sábado, 29 de maio de 2021


29 DE MAIO DE 2021
LYA LUFT

Foice pingando lágrimas

O assunto parece mais do que esgotado, mas seguidamente ainda nos perguntamos: como será a humanidade depois da pandemia que se arrasta e se alastra? Não sei. Acho que ninguém sabe. Alguém quer saber ou melhor nem pensar?

Pois a pandemia, a grande Peste do século, ainda está em plena atividade ceifando centenas de milhares de vidas humanas com sua grande foice, nada dourada, mas pingando sangue e lágrimas. Alguém me diz: "Só na tua cabeça de romancista, um quadro tão horrível".

Pois é, talvez acabemos indiferentes a tudo isso enquanto não atingir alguém próximo, pai, mãe, filho, amigo ou colega. Porque, em quantidades tão espantosas, vamos ficando calejados, o que é trágico e triste.

A Senhora Morte vai se banalizar?

Lembro minha infância encantada numa cidade do Interior, onde os sinos da igreja anunciavam para a comunidade que algum deles tinha morrido.

A impressionante memória me segue e comove até hoje quando penso: batidas espaçadas, lentas em tom grave, foi-se um adulto. Som triste e melodioso, quase musical, foi-se uma criança. E naturalmente na comunidade todos se perguntavam, telefonavam, se entristeciam.

Eu mais me impressionava com a ideia da morte de uma criança. "Foi brincar nas nuvens com os anjinhos", me consolavam. Éramos felizes acreditando em anjinhos fazendo cambalhotas sobre as nuvens brancas e fofas.

Não há nenhum encanto na carnificina atual, que parece que nem mesmo um país bem mais civilizado do que esta nossa pátria amada resolveu inteiramente. E estaremos ficando escaldados? Ou brincamos por negação e medo, o que é mais provável? Outro dia comentei que não aguentava mais nas tevês as imagens de agulhas enfiadas em braços. Alguém se escandalizou: "Estão salvando vidas!".

Tinham razão, fiquei meio constrangida. Então viva a agulhas e braços, "melhor que bundas", comentou ainda um gaiato na sala. Ah sim, graças a Deus.

Então, às vezes, sobrecarregados de preocupação e ansiedade, brincamos com o horror da doença, do despreparo, da politicagem, das disputas, da incompetência e impotência ou desinteresse. E morre gente, e morre gente. Fora os sequelados, e as famílias, onde a dor se multiplica. Pois família é para isso também: dobradas alegrias, dobrados desgostos, dobradas preocupações, e intrigas, e amores, e bondades e pequenas maldades - porque somos tão humanos.

Talvez, voltando ao assunto inicial, vamos acabar: mais duros, frios, xenófobos e egoístas. Ou - quero ser otimista - mais cuidadosos, mais atentos, mais amigos, mais amorosos? Cuidando mais de nós mesmos, por um bom tempo ainda máscara, álcool-gel, sabonete, nada de aglomeração e apertos grupais? Medo: será que ele já teve a doença? Já foi vacinado? Mas temos vergonha de perguntar. Quanto bom afeto desperdiçado.

Esse deverá ser, talvez, o pior legado da Peste, além de mortes e sequelas: o afastamento entre pessoas que poderiam se amar.

Será assim? Nem ideia. Chato e preocupante, cansativo, e uma crônica em que não sei bem o que dizer.

Alguém sabe????

LYA LUFT

29 DE MAIO DE 2021
DAVID COIMBRA

Hambúrguer não é xis

Hambúrguer não é xis. HAMBÚRGUER NÃO É XIS! Misturaram os dois, nesta sexta-feira, que, por algum motivo, foi consagrada como "O Dia do Hambúrguer e do Xis". Causou-me espécie tal junção. É como querer casar Grêmio e Inter alegando que são iguais. Ora, parecidos, sim; iguais, nunca.

Algum hamburguerista militante haverá de argumentar que o hambúrguer veio antes e merece primazia. Está certo, mas isso não elimina a rivalidade. O Grêmio também veio antes do Inter, lembre-se, e a rivalidade Gre-Nal viceja e pulsa.

Além do mais, o hambúrguer não é o primeiro dos primeiros desse tipo de refeição. O pioneirismo cabe ao vulgar sanduíche, criado ainda no século 18 pelo Conde de Sandwich. A história é bem conhecida: o conde era um adepto do carteado. Para não interromper a jogatina, ele pediu que seus criados pegassem duas fatias de pão e, entre elas, introduzissem frios, salames ou mesmo finíssimas fatias de carne. Assim, ele comia à mesa de jogo, com os ases numa mão e o jantar na outra.

O hambúrguer foi uma adaptação de carne moída dessa invenção e, como o nome indica, surgiu na cidade portuária de Hamburgo, na Alemanha, de onde partiram emigrantes para os Estados Unidos. Aí, sim, o hambúrguer se notabilizou. No início, como uma refeição popular e barata. Mas, depois, o célebre restaurante Delmonico?s, de Nova York, o incluiu em seu cardápio, e o hambúrguer virou um clássico. Hoje, qualquer restaurante dos Estados Unidos serve hambúrguer, sempre acompanhado de fritas, que americano tem paixão por batata frita.

O xis, não. O xis autêntico não leva batata frita. Até porque ele é muito maior do que o hambúrguer e seu bife não é de carne moída, é bife mesmo. O hambúrguer é do tamanho de um punho, quase minúsculo, mas ganha do xis em altura.

Uma vez, eu estava em Boston e fui jantar em um pub. Na mesa ao lado da minha, sentaram-se duas moças bem jovens e pediram hambúrgueres. Quando os pratos delas chegaram, espantei-me, exatamente, com a altura do hambúrguer. Havia mais ou menos um palmo entre uma fatia e outra de pão, algo que não caberia em nenhuma arcada dentária humana. Fiquei imaginando como elas fariam para lidar com aquele arranha-céu do qual pendiam tiras de bacon. Então, a mais magrinha agarrou o hambúrguer com as duas mãos, enquanto a outra falava. E ela apertou os pães e comprimiu o conteúdo com energia e, sem hesitação, levou-o à boca e desferiu uma dentada vigorosa naquilo tudo. Fiquei admirado com sua destreza. Concluí que essa habilidade em manejar hambúrgueres verticalmente avantajados é um conhecimento adquirido por dezenas de anos de cultura do país. Faz parte do inconsciente coletivo americano, como ensinaria Jung.

Porque os Estados Unidos, realmente, são a terra dos hambúrgueres e, mesmo que nós tenhamos agora todo o gênero de hamburguerias brasileiras, há de se admitir: os deles são melhores do que os nossos. É praticamente só nisso que os americanos nos ganham em gastronomia. De resto, o tempero e a manemolência tornam a cozinha brasileira inalcançável para eles.

E os Estados Unidos também não têm xis, lembremos. Têm cheese, não xis.

Ele, o xis, fala da nossa natureza gaudéria, revela quem nós somos de fato. Pois, pergunto: o que é o xis? Eu mesmo respondo: são dois grandes discos de pão separados por queijo derretido, maionese e muitos, muitos outros alimentos, como milho e ervilha, inclusive os mais improváveis, como estrogonofe e coração de galinha. São tantos os ingredientes, no recheio do xis, que os pães têm de ser severamente prensados, ou não existiria boca capaz de mordê-los, nem mesmo a daquela garota do pub de Boston. Em resumo: o xis é uma selvageria. É como o espeto corrido - um exagero, uma demasia, uma prova de como nós, gaúchos, somos uma civilização proteica. Nos batemos demais uns com os outros, discutimos demais, questionamos demais e, assim, precisamos de energia demais. O xis nos define. Somos um pouco bárbaros. Não nos venham com grão-de-bico. Não nos venham com suflês. Respeitem as nossas calorias.


