é surdo e não atendeu. In extremis, o casal invadiu a jaula de Casper, que, aí sim, se assustou.

Segunda pergunta: como reage um dromedário assustado? Essa não é tão fácil de responder, mas nós descobrimos graças ao casal invasor de jaulas, porque Casper avançou sobre a mulher e SENTOU-SE EM CIMA DELA. Oprimida sob o peso do grande animal, sentindo que seria inapelavelmente amassada, a americana reparou que, bem diante dela, balançava o saco escrotal do dromedário. Então, ela não teve nojo nem pejo. Simplesmente abriu a mandíbula o mais que pode, abocanhou aquele escroto imenso com denodo e desferiu uma VIOLENTA DENTADA nos testículos do dromedário, que, compreensivelmente, ganiu e urrou e levantou-se para escapar da dor excruciante.

Apesar de tão traiçoeiro ataque, o dromedário passa bem. A mulher, ao contrário, foi internada em um hospital próximo, porque a sentada do bicho a molestou. O casal foi processado por invadir a jaula de Casper e por passear com o cachorro sem coleira. E nós, que ensinamento tiramos dessa inusitada história? Que o inimigo pode nos imobilizar quase que completamente, que ele pode ser maior, mais pesado e mais forte, mas sempre terá um ponto fraco a ser explorado, se nós tivermos tirocínio e bons dentes.

DAVID COIMBRA

28 DE SETEMBRO DE 2019
VARIANDO

Os segredos de Ibirubá

Voltou o assunto dos supostos túneis nazistas de Ibirubá. Como podem perder tempo com essa dúvida? É claro que eles existem. E digo mais, muitas outras cidades têm seus túneis de segredos, basta procurar.

Abaixo da terra estão os que já se foram e os mistérios. Tudo o que não deve ser mexido está guardado a sete palmos. Pegue uma pá e vá lá cutucar. Mas cuidado com o susto, esse é o perigo da missão.

Essas buscas embaralham história com mito. Pessoalmente escolho o segundo. Ele é mais mágico, mais rico, e diz mais de nós do que a realidade.

O fato é que procurar nazistas no solo gaúcho é caçada certeira. Temos uma grande imigração alemã e é bom lembrar que tardamos para escolher o lado. Enquanto a guerra se iniciava, não se sabia para onde iríamos. O que conhecemos hoje sobre o delírio nazifascista não era claro então. Não soava como a civilização versus barbárie, que hoje parece óbvio, era a escolha de um lado. Para muitos imigrantes, seguir a Alemanha era um destino tanto possível quanto desejável. Poucos deram-se conta de que Hitler destruiria o que eles mais amavam: a fecundidade da cultura alemã.

Antes da guerra, a Alemanha era um império de ideias, uma fonte criativa, um modo singular de pensar. Ali nasceu a Bauhaus, a escola de design que levou a estética à produção industrial. Foi o palco da chegada do expressionismo, com seus traços exagerados para nos esfregar a verdade no rosto. A Alemanha possuía uma tradição filosófica extraordinária e uma literatura riquíssima. Cientistas em todas as áreas e, para meu gosto, a mais rigorosa escola psiquiátrica. Um parque tecnológico florescente e a melhor indústria química do mundo da época.

Veio a guerra e foi-se tudo pelo ralo. A Alemanha pode hoje ser uma potência econômica, mas ainda não retornou a ser o polo cultural ímpar que já foi. Imaginem para nossos conterrâneos germanodescendentes o que foi assistir a essa derrota. Uma mistura amarga de estar no lado errado com ser duplamente derrotado, tanto de fato, quanto moralmente.

A Segunda Guerra desconcerta por ser daqueles momentos em que a razão manca e abre passo para os salvadores da pátria com sua lábia prenha de maldade. Quando o fel é transformado em política e o ressentimento ganha palco. Quando a pauta não é a proposição, mas a guerra contra tudo e todos e a aniquilação do adversário. Quando descobrimos, à custa de sangue, que o ódio corta dos dois lados, envenenando e matando também quem o produz.

O subsolo gaúcho esconde lembranças desses tempos duros. Da época em que alguns flertaram com esse inimigo que odiou tanto, que se esvaziou de sua humanidade. Os cacos desse pesadelo seguem cortando, pois nunca perdem o gume. Talvez não retornem agora por acaso, e sim por outros ovos de serpentes que estão a chocar.

