terça-feira, 27 de abril de 2010



7 de abril de 2010 | N° 16318
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Anos Dourados

No dia 21 de abril de 1960, repicaram os sinos de todas as igrejas de Viena. É que naquele dia nascia Brasília, a mais jovem capital do mundo. Cinquenta anos depois, uma sombra de corrupção e de escândalo paira sobre a belíssima cidade do Planalto Central, mas mesmo ela não pode apagar a aura de esplendor que a cerca.

Brasília não é um capítulo solitário de nossa História. É a culminação de uma soma de fatores sociológicos e políticos que levaram uma nação a compreender a própria grandeza. De repente, pela visão e a ousadia de um presidente da República, a civilização litorânea de tantos séculos venceu o continente das terras altas e além, para identificar sua própria magnitude.

Planalto e Amazônia deixavam de ser territórios, ou abandonados, ou interditos, para se converterem em parcelas de um país com a vocação do desenvolvimento.

Em paralelo, ocorriam extraordinárias mudanças no cotidiano da nação. Não era apenas uma metrópole que surgia no áspero Cerrado. Enquanto se erguiam palácios, templos, conjuntos funcionais, no outrora esquecido centro do Brasil, o país descobria seu destino.

Um grupo de jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre eles um gênio chamado Antônio Carlos Jobim, inventava a Bossa Nova, que logo iria conquistar o mundo. O Cinema Novo iluminava as telas com um modo inaugural de contar o homem e o universo. Éramos campeões mundiais do futebol à pesca submarina.

Grandes estradas rasgavam as selvas, como artérias de um corpo gigantesco que se redescobria. Hidrelétricas domavam rios, levando luz e força ao que antes era treva. Um enorme número de fábricas lançava nas ruas os produtos da jovem indústria automobilística nacional.

Pelas avenidas, podiam-se ver Romi-Isettas, Volkswagens, DKWs, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys, JKs, jipes e lambretas.

Tudo isso era o efeito Brasília. Quanto mais subiam as torres do Congresso, quanto mais Juscelino Kubitschek se fixava no Palácio da Alvorada, quanto mais o Brasil alargava o seu desenvolvimento, mais a cidade se afirmava como capital de todos os brasileiros. Vivi tudo isso. Sei do que falo. Conheci de perto os Anos Dourados.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia.

sábado, 24 de abril de 2010



25 de abril de 2010 | N° 16316
MARTHA MEDEIROS


Terapia do joelhaço

Extra, extra, só existe o seu desejo. Esse troço que você tem aí dentro da cachola só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo

Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me ouviu com a mão apoiada no queixo por 10 minutos, talvez 12 minutos, até que me interrompeu e disse: Tu estás enlouquecendo.

Não é exatamente isso que se sonha ouvir de um psiquiatra. Se você vem de uma família conservadora que acredita que terapia é pra gente maluca, pode acabar levando o diagnóstico a sério. Mas eu não venho de uma família conservadora, ao menos não tanto.

Comecei a gargalhar e em segundos estava chorando. “Como assim, enlouquecendo??”

Ele riu. Deixou a cabeça pender para um lado e me deu o olhar mais afetuoso do mundo, antes de dizer: “Querida, só existe duas coisas no mundo: o que a gente quer e o que a gente não quer”.

Quase levantei da minha poltrona de couro marrom (também tinha uma) para esbravejar: “Então é simples desse jeito? O que a gente quer e o que a gente não quer?

Olhe aqui, dr. Freud (um pseudônimo para preservar sua identidade), tem gente que faz análise durante 14 anos, às vezes mais ainda, 20 anos, e você me diz nos meus primeiros 15 minutos de consulta que a vida se resume ao nossos desejos e nada mais? Não vou lhe pagar um tostão!”

Ele jogou a cabeça pra trás e sorriu de um jeito ainda mais doce. Eu joguei a cabeça pra frente, escondi os olhos com as mãos e chorei um pouquinho mais. Não é fácil ouvir uma verdade à queima-roupa.

“Tem gente que precisa de muitos anos para entender isso, minha cara”. Suspirei e deduzi que era uma homenagem: ele me julgava capaz daquela verdade sem precisar frequentar seu consultório até ficar velhinha. Além disso, fiz as contas e percebi que ele estava me poupando de gastar uma grana preta.

Tá, e agora, o que eu faço com essa batata quente nas mãos, com essa revelação perturbadora?

Passo adiante, ora. Extra, extra, só existe o seu desejo. É o desejo que manda. Esse troço que você tem aí dentro da cachola, essa massa cinzenta, parecendo um quebra-cabeças, ela só lhe distrai daquilo que realmente interessa: o seu desejo.

O rei, o soberano, o infalível, é ele, o desejo. Você pode silenciá-lo à força, pode até matá-lo, caso não tenha forças para enfrentá-lo, mas vai sobrar o que de você? Vai restar sua carcaça, seu zumbi, seu avatar caminhando pelas ruas desertas de uma cidade qualquer. Você tem coragem de desprezar a essência do que faz você existir de fato?

É tão simples que nem seria preciso terapia. Ou nem seria preciso mais do que meia dúzia de consultas. Mas quem disse que, sendo complicados como somos, o simples nos contenta? Por essas e outras, estamos todos enlouquecendo.


Demos graças a Grace

Exposição em Londres reverencia Grace Kelly, a atriz que encerrou a carreira no auge para virar princesa e assim congelou para sempre
sua imagem de clássica perfeição

Kobal/Other Images
ACIMA DO TEMPO



Grace numa nuvem de chiffon, no antológico vestido de Janela Indiscreta, e fazendo de escudo a bolsa famosa (na foto à direita): elegância suprema

Em seu apogeu, Hollywood especializou-se em criar dois tipos de divindades femininas, arquétipos de mulheres cravados no fundo da mente coletiva da humanidade. Uma era a diva: temperamental, volátil, complicada, erótica, dionisíaca.

Em outras palavras, Marilyn Monroe. A outra era a deusa: clássica, etérea, enigmática, apolínea. Em resumo, Grace Kelly. As mulheres intuíam que os homens desejavam Marilyn, mas no fundo elas sempre quiseram ser Grace.

Ou, pelo menos, ter as roupas dela. Sinônimo de classe, porte, graciosidade e elegância supremamente acima de tendências, a deusa Grace (de pés de barro: reparem nos dedos largos e nas unhas achatadas na foto à esquerda) chegou a batizar oficialmente em 1955, no auge do sucesso, um jeito de vestir: o "visual Grace Kelly", manual de bom gosto e bom comportamento que consistia basicamente, na avaliação do jornal especializado WWD, de "vestidinhos acinturados, tailleurs bem desenhados e, à noite, longos de chiffon".

Perfeita de roupa de baile ou calça e camisa masculinas, Grace atingiu o status reservado apenas àquelas privilegiadas para quem a elegância brota como uma fonte interior e atemporal.