29 DE MAIO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Por trás das máscaras

Ela vinha caminhando em minha direção, de rabo de cavalo, óculos escuros e máscara. Graças à educação que recebi em casa, disse a ela "bom dia", como digo a todos com quem cruzo durante uma caminhada, mesmo nunca tendo visto a criatura na vida e sabendo que depois do bom dia virá o nunca mais.

Pois então: eram oito da manhã, eu estava com os fones enterrados nos ouvidos e o pensamento do outro lado do oceano. A música vibrante ajudava a manter as passadas ritmadas do exercício e, ao cruzar por ela, ofereci meu cordial e singelo bom dia. Ela parou, olhou fixo para mim, abriu um sorrisão e respondeu: "Que bom dia, o quê? Não tá me reconhecendo?".

Misericórdia. Não se faz isso com uma desmiolada que já escreveu meia dúzia de crônicas avisando que é péssima fisionomista e que não reconhece ninguém que não esteja em seu habitat costumeiro (sou capaz de passar reto pelo porteiro do meu prédio se o encontrar numa fila de cinema). Não bastasse, o vigoroso Pet Sematary dos Ramones quase impediu que eu escutasse o que a garota continuou falando depois de eu ter confessado que não a reconhecia: "Eu te atendi um ano atrás, quando tu tiveste uma contratura lombar".

A fisioterapeuta! Por graça divina, o nome dela me veio à boca em um segundo, o que atenuou a gafe, minha reputação estava quase salva, faltava só expiar a culpa. "Desculpe, Carolina, desculpe, sou terrível mesmo, um caso perdido." "Deixa disso, tá tudo certo, já faz um ano - e quem é que reconhece alguém de máscara?"

Pois é. Máscara. Óculos escuros. Alguns ainda complementam o disfarce com um boné. Eu nem preciso usar a distância de um ano inteiro como justificativa, a pandemia criou a armadilha perfeita. Se já não sou craque em reconhecimento facial quando a pessoa está com os olhos, o nariz e a boca à mostra, imagina agora, neste planeta de mascarados circulando pelos parques e corredores dos supermercados (outro lugar onde pago micos dramáticos).

Mas descobri que há outros meios de identificação. Quando fui levar minha mãe para vacinar num drive-thru, eu estava de máscara e óculos escuros, dirigindo o carro. Quando chegou a vez dela, dei bom dia à enfermeira e perguntei se poderia fotografar a cena histórica. Ela olhou para mim e respondeu: "Martha?".

Ai, Jesus. Seria uma ex-colega do colégio? Uma prima do interior? Calma, era apenas uma leitora que costuma assistir às minhas lives, tão simpática quanto a fisioterapeuta e demais pessoas normais, que reconhecem umas às outras apesar de todos os obstáculos em frente ao rosto. "Estou usando máscara e óculos escuros, como você me reconheceu?", perguntei a ela. "Pela voz, ué."

Dizer o quê? Bom dia.

MARTHA MEDEIROS

29 DE MAIO DE 2021
CLAUDIA TAJES

O Brasil bizarro

Leitores de quadrinhos vão lembrar. O Mundo Bizarro é uma das aventuras do Super-Homem, lançada no distante 1960, que conta sobre um planeta simetricamente oposto à Terra, desde o seu formato (alô, alô, terraplanistas) até o comportamento de seus habitantes. O tal planeta foi colonizado por um casal formado por um clone defeituoso do Super-Homem, o Super-Homem Bizarro - mas pode chamar apenas de Bizarro -, e sua esposa, Lois Bizarro, clone da Lois Lane, eterna namorada do Homem de Aço. Criado por algum cientista lelé aqui na Terra, o casal de clones vazou do nosso planeta por se sentir rejeitado. A população era mais simpática aos originais Super-Homem e Lois que às suas cópias malfeitas. Dá para entender. Gostar mais dos bizarros seria preferir a famosa restauração feita por uma senhora espanhola de 80 anos à pintura do século 19 que então enfeitava a parede de uma igreja em Borja.

Fato é que o casal bizarro encontrou um planeta para chamar de seu, e o povoou com clones imperfeitos deles mesmos. Os imperfeitos dos imperfeitos, e aí entra bem o clássico bordão do Xaropinho - o mascote do bizarro apresentador Ratinho: rapaaaaaaaaaaaz. Mais tarde, o casal bizarro teve filhos bizarros, e outros personagens do universo do Super-Homem ganharam versões bizarras, entre eles o editor de jornal Perry White Bizarro. A série teve participações especiais de outros personagens bizarros, por exemplo, o Aquaman Bizarro, que não sabe nadar, e o Flash Bizarro, o sujeito mais lerdo do universo. No Mundo Bizarro, o inimigo mais ardiloso do Super-Homem, Lex Luthor, virou um cabra bonzinho.

Corta para o Brasil, maio de 2021. Em plena pandemia, uma multidão de motoqueiros acompanha o presidente pelas ruas do Rio de Janeiro. De capacete, mas sem máscara. Todos em alegre comunhão de perdigotos, e a gente sabe onde isso vai parar. Caso alguém tenha esquecido: nos leitos dos ainda sobrecarregados hospitais e UTIs.

Até aí, nada que espante. Os ajuntamentos têm acontecido a cada trecho de estrada ou ponte abertos ao tráfego pelo país, inclusive os que nada têm a ver com o governo federal. Estivessem as coisas normais, seria normal. Atire a primeira pedra o governante que jamais cumprimentou com o chapéu alheio. Só que são tempos bizarros, e esses ajuntamentos muito bem justificam a CPI, eles e todas as outras barbaridades que a gente vem testemunhando desde março de 2020.

Ia escrever: que a gente tem vivido. Mas seria uma grande falta de respeito com os mais de 450 mil mortos da pandemia e suas famílias.

No ajuntamento dos motoqueiros, entre tantas bizarrices, foi bizarra a cena do repórter Pedro Duran, da CNN - emissora que não faz oposição ao atual governo -, escoltado pela polícia para não ser linchado pela turba. Um rapaz sozinho, ameaçado e corrido por estar, veja que ofensivo, trabalhando. Poucos dias depois, a ditadura da Belarus sequestrou um avião tão somente para prender um blogueiro de 26 anos que atentava, com palavras, contra o governo. Não se sabe o que vai acontecer com ele.

Ninguém precisa concordar com a opinião dos jornalistas. Aliás, esse foi um dos temas dessa página, na semana passada. Mas daí a impedir que trabalhem, vai uma graaaaande diferença. Eu mesma estou sendo processada por um emérito apoiador do atual governo por causa de uma coluna, de maneiras que a queda da estátua de Capão da Canoa me encheu de boas esperanças sobre o meu caso. Sem pensamento mágico, sobreviver de que jeito?

O Brasil bizarro que acha justo um auxílio emergencial de 300 e poucos pilas, enquanto o aumento de salário para o presidente, servidores federais aposentados e militares da reserva vai custar R$ 66 milhões a mais ao ano, é o lugar perfeito para o jornalista Perry White trabalhar - mas não o do Super-Homem, nem a sua versão bizarra. O Perry White que estaria à vontade aqui era o criado pelo saudoso jornal O Planeta Diário, nos anos 1980, um velho homem de imprensa conservador, sempre pronto a vender a opinião do jornal a quem pagasse mais. Naquele tempo, era uma piada, e a gente ria. Hoje, há quem acredite que todo jornalista age mesmo assim, o que justificaria a violência, a força e as medidas judiciais para calar a imprensa.

Seria cômico se não fosse bizarro.