MÁRIO CORSO

28 DE SETEMBRO DE 2019
ARTIGOS

O EMPREENDEDORISMO NA ESCOLA

As diretrizes curriculares nacionais para o novo Ensino Médio apresentam o empreendedorismo como um dos eixos de trabalho pelo qual as instituições de ensino poderão optar. Encontramos muitas definições sobre o conceito de empreender e uma delas destaca que "empreender é decidir realizar (tarefa difícil e trabalhosa); tentar; travessia arriscada". Esse conceito básico encontra consonância com o perfil do jovem contemporâneo que busca, cada vez mais, sentido para estar na escola.

Apresentar o empreendedorismo como um eixo curricular abre a possibilidade de que haja o desenvolvimento do estudante para atuar neste mundo em constantes transformações, pois permite a expansão de sua formação em diferentes competências e habilidades, entre as quais destaco a criatividade, a autogestão, a tolerância à frustração, a persistência e a resiliência. Desse modo, a criatividade deve ser desenvolvida e exercitada, sendo a escola um dos espaços abertos para que o jovem vivencie essa experiência.

A autogestão é uma das competências previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e refere-se ao controle de impulsos e gerenciamento de metas pessoais. No momento em que falamos em empreender, estamos resgatando um princípio fundamental da educação, que implica a reflexão sobre a realidade, tendo em vista que, para "realizar tarefas difíceis", é necessário conhecer o ambiente e projetar soluções para os problemas enfrentados.

A persistência, em tal sentido, é uma habilidade importante no momento em que, por meio dela, temos clareza de aonde queremos chegar. Além disso, essa competência se conecta à necessidade de desenvolvermos pessoas resilientes, que tenham capacidade de lidar com situações adversas, superando obstáculos e reagindo positivamente a eles. Muitas, enfim, são as possibilidades de abordagem do eixo empreendedorismo nas escolas.

Certamente, após vivenciarem experiências significativas na educação básica relacionadas ao tema, esses jovens poderão impulsionar de maneira mais segura seus projetos de vida, destacando-se independentemente da área em que desejarem atuar.

MARÍCIA FERRI


28 DE SETEMBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O RISCO DO DESCRÉDITO

É previsível o misto de indignação e perplexidade causado em parte da sociedade por dois fatos recentes que tendem a acentuar a descrença no senso de justiça que impera no Brasil. Embora próximos no tempo, o avanço no STF de tese que pode revogar condenações de réus da Lava-Jato e a revelação do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot de que se preparou para matar o ministro Gilmar Mendes precisam ser relativizados, contextualizados e, principalmente, separados.

Embora questionável, o encaminhamento, por enquanto majoritário no STF, da tese de que réus devem ter a palavra depois dos delatores não guarda um absurdo jurídico. Ao contrário, se a Constituição diz claramente que todos têm direito à ampla defesa, deve-se estranhar que até hoje tenha se admitido acusações de delatores como palavra final. 

No entanto, antes que as portas das celas de Curitiba sejam escancaradas, gerando na prática a sensação de que a Lava-Jato e o combate à corrupção sofreram um golpe de morte, o Supremo deve sopesar sua decisão. Uma primeira consideração é que a decisão deveria valer daqui para a frente e retroagir apenas para julgamentos nos quais fosse evidenciado que delatores tivessem apresentado fatos ou versões distintas das anteriores, reparando, assim, a possibilidade de injustiças - tanto a condenação sem ampla defesa quanto a revogação da sentença sem justificativa concreta.

Já o caso do ex-procurador Rodrigo Janot deve ser remetido mais à instância da psiquiatria do que à jurídica. Louve-se a coragem do ex-procurador-geral de narrar em detalhes como planejou matar um ministro do STF e depois tirar a própria vida. Mas é quase impensável que alguém com tal grau de perturbação mental tenha se mantido por quatro anos à frente de um organismo com poder de mudar a história do país, como, aliás, Janot o fez, quando sua obsessão por denunciar o ex-presidente Michel Temer jogou por terra a reforma da Previdência e tantas outras ações que atrapalharam a retomada do desenvolvimento e influenciaram a eleição de 2018.

