quarta-feira, 30 de agosto de 2017


30 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Palhaços


Nem duas, nem três: são muitas as pessoas que têm medo de palhaço, ou tiveram, quando crianças. Não lembro se eu tinha também, mas não me sentia confortável na presença deles. Em primeiro lugar, porque acho desagradável ter a obrigação de rir. Fico gelada quando alguém pergunta: "Conhece a piada do...?". 

Ai, meus sais. Geralmente digo que conheço e pulo para o próximo assunto, mas certos momentos exigem bons modos e a gente então escuta e oferece aquele hahaha amareladíssimo. Torço sempre para que o contador seja excepcional, porque é ele que torna a piada boa ou não.

Mas voltando ao palhaço. Além de ele personificar a obrigação do riso, ele me parecia apenas um bobão que tratava a todos como crianças, e eu não queria saber dessa condescendência. Balde com água de papel picado? Acho bonito e poético, desde que eu esteja assistindo ao espetáculo Fuerza Bruta ou qualquer outra encenação adulta. 

Eu devia ser meio piradinha, mas o fato é que sempre considerei performance de gente grande mais divertida, tanto que meus palhaços preferidos são Woody Allen, Lenny Bruce, Monty Python, a turma do Porta dos Fundos e, aproveitando a deixa para homenageá-lo, Jerry Lewis, que acabou de sair de cena.

O único palhaço de circo que eu gostava não trabalhava em circo, mas na tevê: Renato Aragão. Sim, eu gostava dos Trapalhões, mesmo eles sendo politicamente incorretos, ou talvez por isso.

Pra terminar minha lista de implicâncias, havia o fato de o palhaço estar sempre paramentado com aqueles suspensórios caretas e aquele nariz vermelho manjado - a Lady Gaga, em início de carreira, tinha mais criatividade. Já o disfarce do Batman eu curtia, pois o traje de vinil preto, com capa, me parecia cool e sexy. Piradinha e depravadinha.

Bozo? Fala sério.

Mas fui conferir Bingo, o Rei das Manhãs, porque o cinema é uma fantasia que me interessa, e adorei o filme, que vai muito além da mera biografia. Vi ali um homem. Adulto. Impulsivo. Atrevido. Alterado. Valente. Maluco. Um cara que se joga, que se dá bem e que se dana. Que tem uma história, e ela não é uma piada.

Além da atuação intensa e apaixonante de Vladimir Brichta, o filme ajuda a matar a saudade de Domingos Montagner, que muito antes de ser galã da Globo trabalhava como palhaço e dignificava ainda mais essa profissão - o palhaço é um artista. 

O problema sou eu, que, mesmo tendo sido uma menina feliz que usava maria-chiquinha, que andava de bicicleta, que adorava boneca, que brincava no mar com uma planonda vermelha e que lia gibis, já estava de olho na vida adulta, onde o picadeiro é bem mais amplo, o texto bem mais longo e a graça e a desgraça dão-se as mãos sem marmelada.

martha.medeiros@terra.com.br

sábado, 26 de agosto de 2017


O espelho sobre a mesa de jantar

Desde quando me lembro, família tinha para mim uma importância extraordinária. Meu pai a considerava muito. Era a árvore, com raiz e galharia, com sombra, com tempestade, ramos caindo, raios atingindo, mas estava ali, a velha árvore. Eu, menina intrometida, de orelhas em pé ouvindo conversas adultas, pois durante alguns anos fui a única criança na casa, absorvia aquelas tramas, dramas, comédias, e coisas ternas e alegres que passavam como fios de teia de aranha entre tantas pessoas.

Eu adorava os almoços: avôs, avós, tios, tias, primos, primas. Aquilo me dava uma extraordinária sensação de proteção e pertença. E tudo se refletia num grande espelho diante da mesa de jantar. Também me fascinavam - não foi por nada que décadas depois comecei a escrever sobre laços familiares, embora nada a ver com aquela minha família - as conversas e posturas, que em qualquer grupo podem passar da inocência à bizarrice. Sentada à mesa, tendo de me esticar para manejar os talheres, embora posta sobre almofadas, com as perninhas balançando no ar, mais do que comer ou beber meu suco, eu espiava as pessoas.

Tomava um distanciamento involuntário, que me divertia e assustava: as pessoas pareciam salsichas enormes, com tufos de cabelo em cima, buraquinhos com olhos dentro, que giravam, outro buraquinho que se abria e fechava para receber comida ou soltar palavras. Ali aprendi que palavras podem ser plumas ou punhais - e que significam muito mais do que aquilo que expressam. Que uma inflexão muda o sentido, de amoroso para crítico; e que as mãos complementam tudo, com arabescos bailarinos por cima dos pratos.

Talvez tenha nascido assim meu encanto pelas palavras, pelo que dizem nos sons ou letras, e mais ainda nos espaços brancos ou silêncios. Ou isso simplesmente veio comigo como a cor dos olhos e dos cabelos, um sinal qualquer. Para mim, foram sempre motivo de felicidade, palavras como balas de tantos sabores e cores, ou pedrinhas coloridas que eu revirava na boca como se fossem pitangas ou uvas.

Sou uma mulher das palavras, e família tem entre elas um lugar especial: mais do que dissidências, importam as semelhanças; mais do que contradições, reinam os encontros; mais do que as ausências, predominam os gestos, as vozes, ou os sinais num WhatsApp. Uma dor por mal-entendidos pode ser curada com a palavra certa; uma ilusão alegrinha pode virar ferida, mas a gente nunca tem certeza...

Esse berço, esse colo ou esse peso chamado família pode magoar, irritar e salvar se tivermos a sorte de nascer num grupo amoroso. Nas horas mais escuras, essa rede pode nos impedir de cairmos no alçapão embaixo do poço. Nada como lembrar brincadeiras infantis entre irmãos, carinho de pais abrindo a porta com braçadas de orquídeas, dessas pequenas meio silvestres que florescem presas aos troncos das árvores no jardim. Nada como jogar conversa fora com quem se recorda, e nada como semear recordações futuras para os que, tão jovens, ainda nem têm passado.

Não sei onde foi parar aquele grande espelho, com um raro tom rosa-antigo. Quem sabe ainda estamos lá, presos: imortalizados os momentos felizes, os risos, brindes, lágrimas - e todos nós, como éramos um dia.

LYA LUFT



26 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Na calada da noite

Na calada da noite, quando o silêncio é tão denso que não se escuta nem o espirro de um guarda noturno, meus pensamentos delirantes despertam, e meu cérebro começa a azucrinar.

Eu ordeno a ele: quieto! Estamos na calada da noite, essa expressão não te sugere nada?

Ele não me dá trela e passa a listar as preocupações que me aguardam no dia seguinte. Amanhã, você precisa trocar o horário da aula de inglês com a Karin, será que ela estará livre na quarta? Amanhã, você precisa acrescentar batata-doce na lista de compras do supermercado. Amanhã, você precisa checar que barulho é aquele que seu carro está fazendo quando dá ré. 

Amanhã, você precisa adicionar mais 10 minutos de cenas no roteiro do filme que está escrevendo e dar uma sacudida na personagem principal, ela ainda está meio desmaiada. Amanhã, você precisa escrever mais duas crônicas inéditas de qualquer jeito, ou não conseguirá viajar tranquila pro Rio. Amanhã, você precisa checar se a camisa branca está limpa para a palestra.