CLAUDIA TAJES

29 DE MAIO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A FÉ E AS OBRAS

Jesus salvou todos. Para acessar a assembleia dos eleitos, a fé é o ticket. Solo fide, apenas a fé, proclamaram muitos reformadores religiosos do século 16. Lutero buscou a base em Hebreus 10,38: o justo viverá pela fé (também na Epístola aos Romanos e em outros trechos).

Os católicos valorizam a fé. Porém, a salvação passa pelas obras boas que evidenciem sua crença. A epístola do apóstolo Tiago enfatiza no capítulo segundo: a fé sem obras é morta. Lutero desconfiava desse trecho ("Epístola de Palha", ele dizia). Chegou a querer afastar a carta do cânone do Novo Testamento. Tiago está próximo de uma concepção religiosa judaica: a prática correta da vida e de ações éticas. O princípio se chama ortopraxia. A Bíblia apresenta muitas concepções ao longo dos séculos em que foi redigida, com disputas entre grupos e diversas elaborações teológicas. Para um historiador, isso é a riqueza do texto.

Encerro a teologia aqui. Quero ir para outra direção. Uso o binômio fé e obras para falar de pessoas que se dividem no campo do amor entre quem proclama e quem faz. Explico-me. Fui criado em tradição católica por muitos anos. Além do substrato romano, ainda tenho a presença de um "espírito de imigrante" na minha família e na região da minha infância e juventude. O que seria? Muitas coisas, mas, principalmente, ênfase na ação. Gente pobre que saiu de um país para construir vida em outro, quase sempre, foca em questões muito concretas e diretas. A vida em meio aos desafios do imigrante é casa, comida, proteção contra violência, poupança, etc. O mundo apresenta desafios: frio, fome, dor e cabe ao ser humano enfrentá-los com defesas práticas. É a etapa inicial de todo Robinson Crusoé: não existe metafísica, apenas física prática. Com o tempo, o náufrago faz reflexões filosóficas e antropológicas, todavia só depois, bem depois...

Creio no amor. Acredito profundamente no sentido amplo do termo. Se me perguntam como evidencio o amor que tenho ou que recebo, sempre será por... obras. Seria coisa de descendente de católicos que emigraram? Teologia e pobreza reforçando atos reais? Acho que sim. Assim, acho linda a frase "eu te amo". Tendo a buscar as boas obras, sem necessidade de declarações românticas.

Você me ama? Avalio o tempo que passa comigo, a atenção que me dispensou, o cuidado (não o valor) do presente dado e a sensibilidade com o que necessito. Isso é amor. "Meu bem, eu daria minha vida por você." Admiro a frase! Já ouvi, inclusive. Acredito em coisas mais prosaicas do que a hipótese de, um dia, se sacrificar por minha pessoa. Acredito na louça lavada, na noite passada em claro com alguma doença, no abraço no momento de dor, no velório compartilhado, na sopa trazida ao quarto e no chá no inverno.

Em quantos Natais vi choros de emoção dizendo que "família era tudo". Pensava, com um toque de ironia: "Na hora de passar a noite no hospital com a matriarca, não parece ter sido tudo". Volto a minha matriz: quero ver obras, não discursos; ações, não retórica. Claro, obras e a frase "eu te amo" são fundamentais. Se tiver de dispensar alguma, largue mão da frase e realize algo. "Eu te amo" sem cuidados é um flatus vocis, para fazer uma tradução simpática em jornal familiar, um som vazio. Sempre me soa como o homem que explora o trabalho feminino em casa o ano todo e, no dia da mulher, dá flores com um cartão. O gesto oscila entre o vazio e a hipocrisia.

Todos sabemos que tanto católicos quanto evangélicos condenam a hipocrisia e a falta de caridade. Usei a metáfora para falar do caso da relação entre as pessoas, não das pessoas com suas crenças. Há muitas maneiras de ortopraxia e é possível ser hipócrita fazendo boas obras também. Eu desejei explicar o vazio de declarações de amor sem atos concretos. No meu universo, creio que não o mudarei, o ideal é a reunião da fala com a ação. Como disse, se precisamos dispensar um, dispense o que não altera o mundo: a frase. Mantenha o ato e seu poder transformador.

A coisa mais comovente é ouvir "eu te amo" da boca da pessoa que coroa atos com a confirmação discursiva. Nesse caso, ouço, emocionado. O verbo amar traz à memória o tempo, a dedicação e tudo mais. A boca emitiu sons e eu trago a lembrança de que aquilo virou ação. É o momento lindo de fusão de significante e de significado, a plena realização romântica de duas vidas significativas que se encontraram no ato e na retórica.

Gosta de lindos discursos? Lembro-me do equívoco do rei Lear, que favoreceu as filhas que falavam bem e deserdou a única que o amava, mas era incapaz de dizê-lo de forma bonita. Aprenda a valorizar Cordélia e sua entrega sincera.

Com os recursos da tecnologia atual, eu posso fazer meu celular dizer e repetir a frase "eu te amo" o dia inteiro. Você se apaixonaria pelo aparelho? A vaidade de Lear o condenou a um fim trágico. A vaidade sempre se alegra com os elogios e as frases retumbantes. O amor é modesto e olha para as mãos que realizam. Quando essa frase for dita dentro da sua orelha, sussurrante, por alguém que consumiu muito tempo dedicado a você, parabéns! Você encontrou o amor. É preciso ter esperança e fé no amor... e nas boas obras.

LEANDRO KARNAL

29 DE MAIO DE 2021
ARTIGO

A reação da JUSTIÇA

UM VÍRUS E UM HACKER COMPROMETEM O ACESSO À JUSTIÇA, JÁ LIMITADO PELA FALTA DE RECURSOS E PELA DESIGUALDADE. É PRECISO VIRAR ESSE JOGO, DEFENDE PRESIDENTE DA OAB-RS

Nos deparamos, diariamente, com falhas históricas, culturais e estruturais que inviabilizam a garantia e o cumprimento de muitos Direitos Fundamentais dispostos no artigo 5º de nossa Constituição Federal. Por isso, precisamos de novas perspectivas para que equações sejam repensadas e reorganizadas.

Embora, em um primeiro plano, o essencial seja rever legislações ou regulamentações, a virada de chave pode sequer alcançar as páginas da Constituição. Aqui, falamos do vírus, que não só mudou toda a estrutura da sociedade, mas também colocou em evidência a aceleração dos processos tecnológicos. E, claro, o Poder Judiciário não ficou para trás. Os avanços nos investimentos para o uso das tecnologias nos sistemas judiciais foram exponenciais, mas tal avanço tecnológico, no Judiciário, não pode ser traduzido automaticamente em acesso à Justiça. A globalização e o avanço tecnológico não são premissas suficientes para garantir aquilo que prega o artigo 5º.

Portanto, a tecnologia não é a resposta imediata para a falta de acesso à Justiça. A equação não possui uma fórmula pronta para que possamos resolver isso de imediato. Quantas pessoas têm acesso a um computador? Quantas pessoas têm acesso à internet? Na advocacia, recebi incontáveis mensagens de colegas, afirmando que não poderiam seguir trabalhando por falta de acesso a essas ferramentas.

Agora, mantemos o tema circunscrito ao acesso à Justiça como expressão de acesso ao Poder Judiciário, sem avaliar o valor superior que a premissa garante ao ser humano e à sua vida consagrada em sociedade, mas restringindo o raciocínio a um questionamento: quem garante o Direito Constitucional de acesso ao Poder Judiciário quando o Poder Judiciário, por si só, está impedido de acessar os próprios sistemas?

Eis mais um vírus que reforça a irrefutável fragilidade de nossas certezas. Quem pode está trabalhando em casa, protegido do risco de contágio, mas, uma atualização de tela, um clique no mouse, uma mudança de aba, o metafórico estalar de dedos, e, pronto, não há mais ambiente de trabalho digital. No momento em que precisamos peticionar no processo eletrônico, e vamos ao site do referido Tribunal, não há mais sequer acesso ao portal. Os dados de milhões de cidadãos podem estar em jogo. Pessoas que queriam efetivar sua vida democrática não conseguem acessar à Justiça.