O descrédito é o primeiro passo para a desmoralização, que, no seu grau máximo, leva à implosão das instituições e de tudo o que elas representam. Nos últimos anos, o Brasil viu um pouco de tudo. O Judiciário e o Ministério Público foram guindados ao panteão de heróis nacionais e agora se veem atacados em razão de episódios isolados de arrogância, abusos e decisões pessoalizadas de uns poucos de seus membros. Já a Lava-Jato viveu o céu da consagração e agora enfrenta o purgatório da contestação, sobretudo depois de reveladas combinações entre procuradores e juiz. 

O fundamental, porém, é que, como instituições basilares da democracia, tanto Judiciário quanto MP devem ser encarados como a última linha de defesa da sociedade e, para sua própria credibilidade, apoiados sempre que se mostrarem dispostos a corrigir eventuais problemas e exageros. Nunca é demais lembrar que, cada vez que houver uma injustiça, depois deles não haverá mais ninguém a quem recorrer.


28 DE SETEMBRO DE 2019
DUAS VISÕES

Fazer do limão uma limonada

Médico, secretário de Saúde de Porto Alegre | pablo.sturmer@portoalegre.rs.gov.br

A decisão de extinguir o Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf) não é da prefeitura de Porto Alegre, muito menos deste governo. Foi o Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a lei que criou o Imesf, após ação judicial iniciada em 2011 por 17 sindicatos e associações. Desde que assumimos a gestão, em 2017, fizemos todos os esforços jurídicos que tínhamos ao alcance para evitar essa situação. Qualquer recurso hoje seria meramente protelatório, prolongando a situação irregular do Imesf. Não ficamos parados esperando a sentença.

Criamos um plano de trabalho que pudesse ser colocado em prática rapidamente e não deixasse a população desassistida. Nesse plano será possível expandir o número de equipes de saúde da família (ESF), ofertar serviços públicos de qualidade e transformar Porto Alegre em referência para o Brasil na atenção primária à saúde. Faremos isso em duas etapas. A primeira vai garantir os melhores profissionais da área para atuação nos locais que hoje contam com trabalhadores do Imesf. Depois, chamaremos organizações filantrópicas para o gerenciamento e operação de unidades com equipes de saúde da família. Os porto-alegrenses contarão ainda em 2020 com novas clínicas da família, quatro novas unidades com atendimento até as 22h, reforma e adequação das estruturas já existentes e a qualificação na gestão dos postos de saúde.

Credibilidade para isso o governo liderado pelo prefeito Nelson Marchezan tem de sobra. Em dois anos e meio, revolucionamos a saúde mental em Porto Alegre, abrimos mais de 330 leitos em hospitais, criamos a primeira clínica da família na Restinga, estendemos os horários de quatro postos até as 22h, renovamos a frota da Samu e aumentamos a oferta de medicamentos e exames. Também investimos em tecnologia e implementamos a telemedicina. O resultado é redução de 40% na fila de espera por uma consulta médica!

Fizemos tudo isso implementando o modelo de contratos para serviços públicos não estatais, entregando o que mais importa para as pessoas - eficiência, qualidade e resolutividade. Entendemos a angústia dos servidores e da população neste período de transição, mas é preciso que todos tenham responsabilidade profissional e espírito público. Como disse o prefeito Marchezan, "vamos fazer deste limão uma limonada". Em breve, tudo estará resolvido e o melhor: com um serviço de saúde ainda mais qualificado aos porto-alegrenses.

PABLO DE LANNOY STÜRMER

28 DE SETEMBRO DE 2019
COM PEDIDO DE URGÊNCIA

Leite quer mudar 480 pontos do Código Ambiental

O governo do Estado apresentou, na sexta-feira, a proposta de um novo Código de Meio Ambiente para o Rio Grande do Sul, prevendo a alteração de, ao menos, 480 pontos da legislação atualmente em vigor. O projeto muda, retira e inclui itens que tratam sobre licenciamento ambiental, áreas de proteção permanente, unidades de conservação, fiscalização, aplicação de multas e revisão de taxas, entre outros pontos.

No lançamento da proposição, no Palácio Piratini, o governador Eduardo Leite confirmou que enviará o texto à Assembleia Legislativa em regime de urgência, ou seja, com prazo máximo de 30 dias para discussão e votação. O trâmite também elimina a necessidade de análise nas comissões de mérito, como a de Saúde e a de Meio Ambiente - Leite argumenta que mudanças no código ambiental já foram debatidas em subcomissão parlamentar da Casa em 2016.