Na foto à direita, por exemplo, fora as luvas brancas, tudo poderia ser usado hoje: os óculos escuros, as sapatilhas, o tubinho seco, o casaco volumoso e, claro, a bolsa – ela mesma, a Kelly original, tão exibida hoje por celebridades que de Grace não têm nada, delicadamente empunhada por ela para proteger da curiosidade dos fotógrafos os sinais de gravidez de Caroline, sua primeira filha do antológico casamento com o príncipe Rainier de Mônaco.

Esse estilo clássico reina soberano na exposição de roupas, acessórios e fotos da atriz que virou princesa recém-inaugurada no Victoria and Albert Museum, de Londres. "Poucas pessoas merecem ser chamadas de ícone. Grace Kelly com certeza é uma delas", diz Jenny Lister, curadora da exposição.

Filha de milionário que se fez do nada, educada em boas escolas, Grace Kelly tinha os fundamentos básicos para se transformar na beleza clássica por excelência. Pele cremosa, maxilares bem desenhados, nariz perfeito, sobrancelhas intermináveis, olhos azuis bem separados por alguns estonteantes centímetros e uma expressão que podia significar "vem" ou "pare", ou alguma coisa entre os dois.

Incentivada pela mãe nadadora e pelo pai remador e campeão olímpico, estudou balé, aprendeu tênis, fez equitação e se aprimorou em tudo o que se esperava de uma jovem de família rica na época. Menos, evidentemente, se tornar atriz. Todas as resistências foram vencidas sem dramas nem escândalos, como tudo o que sempre fez.

De repente, como num passe de mágica, Hollywood assistiu à explosão do fenômeno Grace Kelly. A beleza gelada e o guarda-roupa quentíssimo eclodiram em 1955, quando Grace tinha 26 anos, num dos três filmes que fez com Alfred Hitchcock, o clássico Janela Indiscreta, em que surge como uma visão de esplendor no vestido de corpete de veludo negro e imensa saia esvoaçante de chiffon branco.

Obra de Edith Head, a grande figurinista da Paramount, a quem Hitchcock encomendou trajes que lembrassem as etéreas bonecas de porcelana de Dresden.

A mesma Edith desenharia o longo de cetim verde-azulado com que Grace Kelly deslumbraria em três ocasiões (sim, ela repetia roupas): numa pré-estreia, em capa da revista Life e ao ganhar o Oscar de melhor atriz. Mas foi a maior concorrente de Edith, Helen Rose, da MGM, quem no ano seguinte produziu (com 35 costureiras e bordadeiras) seu vestido de casamento com o príncipe Rainier, uma exaltação à pureza núbil que provocou piadinhas cínicas ("Sou tão velho que conheci Grace Kelly desde antes de ela ser virgem").

Numa reviravolta acompanhada no palco mundial em escala que só seria comparável, posteriormente, à despertada pela princesa Diana, em 1956 Grace saiu da cena de Hollywood e entrou numa realeza meio recauchutada, a de Mônaco, mas suficientemente pomposa para despertar todos os infinitamente repetidos clichês sobre contos de fada.

Com uma princesa de beleza deslumbrante vinda diretamente de Hollywood quase na sua porta, os grandes costureiros de Paris fizeram fila para vestir Grace – e pela primeira vez ela começou a usar alta-costura, com a classe de sempre. É desse período a maioria dos cinquenta vestidos mostrados na exibição, todos emprestados da espetacular coleção abrigada no palácio de Mônaco.

Sua Alteza Sereníssima usava Balenciaga, Givenchy e, principalmente, Dior, grife dirigida na época por Marc Bohan. "Era uma ótima forma de divulgar as coleções", diz a representante da Dior no Brasil, Rosângela Lyra, para quem, "guardadas as devidas proporções, podemos dizer que Carla Bruni é a versão moderna de Grace Kelly".

Grace Kelly, já deu para perceber, não era santa. Por falta de vergonha na cara (segundo as traídas), para conquistar a atenção masculina que nunca teve do pai ou simplesmente porque gostava de homens bonitos, o "vulcão coberto de neve", na definição de Hitchcock, vivia em erupção.

A lista, entre apócrifa e confirmada, inclui quase todos os atores com quem contracenou (William Holden, Clark Gable, Gary Cooper, Bing Crosby, Marlon Brando, Ray Milland), o presidente John Kennedy e, depois de casada, Aly Khan e o xá do Irã. Isolada num casamento de fachada, limitada pelas exigências do cargo e com os filhos crescidos, a certa altura Grace Kelly passou a beber demais e a se queixar da vida.

"Eu sei onde tenho de estar todos os dias pelo resto da minha vida", comentou, chorando, com o produtor John Foreman. Em 14 de setembro de 1982, dois meses antes de completar 53 anos, sofreu um derrame na direção de seu carro e despencou de um abismo na Riviera Francesa. Foi o tempo justo para evitar a decadência que se avizinhava e entrar no panteão dos mitos.

Fotos Philippe Halsman/Magnum/Latin Stock, Sipa Press e Camera Press/Other Images
COMO UMA DEUSA



Escultural no longo de cetim que repetiu em três ocasiões (à esq.), falsamente virginal entre as madrinhas no casamento com o príncipe de Mônaco e outonal, no palácio, vestindo Dior (à dir.): ícone de estilo


Lya Luft

Os pais do lixo

"O odor de suas madrugadas não era fantasia, nem era o mundo que cheirava mal devido à corrupção: era o chão de seus lares e seus sonhos apodrecendo havia anos debaixo de seus pés"

Ilustração Atômica Studio

Na coluna passada, de título Os Filhos do Lixo, comentei uma reportagem em que apareciam crianças nossas catando lixo com suas mães, que, por sua vez, o tinham aprendido com suas mães e avós. A coluna foi enviada para a revista horas antes de iniciar-se a tragédia dos deslizamentos no Rio de Janeiro, em Niterói, em São Gonçalo. Niterói tornou-se emblemática.

Talvez porque ali não se tratava apenas de casas e de centenas de pessoas instaladas em locais altamente perigosos – coisa sabida pelas autoridades havia anos e repetidamente informada –, mas porque ali, no chamado Morro do Bumba, o terreno era um lixão. Lixo. Nem ao menos um relativamente higiênico aterro sanitário, que, mesmo assim, só poderia ser usado como assento de moradias décadas depois. Lixo amontoado, nada mais. Podridão que o tempo foi disfarçando com terra e algumas plantas.

Hoje, falando em "pais do lixo", não me refiro aos que o produziram, mas aos que ali o deixaram, ou mandaram jogar e, em lugar de cuidar, vigiar, manter higienizado e isolado, ignoraram, permitindo que o recanto emporcalhado se cobrisse de casas, de lares. Produzir lixo é inevitável. Tratar o lixo de maneira científica, técnica e civilizada, que o torne inofensivo ao ser humano, é dever básico de qualquer autoridade.

E raramente é feito com correção e eficácia. Em Niterói, gerações de prefeitos e outros foram até enfeitando a imundície: luz ali, quem sabe um caminhozinho asfaltado aqui; enfim, facilidades para os moradores do lixo – que de nada sabiam.