Ataques hacker já fizeram outras vítimas nos sistemas de Justiça. Outros alvos foram alcançados, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em novembro de 2020, e o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), no início deste ano. Ataques como esses também já atingiram o Departamento de Justiça dos EUA no ano passado, e, ainda, o serviço de saúde da Irlanda, afetaram operações da Toshiba na Europa, a Universidade de Stanford e empresas privadas que optaram por pagar resgate para evitar exposição midiática. Nenhum sistema que esteja na rede mundial de computadores está imune, e sabemos que, em nível nacional, a violação que acometeu o Poder Judiciário não será a última. E, com a Lei Geral de Proteção de Dados em vigor, a tendência é de que as ameaças aumentem.

Precisamos contar com políticas públicas e privadas que tracem estratégias plurais de proteção de nossa vida digital. Posso afirmar, hoje, que proteger a segurança do ciberespaço é somar esforços para a garantia do Direito Constitucional de Acesso à Justiça.

O arquivo que corrompe o sistema pode se infiltrar pela distração humana ao clicar "naquele link" que não deveria ser clicado. Por isso, digo que a transformação exige o comprometimento de todos: governo, sociedade, empresas de tecnologia, academia e outras. Só assim poderemos criar mecanismos e soluções tecnológicas para que o acesso à Justiça não seja inviabilizado por um ataque ou um vírus. Afinal, já estamos todos saturados de vírus.

Por fim, a lição que tiramos desses eventos é a da certeza de que a tecnologia não basta para potencializar o alcance da Justiça. Além das diferenças socioeconômicas, precisamos entender que apenas a partir da análise de soluções disruptivas, da força de trabalho qualificada e dedicada, da infraestrutura e das políticas públicas de cibersegurança poderemos garantir o que versa o artigo 5º. É tarefa de todos nós.


29 DE MAIO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

BOLSONARO É O RESPONSÁVEL PELA BATEÇÃO DE CABEÇA NA VACINAÇÃO

A vacinação contra a covid é uma confusão geral. O racionamento de vacinas nos obriga a distribuí-las segundo critérios que precisam levar em conta o risco de contrair o vírus e a probabilidade de desenvolver as formas mais agressivas da doença, tarefa que sempre coube ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), reconhecido como um dos mais atuantes e bem organizados do mundo.

A experiência do PNI é vasta. Vai desde a aplicação de vacinas em todas as crianças àquelas indicadas para grupos selecionados, como é o caso da gripe, do HPV e das pessoas com o sistema imunológico debilitado.

Pela primeira vez, lançamos um programa de imunização em massa sem vacinas suficientes nem campanhas de conscientização. Ainda assim, não haveria dificuldade para o PNI definir a ordem daqueles que deveriam ser vacinados antes dos outros, de acordo com critérios que valessem do Oiapoque ao Chuí.

O problema é que o PNI foi desestruturado no governo atual. A entrega da cúpula do Ministério da Saúde a pessoas que entendem tanto de campanhas de vacinação quanto eu de canhões e submetralhadoras foi um desastre.

Na ausência de diretrizes claras do ministério, cada cidade fez o que bem entendeu.

Assim, jovens burocratas que trabalham à distância nos hospitais, personal trainers, nutricionistas, psicólogas e médicos que nunca chegaram perto de um paciente infectado foram vacinados antes das faxineiras das UTIs, dos professores, motoristas de ônibus, caixas de supermercado, balconistas de farmácias e padarias e de profissionais da linha de frente, em contato direto com os doentes. Gente que não faz parte do grupo prioritário em sua cidade tem direito à imunização na cidade vizinha.

A decisão de combater uma epidemia é um ato político, responsabilidade inalienável do presidente da República, a autoridade máxima do país. Ele é o responsável maior, seguido pelos governadores e os prefeitos, uma vez que a administração do SUS é tripartite.

Aos médicos, aos epidemiologistas e aos cientistas cabe a função de assessorá-los com conhecimentos técnicos baseados nas melhores evidências científicas.

Vamos lembrar da nossa história do combate à aids. Já no início da epidemia começaram as campanhas do Ministério da Saúde através do rádio e da TV para explicar as características da doença, as vias de transmissão e insistir na necessidade do uso de camisinha (palavra sequer pronunciada em público, até então).

No governo Sarney, a pressão dos ativistas gays conseguiu aprovar uma lei que dava aos doentes o direito a receber os antivirais, pelo SUS. O efeito prático foi nulo: não havia recursos no orçamento do ministério. Além do que, AZT, ddI e ddC, os medicamentos disponíveis na época, eram caríssimos e com pouco impacto na evolução da doença.

No final de 1995, aconteceu uma revolução: surgiram os antirretrovirais de alta eficácia que permitiriam o controle da infecção pelo HIV por muitos anos. O ministro da Saúde, José Serra - que não era médico -, juntou uma equipe multidisciplinar de especialistas, alguns dos quais militantes de partidos políticos da oposição, para orientá-lo.

O grupo concluiu que o melhor caminho seria adotarmos a política de acesso universal à medicação. Pretensão utópica? Como o SUS conseguiria adquirir em larga escala antirretrovirais que custavam mais de mil dólares mensais, para tratar de um único doente?

O ministério jogou o peso do governo numa queda de braço com a indústria farmacêutica, que resultou em descontos de até 90% nos preços. Num dos casos, foi necessário quebrar a patente. Nessa época, a prevalência do HIV no Brasil era igual à da África do Sul. Nós distribuímos os medicamentos, eles não.

Hoje, a prevalência do vírus na população sul-africana adulta é de cerca de 12%. Se tivéssemos optado pelo negacionismo como eles, teríamos 17 ou 18 milhões de infectados, em vez dos 920 mil atuais.

A experiência brasileira serviu de exemplo para o mundo. Mostrou que mulheres e homens com carga viral tornada indetectável pelo tratamento, dificilmente transmitem o vírus nas relações sexuais.

A partir dos nossos resultados, os países africanos da região abaixo do deserto do Saara passaram a receber ajuda das organizações internacionais para tratar os que convivem com o HIV.

Andamos para trás. Já fomos bem mais inteligentes do que hoje.

DRAUZIO VARELLA

29 DE MAIO DE 2021
BRUNA LOMBARDI

ADEUS, VIVINHA

Num momento de grandes desafios e perdas, uma das nossas maiores estrelas vai para o firmamento. Vai se tornar parte de uma grande constelação de gente do bem que já está lá, brilhando no céu, piscando para nós.

Eva Wilma, Vivinha querida de todos, no meio de tantas discordâncias, é uma unanimidade. Uma mulher apaixonada, amiga sincera, grande atriz. Sempre foi coerente em sua vida. Mostrou aqueles valores e princípios verdadeiros que nos fazem seres humanos de dar orgulho.

Vivinha trabalhou com meu pai, Ugo Lombardi, antes de eu nascer, num filme da Vera Cruz chamado Uma Pulga na Balança.

Ela gostava de me contar histórias dele, meu pai sempre foi o queridinho das atrizes.

Muitas décadas depois, ela trabalharia num filme nosso, O Signo da Cidade, com roteiro meu e direção do Riccelli.

Quando a convidamos, ela me disse que o papel era lindo e delicado, e durante as filmagens, ficou muito sensível e usou isso para trazer tantas nuances ao personagem.

Fiquei pensando nos ciclos da vida, nas nossas conexões e em como, muitas vezes sem saber, podemos afetar as pessoas que cruzam nosso caminho. Quantas vidas ela terá influenciado? Quanta gente fazia dela uma referência?