São 3h30min da manhã, e a noite segue calada, mas meu cérebro não fecha a matraca. E o pior está por vir: ele logo entrará em sessão de terapia. Adora fazer isso no meio da madrugada.

Tenho a impressão de que aquele texto que você publicou duas semanas atrás foi um recado para uma amiga sua. E não ter respondido aquele WhatsApp de anteontem foi uma provocação estúpida. Se você tem vontade de largar tudo, por que não larga? Aliás, comece largando o pé da sua filha, deixe que ela viva do jeito que quiser. Não acredito que você vai falar de novo sobre aquela vez em que perdeu o avião porque ficou trancada no banheiro. Óbvio que você não queria embarcar.

São 4h30min da manhã, nunca fiquei presa em banheiro de aeroporto, então é sinal de que a terapia desandou e agora estou entrando naquele período dramático em que recebo a visita dos meus demônios, sempre pontuais.

Essa mancha no seu braço. Está com a maior pinta de ser um melanoma. Você precisava ter tomado três cálices de vinho? Marque uma hora no gastro se não quiser morrer de cirrose até a próxima sexta-feira. Você não vai viver muito, sabe disso. A dor no joelho é da idade, mas o aperto no peito é problema cardíaco grave, você tem um mês de vida, você tem duas semanas de vida, você tem que deixar um bilhete de despedida para seus entes queridos, tchau querida, acho que você não vai nem acordar.

São 6h da manhã, o guarda noturno espirra, e eu acordo. Fim de mais uma tagarelice cerebral numa noite calada coisa nenhuma.

MARTHA MEDEIROS


26 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Amor à moda antiga


Um amigo disse pro filho, dia desses, antes de dormirem, que o amava daqui até o céu. O garoto ouviu, levantou as sobrancelhas, calculando a distância impressionante. Olhou pro pai e, na tentativa de expressar amor de volta, falou: Eu te amo tipo daqui até o ventilador.

Somos uma geração de pais carinhosos. Dizemos "eu te amo" como quem diz "bom dia". É tanto "eu te amo, filho" que tenho medo que não valorizem. Às vezes, inventamos novas formas de comparação. "Amo você daqui até a lua." "Amo você mais que tudo." "Amo você 10 vezes infinito." Já ouvi tantas vezes de minhas filhas e valorizo cada uma delas. Todas me dão água nos olhos. Abracei-as mais do que abracei minha mãe, acredito. Tenho mais fotos delas, guardadas em HDs e com backup na nuvem, do que as câmeras de 24 poses jamais conseguiriam tirar.

Em geral, tivemos pais mais distantes. Queriam que fôssemos durões. Meu avô trabalhava na roça, cortou cabelo e dirigiu caminhão pra dar estudo pra minha mãe. Esta, por sua vez, criou sozinha o filho e sustentou a casa com salário minguado. A vida, realmente, era mais séria pra eles. Nada de delicadezas. Nada de desperdício de comida. 

Nada de tablet e iogurte. Nada de "eu te amo" terça à tarde. Abraços eram ocasiões especiais, Natal e olhe lá, que a vida não é fácil e você tem que estar preparado. Mas, quando vinha um carinho na cabeça, rapaz, a gente ficava bobo. Um pouquinho de colo, quando a gente já era grande demais, era o céu. Beijo de boa noite, paraíso.

Uma amiga contou que o pai nunca lhe disse "eu te amo". Ela procurava carinho, ele não era muito de papo. A conversa era toda com a mãe. O pai era comunicado e comunicava, não havia diálogo.

De vez em quando, ele botava as crianças pra dormir. Era assim: os três filhos de banho tomado deitavam, cada um em sua cama. O pai entrava no quarto, o silêncio respeitoso tomava conta do lugar, e o senhor começava a desenrolar os mosquiteiros que ficavam em cima da cama deles. Estendia a proteção cuidadosamente sobre os filhos, sem dizer uma palavra. 

Olhava com atenção pra ver se nenhum mosquito tinha ficado do lado de dentro. Verificava se não havia frestas para outros mosquitos entrarem. Fazia isso para cada um dos três filhos, sem trocar uma palavra. Depois de tudo pronto, ia até a porta e dizia: "boa noite". As crianças respondiam: "boa noite". O pai se ia. E as crianças sentiam como se tivessem ouvido "amo vocês".

26 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

O caráter que se revela na confissão
Contar um segredo é a triagem do caráter. Ou o segredo liberta ou aprisiona. É confessando algo de que nos envergonhamos que saberemos se a pessoa é a nossa amiga ou não. Não tem teste tão veemente, com efeitos mais imediatos.

O confessionário prova se o outro é leal. Expor uma lembrança triste a quem não é de confiança logo vira chantagem, logo vira moeda de troca, logo vira favor. Pode não espalhar para os demais, mas usará a informação para obter vantagens e transformar a culpa em superioridade.

Aquele que não é amigo se aproveita da fragilidade para garantir benefícios. Fortalece a vítima para desmerecê-la. Levanta para cima, diz que o segredo é nada, dissuade o medo, para rir depois da queda.

Não é um amigo, porém um inimigo em potencial, um adversário disfarçado de bons modos. No fundo, não tem escrúpulos. Aproxima-se para impor os seus interesses. Está jogando sujo para ganhar recompensas fáceis.

Ele se faz de compreensivo e compassivo com o objetivo de manipular a relação. Há como prever o Judas antes da confissão. Pois Judas trai com um beijo. Será alguém que se mostra muito carinhoso de uma hora para outra. Tem pressa de saber tudo a seu respeito, sem nenhuma razão aparente. Aparece forçando a intimidade, com convites generosos e apoios nababescos.

Cuide com o que fala. Porque aquilo que falar mostrará a natureza de suas companhias.

A decepção virá rapidamente na forma de um insulto e de uma ironia. No primeiro desentendimento, o túmulo de cimento das palavras não resiste às marteladas da profanação. A traição será sempre a violação de uma confidência. Os suspeitos não mudam com o tempo. É um colega de trabalho concorrendo com você. É um antigo afeto querendo vingança. É um familiar ressentido com o passado.

Amigo que é amigo escuta e esquece, e jamais volta para o assunto. Ouve e apaga. Escreve na água, para a onda levar. Escreve na areia, para o vento cobrir. Cumplicidade é como bebedeira, nunca lembrar o que aconteceu durante a vulnerabilidade da conversa.

Amigo que é amigo mantém a decência de uma gaveta, de um cofre, de uma chave. Demonstra a sobriedade educada e gentil de ajudar e desaparecer. Já cumpriu o papel de dividir as dores e frustrações. Não alimenta a ambição de ser maior do que o silêncio.

CARPINEJAR

quinta-feira, 24 de agosto de 2017



23 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Nossos velhos moços

Peguei a foto e observei. Ela tinha 38 anos. A bordo de um vestido preto decotado e elegante, parecia uma embaixatriz moderna, uma mulher do jet set, e ele, a seu lado, aos 40, usava terno e gravata e tinha alguns poucos fios grisalhos no cabelo, apenas o suficiente para emprestar uma maturidade charmosa ao look. Ambos poderiam estar em um anúncio da grife Giorgio Armani ou numa festa em Montecarlo. 

Seus sorrisos largos e peles bronzeadas indicavam uma vida de atividades ao ar livre e programas culturais. Eles adoravam ir a concertos e ao teatro - tudo indicava que teriam uma longa e divertida vida pela frente, e de fato tiveram e ainda têm. Mas eu, no canto esquerdo da foto, espiando com o rabo de olho para aqueles dois, lembro bem: só pensava em como eram velhos meus pais.