Todos ignoravam que o odor de suas madrugadas e noites não era fantasia, nem era o mundo que cheirava mal devido à corrupção, impunidade, desinteresse e cinismo – era o chão de seus lares e seus sonhos apodrecendo havia muitos e muitos anos debaixo de seus pés.

A água que escorria ali não era algum romântico olhinho-d’água, era a exsudação desse apodrecimento, que tem o nome repulsivo de chorume. Pois no chorume viviam, caminhavam, brincavam, os moradores desse conjunto de casas. Ali havia igrejinha, pizzaria, bares. Gente. Humanidade florescia ali, aos vapores do lixo, e – repito ainda outra vez – sem saber disso.

Mas as autoridades sabiam. E nenhuma, que se saiba, fez nada de efetivo, talvez porque neste país gente no lixo não é novidade, centenas e milhares de casinholas se enfileiram entre colinas de imundície e detritos a céu aberto. Recebo a notícia de bairros inteiros de condomínios, edifícios de muitos andares, construídos sobre lixo, talvez aterro sanitário, mas sem os muitos anos devidos para que tudo se solidifique e quem sabe seres humanos possam então viver lá em cima.

Resultado: paredes rachadas, assoalhos afundando, o mundo afundando. Quem reclama é apontado com o dedo: esse perturba a ordem, sopra vento na calmaria, faz espalhar o mau cheiro e a má fama, está incomodando. Fora com ele. Nós queremos continuar sendo a oitava economia do mundo, ou algo parecido. Queremos ser os bacanas.

Espero que o lixão de Niterói seja convertido, de um lado, em um monumento à dor e, de outro, em um lembrete da cruel omissão dos que deveriam cuidar do seu povo. Que os que ali tudo perderam sejam verdadeiramente orientados, amparados pelo tempo necessário.

Que não se romantizem mais as favelas, onde estariam a verdadeira raça brasileira, a verdadeira música, a verdadeira comida, a verdadeira beleza: tudo isso seria bem mais saudável, feliz e bem aproveitado em condições de vida civilizadas, sem violência, sem encostas periclitantes, sem jovens e pais de família assassinados nem famílias desaparecidas. Sem tanta dor desnecessária.

Não vamos esquecer a tragédia, nós que esquecemos tão depressa. Nem vamos enfeitar a desgraça, disfarçar a omissão. Vamos ser pais de coisas positivas, mesmo produzindo lixo. Vamos nadar contra a correnteza. Vamos agir com eficiência e honradez.

Vamos honrar nossos cargos públicos, nossos nomes, nossos ofícios. Vamos colocar o bem público acima do nosso bolso, da nossa cobiça, do nosso desejo de mais poder. Vamos cuidar da nossa gente. Vamos ser gente.

Lya Luft é escritora


O derrame das mulheres jovens

Elas tiveram um AVC antes dos 30 anos, e sobreviveram. O que é preciso saber para se proteger da doença que mais mata no Brasil

CRISTIANE SEGATTO - Renato Stockler
VOLTA POR CIMA

Gislaine (de blusa preta) teve um AVC aos 29 anos. Célia, aos 23. Amanda, aos 27. Fernanda, aos 31. Jovens e ativas, elas foram imobilizadas por um derrame. E voltaram

A engenheira Fernanda Tescarollo, de 33 anos, a moça de vestido preto na foto ao lado, é um exemplo da atual geração de mulheres superpoderosas. Perfeccionista, independente, duas vezes divorciada, progrediu rápido na profissão graças à combinação de trabalho duro e ambição. Ainda hoje, tem várias ambições.

Quer voltar a lavar o rosto com as duas mãos. Quer ser capaz de imitar o Cristo Redentor, com os braços bem abertos, para corresponder a um abraço. Paulistana, mas apaixonada pelo Rio de Janeiro, quer se equilibrar sobre o salto alto e voltar a sambar na quadra da Mangueira. Exatamente como fazia até 2008, quando um acidente vascular cerebral (AVC) a obrigou a parar tudo e a rever tudo. “Se você não aprende a parar, a vida te para”, diz.

Fernanda tomava pílula anticoncepcional desde os 16 anos. Além disso, tinha crises frequentes de enxaqueca. Três vezes mais comum em mulheres, a enxaqueca aumenta o risco de derrame.

Assim como a pílula. Na véspera do AVC, estava com dor de cabeça. Fernanda é funcionária de uma multinacional que fabrica lanternas e faróis para a indústria automobilística nacional e vivia um período de forte pressão. Tomou um analgésico e foi dormir. De manhã, continuava com dor.

Enquanto se trocava para ir trabalhar, despencou no quarto. Sofreu um AVC extenso na região do lobo temporal direito. Os médicos precisaram submetê-la a uma cirurgia delicada. Uma parte da calota craniana foi retirada para que o cérebro tivesse espaço para inchar. Se isso não fosse feito, o edema cerebral aumentaria a pressão intracraniana e Fernanda morreria.

Só depois de dois meses, a calota craniana foi recolocada. “Diante da gravidade do caso, a recuperação de Fernanda foi maravilhosa”, diz o neurologista Marcelo Annes, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

Em 2008, o AVC provocou 97 mil óbitos no Brasil.

Ele mata mais que infarto, violência e acidentes
Fernanda faz parte de um grupo pouco conhecido de vítimas do AVC: o das mulheres jovens. Nos últimos cinco anos, 32 mil mulheres de 20 a 44 anos foram internadas nos hospitais do SUS por causa de AVC. Entre os homens da mesma faixa etária, houve 28 mil internações por AVC. A diferença é de 14%.

Em todos os outros grupos etários (até os 19 e depois dos 50 anos), mais homens receberam tratamento. A partir dos 80 anos a situação voltou a se inverter. Como as mulheres são mais longevas, houve mais tratamento em pacientes do sexo feminino.

Na verdade, o total de jovens vitimadas pela doença pode ser ainda maior. Não se sabe quantas foram atendidas na rede privada e quantas simplesmente não receberam tratamento.

Parte dos casos de AVC na juventude e na meia-idade é explicada pela exposição, cada vez mais precoce, a fatores de risco como hipertensão, colesterol alto, obesidade, diabetes. Isso ocorre em ambos os sexos. Mas existem situações capazes de aumentar o risco de AVC pelas quais só as mulheres passam. Eis as principais.

Uso de pílula anticoncepcional

Na maioria das mulheres, a pílula é segura. Se não fosse assim, todos nós conheceríamos alguma moça que teve um AVC depois de tomar anticoncepcional. Mas as que usam esse tipo de contracepção precisam saber que os hormônios aumentam a capacidade de coagulação do sangue.

O mesmo pode ocorrer quando a mulher faz reposição hormonal na menopausa. Quem toma pílula ou faz reposição hormonal está mais sujeita a sofrer de trombose (formação de coágulos no interior de um vaso sanguíneo). E a trombose pode levar ao AVC. Algumas condições genéticas favorecem a ocorrência desse problema.