O governo avalia que o projeto irá aumentar o "equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico".

Um dos itens polêmicos do projeto diz respeito à implementação do autolicenciamento ambiental. O formato, já utilizado em Santa Catarina, na Bahia e no Ceará, permite que o empresário, para algumas atividades produtivas, emita a licença ambiental pela internet a partir do envio de documentos e da autodeclaração de informações.

- Em até 48 horas é possível fazer o check list (dos documentos pela internet) e aí a licença estaria expedida - projetou o secretário do Meio Ambiente Artur Lemos.

Se aprovado o código, o governo planeja aplicar o autolicenciamento para cerca de 20 atividades produtivas - como armazenamento de pescados, produção de erva-mate e silvicultura. Caberá ao Conselho Estadual de Meio Ambiente definir os setores incluídos.

O Piratini batizou o novo modelo de Licença Ambiental por Compromisso, e rejeita a classificação de autolicenciamento.

- Não é autolicenciamento, como propagam muitos por aí. A própria imprensa tem, de forma equivocada, bebido de fontes que se equivocam ao abordar esse tema. A Licença Ambiental por Compromisso não é simples autodeclaração. As atividades que serão pertinentes e colocadas para essa ferramenta serão decididas pelo órgão ambiental que tem participação da sociedade civil, que é o Conselho Estadual de Meio Ambiente - declarou Leite.

Neste ano, o Estado fiscalizou 3 mil empreendimentos na área ambiental e autuou 25% deles.

Reação

O Ministério Público Ambiental informou que já pediu ao governo que o texto tramite sem urgência na Assembleia, argumentando que o tema merece ser amplamente debatido pela sociedade. Sob a tutela de Daniel Martini, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente, um grupo de trabalho de promotores foi constituído para analisar a proposta de Leite.

GABRIEL JACOBSEN

28 DE SETEMBRO DE 2019
CARTA DO EDITOR

Um jornalismo que constrói

Utilizando-se de fontes confiáveis e dados públicos, repórteres são exímios farejadores de malfeitos dos inquilinos do poder. Nossos radares são treinados para valorizar fatos que saiam da rotina e que, de alguma forma, prejudiquem a população - o que faz todo o sentido em um país habituado à corrupção de agentes públicos e privados, à incompetência de governantes e ao descaso na prestação de serviços essenciais.

Mas quanto tempo, recurso e energia depositamos na busca de soluções para os problemas complexos que apontamos e que fazem parte do dia a dia das comunidades? É uma das perguntas que, com cada vez mais frequência, fazemos na Redação Integrada.

Peço licença para contar um bastidor que ajuda a contextualizar esta discussão. Na terça-feira passada, demos visibilidade em GaúchaZH (e, na edição de quarta-feira, em Zero Hora) para os transtornos causados pelas obras de fresagem e recomposição da BR-386. Os reparos na rodovia resultaram em 10 quilômetros de congestionamento e horas de dissabores a usuários da via.

Evidente que tamanho incômodo em uma das mais importantes rodovias do Estado é notícia.

A matéria estava adequada. Mas, diante do infortúnio, o que fazer? Qual a solução emergencial? Não havíamos mobilizado nenhum de nossas dezenas de repórteres para buscar essas respostas.

Em e-mail enviado para editores da Redação, a diretora de Jornalismo Jornais e Rádios, Marta Gleich, provocou:

- Vivemos criticando buracos nas rodovias e a ineficiência na gestão de estradas concedidas. Daí, são feitas obras e a gente critica. Mostramos o projeto de recuperação das estradas, como ficará, o que o motorista terá em breve? Pensamos em infográficos? Não.

O desafio para vencer o cacoete de valorizar o problema e subestimar as soluções, em um país com tantas mazelas como o Brasil, é manter a capacidade de indignação e o tom crítico. Jornalismo construtivo não é adesão a governos.

- O jornalista não pode usar lentes de Pollyanna achando que o mundo virou cor-de-rosa - ponderou Marta em sua mensagem para líderes da Redação.

Na quinta-feira (em GaúchaZH) e na sexta-feira (em ZH), avançamos no tema com a matéria "Como reduzir a tranqueira na BR-386". Encerro esta carta sublinhando cinco de 15 itens destacados pela Marta e que norteiam a nossa linha editorial:

Tente inverter ou pelo menos equilibrar melhor os espaços destinados à descrição do problema versus o espaço destinado ao debate das soluções.