Tantas histórias, segredos, confidências se foram com ela pra nunca mais?

Os tempos andam difíceis para todos. Muitas mortes e sofrimento, tantos precisando de um alento, uma esperança, a sensação de que não estamos sozinhos.

A arte tem sido companheira de muita gente. Entra dentro das casas e se torna um refúgio, um lugar que nos ajuda a viver. Livros, filmes, séries, músicas, pinturas, dentro deles não há isolamento.

Fazemos um tour por cidades que nunca fomos, entramos em museus e exposições inspiradoras, cantamos junto com alguém como se fosse nosso melhor amigo. Vivenciamos cenas de amor de cinema, sem sair de casa. Vivemos perigosamente na ação de uma série de suspense. Mergulhamos profundamente em histórias, ideias e personagens que fazem nossa imaginação viajar.

Quem já não se apaixonou por um artista, não fantasiou um beijo, não se deixou seduzir por suas palavras perfeitas?

Nós, artistas, vamos ficando íntimos de tantas pessoas que não conhecemos, pertencemos a inúmeras famílias que talvez nunca tenhamos chance de visitar, entramos sem saber dentro de sonhos e naquele instante somos reais, mesmo sem estar presentes. E quando algum de nós parte, para tanta gente é como perder alguém extraordinariamente próximo.

A melhor coisa das redes sociais é essa troca constante, essa possibilidade de compartilhar ideias, pensamentos e sentimentos com milhões de pessoas. E ler o quanto estamos perto, unidos, juntos, mesmo sem presença física.

Todos os dias leio milhares de comentários no meu Insta, Face e na Rede Felicidade. Ouço suas vozes, vejo suas fotos, agradeço as coisas lindas que me escrevem com tamanha generosidade.

Fazemos campanhas para ajudar os mais vulneráveis e preservar o meio ambiente. Lutamos por ideais, assim como a Vivinha fez nos anos setenta. A vida tem seus ciclos.

Juntos prestamos homenagem aos que se foram. Em muitos de nós eles continuam presentes.

BRUNA LOMBARDI

29 DE MAIO DE 2021
J.J. CAMARGO

O QUE NÃO SE APAGA

Só conseguimos mensurar o tamanho de alguém na nossa vida pela medida da falta que ele nos faz. Esse critério explica a dificuldade que algumas pessoas têm de morrer, enquanto outras são enterradas no subúrbio do esquecimento, de onde não há nada que as arranque, e o maior lamento é um suspiro dividido entre o dispensável e o constrangido.

Todos descobrimos, ao longo da vida, os modelos com os quais fomos agraciados para construirmos a memória do inesquecível, sem escaparmos da tristeza desalentada dos encontros que nunca teríamos escolhido. Isso assumido, todos compreenderão a naturalidade com que passamos a borracha nalguns personagens, sempre ricos de neutralidade e passividade, esses dois sentimentos que definem o distanciamento emocional e a apatia afetiva.

Periodicamente, sinto vontade de reverenciar a memória dos que deixaram um rastro fundo na minha história pessoal, sem que eu tivesse feito algo para merecê-los, e também por isso são considerados bênçãos do destino, seja lá o que destino signifique para cada um.

Fugindo da família, para que a seleção dos inesquecíveis não sofra o viés da tendenciosidade que os laços sanguíneos impõem, fixemo-nos em amigos, de qualquer idade, que constituem a galeria dos memoráveis. Curtimos falar deles, como se recordar passagens carinhosas pudesse, de alguma maneira, atenuar a dor da falta que sentimos.

Sentei para escrever sobre isso motivado pela proximidade da data da morte do grande Roberto Correa Chem, um dos ilustres membros da minha galeria. Imbatível parceiro das cirurgias reconstrutivas mais complexas, técnico brilhante e criativo, com um senso de humor ácido e debochado como só conseguem os muito inteligentes, plantou ao longo dos seus 66 anos respeito carinhoso, reverência espontânea e naturalmente alguma inveja daqueles que não conseguiam mais do que querer ser como ele.

Almoçávamos juntos até duas vezes por semana, sempre depois das 13h30min, quando, segundo uma teoria dele, o ambiente do refeitório ficava mais agradável "porque os chatos têm fome mais cedo!".

Sempre disputávamos quem pagaria o almoço, com um revezamento marcado pelo bom humor. Naquela quinta-feira, entrei no salão, e ele já estava lá. Sentado de costas para a porta, conversando com alguém. Passei no caixa e me antecipei no pagamento daquele dia. No final, ao descobrir o almoço já pago, fez uma reclamação exagerada e prometeu que, quando voltasse da viagem que faria no domingo, a próxima conta seria dele. Isto combinado, me despedi apressado.

Quantas coisas mais teriam sido ditas se imaginássemos que aquela seria a última vez? Na segunda-feira, com os amigos chorando abraçados a tragédia da sua morte, entrei no refeitório, mastiguei com a dificuldade de engolir pela dor física da perda, para descobrir, no final, que na quinta-feira da última lembrança, antes de sair, ele deixara pago o meu próximo almoço.

Agora, como a comprovar que as melhores lembranças voam no tempo, já se passaram 12 anos desde que Roberto Chem e suas amadas esposa e filha partiram para uma viagem de sonhos a Paris, e por razões nunca bem explicadas mergulharam 4 mil metros no Atlântico, no fatídico voo 447 da Air France, de onde ele só foi resgatado dois anos e meio depois.

Eduardo, seu filho querido e herdeiro de especialidade e caráter, se emociona ao mostrar as fotos das notas de cem dólares que ele conservava intactas protegidas pelo zíper preso ao cinto.

O corpo, com peso reduzido à metade do normal por efeito da desidratação salina, só servia para contrastar com o gigantismo da saudade dos que relembram a dor daquele 31 de maio, como se tivesse doído ainda ontem.

J.J. CAMARGO

29 DE MAIO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

NOVAS FAÇANHAS

Em resposta à tragédia da covid-19, a pesquisa médica desenvolveu-se mundo afora e chegamos rapidamente a diferentes tipos de vacina. Sem alarde ou propaganda (pois a verdadeira ciência é silenciosa) também aqui em Porto Alegre descobriu-se agora uma das causas do contágio pelo novo coronavírus. Em pesquisas na área de periodontia, médicos e odontólogos do Hospital de Clínicas encontraram o novo coronavírus no biofilme dental - a placa bacteriana - de pacientes afetados por covid-19. Essa minipelícula é formada por bactérias, microrganismos e resíduos alimentares e o descobrimento mostra que a higiene bucal é tão importante quanto usar máscara ou lavar as mãos continuamente, além do distanciamento social. A pesquisa encontrou diferentes tipos de fungos e vírus na placa bacteriana, mostrando que o Sars-Cov2 ali se hospeda. Até falar pode contagiar.

Fatos assim são as novas façanhas que o Hino Rio-Grandense descreve como "nossas", agora no campo da ciência. É comum não dar valor ao que esteja perto. Desprezamos aquilo a que estamos habituados, como hoje usamos termos ingleses para serem entendidos em português? É o caso de "correio eletrônico", "telentrega", "fecha tudo" e "dirigindo o carro", que "traduzimos" para "e-mail", "delivery", "lockdown" ou "drive- thru". Em março, um nanossatélite desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Maria foi posto em órbita no Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão, para indicar chuva, temperatura e localização ao mundo inteiro. Até nosso comum GPS guia-se pelo minissatélite de Santa Maria. A denominação "nano" deriva de sua dimensão de apenas 10 x 10 x 22cm, tal qual caixa de sapatos.

Não festejamos, porém, por ter sido desenvolvido aqui como uma das nossas novas façanhas.