Muitas vezes, porém, o AVC sofrido por uma mulher jovem é o primeiro da família. Foi o caso da engenheira Fernanda. “Em 99% dos casos, as moças não sabem que têm predisposição genética”, diz a neurologista Gisele Sampaio Silva, do Hospital Albert Einstein.
Fotos: Renato Stockler/Na Lata



EM CIMA DO SALTO
Fernanda (à esq.) na casa dos pais, em Itatiba, São Paulo. Ela quer voltar a sambar na quadra da Mangueira. Amanda (à dir.) numa casa noturna, em São Paulo. Ela celebra a vida dançando

Anticoncepcional e cigarro

A combinação de pílula e cigarro eleva em oito vezes o risco de AVC. O sangue dos fumantes torna-se mais propenso à formação de coágulos e a nicotina também enrijece as artérias que irrigam o cérebro. Logo, mulheres que fumam não devem tomar pílula. Quantas sabem disso?

“Muitas fumam e não contam ao ginecologista”, diz a neurofisiologista Maristela Costa, do Hospital do Coração (Hcor), em São Paulo. O inverso também é verdadeiro. Muitos médicos receitam pílula e não perguntam se a mulher fuma.

A gerente de produto Amanda De Tommaso Oliveira, de 31 anos, fumava desde os 15. Aos 27 anos, consumia um maço por dia e não tomava pílula. Para tentar reduzir um cisto no ovário, o ginecologista receitou-lhe um anticoncepcional.

Após dez dias de uso, Amanda teve um AVC. Estava em casa, assistindo à TV, quando o braço esquerdo começou a ficar pesado. O desespero aumentou quando Amanda tentou pedir ajuda à irmã Isabela. Os pensamentos fluíam, mas ela era incapaz de pronunciar qualquer palavra.

Amanda sofreu um AVC pequeno na região frontal do cérebro, no lado direito. Passou três dias no hospital. Logo nas primeiras horas, a fala e os movimentos foram voltando. Desde o derrame, nunca mais colocou um cigarro na boca. Hoje leva vida absolutamente normal. Mas a experiência deixou marcas profundas.

“O AVC não estava no meu script, mas me ensinou a valorizar cada instante”, diz Amanda. Em vez de pensar naquilo que quer ter, pensa no que já tem. “Tenho casa, família, amigos e pernas que me levam aonde eu quero. Já tenho tudo.”

Gordura abdominal

Novas evidências sugerem a existência de outro fator que torna as mulheres mais suscetíveis ao AVC: o acúmulo de gordura na região da cintura. Em fevereiro, um estudo apresentado na reunião anual da American Stroke Association chamou a atenção para esse fato. Na faixa etária dos 45 aos 54 anos, o AVC já é duas vezes mais comum em mulheres do que em homens nos Estados Unidos.

A conclusão foi baseada nos dados de mais de 2 mil participantes da pesquisa nacional sobre saúde e nutrição realizada em 2005 e 2006. “Nossa hipótese é que a gordura abdominal (mais comum nas mulheres) esteja aumentando o risco de AVC entre elas”, disse a ÉPOCA a neurologista Amytis Towfighi, da University of Southern California, em Los Angeles. A barriga eleva o risco de diabetes, hipertensão e colesterol alto. Três fatores que contribuem para a ocorrência dos derrames.

A pesquisa de Amytis revelou que 62% das mulheres nessa faixa etária tinham obesidade abdominal. Nos homens, o índice foi de 50%. A pesquisadora suspeita que a incidência de AVC tenha aumentado também nas mulheres com menos de 35 anos. “Pretendemos começar esse estudo em breve”, diz.


24 de abril de 2010 | N° 16315
NILSON SOUZA


A lição do dinossauro

Sempre é bom prestar atenção no que diz um homem de 78 anos.

Se este homem é Gay Talese, monstro sagrado do jornalismo, incensado repórter do New York Times e autor de livros obrigatórios como O Reino e o Poder, Aos Olhos da Multidão e Vida de Escritor, tudo o que sai de sua boca merece contemplação e reflexão.

Acabo de ler uma entrevista que ele concedeu ao suplemento cultural do jornal Brasil Econômico, gravada pelo correspondente Luiz Henrique Ligabue em situação de constrangimento, pois o entrevistado não poupou críticas a jornalistas que usam gravador. Mas o recurso me permite reproduzir o que li com menor risco de cometer qualquer imprecisão.

– O problema de ser jornalista – ensina Talese – é que você não pode passar tempo suficiente com as pessoas e logo precisa escrever algo, publicar no dia seguinte, para depois jogarem no lixo no outro dia.

Então, ele conta que sempre quis escrever de modo que as pessoas sentissem vontade de guardar as matérias para ler 10, 20 anos depois.

– Os escritores morrem e seus trabalhos ficam vivos. Pensei, por que o jornalismo não pode ficar vivo anos depois de ter sido escrito?

Então, Talese enveredou pelo New Journalism, estilo que usa técnicas literárias para contar histórias reais. Às vezes, parece mesmo ficção. Ele chega a descrever monólogos internos de seus personagens, reproduzindo seus pensamentos, mas sem apelar para a imaginação. Em vez disso, ouve exaustivamente o entrevistado até extrair dele o que estava pensando no momento que deseja retratar.

Ou não ouve.

Um de seus textos mais célebres, “Frank Sinatra está resfriado”, desenha um antológico perfil do cantor a partir do cancelamento de uma entrevista anteriormente marcada.

Em vez de desistir da reportagem, Talese foi em frente, observou muito, ouviu mais de cem pessoas que gravitavam em torno do artista, inclusive uma assessora que carregava suas 60 perucas numa mochila. Só por aí já se pode ter ideia da verdadeira obra de arte que ele construiu.

Os dinossauros, como sabem os paleontólogos, têm muito a nos ensinar, ainda que jamais tenhamos cruzado com eles no planeta. Talvez Talese esteja defendendo um modo ultrapassado de fazer jornalismo. Nestes tempos de comunicação em 140 caracteres, um texto mais literário vai sempre parecer ficção. Mas o mestre norte-americano não faz concessões à fantasia:

– Se você é um jornalista de verdade, deve ser sério e dizer a verdade.

quarta-feira, 21 de abril de 2010



Júlio César comemora vitória com Susana Werner

Susana Werner está feliz da vida. O motivo? A vitória do maridão diante do Barcelona nesta terça pela Liga dos Campeões. Susana é mulher de Júlio César, goleiro do time italiano.

Na foto acima, ela faz o três, referente ao placar do jogo de 3 a 1. Ah, e reparem no recado dela na foto: ela não deixou que ele fizesse o número 1, do gol que acabou sofrendo da equipe espanhola.


21 de abril de 2010 | N° 16312
MARTHA MEDEIROS


50 milhões de figurantes

Todas as manhãs, dirijo pelo mesmo trajeto e fico engarrafada numa mesma esquina, onde há uma obra atrapalhando o trânsito. Mas nada se compara com a dificuldade de uma moça que diariamente atravessa a rua bem em frente ao meu carro.