Ah, a ingênua soberba dos 15 anos. Recordo aquele baile onde nós três fomos fotografados juntos: eu e meus pais matusaléns. Em minha completa ingenuidade e ignorância, acreditava que juventude era uma calça azul e desbotada e que ninguém era mais livre e sábio do que nós, os de menor. 

Os campeonatos de surfe na Guarita, a piscina do Juvenil, os shows no Gigantinho, do que mais precisaria uma adolescente alienada para querer parar o tempo e ser feliz para sempre? Ficava apavorada com a ideia de me tornar uma anciã como aqueles dois senhores a quem, naquela noite já distante, eu vi dançarem com uma desenvoltura que me fez cobrir o rosto com as mãos. Que mico, meus pais ainda vão pra pista nesta idade.

Hoje reparo que minhas filhas me dirigem um olhar atravessado quando uso um vocabulário vintage e penso que elas, da mesma forma, devem me enxergar como um fóssil do Tiranossauro rex. Ou talvez não. Talvez elas tenham outra visão da passagem do tempo e, ao me verem ir a shows de rock, viajar com uma mochila nas costas, namorar e ainda fazer planos para o futuro, compreendam que não existe mais juventude e maturidade delimitadas, um antes e um depois. Temos idades diferentes, mas espíritos muito similares. Otimismo meu?

Sendo moças adultas, posso confiar no discernimento delas, mas aos 15, ah, aos 15 víamos nossos pais envoltos num tom sépia, cheirando a naftalina e tendo um comportamento totalmente sem noção. Se eles ousassem transparecer alguma jovialidade, eram tachados por nós de ridículos. Adolescentes adoram achar tudo ridículo.

Até que os adolescentes crescem, atingem a meia-idade que um dia seus pais tiveram e, ao olharem para fotos de uma época em que eles pareciam uns cacos, se dão conta: eles eram umas crianças. Demora até aceitarmos que fomos criados por pessoas tão jovens e aventureiras quanto nós.

martha.medeiros@terra.com.br


22 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Todo mundo tem um pouco

Com a atual evolução da medicina, não haveria super-heróis.

O incrível Hulk, antes de sua transformação verde, tomaria Rivotril e jamais perderia as suas roupas. Poderia até arrumar um trabalho irritante de teleoperador ou de segurança de boate e não mais se irritaria com nada. Batman seria medicado com antidepressivos para contornar o trauma de ter visto os seus pais assassinados em sua frente. Não iria se fantasiar de morcego nem morar em cavernas. Talvez se transformasse em corretor imobiliário. 

Wolverine, com alentadas sessões de hipnose e regressão, superaria seus antecedentes bastardos, já que foi fruto da infidelidade de sua mãe, Elizabeth Howletts, com Thomas Logan, o jardineiro da mansão. Representaria o Canadá na equipe de esgrima nas Olimpíadas. O Homem-Aranha, com aplicação de um forte antialérgico, estaria normalzinho e, no máximo, subiria em andaimes para pintar murais em prédios nova-iorquinos.

Todos têm em comum a sede de vingança. Todos apresentam um defeito hipertrofiado. Ninguém é herói por uma virtude. Mas por uma falha trabalhada ao extremo a ponto de virar uma arma.

Nenhum traz bons sentimentos. Recalques e transtornos é o que provoca os superpoderes. Conservam a humanidade de perdas e dores debaixo das capas e das fantasias invencíveis. Eles procuram a justiça porque sentiram na pele a falta dela.

E a maior parte dos ídolos da Marvel estaria catalogada com sintomas de esquizofrenia ou psicose ou histeria ou dupla personalidade ou borderline.

Com receitas médicas, a Liga da Justiça estaria extinta.

Numa sociedade que endeusa o equilíbrio, que os super-heróis nos devolvam a sanidade. É de se pensar que suportar um naco de sofrimento não é tão grave assim. Gera disciplina e obstinação. Produz entendimento e empatia com outro. Cria referenciais para a superação de adversidades.

Não devemos nos automedicar nem seguir tratamentos indicados por amigos, muito menos prosseguir com a intolerância máxima a qualquer mal-estar. É preciso aguentar um turno de enxaqueca ou cinco minutos de azia. É salutar não resolver tudo na hora com comprimidos. A dor não mata, mas a falta de dor com medicação excessiva é assassina, não ajudando a nos prevenir da dependência e nos tirando a força para nos defendermos, sozinhos e sóbrios, da vida.

Os remédios são um controle falso do corpo. E, se usados com frequência, não de modo especial e provisório, sem a devida orientação, escravizam e alteram o nosso temperamento.

A medicina serve para amparar a humanidade, não substituí-la. Não dá para curar cem por cento os problemas - que é neutralizar a espontaneidade.

De super-herói e louco, todo mundo sempre terá um pouco.

carpinejar@terra.com.br

sábado, 19 de agosto de 2017



19 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Esse vai ser pegador

O Gabriel é um amigo da minha filha de cinco anos que adora usar vestido de menina. Você está pensando o mesmo que eu, quando conheci o garoto: o Gabriel é gay. Mas, lembre-se, o Gabriel tem só cinco anos de idade. Ele não sabe o que é uma orientação homoafetiva, não sabe o que é sexo, não tem a consciência da malícia do nosso pensamento (meu e seu). Quando perguntei por que ele gostava de colocar aquela roupa, ele me disse: "É bom de correr". E saiu em disparada, de vestido, atrás de uma bola de futebol.

É uma imagem desconcertante, um menino de vestido correndo atrás de uma bola. O Gabriel não tem nenhuma indicação de delicadeza, ele entra nas jogadas com força, discute com outros meninos com valentia. Quero dizer, está mais para Felipe Melo do que pra Kaká, não fosse pelo vestido não teríamos nenhum sinal de raios desmasculinizantes. Mas o Gabriel gosta de correr de vestido, acha mais confortável. E o pai dele de canto não sabe se fica puto da cara ou se aplaude as jogadas do filho.

Lembro da minha infância. Existia um patrulhamento antigay constante. Pais não permitiam filhos usando rosa, brincando de bonecas, brincando de maquiagem, fazendo balé. Esse terror dos pais passava pras crianças, e estávamos o tempo todo avaliando os amigos, fazendo piadas de duplo sentido, sugerindo a homossexualidade dos outros, como se houvesse algo de errado com isso. Deus nos livre alguém nos confundir com gays! Alguém supor que somos sensíveis!

Alguns de nós, certamente, se descobriram gays, apesar de toda a pressão inversa. Outros, imagino, incorporaram o ódio e se tornaram homofóbicos.

Quem sexualiza nossas crianças somos nós, conhecedores do bem e do mal. Batemos nas costas de meninos de dois anos, às vezes mais novos ainda, e dizemos: "Esse vai ser pegador! Esse vai ser garanhão!". E não entendemos quando nossos jovens têm filho cedo demais. Não entendemos quando nossos garotos são violentos com as meninas, querem pegar à força as garotas nas festas. Não entendemos quando maridos traem as esposas. "Esse vai ser pegador!" Uma espécie de deseducação que jogamos em nossos meninos desde cedo.