Mais do que as façanhas, porém, os lamentos dominam o dia a dia. A CPI do Senado sobre a covid-19 continua como um carnaval de sandices. Cada depoente da área governamental revela novos absurdos. A "capitã Cloroquina" desmente o general-ministro mesmo tendo sido seu "braço direito" no Ministério da Saúde. Mas nada supera o horror que envolve o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Nem a soma dos 18 ministros da era Lula-Dilma investigados pela Polícia Federal reuniu tantos ab$urdo$, envolvendo até o escritório de advocacia de Salles e de sua mãe em São Paulo.

As façanhas brotam como fantasmas!

FLÁVIO TAVARES

29 DE MAIO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

CELEBRAÇÃO NO CAMPO

O Rio Grande do Sul foi pioneiro na mobilização para combater a febre aftosa no país, ainda na década de 1960. Por isso, tem razões de sobra para celebrar o reconhecimento internacional como território livre da doença sem vacinação, oficializado na quinta-feira pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE). O resultado agora colhido é fruto de décadas de esforço e dedicação de produtores, poder público, veterinários e empresas do setor, que se uniram em campanhas de conscientização e de imunização do rebanho, com vitórias mas também reveses, como os surtos de 2000 e 2001. Era quando o Estado estava prestes a ter o selo da OIE, mas teve de retomar a vacinação, após curto intervalo, devido ao retorno inesperado da enfermidade.

O certo agora é que se descortinam novas oportunidades para o setor de proteína animal, principalmente para as carnes suína e bovina. Com este passaporte de qualidade, o Rio Grande do Sul passa a ter a possibilidade de abrir novos mercados, mais exigentes e que pagam mais. Uma variedade maior de produtos também poderá ser exportada, como carne com osso. É uma circunstância que tende a gerar mais renda no campo para os criadores e mesmo mais empregos e investimentos na cidade, pelos efeitos positivos nos frigoríficos e em toda a cadeia de fornecedores de insumos e serviços. Estima-se que, apenas na carne suína, exista o potencial de agregar até R$ 1,2 bilhão em negócios por ano.

Deixar de aplicar a vacina no rebanho, entretanto, também exige uma série de cuidados. Será preciso redobrar esforços na vigilância e rigor nos cuidados sanitários, tanto por parte dos criadores quanto do setor público, para minimizar qualquer risco de retrocesso. Após os episódios frustrantes de 2000 e 2001, o Estado avançou em pontos importantes. Melhorou a estrutura, investiu em digitalização, treinamento e travou-se um longo debate, à espera por dar passos seguros, como o momento certo para retirar a barreira da vacina. A situação epidemiológica tranquila nos países próximos do Rio Grande do Sul é outro fator positivo.

O novo status sanitário, até então limitado a Santa Catarina, agora também é ostentado por Rio Grande do Sul, Paraná, Acre, Rondônia e parte do Amazonas e de Mato Grosso. É, sem dúvida, um marco histórico para a pecuária do Brasil, um dos maiores produtores de proteína animal do planeta. É relevante lembrar que o Plano Nacional de Erradicação da Febre Aftosa data de 1992. Ao longo desse período, atravessou diferentes governos como política de Estado e o resultado, mesmo com percalços pelo caminho, é a inegável certeza de que o país caminha para vencer uma das mais temidas doenças da pecuária mundial.


29 DE MAIO DE 2021
O PRAZER DAS PALAVRAS

O legado de mestre Luft

Neste dia 28 de maio, para comemorar devidamente o centenário do professor Celso Pedro Luft, de quem até hoje sou aluno, escrevo este balanço do legado que ele deixou para todos os que estudam e se interessam pela nossa língua. Comemorar, como diz o termo, implica memória, e acho oportuno que as gerações que até hoje se beneficiam do que ele deixou avaliem o tamanho da dívida que temos para com ele; dito de uma forma que certamente o faria sorrir, conhecem o milagre, mas não conhecem o santo.

Seus livros - Primeiro, temos todas as obras que publicou, obviamente a parte palpável e visível deste patrimônio: gramáticas, dicionários, manuais, ensaios sobre linguagem - a relação é grande demais para esta singela coluna, mas todas elas indispensáveis para quem estuda ou leciona o Português. Não posso viver sem elas; só para constar, tive de comprar pela segunda vez os dois Dicionários de Regência, o Guia/Manual de Ortografia e o ABC da Língua Culta para substituir os exemplares que destruí pelo uso.

Indagação constante - Como todo grande mestre, porém, foi também muito importante - talvez até mais importante - a atitude de constante indagação que ele incutiu em seus discípulos, entre os quais me incluo. Em aula, a cena era clássica: ele parava no meio da fala e se voltava para o quadro- negro, absorto, imerso num de seus habituais silêncios - e voltava deles entusiasmado, compartilhando com a turma uma ideia inovadora sobre aquilo que estava explicando, com maior poder explanatório, deixando claro que não devíamos nos satisfazer com o sistema de regras petrificadas que sufocavam as aulas de Português sob um manto de chumbo.

Banco de dados - Sua influência, porém, passou muito além dos muros da Universidade. Dono de uma sólida formação clássica, era leitor incansável dos autores brasileiros e portugueses de todas as épocas, conhecedor profundo, portanto, de uma tradição que considerava não como modelo ou fonte de regras para a língua atual, mas, bem pelo contrário, como um tesouro extremamente rico de variantes e experimentos coletados ao longo dos quase mil anos de vida do nosso idioma. Como ninguém conhecia o Português mais do que ele, tornou- se uma espécie de oráculo de Delfos, um arquivo vivo e confiável para os pesquisadores, que recorriam a ele para ampliar os dados que precisavam para confirmar suas teses.

Ensino da língua - Apesar de ser criticado por uns e aplaudido por outros pela postura modernizante que adotou no seu livro Língua e Liberdade, de 1985, nunca teve dúvidas sobre a verdadeira função do professor de Português: para ele, a escola sempre será o lugar em que a criança vai aprender a variedade padrão do idioma (que ele chamava de "culta") porque ela, além de ser uma condição sine qua non da sociedade democrática, é a chave de todo o conhecimento e de toda a arte literária da nossa civilização.

Por isso, a tarefa fundamental do professor, segundo ele, é justamente diminuir a diferença entre a língua que o aluno trouxe de casa e a língua que a escola deve ensinar. Esta meta é fundamental, mas deve ser atingida com tolerância, sem correções humilhantes: "Quaisquer que sejam as deficiências ou distância da língua culta padrão que o aluno apresenta chegando à escola, é com esse material disponível que o professor deve começar o seu trabalho. E trabalhar em cima disso, não partir de uma linguagem ideal, contra a língua do aluno, para tentar impingi-la a este". Muitos tomaram essa observação como um ataque à língua culta e uma defesa do laxismo, mas mestre Luft, serenamente, desarmou na lata esta interpretação: "Idealista eu sou, confio nas pessoas enquanto seres perfectíveis: o impulso de ascender cultural, social e economicamente é normal em todo ser humano. Por que não haveria nas pessoas o desejo de ascender em linguagem?".

Legado - Por tudo isso, Celso Pedro Luft deixou uma marca indelével no estudo e no ensino do Português no Rio Grande do Sul - um caráter único, peculiar, que não se encontra nos demais estados. Isso não teria ocorrido sem ele, sem suas virtudes pessoais: Luft foi o único gramático de renome que reuniu a formação sólida de um filólogo clássico, a atitude eternamente investigativa de um cientista, a valiosa experiência de um professor e o bom-senso e a tolerância de um homem sábio. Sem exagero, posso dizer que jamais houve aqui alguém de sua estatura. Tivemos muita sorte em tê-lo entre nós.