Seria fácil para ela caminhar sobre a parte esburacada da obra e cruzar de uma calçada a outra enquanto o sinal não abre. Seria fácil se ela caminhasse, mas não caminha. Anda numa cadeira de rodas.

Todos os dias, eu presto atenção nela, em como maneja bem sua cadeira, em como parece estar acostumada, apesar de todo o esforço. Naturalmente, me vem à lembrança a personagem de Alline Moraes em Viver a Vida.

E me pergunto: não fosse a personagem da novela, eu prestaria tanta atenção assim? Quantas cadeirantes já cruzaram meu caminho e eu não percebi?

Assistindo a uma entrevista da vereadora e psicóloga Mara Gabrilli, também cadeirante, descobri que no Brasil há cerca de 50 milhões de pessoas que possuem alguma deficiência, seja motora, auditiva, visual, mental ou mesmo as deficiências degenerativas da idade, que comprometem o ir e vir autossuficiente.

Não é um milhão, nem são dois: são 50 milhões. Você tem cruzado por essas pessoas pelas ruas? Sim, todos os dias. Mas cruzar por elas não significa enxergá-las.

Não acho que as novelas precisem se engajar em causa alguma, estão aí para entreter, passar o tempo, porém, quando conseguem colocar na trama uma personagem peculiar, que não representa apenas a santinha ou a vilã clássicas, mas que foge do estereótipo, nossos olhos se abrem para uma condição que a gente se acostumou a não ver.

Ainda que a realidade da personagem da novela seja diferente da realidade da maioria dos cadeirantes (raros possuem enfermeira 24 horas, fisioterapeuta de plantão e motorista com carro adaptado), não se pode esquecer que vivemos num país em que a educação se dá mais pela TV do que pelos livros.

Logo, um programa de grande audiência que atinge as classes A, B, C, até Z, contribui muito para a inclusão social daqueles que, por não protagonizarem novelas, também não eram considerados protagonistas aqui fora. Formavam um elenco de apoio, 50 milhões de figurantes.

Não é nada, não é nada, Manoel Carlos deu projeção a uma linda Luciana que saiu das passarelas para a paraplegia, com o ineditismo de a personagem ter até blog e trocar ideias com os telespectadores como se o seu drama existisse de fato. Bizarro? Cafona? Pode ser.

Mas hoje vejo com mais nitidez aquela moça que todo dia atravessa a rua manejando sozinha sua cadeira de rodas às sete e meia da manhã, engolindo poeira em meio a uma obra, e penso na falta que faz um outro tipo de passarela, uma rampa ou uma calçada bem pavimentada para aqueles que, diferenças à parte, também são personagens principais.

Gostoso feriado para você. Aproveite o dia

terça-feira, 20 de abril de 2010



20 de abril de 2010 | N° 16311
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Paz e serenidade

Algumas pessoas têm de companhia um canário, um poodle, desilusões de amor. Eu sou acompanhado por um par de cadeiras ancestrais.

Quando era bem jovem, na casa de Cachoeira, por vezes, tão grande era o número de hóspedes no verão, que eu era obrigado a dormir na sala de estar. Vêm daí as lembranças mais nítidas das cadeiras.

Numa antevéspera de Natal, mal-acomodado numa cama de armar e vizinhando com a espada de meu antepassado Manuel Carvalho de Aragão, simplesmente não conseguia dormir. Era como se aquela espada, que tomara parte, vitoriosa, em tantas batalhas da Guerra dos Farrapos, estivesse ali para me assombrar.

Só descansei quando me dei conta da presença tranquila das cadeiras centenárias. Sua real majestade, suas linhas fortes e ao mesmo tempo elegantes, suas caprichosas esculturas transmitiam um recado de paz e serenidade. Olhando-as, na semi-obscuridade da peça, sentia-me possuído de tranquilidade e de repente liberto do espectro da espada que despachara tantos deste para outros mundos.

A origem dessas cadeiras é incerta. Quando meu avô Achylles comprou a Granja da Penha, descobriu que o antiquíssimo galpão abrigava mais do que arreios, lamparinas, fogos-fátuos.

Havia um rol de trastes caseiros, alguns devorados pelos cupins, outros de metal, mas sem prestança, ainda terceiros devastados pelas idades.

E havia as duas cadeiras que, embora em péssimo estado, mas com a madeira intacta, podiam ser submetidas a uma restauração. Foi o que o meu avô mandou fazer, com notáveis resultados.

Um honesto artesão transformou curvas e estofos, longamente abandonados, em esplêndidas peças de decoração. Desde então ambas habitaram a sala de visitas da casa de Cachoeira, com uma cláusula pétrea. Quando meu avô se mudasse desta para melhor, as cadeiras passariam a me pertencer.

E foi o que aconteceu. Seu filho Nilson, um caro amigo meu que partiu há pouco, depositário circunstancial dos móveis, enviou-os para mim. Aqui estão eles, bem no momento em que escrevo, fitando-me com sua majestade.

É a segunda vez que uso esse substantivo feminino, e não por acaso. Ocorre que essas duas cadeiras devem ter abrigado muitas lindíssimas princesas, talvez de cabelos negros e olhos claros, e são elas que me observam desde as planuras da eternidade.

Uma linda terça-feira pra você. Aproveite o dia

domingo, 18 de abril de 2010


DANUZA LEÃO

Um final feliz, dentro do possível

Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi

O QUE SERÁ menos pior: ter uma morte relativamente em paz, com o auxílio de todos os procedimentos para evitar a dor, ou passar dias, semanas, talvez meses, rodeado de médicos e enfermeiras, cheio de tubos, com estranhos aparelhos em volta, lúcido, talvez -o que é bem pior-, para poder viver por mais alguns dias, semanas, talvez meses? Difícil, a resposta.

Mesmo assim, merece palmas o novo Código de Ética Médica, que dá ao paciente o direito de decidir se o médico deve ou não continuar o tratamento para prolongar sua vida.

Esse paciente, em caso de impossibilidade, pode registrar em cartório o "testamento vital", delegando poderes a alguém para decidir quais os procedimentos que autoriza (ou não), sobretudo para cessar esforços inúteis para ter mais algum tempo de vida, sabe-se lá de que maneira.

A ideia é boa, mas não imagino alguém, em boa saúde, indo ao cartório para fazer esse testamento. Se já estiver mal, a ideia de levar o tabelião ao hospital é terrível. E afinal, delegar a alguém o direito de decisão sobre nossa vida é muito sério. E essa pessoa, será que aceita tal responsabilidade?

É aí que começam os problemas, sobretudo se o doente for rico, pois deve ser alguém de total confiança, que não deixe a menor dúvida quanto à sua decisão. E, de preferência, que não seja herdeiro.

Ainda vai haver muita briga em torno desse Código de Ética.

Os médicos, para cessarem com os procedimentos, vão querer ver o tal testamento (com firma reconhecida), e se o próprio doente disser que não quer que prolonguem sua vida, já que não existem esperanças, vão querer isso por escrito, para evitar um processo futuro.