Busque, em lados opostos, elementos em comum. Não destaque só as divergências, ampliando o conflito e a polarização. Construa pontes, não trabalhe para queimá-las.

Baseie-se em dados e fatos e menos em opiniões das fontes.

Use um tom ponderado, não se deixando influenciar por declarações escandalosas ou absurdas.

Paute-se pelo aprofundamento de fatos importantes para a sociedade, e não só pelo trivial, pelo acontecimento do último dia ou da última hora.

CARLOS ETCHICHURY

28 DE SETEMBRO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

Infantaria vermelha

"Não há, decerto, nada mais covarde e inescrupuloso do que empurrar crianças para a linha de frente do campo de batalha, seja esta física, política, cultural ou religiosa", escreveu Flávio Gordon. Infelizmente, o uso de crianças como "escudo humano" ou "ponta de lança" vem de longa data.

A infantaria, não custa lembrar, contava com seus soldados, os infantes, desde a antiguidade. Esparta tomava as crianças dos pais para treiná-las militarmente. As crianças-soldado pululam nas guerras civis africanas. Terroristas islâmicos exploram crianças como bombas ou escudos. O ditador comunista chinês Mao lançou sua "revolução cultural" com crianças, que denunciavam seus próprios pais como "traidores". E por aí vai.

Foi no Ocidente capitalista que a infância passou a ser mais valorizada. Antes, por sobrevivência, quando não estavam servindo em guerras, trabalhavam duro no campo ou em fábricas. Com o advento do capitalismo, as crianças nem trabalhar mais precisavam, e já podiam se dedicar exclusivamente aos estudos e ao lazer.

Mas esse luxo, especialmente em países ricos capitalistas, produziu um efeito perverso: muitas ficaram mimadas e ingratas. E, como crianças são mais fáceis de enganar, alguns adultos pérfidos viram aí uma oportunidade para explorá-las em suas causas políticas.

A esquerda quer crianças tocando em homens nus em nome da arte, aprendendo que podem se sentir meninas no corpo de meninos ou vice-versa aos três aninhos, investe em sua sexualização precoce, rejeita valores tradicionais e cristãos, e ainda as utiliza para marchas pelo desarmamento ou bandeiras radicais ambientalistas.

Mas se você ousa criticá-las como fantoches dessa esquerda, então os "progressistas" se enchem de falso moralismo. É uma tática sórdida. Como disse Rich Lowry, da National Review, as crianças "são peões poderosos". As pessoas que dizem "o mundo deve prestar atenção nessa garota de 16 anos" serão as mesmas que vão dizer a quem ousar contrariar: "Como você se atreve a criticar uma garota de 16 anos?".

É lamentável que, na falta de bons argumentos, a esquerda apele para emoções por meio de marionetes infantis. Essa "infantaria vermelha" é a prova da falência intelectual - e moral - do esquerdismo.

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 21 de setembro de 2019



21 DE SETEMBRO DE 2019
LYA LUFT

O mar de todos os encantos

Minha fascinação pelo mar quase nasceu comigo, muito escrevi sobre ele, muito o representei em minhas telas tão amadoras.

Aos quatro meses de idade, fui levada a Torres pela primeira vez. Uma longuíssima viagem desde nossa  cidadezinha, parte sobre as traiçoeiras areias a partir de Tramandaí. Lembro, quando já menina, do pai perguntando a outros motoristas, ou a pescadores, como estava a areia: muito mole, perigosa, podia atolar o carro – corriam histórias de carros levados pelo mar, e recordo ainda um ou dois tetos de carros emergindo das ondas naquele trajeto.

Torres era esperada o ano inteiro, para aquele mês, ou dois, de férias encantadas. Minhas primeiras lembranças de mar, areia, pedras, vêm de quando eu tinha uns dois anos e pouco. A gente nos primeiros tempos ficava só na Prainha: a Praia Grande, quase deserta, era “para os homens”, diziam as mulheres, meu pai e alguns outros caminhavam até o Mampituba para nadar, grande aventura. Aos poucos, as famílias foram se animando também, eu (“que guria preguiçosa, já nasceu cansada”, diziam), em uma daquelas carretinhas puxadas por cabritos.