CLÁUDIO MORENO

29 DE MAIO DE 2021
+ ECONOMIA

Um prédio com destino insólito

O prédio de quatro andares que por muitos anos abrigou a sede da rede de lojas Empo, na Avenida Assis Brasil, em frente ao Viaduto Obirici, em Porto Alegre, teve um destino inusitado. Tornou-se a mais nova - e a maior - unidade do Anexxo Selt Storage, rede de espaços destinado à armazenagem do que não cabe mais em casa ou nas empresas, o que cresceu na pandemia.

Com dois locais já lotados, a empresa precisava de mais capacidade. O edifício de 5,4 mil m2 tem 500 unidades, entre armários de 1 m2 e minidepósitos de dois a 50 m2. Com investimento de R$ 16 milhões, o prédio passou por remodelação para cumprir padrões internacionais de qualidade. O Anexxo foi criado pelo empresário Alexandre Logemann em 2017 com base na armazenagem popular nos Estados Unidos. A tendência de imóveis compactos no Brasil abriu esse mercado também por aqui. Os boxes podem ser alugados pelo tempo que for preciso e devolvidos quando o espaço extra não for mais necessário.

Na pandemia, o uso cresceu, tanto de pessoas físicas quanto de jurídicas, com a migração de atividades para o home office e devolução dos espaços comerciais que eram ocupados. Segundo a empresa, lojas e restaurantes que foram forçados a encerrar atividades também optaram por não se desfazer do acervo, aguardando o momento de uma retomada. Outra demanda vem do forte crescimento do e-commerce, que usa esses espaços para estoque de mercadorias.

Com a nova unidade, a Anexxo Self Storage soma capacidade total de cerca de 15 mil m2. São mil boxes para locação nesse momento, e há planos de crescimento, com projeção de chegar ao final do ano com cerca de 1,5 mil. O próximo endereço já está definido: será na Avenida Azenha e terá 5,3 mil m2, com outros 500 boxes. A Anexxo já avalia outros dois pontos da Região Sul.

MARTA SFREDO

29 DE MAIO DE 2021
CHAMOU ATENÇÃO

Estátua de pé novamente

Três dias depois de ter caído em razão do vento no Litoral Norte, a réplica da Estátua da Liberdade foi recolocada junto à fachada da loja Havan de Capão da Canoa na noite de quinta-feira.

A rede varejista informou por meio de nota via assessoria de imprensa que seis profissionais da empresa responsável por construir as réplicas se envolveram nos reparos e também "revisaram e aprimoraram os itens de segurança".

A estátua tem cerca de 20 metros de altura e 3,6 toneladas, e acabou tombando inteira, descolando da base de 10 metros de altura - meteorologistas da Somar estimam que foram registradas rajadas de vento de 75 km/h na região. Um símbolo da rede de lojas, a estátua é feita em fibra de vidro.

Em conta em rede social, o empresário Luciano Hang, dono da rede Havan, comemorou a recolocação do monumento em apenas 72 horas e agradeceu à equipe envolvida na operação.

A estátua fica à beira da Estrada do Mar, na entrada secundária da cidade. A estrutura não conseguiu resistir ao ciclone extratropical que varreu a região entre o domingo e a última segunda-feira.

A queda produziu imagem impactante. Ao tombar para a frente, o monumento caiu sobre um poste de energia elétrica, que atravessou a estátua. Ninguém ficou ferido.

A reportagem de Zero Hora questionou a assessoria de imprensa da Havan sobre o motivo para a estátua não ter resistido ao vento, e se considera seguras as demais estátuas colocadas em megalojas do país - são pelo menos 65 réplicas pelo Brasil. Também questionou se as estátuas têm para-raios, mas não obteve as respostas, até a noite desta sexta-feira.


29 DE MAIO DE 2021
MARCELO RECH

Não são o povo

"Nós somos o povo", cantarolavam militantes da extrema direita enquanto invadiam o prédio do Capitólio em janeiro passado.

"Nós somos o povo", também cantarolavam militantes da extrema esquerda que capitaneavam as manifestações nas ruas do Brasil em 2013.

Sempre que ouvir alguém falar em nome do povo, desconfie de intenções autoritárias ou extremistas. Tanto os invasores do Congresso dos EUA quanto invasores de Legislativos brasileiros, entre os quais a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, afirmavam estar tomando para o povo o que pertencia ao povo. Na realidade, eram militantes de grupos radicalizados que se arvoravam, por delírio ou má-fé, em representantes da maioria sem mandato para tanto.

Quem sai à rua para protestar ou dar apoio não é o povo, mas extratos dele mobilizados por líderes políticos. Afere-se a temperatura da maioria silenciosa em pesquisas de opinião, mas ela se expressa mesmo é nas eleições. Um exemplo recente: durante três décadas, a esquerda brasileira teve a hegemonia das ruas e em 2018 acabou surpreendida pela avalanche de votos em um candidato da direita radical. Era a maioria silenciosa rejeitando a esquerda antes tão ruidosa.

Outro exemplo. Nas eleições de 1989, cobri o comício final de Lula na Praça da Sé, em São Paulo. Havia um mar de gente a perder de vista, olhos marejados pelo fervor religioso no seu líder. Lula precisou de mais três eleições para chegar à Presidência, em um figurino menos radical, porque descobriu que aqueles à sua frente na Sé podiam transbordar entusiasmo mas não representavam o sentimento da maioria da população.

Transmitir a imagem de que tem o apoio do "povo" é parte da encenação política para tentar arregimentar a maioria que não frequenta manifestações e nem dedilha com sofreguidão nas redes sociais. Em 1993, ao fazer uma série de reportagens que me valeria a condição de persona non grata em Cuba, acompanhei um comício de Fidel Castro em Havana. Um grupo de não mais de 200 apoiadores se comprimia com bandeirolas diante do palanque, onde eram banhados por holofotes para a TV oficial. Quem via a cena podia supor que uma multidão aclamava Fidel. Nas franjas dessa massa compacta, contudo, o clima era de desencanto. "Vim porque aqui ao menos tem luz", disse-me um participante agastado pelos constantes cortes de energia.

No Brasil da pandemia, os antinegacionistas se recolheram das ruas - embora para este sábado se prevejam concentrações da esquerda, o que contradiz o discurso contra aglomerações. Bolsonaro, que não liga para os contágios, vinha aproveitando para deitar e rolar em suas manifestações, como se tivesse o "povo" ao seu lado. Ele, porém, devia aprender com Lula e Fidel. A ideia de que aquela "bolha" que o aplaude é o povo, por mais sincera e ardorosa que seja, costuma ser apenas uma grande ilusão.

MARCELO RECH


29 DE MAIO DE 2021
JR GUZZO

Por que Lula "beijou a mão" de FHC

Parece que está se tornando um hábito, quando a campanha eleitoral chega mais perto. Tempos atrás, necessitado de uma imagem de "homem de centro" (ele sempre está atrás de uma imagem de "homem de centro"), o ex-presidente Lula fez o impensável: foi à casa do ex-governador paulista Paulo Maluf e ali, na frente de testemunhas e do seu então candidato à prefeitura, praticou o beija-mão completo do monstro mais horrível que o PT e a esquerda brasileira tinham criado na época. Lula apertou a mão de Maluf, deu abraço, tirou foto, como se não tivesse passado anos a fio dizendo sobre o novo amigo as piores coisas que alguém poderia dizer a um adversário.

Lula repete a dose agora, mas com Fernando Henrique. O petista é candidato de novo à Presidência da República, e seu instinto, mais as lembranças das lições de marketing que teve no passado, o conduzem a vender outra vez a imagem de político "moderado". Quem melhor do que Fernando Henrique, nesse mundinho da elite, para lhe dar uma certidão de centrista, civilizado e bondoso para todos os que estão com a vida ganha? Lá se foi Lula, então, apertar a mão, trocar altas ideias e aparecer na foto com um dos políticos brasileiros que mais desprezou, insultou e cuspiu em cima durante toda a sua carreira. Levou, até mesmo, a promessa de que FHC vai votar nele no segundo turno.