Quem ainda não botou sua colher torta no assunto foi a Igreja. É bem verdade que no momento ela está mal na foto, mas é claro que vai dar seus palpites e dizer que a vida é sagrada etc. e tal. Tão sagrada que não é permitido aos católicos o uso de nenhum contraceptivo, mesmo em caso de risco de morte.

E a igreja está perdoando tanto -sem nem precisar pedir- que perdoou os Beatles pela blasfêmia ("somos mais famosos do que Jesus") e anos de sexo, drogas e rock and roll; já já estará perdoando os padres pedófilos.

A verdade é que essa história de morte é muito malfeita, e as pessoas não deveriam morrer, apenas tomar um avião e nunca mais dar notícias.

Os amigos poderiam até reclamar, "poxa, nem um telefonema, nem um e-mail com uma foto", mas com o tempo iriam se esquecendo.

Eu tinha um amigo que ficou longo tempo no hospital sofrendo por um monte de coisas. Num determinado momento de um determinado dia, ele percebeu que estava chegando a hora -ou apenas cansou, nunca vamos saber.

Fez um sinal para a mulher, com quem já tinha combinado tudo, ela ligou o iPod com as músicas de que ele mais gostava, tirou da bolsa uma garrafa de uísque, serviu dois, um para cada um, em copos que havia trazido de casa, com gelo e soda, que vieram em um pequeno isopor.

Enquanto tomavam a primeira dose, ela, que o havia obrigado a deixar o vício de fumar há anos e que nem fumante era, abriu um maço de cigarros, tirou um, acendeu e pôs na mão dele, que sorriu como não fazia há tempos.

Assim passaram a tarde, driblando as enfermeiras, conversando e rindo. No início da noite, ele se foi; ela, quase feliz, por terem usufruído, juntos, algumas horas de bem-estar. Houve quem dissesse que eram dois loucos.

Algum tempo depois foi sua vez; passou por todos os sofrimentos de praxe dentro de um hospital, e imagino que tenha pensado em como seria bom ter alguém que lhe oferecesse uma bebida que a ajudasse a ficar levemente eufórica, só que num hospital essas coisas não existem.

Uma pena, aliás. E essa história é verdadeira.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 17 de abril de 2010



18 de abril de 2010 | N° 16309
MARTHA MEDEIROS


Condição de entrega

Acaba de ser revelado o que uma mulher quer e que Freud nunca descobriu. Ela quer uma relação amorosa equilibrada onde haja romance, surpresa, renovação, confiança, proteção e, sobretudo, condições de entrega.

É com essa frase objetiva e certeira que Ney Amaral abre seu livro Cartas a uma Mulher Carente, um texto suave que corria o risco de soar meio paternalista, como sugeria o título, mas não. É apenas suave.

Romance, surpresa etc, não chegam a ser novidade em termos de pré-requisitos para um amor ideal, supondo que amor ideal exista, mas “condição de entrega” me fez erguer o músculo que fica bem em cima da sobrancelha, aquele que faz com que a gente ganhe um ar intrigado, como se tivesse escutado pela primeira vez algo que merece mais atenção.

Mesmo havendo amor e desejo, muitas relações não se sustentam, e fica a pergunta atazanando dentro: por quê? O casal se gosta tanto, o que os impede de manter uma relação estável, divertida e sem tanta neura?

Condição de entrega: se não existir, a relação tampouco existirá pra valer. Será apenas um simulacro, uma tentativa, uma insistência.

Essa condição de entrega vai além da confiança. Você pode ter certeza de que ele é uma pessoa honesta, de que falou a verdade sobre aquele sábado em que não atendeu ao telefone, de que ele realmente chegará na hora que combinou. Mas isso não é tudo. Pra ser mais incômoda: isso não é nada.

A condição de entrega se dá quando não há competitividade, quando o casal não disputa a razão, quando as conversas não têm como fim celebrar a vitória de um sobre o outro. A condição de entrega se dá quando ambos jogam no mesmo time, apenas com estilos diferentes. Um pode ser mais rápido, outro mais lento, um mais aberto, outro mais fechado: posições opostas, mas vestem a mesma camisa.

A condição de entrega se dá quando se sabe que não haverá julgamento sumário. Diga o que disser, o outro não usará suas palavras contra você. Ele pode não concordar com suas ideias, mas jamais desconfiará da sua integridade, não debochará da sua conduta e não rirá do que não for engraçado.

É quando você não precisa fingir que não pensa o que, no fundo, pensa. Nem fingir que não sente o que, na verdade, sente.

Havendo condição de entrega, então, a relação durará para sempre? Sei lá. Pode acabar. Talvez vá. Mas acabará porque o desejo minguou, o amor virou amizade, os dois se distanciaram, algo por aí. Enquanto juntos, houve entrega. Nenhum dos dois sonegou uma parte de si.

Quando não há condição de entrega, pode-se arrastar, prolongar, tentar um amor pra sempre. Mas era você mesmo que estava nessa relação?

Condição de entrega é dar um triplo mortal intuindo que há uma rede lá embaixo, mesmo que todos saibamos que não existe rede pro amor. Mas a sensação da existência dela basta.


A multiplicação das palavras

Os vocábulos estrangeiros se incorporam ao português numa velocidade assombrosa, enriquecem a língua e levantam a discussão sobre adaptar ou não sua grafia

Nataly Costa - Thiago Prado Neri/Tv Globo - Letra por letra



Daniel (primeiro à esq. no trio ao centro da foto), no Caldeirão do Huck: traído pela palavra kirsch,
recente no português

No sábado 10, o programa de TV Caldeirão do Huck exibiu a etapa final de um de seus quadros fixos, o Soletrando. Nele, estudantes de 5ª a 8ª série devem provar seus conhecimentos da língua portuguesa ao soletrar palavras sorteadas. O vencedor leva 100 000 reais. O estudante mineiro Daniel Coutinho, de 13 anos, perdeu o prêmio por pouco. Atrapalhou-se ao soletrar a palavra kirsch, nome de um tipo de aguardente à base de frutas.

O termo é alemão, mas, por encontrar-se difundido entre os apreciadores de bebidas no Brasil, figura como verbete no Aurélio, dicionário da língua portuguesa que serve de base para a competição. O episódio ilustra uma mudança profunda ocorrida nos últimos tempos na forma de incorporação de palavras estrangeiras ao português falado no Brasil. Antes, os vocábulos estrangeiros só eram dicionarizados depois de ter seu uso consagrado entre os brasileiros por pelo menos uma década.

Hoje, a população adota uma quantidade crescente de palavras estrangeiras – e os dicionários correm para transformá-las em verbetes, sob o risco de se tornarem obsoletos. Diz Valéria Zelik, editora do Aurélio: "O idioma já teve mais tempo para adquirir novas lexias. Atualmente, a velocidade das informações vindas de diversas áreas do conhecimento é algo impressionante, e elas trazem novos vocábulos".