Mas o bom mesmo estava na Prainha, com aquelas pedras baixas e as águas rasas, ondinhas quebrando num cochicho, poças de água nos buracos das pedras, onde a gente podia pegar peixinhos minúsculos, siris diminutos, e mais de uma vez – estranho, misterioso e vagamente repulsivo – colocar o dedo em uma anêmona, que, coisa viva, sugava um pouco – saíamos correndo, aos gritos, que nojo, que nojo.

À medida que fui crescendo, as subidas ao Morro do Farol, nos fins de tarde, muitas vezes só com minha avó  paterna. Havia uma trilha precária, lá em cima o velho farol de ferro, e os restos de um cemitério de lápides arruinadas com inscrições em alemão, uma ou outra meio aberta. Minha avó na subida me fazia colher uns liriozinhos cor-de-rosa para botar na sepultura de uma menina. “Morreu com a tua idade”, dizia a avó, lendo as datas da inscrição quase apagada.

Depois sentávamos num banco também precário, e ficávamos escutando o mar: as vozes dos afogados, das sereias; o maravilhoso e sinistro moravam ali, perto da ilha onde uivavam lobos de verdade, com pelo encharcado de espuma.

Quando cresci, não havia nada mais fascinante do que ficar ali no alto, o morro já mais cuidado (que pena), com estradinha boa e vários bancos, ou nas pedras da Prainha mesmo, já no começo da Grande, escutando, imaginando, sonhando. Espiando as primeiras casas na encosta, e o Chalé no pé do morro, habitado por fantasmas e sustos. Adormecer e acordar com aquele som de vozes, chamados e cantos (sereias, claro), era o encanto absoluto.

Mais tarde ainda, crianças correndo na areia, fazendo castelos incríveis, jogando bola, nadando no rio... e certa vez, quando passeávamos na praia de noite, um dos meninos exclamou, apontando o dedinho: “Mãe, mãe, olha ali um navio enorme, todoiluminado”.

Era a Senhora Lua, emergindo das águas – dádiva inesquecível.

LYA LUFT

21 DE SETEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Relacionamento a distância


Ele me contou a história em um tom baixo de voz. Terminaram a relação, mas a cicatriz não havia fechado. Ele ainda gostava dela, só que não deu certo. Namoraram durante quase um ano, ele morando em Porto Alegre, ela em Vitória do Espírito Santo. Mais de 2 mil quilômetros os separavam. Não podiam pegar um avião todos os meses. Tinham seus empregos, suas famílias. Culpava a distância pelo fim. Agora era tratar de conhecer outra pessoa para se reerguer. "Já entrei no Tinder", disse ele. Tive vontade de rir, mas ele não parecia estar fazendo piada. Fiz cara de "agora vai", sem convicção.

Relacionamento a distância - não são todos assim, hoje? Em vez de conviver, viramos uns bisbilhoteiros. Compreensível, já que esse troço chamado rede social captura mesmo. Se você é seguidor de gente interessante, então, é um vício, pois são muitos textos bem escritos, fotos originais, comentários divertidos, dicas de livros e filmes. Ainda assim, moderação e tino: ninguém é tão estupendo como se apresenta no mundo virtual. Onde foi parar nosso lado sombrio?

Fraquezas, angústias, dúvidas: não há espaço para elas no Instagram e no Facebook. Dá a impressão que ninguém chora ou se atrapalha no cotidiano - são raros os que expõem sua bad trip (o ego não deixa). Normal, mas é bom lembrar que quem aprisiona sua dor não se relaciona, não pra valer. Intimidade se atinge com divisão de fardo, troca. Paixões e amigos dão sentido à nossa vida porque ajudam a nos passar a limpo, a colarmos nossas fraturas, a nos tornarmos pessoas melhores. Cultuo a solidão, como já disse mil vezes, mas ela é um pit stop, apenas. Se escolho estar só o tempo inteiro, sem interagir com as emoções dos outros e sem expressar as minhas inquietudes de viva voz, não evoluo, nada evolui.

Meu amigo conhecia profundamente sua namorada capixaba? Pouco, pois o WhatsApp não dá conta da nossa humanidade, não substitui olhares e abraços. Difícil demonstrar nossos desconfortos através de mensagens online, então dá-lhe oba-oba. Resultado: depressão virou epidemia e os suicídios se sucedem porque, entre outros motivos, as pessoas se sentem inadequadas por estar sofrendo, o que é um absurdo. Sofrer é adequado. Sofrer é normal. Todo mundo sofre, mesmo que não pareça. E não parece mesmo, pela tremenda distância estabelecida entre o nosso eu real e o real dos outros.