Ninguém diz para o filho: "Esse vai ser um pai de família". Esse vai ser honesto. Esse vai ser gentil. Esse vai tratar bem as mulheres, esse vai ajudar o próximo. Acredito que faria toda diferença. Incentivar a sexualização da criança é roubar um pouco de sua infância. Nossos filhos não vão ser menos homens se não pegarem beijos à força das meninas da creche. Nossos filhos não serão gays se usarem vestidos. Nossos filhos não serão afeminados se brincarem de boneca ou casinha. Nossos filhos serão crianças. E, quem sabe um dia, adultos melhores que nós.



19 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Malandragem familiar

Quando alguém de casa me pergunta se eu vi determinada coisa, não está, na verdade, me questionando, está me culpando e me pondo a trabalhar para achar.

A incriminação é falsa, um oportuno artifício para ganhar a atenção. Pois tenho que provar a inocência de uma hora para outra. Sou obrigado a cessar as minhas preocupações, por mais importantes que sejam, para investigar onde a pessoa deixou o objeto. Azar dos textos encomendados, das leituras em aberto, dos contatos a responder na caixa de mensagens.

O interesse de quem perdeu é criar pânico, mobilizar a casa para resolver o desaparecimento. É parar tudo e todos em nome de uma causa pessoal. E aquele que perde sempre está atrasado, prestes a sair, com a mão na maçaneta, o que agrava a urgência.

A acusação é absurda. Não toquei naquele pertence nos últimos dias. Mas, por ser descabida, fico com vontade de esfregar na cara que não fui eu.

Não percebia antes a moral da cilada. O propósito é mesmo sortear a responsabilidade para desfrutar de investigadores de graça. O babaca aqui, disposto a provar algo que não fez, dedica os seus melhores esforços na procura.

Já quem esqueceu o paradeiro do objeto costuma se tranquilizar com a movimentação frenética das equipes de busca e permanece parado, apenas coordenando de longe a gincana. Ele cria uma história de que é vítima de um enxerido, da arrumação alheia, e não se mexe.

É a maior malandragem da vida familiar. Quando a coisa sumida reaparece é num lugar engraçado, deixado por nada menos do que o seu próprio dono. Ele, aliviado, enterra o assunto e a difamação dos próximos. Nem pede desculpa aos suspeitos.

Acabo sempre recrutado para caça ao tesouro. Os filhos e esposa se aproveitam da minha ansiedade. Reencontrei brinquedos escondidos nas estantes, celulares no estofo do sofá, brincos no tapete fofo da sala. Sou um Google Maps dos extravios.

Da próxima vez, não sofrerei à toa, chamarei de pronto o meu advogado.



19 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Problemas matemáticos


A matemática e eu nunca fomos íntimas. Isso explica eu ter tirado, no colégio, tantos NS (não satisfatório) e NA (não atingido), notas que equivaliam ao indesejado zero. Eu até que simpatizava com os problemas apresentados, mas me perdia na abstração. Maria tem 42 abacates, 75 bananas e 17 melancias: quantas frutas tem Maria? Não era complicado somar, complicado era entender por que raios Maria precisava de 42 abacates. E de 75 bananas. Quantas crianças ela tinha pra alimentar? Morava em algum sítio? Conseguiria consumir tanto abacate, banana e melancia antes de as frutas apodrecerem? Eu achava que o problema a ser solucionado era o exagero de Maria.

Uma escola tem 1.750 alunos e faltam 357 no primeiro dia de aula: quantos alunos compareceram? Eu não podia acreditar que apenas o resultado da subtração interessasse aos professores. A questão principal não era quantos, e sim por que tantos se ausentaram. Epidemia de mononucleose? Ônibus em greve? Despertadores em greve? O primeiro dia de aula era excitante, bastava de férias, a saudade dos colegas e a vontade de estrear caderno novo eram motivos suficientes para estar lá na segunda-feira. Onde haviam se metido os 357? Ou vai dizer que eram problemas inventados?

Imagino que hoje eles sejam mais realistas.

Um presidente precisa comprar 172 deputados a R$ 5 milhões cada um: quanto ele terá que desviar do orçamento para cumprir sua meta?

Se um jogador de futebol ganha R$ 100 milhões por ano e gasta R$ 8 milhões por mês, ao fim de 12 meses quantos milhões ainda sobrarão do seu salário?

Um servidor público tinha R$ 7 mil a receber de seu décimo terceiro do ano passado. Já recebeu seis parcelas e ainda lhe devem R$ 320. Qual o valor da sua paciência?

Um hospital tem 45 leitos e há 92 pessoas aguardando atendimento. Os corredores abrigarão quantos excedentes?

Um deputado federal ganha R$ 33.763, mais auxílio-moradia, verba de gabinete, ajuda de custo, passagens, carro com motorista e outros benefícios. Ele deveria defender os interesses de meia dúzia ou de milhões de brasileiros?

Um traficante disparou 37 tiros em duas horas. Um policial disparou 24 tiros num fim de semana. Duas crianças foram alvos de bala perdida no meio da tarde. Quantos tiros foram dados e quantos faltam para atingirmos a estatística de uma guerra civil?

Um fazendeiro tinha 85 bois numa sexta-feira à noite em que fazia 13 graus. No sábado de manhã, fazia 7 graus e ele contou 64. De quanto foi a variação de temperatura que surpreendeu os assaltantes durante a madrugada?

E um último probleminha: como serão as aulas de matemática do nosso futuro? Nem calculo.

Um deputado federal ganha R$ 33.763, mais auxílio-moradia, verba de gabinete, ajuda de custo, passagens, carro com motorista e outros benefícios. Ele deveria defender os interesses de meia dúzia ou de milhões de brasileiros?

MARTHA MEDEIROS



19 DE AGOSTO DE 2017
LYA LUFT
Em casa na selva


Quem teve filhos, ou cuidou de bebês, deve ter observado que desde os primeiros momentos somos diferentes. Diversidade não tem só a ver com raça, cor, religião, ideologia, mas também se realiza entre os ditos "iguais", nas diferenças da mente, capacidades, conceitos e emoções que vão nos marcar.

Desde o começo, temos a criança solar, naturalmente animada e alegre, de sorriso fácil e olhar luminoso, e a outra, mais quieta, recolhida, assustadiça, desconfiada. Mal-humorada, até facilmente agressiva: sim, criança pode ter um gênio bem difícil, porque nasceu assim ou porque o convívio familiar, educação, experiências pessoais a vão distinguindo. Mas amadurecendo temos raciocínio claro, e força de vontade: pessoas agressivas podem se educar, e melhorar. Outras, mesmo de natureza mais afável, em ambiente hostil, violento, frio, podem se tornar hostis ou parecer antipáticas.

Por que escrevo isso? Porque me espanta - a gente sempre acha que a certa altura da vida nada nos espanta, mas é mentirinha - essa nossa agressividade à flor da pele. Não recordo tempos tão intolerantes. Branco e preto. Politicamente correto (detestável) ou incorreto. Azul ou vermelho. Direita ou esquerda, e outras noções já bem ultrapassadas.

Andamos pouco civilizados, por qualquer coisa atropelamos, batemos, xingamos, afastamos, deletamos alguém: por que tanto assim, por que com tamanha frequência, por que essa dificuldade em entender, aceitar (nada a ver com se acovardar), desculpar, e - se queremos afastar de nós - em nos distanciarmos sem ferir?

Possivelmente porque, neste mundo conturbado, neste ambiente político bizarro, nesse espetáculo de violências variadas mundo afora ou aqui na esquina, estamos realmente com os nervos expostos: medo, insegurança, o assombro moral, nos deixam em alerta.