Para se ter uma ideia da agilidade desse processo de transformação da língua, os editores dos dicionários Aurélio, Houaiss e Larousse usam um programa de computador desenvolvido para pesquisar continuamente palavras estrangeiras que aparecem nos jornais, revistas e sites brasileiros.

Quando o uso de uma palavra se torna frequente, é sinal de que pode ser a hora de dicionarizá-la. A ideia de que é preciso aportuguesar os vocábulos estrangeiros, segundo os especialistas, está ultrapassada. O que determina o aportuguesamento ou não de palavras estrangeiras é a forma como a população se familiariza com elas.

De acordo com a lexicógrafa Thereza Possoli, da equipe do dicionário Larousse, alguns vocábulos, graças à semelhança com a morfologia e a fonética brasileiras, são adaptados para o idioma com naturalidade. É o caso de blecaute, ateliê, quiosque e surfe.

Outros termos mantêm a forma do idioma original, como marketing, design e réveillon. Há palavras aportuguesadas que figuram no dicionário, mas não vingam no dia a dia, como esqueite (skate) e leiaute (layout). "Nem sempre optamos pelo aportuguesamento, pois o uso do vocábulo em sua língua original se mostra preponderante", explica Renata Menezes, da equipe do Aurélio.

A multiplicação das palavras estrangeiras no português pode apavorar os puristas do idioma, como o deputado Aldo Rebelo, cuja luta para proibir os estrangeirismos no país já se tornou folclórica.

Para estes, o exemplo a ser seguido é o de Portugal, que tenta traduzir tudo para a língua nativa – o mouse do computador, por exemplo, é chamado de rato. Os grandes linguistas brasileiros, contudo, concordam que os termos estrangeiros servem para enriquecer o idioma, não para prejudicá-lo. "Se o estrangeirismo fosse nocivo, a própria língua trataria de expulsá-lo", pondera o gramático Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras.

A história mostra que é da natureza dos idiomas incorporar vocábulos estrangeiros e que, nesse processo, eles evoluem. Na Idade Média, a língua portuguesa contava com apenas 15 000 palavras. Hoje, são mais de 400 000, muitas delas importadas, através dos séculos, do árabe, do italiano, do francês e do inglês.

O linguista americano Noah Webster (1758-1843), considerado "o pai da educação" em seu país, costumava lembrar que o idioma vive e pulsa no dia a dia da população, e não nos gabinetes dos intelectuais. Dizia ele: "A língua não é uma construção abstrata dos sábios, ou dos dicionaristas.

Ela nasce do trabalho, das necessidades, das relações humanas, das alegrias, afeições e experiências de muitas gerações". O termo alemão kirsch, que derrubou o estudante Daniel Coutinho na TV, poderá um dia soar natural para seus filhos.

Língua viva e veloz

No passado, os dicionaristas esperavam dez anos para verificar se uma palavra estrangeira fora adotada plenamente no país. Hoje, com a rapidez com que os estrangeirismos são incorporados ao português, esse prazo é de um ou dois anos. A seguir, vocábulos que serão incluídos na próxima edição do Dicionário Aurélio*

Tecnologia
Smartphone – Celular com alguns recursos de computador
Pop-up – Janela que se abre em página da internet para propaganda
MP3 – Forma de compactação de arquivos de áudio
Antispam – Programa que previne publicidade eletrônica não solicitada
Bluetooth – Tecnologia para conectar dispositivos sem o uso de cabo

Gastronomia
Blanquette– Guisado de carne branca
Chutney – Tipo de geleia de origem indiana
Muffin – Pão fofo doce assado em pequenas fôrmas
Sashimi – Prato da culinária japonesa que consiste em fatias de peixe cru
Bock – Tipo de cerveja adocicada e de teor alcoólico forte
Pierogi – Prato da culinária polonesa que consiste em pastéis cozidos
com diversos tipos de recheio

Comportamento/Esportes
Bullying – Violência psicológica ou física praticada repetidamente
Antidoping – Tipo de exame que busca identificar substâncias de uso proibido no sangue dos atletas
Barwoman – Mulher que prepara drinques profissionalmente
Off-road – Diz-se de veículo próprio para trafegar em terrenos acidentados
Brake-light – Luz de freio dos veículos


Claudio de Moura Castro

Construtivismo e destrutivismo

"O construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino"

Tinha missão é árdua: quero desvencilhar o construtivismo dos seus discípulos mais exaltados, culpados de transformar uma ideia interessante em seita fundamentalista. O construtivismo busca explicar como as pessoas aprendem. Prega que o processo educativo não é uma sequência de pílulas que os alunos engolem e decoram.

É necessário que eles construam em suas mentes os arcabouços mentais que permitem entender o assunto em pauta. Essa visão leva à preocupação legítima de criar os contextos, metáforas, histórias e situações que facilitem aos alunos "construir" seu conhecimento. Infelizmente, o construtivismo borbulha com interpretações variadas, algumas espúrias e grosseiras. Vejo quatro tipos de equívoco.
Ilustração Atomica Studio

O primeiro engano é pensar que teria o monopólio da verdade - aliás, qual das versões do construtivismo? As hipóteses de Piaget e Vigotsky coexistem com o pensamento criativo de muitos outros educadores e psicólogos. Dividir o mundo entre os iluminados e os infiéis jamais é uma boa ideia.

O segundo erro é achar que todo o aprendizado requer os andaimes mentais descritos pelo construtivismo. Sem maiores elaborações intelectuais, aprendemos ortografia, tabuadas e o significado de palavras.

O terceiro é aceitar uma teoria científica como verdadeira por conta da palavra de algum guru. Em toda ciência respeitável, as teorias são apenas um ponto de partida, uma explicação possível para algum fenômeno do mundo real. Só passam a ser aceitas quando, ao cabo de observações rigorosas, encontram correspondência com os fatos. Einstein disse que a luz fazia curva.

Bela e ambiciosa hipótese! Mas só virou teoria aceita quando um eclipse em Sobral, no Ceará, permitiu observar a curvatura de um facho luminoso. O construtivismo não escapa dessa sina. Ou passa no teste empírico ou vai para o cemitério da ciência - de resto, lotado de teorias lindas.

Não obstante, muitos construtivistas acham que a teoria se basta em si. De fato, não a defendem com números. Obviamente, nem tudo se mede com números. Mas, como na educação temos boas medidas do que os alunos aprenderam, não há desculpas para poupar essa teoria da tortura do teste empírico, imposto às demais. Por isso, temos o direito de duvidar do construtivismo, quando fica só na teoria.

Mas o que é pior: outros testaram as ideias construtivistas, não encontrando uma correspondência robusta com os fatos. Por exemplo, orientações construtivistas de alfabetizar não obtiveram bons resultados em pesquisas metodologicamente à prova de bala.

O quarto erro, de graves consequências, é supor que, como cada um aprende do seu jeito, os materiais de ensino precisam se moldar infinitamente, segundo cada aluno e o seu mundinho. Portanto, o professor deve criar seus materiais, sendo rejeitados os livros e manuais padronizados e que explicam, passo a passo, o que aluno deve fazer.