Ficou tudo extremamente barato para Lula. Não foi preciso, para embarcar FHC no seu bonde, retirar uma única sílaba da ofensa mais perversa que fez ao novo aliado - a de que recebeu dele uma "herança maldita", na passagem da Presidência em 2002. Também não há informação de que tenha feito qualquer reparo à principal palavra de ordem do PT durante o governo do ex-inimigo: "Fora FHC". Foram esquecidos, na mesma balada, as sucessivas exigências de impeachment feitas contra ele, sua demonização como líder da "direita" brasileira e mais do mesmo.

Se o próprio FHC engole tudo isso quieto e declara o seu apoio público a Lula, o que se pode fazer? Fernando Henrique está dizendo - quando se deixa de lado o discursório marca barbante que acompanha a explicação dessas "estratégias" - o seguinte: vai votar para presidente da República num político condenado legalmente como ladrão pela Justiça brasileira e pelas decisões de nove magistrados diferentes. É isso, em português claro; o resto é conversa. Obviamente, quando as coisas ficam assim, o melhor é não perguntar nada.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes - J.R. GUZZO*

sábado, 22 de maio de 2021


22 DE MAIO DE 2021
LYA LUFT

Afetos na tempestade

"Que qualidades a gente deve esperar de alguém com quem se pretende ter um relacionamento amoroso?", perguntou o jornalista. Incríveis, as perguntas que nos fazem.

Respondi o que acredito: "Aquelas que se esperaria no melhor amigo."

Pode ser um bom critério. Não digo de escolha - pois amor é instinto e intuição -, mas uma dessas opções mais profundas, arcaicas, que a gente faz até sem saber, para ser feliz ou para se destruir.

O resto, é claro, no amor seriam os ingredientes da paixão, que vão além da razão e da sensatez, passageiro terremoto de delícias que faz tudo valer a pena, que promove os maiores erros e os melhores acertos. Salva-nos eventualmente de um desacerto irremediável a sensação que vem das entranhas, ou das tripas da alma, ou do inconsciente: o nosso instinto de sobrevivência.

A velha misteriosa intuição, que às vezes falha nessa onda de euforia e susto. Eu não quereria como parceiro de vida quem não pudesse querer como amigo. E amigos fazem parte de meus alicerces emocionais: são um dos ganhos que a passagem do tempo me concedeu. (Por isso, também, cada perda é uma pequena tragédia pessoal.)

Falo daquela pessoa para quem posso telefonar não importa onde ela esteja, nem a hora do dia ou da madrugada, e dizer: "Estou mal, preciso de você". (Ainda não tive de recorrer a isso, mas, se precisar, sempre haverá alguém, e isso me conforta. E pode ser um filho adulto.) E ele ou ela estará comigo pegando um carro, um avião, correndo alguns quarteirões a pé, ou simplesmente ficando ao telefone o tempo necessário para que eu me recupere, me reencontre, me reaprume, não me mate, seja lá o que for. Não precisamos sondar nossas tripas, interrogar nosso inconsciente, para ter um amigo e confiar nele. Em geral um olhar bom, uma conversa sossegada ou interessante, pequenas maneiras de alguém novo que se instalar na nossa vida. Com sorte, para alegria.

Mas aí vem a realidade dura: o lixo na rua ou pessoas tratadas como se fossem, a mulher parindo na calçada, as multidões enlouquecidas, as ilhas dos amantes. As brigas dos políticos, a corrupção, a vaidade, a omissão e agora a pandemia que rasteja sobre o planeta como um imenso inseto negro e carnívoro.

Por um instante a gente desliga os aparelhos, finge que nada disso existe, curte sua pequena alegria pessoal, entra no whats, no insta, ou olha as árvores tão verdes e luminosas... e vive. Do jeito que dá. Esquece as decepções, as falhas, sobretudo nossas, onde poderíamos ter agido melhor, falar na hora de falar, calar quando se devia calar... mas a gente não sabia.

Na luz que se filtra na paisagem, viramos crianças com aquele dom do encantamento, que depois serão adolescentes com suas perplexidades, euforias e medos, adultos com deveres sem conta, e por fim velhos que, se forem um pouco sábios, curtem a fase da contemplação... como faziam em meninos. A ventania (a vida real?) chega atropelando tudo: recolhem-se crianças e coisas e se olha a tempestade atrás da janela. Logo ali o grande mundo mói a vida com suas engrenagens cruéis.

Mas, naquele momento, naquela redoma de vidro simples na chuva cotidiana, fingimos estar no castelo da Bela Adormecida, ou na casa dos sete anões, ou abraçados a um melhor amigo.

LYA LUFT

22 DE MAIO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Vamos comprar um poeta

Sou obrigada a dar o crédito à maldita pandemia: estou lendo bem mais. Ando faminta pelas histórias dos outros, pela vida em sua amplitude e assim vou atualizando as versões de mim mesma. A leitura continua me ajudando a compreender quantos mundos cabem num mundo só. Como foi importante ler Os Supridores, do José Falero, uma espécie de Tarantino da literatura brasileira, e entender as entranhas da periferia, a atração inevitável pelo lado B, quem são essas criaturas que a gente julga sem conhecer. 

Foi bonito passar uns dias na companhia de O Avesso da Pele, livro marcante e sensível de Jeferson Tenório, e se colocar na pele do autor, na pele da maioria de nós, sair da bolha branca e parar de defender asneiras em nome de uma supremacia ultrapassada. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, nasceu clássico, com os dentes cravados na nossa ancestralidade e nas injustiças que ainda perduram, resultando num texto impactante. Não pergunto mais às pessoas "como tem ido?". Pergunto: "o que tem lido?". Pandemia pode rimar com epifania, se tivermos alma de sobra. Em vez de contabilizar mortos, podemos contabilizar ressuscitados. Entro nesta conta. Como tenho renascido.

Por fim, chego a Vamos Comprar um Poeta (editora Dublinense), livrinho com menos de 100 páginas, livraço para guardar na memória. A história criada pelo português Afonso Cruz é narrada por uma menina de cerca de 12 anos, que vive numa família regida por números, estatísticas, lucros, e que pede um poeta para levar para casa, como quem adota um cão, um gato, um animal de estimação. Uma fábula divertida, educativa e nada chata: não há uma única linha que aborreça. Chatos são os que não transcendem, não atravessam paredes, defuntos caminhantes rumo a um futuro medieval. Ter um bom livro em mãos é a prova física da esperança.

Li Vamos Comprar um Poeta em pouco mais de uma hora e ganhei anos extras de vida. Exagero, claro. Ninguém convence alguém a adquirir um livro sem fazer um pouco de alarde. Mas é preciso. O materialismo venceu. Os símbolos de status nos roubaram a pureza da rima. Os rendimentos de nossas aplicações valem mais do que uma janela inventada. O número de seguidores no Instagram importa mais que a ilusão de um amor. Robôs falam conosco pelo Twitter e respondemos. Roubam nosso tempo pelo WhatsApp e só configuramos como golpe quando perdemos dinheiro.

Para que serve a poesia? Para que serve a cultura? Caso você ainda se importe, entre em uma livraria de rua, compre seu poeta e, se sobrar uns trocados, leve também Pequena Coreografia do Adeus, da paulistana Aline Bei, que é um sol de delicadeza. Perdeu, pandemia. Com máscara, vacina e sensibilidade, venceremos.

MARTHA MEDEIROS