Do quarto dos pais ao quarto dos filhos pode existir um corredor de 2 mil quilômetros a separá-los. Entre a minha cadeira no restaurante e a sua, abre-se uma cratera a cada vez que colocamos o celular sobre a mesa e ficamos checando as redes em vez de conversar, rir, fazer confidências. Relacionamento a distância é silêncio a dois, pode estar acontecendo aí mesmo dentro do seu casamento perfeito.

MARTHA MEDEIROS

21 DE SETEMBRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Chupim de glória alheia

Meu pai dizia que o verdadeiro puxa-saco vive à espera da ocasião certa para se manifestar. E uma oportunidade de ouro é sempre o natalício, vulgo aniversário, de alguém que a gente admira. Jamais chegarei à perfeição de um colega de trabalho que, certa vez, escreveu no cartão que acompanhava o presente do nosso chefe: hoje é o dia mais feliz da minha vida. Mas já que Luis Fernando Verissimo, o melhor de todos, completa mais um ano no próximo dia 26, aí vão algumas frases e trechos da grande obra dele - pinçadas sem muita pesquisa, porque tudo é bom mesmo. Quando LFV diz que fazer aniversário, depois de uma certa idade, é temerário, deve se referir também a essas homenagens de fã. Nada que freie o ímpeto de um verdadeiro puxa-saco.

***

"Há quem diga que, em breve, a única atividade exclusivamente masculina no mundo será a de drag queen."

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"Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data."

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"A verdade é que a gente não faz filhos. Só faz o layout. Eles mesmos fazem a arte final."

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"Uma boa festa de aniversário deve ter no mínimo 20 crianças, sendo uma de colo, que chora o tempo todo, e uma maior do que as outras, chamada Eurico, que bate nas menores e acabará mordida pelo cachorro, para a secreta satisfação de todos."

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"Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo."

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"Mort. Ed Mort. Detetive particular. É o que se lê na porta do meu escri (o "tório" eu subloco) numa galeria de Copacabana. Divido meu espaço com 17 baratas e um ratão albino. O ratão às vezes desaparece, mas sempre volta, por isso eu o chamo de Voltaire. Minhas frases são curtas como o cano do meu 38. O 38 está empenhado, mas ninguém saca um tíquete de casa de penhores do bolso com a minha rapidez. Mort. Ed Mort."

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"Quando os zagueiros David Luiz e Dante finalmente se conheceram, se apertaram as mãos ("muito prazer", "muito prazer", "precisamos nos encontrar"), já estava 5 x 0 para a Alemanha."

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"A baleia é um mamífero que preferiu continuar no mar. Quer dizer, é uma sentimental."

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"Ao nascer, ninguém tem a cara de ninguém. Aliás, os dois ou três dias depois do nascimento são os únicos dias da vida em que a nossa cara é só nossa."

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"O Brasil é governado por uma minoria esmagadora."

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"Sempre que ouço falar em inconsciente coletivo penso em um ônibus desgovernado."

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"Mães, como se sabe, formam uma irmandade fechada com ramificações internacionais. Como a máfia. As mães também oferecem proteção e ameaçam os que se rebelam contra elas com punições terríveis que vão da castração simbólica à chantagem sentimental. Pior que a máfia, que só joga as pessoas no rio com um pouco de cimento em volta."

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"Você sabe que acabou a adolescência dos filhos quando os seus vexames, em vez de envergonhá-los, começam a enternecê-los. Você passou de herói a embaraço e está terminando como figura."

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"O único humanista autêntico é o canibal. Seu amor pela humanidade é o mesmo amor que temos por um bife, e é sincero."

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"Eu acho que na cama vale tudo, menos legumes. Já perdi a namorada porque disse que o meu limite era o pepino."

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"Só entendo de comida da boca para dentro."

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"Temos que confiar no amanhã. A não ser que descubram alguma coisa contra ele durante a noite."

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"Todo mundo tem amor-próprio, se bem que nem sempre seja correspondido."

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"A bossa-nova é o samba destilado."

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"Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo."

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"O que eu gostaria de ter feito, e não fiz, é ter completado 20 anos ontem."

CLAUDIA TAJES