Arreganhamos os dentes, esticamos a cauda, e lá vamos nós, agredindo muitas vezes por receio infundado, sem motivo concreto. Em alguns lugares, ir a um jogo de futebol pode ser arriscar até a vida. Ninguém com bom senso conversa no carro diante da porta da namorada. Ninguém circula tranquilo nas ruas escuras, e descemos do carro, ou tocamos a campainha, olhando para os lados como se estivéssemos na selva.

Estamos na selva: nós a criamos. Ou permitimos que se formasse, e até participamos dela. Isso tem remédio, receita, tem jeito? De momento, ando cética quanto a comissões, grupos, discursos. Eu, aqui, comigo, devo tentar ver todos como pessoas: com rosto, emoção, vida, mesmo que eu não lhes saiba o nome.

Vou ao jogo para torcer, para ver meu time ganhando, mas perder não deve ser o fim da minha decência. Discutir opiniões é normal, mas não preciso dar porrada física ou verbal se minhas ideias não forem aceitas. O trânsito está um horror, mas não tenho de atropelar alguém ou sair gritando insultos. Se o trabalho foi duro, o dinheiro é pouco, se alguém me irritou, não posso chegar em casa me portando da mesma forma.

Somos todos inocentes. Ou somos uns pobres diabos assustados. Se a gente não começar em si mesmo, feito formiguinha, a coisa só vai piorar: logo até dentro de casa vamos acordar rosnando como numa selva ameaçadora.

lya.luft@zerohora.com.br

sábado, 12 de agosto de 2017



12 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Desculpe por não ser Marcos Piangers

Nesta semana de Dia dos Pais, dei palestras sobre paternidade para grandes empresas nacionais; estou na capa da maior revista de família do Brasil, a Pais&Filhos; fiz campanhas publicitárias falando da importância do homem na criação dos filhos; dei minha terceira palestra no TEDx, desta vez em São Paulo, na maior conferência da América Latina, no estádio do Palmeiras; dei entrevista pra diversos jornais, revistas, rádios e televisões, entre elas a Globo, no programa do Pedro Bial, ao lado do Cauã Reymond.

Isso faz de mim um pai perfeito. Evidente que não. O que me faz pai é o tempo que gasto na educação das minhas filhas. E essa semana de Dia dos Pais passei longe delas, por causa de tudo isso que citei aí no parágrafo de cima. Foram cinco dias longe das minhas meninas. Sou um poço de culpa. Sou um pai inacabado, um marido inexperiente, um homem em reconstrução.

Minha filha mais velha fica triste porque acha que sou muito duro com ela e muito mole com a mais nova. Pra minha esposa, dou respostas ríspidas, muitas vezes não sou atencioso ou paciente. Elas adorariam que eu fosse esse Marcos Piangers que as pessoas idealizam, mas não sou. Minha esposa está fascinada por um outro rapaz da internet que fala sobre feminismo. Diz pra eu assistir seus vídeos pra ver se eu melhoro. Lembra alguém?

Toda família é igual. Toda esposa está tentando tornar seu marido em um cara melhor. Todo homem acha que já faz o suficiente e que a mulher reclama de barriga cheia. Todo pai se sente culpado. Estamos todos no mesmo barco, amontoados de inseguranças e traumas, guardando pra nós mesmos nossas dores. Achando que existe alguém perfeito no mundo.

O melhor homem possível está aí do seu lado, com todos os problemas e defeitos. O melhor pai possível está aí, precisando de ajustes e puxões de orelha, mas pronto para ser melhorado. A melhor família é essa aí que você tem. A melhor viagem é esta que você fez, com chuva e malas extraviadas. O dia mais feliz da sua vida não foi sua formatura, seu casamento, o dia que seu filho nasceu. O dia mais feliz da sua vida é hoje.

Neste domingo, dia 13, vou estar com minhas garotas, finalmente. Teremos que nos reconhecer, nos reconquistar. Espero ser mais Marcos Piangers semana que vem. Depois um pouco mais. Depois mais. Quem sabe um dia. Quem sabe.

PIANGERS



12 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Centopeia de espírito

Nunca vi nenhuma mulher selecionar os seus sapatos para a campanha de agasalho (até porque elas acreditam que sapato não é agasalho). São generosas e oferecem roupas novas, recentes, que não servem mais. Realizam limpas no armário mensalmente, separam o que não agrada com bonança. Nunca deixam nada parado, sem utilidade para o próximo. Mas sapato, não.

Sapato é imortal para a mulher. Sapato pode estragar, adoecer, só que não morre. Sapato pode perder a sola, o bico, arrebentar as tiras, porém recebe a condecoração da permanência. Ou ele é levado para um sapateiro de confiança ou fica em coma numa sacolinha com sachê.

Mulher ama sapatos, de homens apenas gosta e nem todo dia.

Quando o sapato não corresponde às expectativas, ela repassa a uma amiga torcendo para a felicidade dos dois. É o máximo de caridade que alcança nesse quesito.

Jogar fora, nunca. Tampouco das caixas consegue se desfazer. Não elimina coisa alguma: conserva o ventre dos sapatos, a placenta dos sapatos, o cordão umbilical dos sapatos.

Já observei botas, tênis e calçados masculinos na rua, no lixo e no meio-fio, gestos impensáveis para o universo feminino.

Mulher é uma centopeia de espírito. Não compra quando precisa. Compra para criar necessidades. Jamais conta quantos pares possui ? é um número aberto e infinito. Apesar das mil e uma noites, ela sabe de cor os que usou e onde fez a sua estreia.

Por maior que seja a coleção, acha que ainda tem pouco. Não considera o estoque suficiente. Vive uma repescagem nas lojas, caçando tipos favoritos de edições passadas. Tanto que a mulher não lamenta amores perdidos, e sim chora por não ter adquirido um par a mais daquele salto predileto.

Sapato é o xamã para as mulheres. Cura demissões, tristezas e depressões. Em casos graves, a solução é a superdose: arrebatar vários em um único dia.

Se o homem deseja terminar um relacionamento, existe uma receita ideal que poupa saliva e dispensa enfrentamentos exaustivos. Basta arremessar scarpins de sua esposa na parede. Ou despejar a gaveta de sandálias pela janela. Ou arrebentar os fechos das botas. Ou preparar macarrão com as rasteirinhas.

Não sofrerá discutindo. A porta baterá para sempre e ela, certamente, não colocará também você na campanha de agasalho.

CARPINEJAR


12 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Pai da Pátria

O termo vem do latim pater patriae e simboliza o papel de determinada personalidade na formação da unidade nacional e de sua independência. O nosso Pai da Pátria não é um, mas dois: Dom Pedro I e José Bonifácio. Cada nação tem o seu, que serve de modelo de heroísmo e dignidade.

O Pai da Pátria está acima de nós, como numa família tradicional. Não em valor, que valorosos somos todos, mas em representatividade. O Pai da Pátria poderia, inclusive, ser o epíteto de todo chefe do executivo, não fosse, especialmente no nosso caso, uma piada. Há pesquisas sérias sobre a importância de se ter um pai reconhecido em certidão. O Brasil, de forma simbólica, tem os dois já citados, mas, na prática, é como se fôssemos filhos de um pai fantasma, que não nos deu o senso de inclusão familiar, de responsabilidade e de orgulho, deixando-nos à deriva.

Quem me dera ser crédula, confiante. Do tipo que admite estarmos em meio a uma crise medonha, mas que dela brotará um Estado maior, melhor. Já fui assim otimista, mas o tempo passou e me cobrou alguma lucidez e coragem para encarar a realidade. Agora não me é mais dada a alternativa de embarcar num faz de conta, acreditar em devaneios: o fato é que sempre estivemos irreversivelmente lascados, pois desde que essa história começou (1500), foi um tropeço atrás de outro, um país descoberto por engano, por causa de uns ventos inesperados que conduziram as caravelas para outro destino que não a Índia e foram parar aqui sem querer, e quem dá importância ao que foi sem querer? 

Descuidos não são levados a sério, nunca fomos e jamais seremos a primeira opção nem pra nós mesmos. O Brasil é um acidente de percurso do qual se tenta tirar alguma vantagem para que o engano de rota não resulte em total perda de tempo.

Se você discorda, se ainda acredita que um dia seremos um país íntegro, digno, consistente, me declaro invejosa da sua fé. Sou uma ratazana descrente que não abandona o navio porque tem parentes no convés, apenas por isso.

Sorte a minha, e provavelmente a sua, de que colecionamos algumas vitórias particulares: amigos fiéis, o gosto pela música, amar e ser amado, gozar de boa saúde, poder ir ao cinema de vez em quando, não ter vergonha do passado e acreditar-se merecedor de um banho de sol, de um banho de mar, de um banho de chuva, essas trivialidades naturais que mantêm o corpo e a alma azeitados. A vida vale a pena em sua simplicidade, aquela que ainda comove, pois rara.

Mas não nos gabemos, pois ainda que nossa família nuclear e nossa trajetória pessoal não nos envergonhem, somos todos habitantes de uma pátria órfã.

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12 DE AGOSTO DE 2017
LYA LUFT

Medo e preconceito


O preconceito tem raiz no medo. Não ? ou nem sempre ? um receio explícito, mas alguma inquietação ? o medo do diferente. Acredito muito nessa carga genética, psíquica, ancestral: qualquer animal diferente podia ser o predador, então a gente arrepiava os pelos, curvava o lombo, botava pra trás as orelhas e, qualquer coisa, atacava ou se defendia. Isso no tempo da Pedra Lascada.

No mundo atual, em que ser magro é ideal inalcançável da maioria, os gordinhos são objeto de apelidos, gracinhas sem graça, às vezes ofensas. Aos poucos, parece que as mulheres começam a se libertar, não sendo felizes com 200 quilos mortais, mas aceitando-se e gostando de si (portanto, sendo gostadas) estando acima do ideal?.

Claro que aqui escreve uma não ideal. Quando pré-adolescente, antes da interminável série de dietas ou reeducações alimentares, fui chamada de gorda, e de baleia. Em grupos de meninos e meninas brasileiros?, como se consideravam, eu e vários de sobrenomes alemães éramos brindados com alemão batata/come queijo com barata, o que certa vez, ainda criança, me arrancou lágrimas por não conseguir explicar que, primeiro, eu era brasileira há várias gerações e, segundo, não comíamos baratas em casa. Xingamentos como nazista não eram incomuns na hora de uma briga, não importava se meu pai tinha ajudado inúmeros refugiados judeus a serem acolhidos e respeitados em nossa cidade.

Já escrevi que tenho na minha família gente de sangue negro, pessoas muito próximas e queridas, e disso falei há alguns anos num seminário sobre multiculturalidade em Berlim, quando fui interpelada por alguém da plateia (todos respeitados sociólogos, antropólogos etc) dizendo que eu não podia falar, pois afinal era uma europeia?. Expus minha realidade brasileira e acho que pensaram que eu estava mentindo. Para ?me fazer de interessante?, diria minha mãe.

O preconceito difundido não atinge só os gordos, os negros, talvez árabes e libaneses chamados turcos? como se isso não fosse honroso, os muito altos e baixinhos, mas também os menos inteligentes ou hábeis, com alguma lesão mental ou física. Entra em cena aí a (inconsciente) crueldade de crianças e adolescentes, que não medem o quanto é funda a dor que causam.

Inclusão, por outro lado, é difícil de realizar. Criança autista ou Down em classes de normais Fácil, difícil, complicado e para quem Não há receita, mas a própria criança pode sofrer. Conheci uma mãe que, contrariando a própria família, passou sua filhinha Down, já adolescente, de uma escola normal para uma especial: a menina floresceu, ficou feliz onde ninguém a tratava como diferente nem dela esperava o impossível, o difícil demais. Cada ser humano é especialíssimo, também nas questões de gênero, em que gays, lésbicas e transgêneros ainda sofrem, aqui e no mundo, de uma abordagem obtusa, ignorante e cruel.

O avesso disso é o protecionismo: não podermos chamar alguém segundo sua origem ou raça estimula o preconceito, e é humilhante: exagero de eufemismos aumenta a exclusão. Um dos remédios para essa ferida social talvez consista em sermos mais educados, mais amorosos, mais humildes e por favor  muito mais informados.

LYA LUFT

quarta-feira, 9 de agosto de 2017



09 DE AGOSTO DE 2017
DAVID COIMBRA


O escândalo do beijo gay

Freme e pulsa, na cidade, o assunto do beijo gay pespegado em meio a uma festa de formatura. Como só disponho de uma versão do ocorrido, faço um resumo impreciso: dois homens se beijaram na boca durante a comemoração de uma moça que se graduou em Direito, no fim de semana. O pai da formanda e alguns convidados não gostaram do gesto e agrediram o beijoqueiro mais velho, um psicólogo de 53 anos de idade. Em seguida, expulsaram o casal do lugar.

Como já disse, foi divulgada apenas a versão da suposta vítima. Logo, não vou me arriscar em julgamentos precipitados. Até porque me interessa menos o caso e mais o escândalo do beijo. Não seria a primeira vez que um beijo causa revolta, se é que foi isso que aconteceu.

Artistas vivem tentando provocar polêmica à custa de beijos. O beijo de língua, que os romanos chamavam de ?savium? e que os ingleses chamavam de ?beijo francês?, chegou a ser proibido em algumas estações ferroviárias da Europa Central no século 19, mas não por excesso de sensualidade, e sim porque os amantes provocavam atraso dos trens com despedidas longas demais.

Nós ocidentais estamos acostumados a encarar o beijo como manifestação de afeto, mas em outras culturas nem beijo há. Os portugueses surpreenderam as índias brasileiras (positivamente, diga-se de passagem) beijando-as na boca quando aqui chegaram pela primeira vez. Nossos índios, tristemente, não beijavam... E não eram os únicos: lembre-se de que os esquimós dão beijo de esquimó ? com o nariz.

Tempos atrás, eu e a Marcinha visitávamos Praga. Há lá uma igreja curiosa, de estilo gótico e velha de 600 anos, chamada Nossa Senhora de Týn, com acento no ipsilone.

Não é o acento que a torna curiosa, e sim o fato de que sua fachada fica parcialmente escondida por alguns prédios que foram construídos não apenas diante dela, mas quase colados a ela. Os prédios se voltam para uma das praças mais lindas da Cidade Velha de Praga e, atrás deles, as torres da igreja se projetam por 80 metros, rumo aos anjos do Céu. Entra-se na igreja por uma portinha lateral, meio escondida. Um charme.

Depois de um dia cheio de programações turísticas e inevitáveis caminhadas, eu e a Marcinha fomos explorar o interior da igreja. Passeávamos por entre as naves e a Marcinha, cansada, debruçou-se no meu ombro e me deu uma bicotinha nos lábios. Brinquei:

? Não me beija aqui, que vão nos expulsar da igreja.

Como se tivesse me ouvido, um padre de cabelos brancos emergiu das sombras. Pulou detrás de um pilar ou das entranhas da terra, sei lá, e dentro de uma batina negra de modelo antigo, com golas enormes em forma de asas, bradou:

? Get out! Get out! Get out!

Não parou de gritar, enquanto não saímos da igreja. A Marcinha, católica que é, sentiu-se muito mal com aquilo. Já eu fiquei intrigado: o beijo não tinha sido erótico, não tinha sido de língua, não tinha sido nem sequer de boca aberta. Fora tão somente um carinho breve. E o padre se sentiu insultado com a cena.

Por quê?

Um beijo, a não ser que seja o da traição de Judas, não é algo mau em si. Um beijo é feito um afago ou um sorriso bonito ou um abraço demorado, é um ato amoroso e bom. Por que duas pessoas se beijando pode ser ofensivo para outras pessoas?

Homem com homem, mulher com mulher, homem com mulher, tanto faz. Prefiro beijos a tantas palavras e ações duras perpetradas por aí. Beijos, é isso que queremos. Precisamos de mais beijos neste grande, confuso e, às vezes, áspero mundo.

DAVID COIMBRA


09 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Clube de Jazz


Passei os últimos dias ralhando com minha imagem no espelho: que porto-alegrense fajuta é você? Há 35 anos, a pianista Ivone Pacheco fundou o Clube de Jazz e eu, que em diversas cidades do mundo já me infiltrei em bares enfumaçados, botecos, microteatros e demais esconderijos secretos onde se toca boa música, simplesmente desconhecia o que acontecia embaixo do meu nariz. O mistério faz parte da mística do evento, mas contarei um pouquinho para os desavisados como eu.

Noite de sábado. Uma casa escura numa rua pouco iluminada. Uma passagem lateral. Você entra como quem comete invasão de domicílio. Silêncio. O muro que conduz ao pátio dos fundos está grafitado. É, acho que é aqui.

Começam a chegar outras pessoas. Uma confraria. As portas do porão estão abertas. Lá dentro, algumas cadeiras descombinadas em frente a um pequeno espaço onde há um piano, uma bateria, microfones, alguns pôsteres de New Orleans colados nas paredes negras, um lustre vintage. E então surge um cara de terno e gravata com o mesmo charme de John Pizzarelli e a magia começa, sem ?senhoras e senhores?, sem ingresso vendido, sem cachê pago, sem lugar marcado, sem playlist, sem ?desliguem seus celulares?, sem a distância habitual entre quem faz e quem escuta. 

O cara canta três ou quatro músicas, depois dá lugar a um trio de blues, a duas cantoras de bossa nova, a nomes conhecidos e desconhecidos da noite gaúcha, maestros, pianistas, roqueiros. A dama Ivone Pacheco, aos 85, barbariza tocando Summertime e outros standards, uma garota linda de cabelo verde toca baixo e canta alto, solos de guitarra, gaita de boca, improvisos, jam sessions num revezamento ininterrupto. 

Ali fora, no pátio, pra quem deu uma escapadinha pra fumar ou papear, rola uma fogueira, um quentão, um pinhão, um São João também improvisado em agosto, e você se dá conta de que há quatro horas mantém um sorriso bobo no rosto por estar no ambiente certo e ao lado do homem certo, que te conduziu pela mão até essa simplicidade e sofisticação: uma reunião despretensiosa onde se celebra a música de forma não comercial, e sim emocional e espontânea. Assim foi a mais recente edição do Clube de Jazz Take Five de Ivone Pacheco, do qual tanto eu ouvia falar como quem ouve falar da lua cheia sem levantar os olhos para o céu.

Tem mesmo que ser como é. Sem endereço divulgado, sem banalização, atraindo apenas os amantes da sonoridade mais pura, abrindo espaço para artistas que se divertem com o que fazem, gente que se comunica através da corda do violoncelo, das teclas bicolores do piano, amadores e veteranos apaixonados pelo ofício de encantar.

É a arte em sua essência: bela, generosa e transcendental. Como a lua no céu.

martha.medeiros@terra.com.br

sábado, 5 de agosto de 2017



05 DE AGOSTO DE 2017
LYA LUFT

Construir, tecer


Alguém, muito gentil como são meus leitores através de tantos anos, me pergunta num encontro casual se concordo com a teoria de que tudo está predeterminado em nossa vida, que apenas seguimos feito manada em direção ao nosso destino. Claro que não!, eu disse. Espírito de manada é outra coisa, é o conforto de não decidir, mas acompanhar a maioria, sem refletir, sem reagir, portanto sem responsabilidade nenhuma (na nossa cabeça, claro).

Talvez seja meio a meio, respondi. Parte, sim, é determinada pela família em que nascemos, amorosa, fria e até violenta; pelas capacidades com que somos dotados geneticamente, mais bonito, mais tortinho, mais lúcido, mais sonhador, otimista ou sombrio, bom em matemática, bom em artes, ou nos dois, por que não? Corajoso ou tímido. Mil detalhes que constituem um ser humano, e que nem sempre podemos mudar.

Outra parte é o que nós escolhemos, e vai aqui de novo uma coluna sobre escolhas. Essa é a parte complicada, porque aceitar que podemos tomar decisões significa assumir alguma responsabilidade. Tão bom se os outros decidem e a gente apenas segue feito cordeiro para o sacrifício ou a festa. Mas, sim, temos escolhas. 

Posso tentar controlar um pouco, ao menos, o mau gênio, se nasci com ele. Posso ser mais humano, mais delicado, menos preconceituoso, mais gentil: olhar, abraçar, aplaudir, elogiar aqui e ali, partilhar de alguma risada ou divertimento, confortar nas horas duras, dar colo ou ombro, ou até um silêncio cúmplice e generoso. Isto é, ver algo além de mim.

Posso tentar caprichar mais na escola, no trabalho, ser menos relaxado ou desligado, ser mais interessado. Posso tentar ouvir boa música. Posso experimentar ler algum livro e sentir que minha cabeça se abre para o mundo, para os outros, até para mim mesmo. Posso tentar esporte ou contemplação. Enfim, posso ver a natureza pela janela de casa, numa trilha ou no ônibus e ver que ainda existe beleza. Posso várias coisas, nem todas difíceis.

Mas não posso tudo: esse é o drama. De verdade, existe o incontornável, o que não posso evitar: abandono de uma pessoa querida, desemprego, doença, morte, essas rasteiras que a vida nos passa. Posso não sair do limite da pobreza, embora lute feito um leão numa sociedade cruel. Mas posso ser mais amoroso. Posso ser melhor comigo mesmo. Posso refletir um pouco, ver saídas, descobrir jeitos, ou, se nada disso ocorrer, tentar não ser um sujeito brutal, desses meninos que se vangloriam: ?Hoje saí a fim de matar alguém, então liquidei uma velhinha na frente da casa dela, um tiro, pum, e fim?.

Mesmo nas piores situações, podemos escolher não matar uma velhinha indefesa no portão da casa dela. Podemos não magoar a pessoa que nos ama, não descuidar dos filhos que de nós dependem, podemos levantar o lixo do chão, podemos não nos matar de bebida ou droga. Podemos pedir ajuda e construir uma vida. Podemos também não poder, se o mal que nos fizeram ? ou nos fizemos ? foi grande demais: aí, quem sabe, algum anjo da guarda etéreo ou humano apareça para nos dar aquele empurrão positivo.

E, se nada disso acontecer, em vez de construir uma vida, podemos viver tecendo a nossa própria mortalha. Sempre podemos alguma coisa. Nisso reside a nossa dificuldade, e a nossa salvação: sermos apenas humanos.

lya.luft@zerohora.com.br


05 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

A intérprete

Nas poucas vezes em que parei pra pensar na profissão de intérprete, me vinha a ideia de alguém fazendo uma tradução simultânea num seminário internacional ou acompanhando políticos em viagens oficiais. Um tédio. O intérprete seria aquele papagaio de pirata sentado ao lado dos protagonistas, mas sempre cortado das fotos.

Até que fiquei amiga de uma intérprete. E descobri funções de seu ofício que nunca haviam me ocorrido. O intérprete é mais do que um tradutor discreto da cena. Ele pode dar voz aos tormentos de uma pessoa desconhecida, e pra isso é preciso mais do que conhecimento do idioma. Exige uma sensibilidade rara.

Ela me contou um pouco da sua rotina, se é que existe rotina numa atividade que obriga a estar em diferentes locais a cada dia, testemunhando situações limite enfrentadas por estranhos que dependem de você para a compreensão do que estão vivendo.

Por exemplo, consultas médicas. Inúmeros imigrantes vivem em países estrangeiros com uma noção muito precária da língua do lugar em que escolheram morar. Pensam que falam inglês, que falam francês, que falam espanhol, mas apenas se defendem, até que surge uma situação específica: tratar uma doença, lidar com exames, passar por uma cirurgia. ?

The book is on the table? não vai adiantar pra muita coisa. É quando a intérprete entra em ação para unir as duas pontas de uma conversa difícil. De um lado, alguém ansiando por uma notícia boa, enquanto que o médico tem um diagnóstico terrível a dar. Minha amiga intérprete já esteve muitas vezes ali, naquele instante e local, traduzindo as palavras que fazem uma vida se modificar para sempre.

Tribunais, hospitais e delegacias são ambientes frios onde nos encontramos naturalmente indefesos e vulneráveis, imagine então sendo monoglota e vendo nosso futuro ser debatido por pessoas com quem não conseguimos nos comunicar. Minha amiga ameniza essa solidão torturante. Ela é convocada inclusive para sessões de terapia. E fala na primeira pessoa (se bobear, até chora), incorporando as confissões do seu cliente no divã, numa busca concentrada em fazer o terapeuta entender a dor de quem mal consegue expressar suas dores pra si mesmo.

Nessa hora o intérprete ganha a importância de um pai, de uma mãe, de um advogado amigo, do nosso médico de família, do padre da nossa paróquia. Alguém que nos compreende e que nos ajuda na difícil tarefa de nos relacionarmos com o mundo. É o personal dos sonhos, um dublê para os momentos em que nossa alma grita, só que ninguém escuta.

MARTHA MEDEIROS


05 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Onde colocar as unhas?

Nunca vi minha mulher cortando as unhas em casa. Se ela faz, é de modo discreto e imperceptível. Seu costume é arrumar no salão.

O meu problema é que deixo as unhas crescerem até furar as meias. E depois não é mais um corte, e sim um abate. Deveríamos receber um saquinho plástico, tipo o existente em avião para desconforto, com uma cordinha e a recomendação desenhada dos possíveis acidentes.

E não há lugar para cortar em paz, sem ser chamado à atenção. Como são lâminas já, cascos já, é enfiar a tesourinha e a unha salta para nunca mais localizá-la. Deve ir para debaixo de algum móvel, assim como copo quando se despedaça.

Após dois meses, são unhas voadoras, unhas morcegos. Criam asas. Daí me lembro por que demoro para apará-las, é sempre o mesmo impasse. Retardo ao máximo e apenas tomo uma atitude quando a minha mulher não aguenta mais e reclama dos arranhões com a carícia dos meus pés na cama.

Não raciocino que o adiamento acentua a força do arremesso. Quanto o maior tempo sem ajeitar, maior a compressão do OVNI.

Não tem muito o que fazer: o cortador é uma alavanca para longe. Não há como reunir a sujeira, o montinho, e botar no lixo. Aliás, lixo é o lugar. Uma vez coloquei na privada e uma amostra grátis restou na tampa para nojo da minha adorável companhia.

Onde cortar é um drama masculino. Tentei podar no quarto e foi uma calamidade. Motivo de divórcio a esposa achar um resquício dos meus pés nos lençóis. Tentei na sala e temo que um dia as ossadas sejam localizadas no tapete felpudo e termine condenado pelo crime de porquice. Na cozinha, nem pensar. No banheiro, com os azulejos brancos, é uma odisseia identificar as foragidas. Mais fácil encontrar uma tarraxa de um brinco do que uma unha. Mais fácil encontrar uma tarraxa transparente de um brinco do que uma unha.

Atinjo a curiosa conclusão de que as unhas mijam de pé. Nunca acertam o vaso. É outra disfunção do nosso universo viril.

CARPINEJAR

05 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Que seja um dia comum


Não tem a ver com casa de ferreiro mas, lá em casa, mais uma vez, comemoraremos o Dia dos Pais com constrangedora modéstia. Apesar de sermos escritores e falarmos sobre criação de filhos o tempo todo, eu e minha esposa temos um certo desdém pelas datas comemorativas. Não celebramos o Natal, a não ser pelos familiares; não damos presentes no Dia das Crianças, pelo que já me sinto julgado neste exato momento; e, uma vez, dormimos às nove da noite na virada do Réveillon.

Somos, portanto, chatíssimos. Acreditamos que a vida é mais divertida quando é uma busca constante por significado, não uma alternância entre a melhor festa da sua vida e Prozac terça à noite. A vida é deliciosamente chata, vamos ao supermercado, andamos de bicicleta, dormimos juntos quando a pequena tem medo, nosso fogão está com uma das bocas entupida.

Datas comemorativas são, por essa lógica, só mais um dia no calendário. São importantes para reflexão, mas não podem condensar todo o significado da celebração. Mãe e pai se é todos os dias, e são dias difíceis muitas vezes.

Você não virou pai porque postou foto no Instagram no segundo domingo de agosto. Você virou pai porque virou noites, trocou fraldas, correu desesperado pro médico na primeira febre, levou na creche e chorou no período de adaptação. Você virou pai quando viu crescer, andar, falar, se machucar. Você virou pai quando seus beijos curaram machucados, quando dormiu completamente desconfortável para que a criança dormisse bem. Você virou pai quando ajudou nas tarefas escolares, levou no pediatra, falou sobre sexo. Você virou pai quando viu que seu filho não é seu. Seu filho é dele mesmo.

O que vai definir se somos grandes pais não é a quantidade de Dias dos Pais que passamos juntos com nossos filhos, mas a quantidade de dias normais. A quantidade de dias úteis. A quantidade de tarefas de tarde, de apresentações escolares, de vezes que tivemos que faltar ao trabalho pra levar no médico.

No Dia dos Pais não espero presentes caros ou almoço extravagante. Quero abraços, como recebo todos os dias. Cartõezinhos escritos à mão, como os que já abarrotam minha carteira. Beijos de bom dia barulhentos, como os que já me acordam todas as manhãs.

A paternidade é a maior experiência humana. Nos faz mais sensíveis, mais generosos, mais humanos. Transforma nossa vida em algo encantado. Que dure mais do que apenas um dia.