Desde a Revolução Industrial, sabemos que cada tarefa deve ser distribuída a quem a pode fazer melhor. Assim é feito um automóvel e tudo o mais que sai das fábricas. Na educação, também é assim. Os materiais detalhados são amplamente superiores às improvisações de professores sem tempo e sem preparo.

De fato, centenas de pesquisas rigorosas mostram as vantagens dos materiais estruturados ou planificados no detalhe. Seus supostos males são pura invencionice de seitas locais. Quem nega essas conclusões precisa mostrar erros metodológicos nas pesquisas. Ou admitir que não acredita em ciência.

Aliás, nada há no construtivismo que se oponha a materiais detalhados. Entre os construtivistas americanos, muitos acreditam ser impossível aplicar o método sem manuais passo a passo.

Em suma, o construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino.

Claudio de Moura Castro é economista


Goldman Sachs é acusado de fraude

Segundo o governo dos EUA, banco se aliou a investidor para criar um fundo com ações podres. O título foi vendido no mercado enquanto o Goldman e o investidor apostavam contra ele
Redação Época

ACUSADO A sede mundial do Goldman Sachs, em Nova York

A Comissão da Bolsa de Valores dos Estados Unidos, um órgão do governo federal, entrou com uma ação civil contra o banco Goldman Sachs na qual acusa o grupo financeiro de fraude. De acordo com a denúncia, o Goldman Sachs criou um fundo de investimento em hipotecas cujo objetivo era dar errado e, para completar, apostou contra o próprio fundo, lucrando com isso.

A denúncia afirma que o fundo de investimentos, chamado Abacus 2007-AC1, foi criado no início de 2007 para investir nas chamadas subprime – as hipotecas de alto risco negociadas nos Estados Unidos.

Naquele momento, o mercado hipotecário americano começava a dar sinais de enfraquecimento – era o prenúncio da crise que atingiu seu ápice com a concordata do Lehman Brothers, outro banco de investimentos, em setembro de 2008.

De acordo com o jornal The New York Times, o fundo era composto de ações escolhidas a dedo por John A. Paulson, um administrador de fundos hedge que pagou US$ 15 milhões ao banco para estruturar o Abacus 2007-AC1. Em comum, as ações tinham a grande possibilidade de perder valor com a crise do mercado imobiliário que ocorreria nos meses seguintes.

Mesmo sabendo disso, o Goldman Sachs colocou o fundo no mercado, sem informar que ele havia sido criado por Paulson, e dezenas de bancos estrangeiros, fundos hedge, companhias de seguro e fundos de pensão investiram nele.

Ao mesmo tempo, o Goldman fez investimentos apostando que os fundos iriam perder valor, como de fato ocorreu. Segundo a comissão do governo americano, o prejuízo total dos investidores foi de US$ 1 bilhão.

Além do Goldman Sachs, é citado na ação um dos vice-presidentes do banco, Fabrice Tourre, que teria ajudado a montar o fundo. Nenhum dos dois se pronunciou sobre o caso, assim como Paulson, que não é alvo da ação proposta pelo governo americano.


17 de abril de 2010 | N° 16308
NILSON SOUZA


Herança genética

A menina dos meus olhos retorna da escola comentando uma curiosa prova a que foi submetida sua turma de adolescentes. A tarefa era comentar, por escrito, o resultado de uma enquete mais ou menos nos seguintes termos: Se você pudesse escolher as características de seu filho, daria prioridade à inteligência, à beleza, ao porte físico ou deixaria a critério da natureza?

Segundo o texto, mais de 50% dos entrevistados responderam que não fariam escolhas, um percentual alto apontou a inteligência como característica desejada e – felizmente – poucos optaram pela beleza e pelo porte físico.

Não sei o que os jovens comentaram sobre as respostas, suponho que devem ter ido no mesmo rumo dos adultos pesquisados. Mas o exercício me pareceu oportuno. Colocou a meninada diante de um dilema que há muito deixou de ser fictício. Em alguns países, clínicas de manipulação genética já oferecem aos pais a possibilidade de escolher, por exemplo, a cor dos olhos ou dos cabelos de seus futuros bebês. Num futuro bem próximo, é possível que muitos daqueles adolescentes tenham mesmo que tomar suas próprias decisões a respeito do assunto.

Gostei de constatar que a escola da minha afilhada está trabalhando temas éticos com os alunos. Se me coubesse acrescentar mais uma questão a respeito do assunto, teria aproveitado para propor à menina e a seus colegas o seguinte: Se seus pais pudessem escolher, você acha que o filho seria você? Acho que faria a garotada refletir um bocado.

Este tema da escolha prévia das características dos filhos me faz lembrar uma história protagonizada pelo escritor irlandês George Bernard Shaw, conhecido por sua genialidade e também por sua feiúra. Dizem que certa vez, durante uma festa chique, ele foi importunado por uma espevitada socialite da época, que era muito bonita mas de poucas luzes, com a seguinte sugestão:

– Já pensou se a gente casasse e tivesse um filho com a minha beleza e a sua inteligência?

Ao que o inspirado dramaturgo respondeu de pronto:

– Não acho sensato, minha senhora. Já pensou se ele nascesse com a minha beleza e a sua inteligência?

A anedota tem o seu lado sério. Mesmo com o mapeamento genético do ser humano, ninguém jamais terá total certeza de que os filhos sairão de acordo com o planejado, até mesmo porque a personalidade se forma a partir do nascimento e é influenciada por fatores como o ambiente doméstico, as oportunidades e o exemplo dos pais.

E para os bebês não há escolha.

quarta-feira, 14 de abril de 2010



14 de abril de 2010 | N° 16305
MARTHA MEDEIROS


Inocentes e culpados

Saudade da infância. A gente fazia molecagens e depois bastava confessar e rezar três ave-marias para ficar quite com Deus. Quando criança, meus pecados eram matar aula ou brigar com meu irmão, e eu imaginava que se meus pecados começassem a se tornar mais radicais, o pior que poderia me acontecer era ter a pena elevada de três para 18 ave-marias. Dava pra suportar.

E assim a Igreja ia me educando para a impunidade, bem diferente do que faziam meus pais: quando eu errava, eles me deixavam sem tevê, sem brincar na rua e sem refri. Isso, sim, era um castigo medonho, mas que visava à reabilitação.

Hoje leio que a Igreja, desastradamente, anda associando pedofilia a homossexualidade, e que um dos castigos propostos é fazer com que o clérigo pecador isole-se e passe a vida entre preces. Quantas ave-marias pra ele?

Abusar de crianças é um escândalo em qualquer circunstância, não importa o motivo do crime e quem o cometeu. Todos os perversos possuem suas razões: ou também foram abusados quando meninos, ou foram abandonados pela família, ou são cruéis por natureza, ou não receberam nenhum princípio moral ou ético, ou passaram por privações, ou são doidos de pedra. O que induz à ação criminosa não é a inclinação sexual do sujeito, mas sua ausência de civilidade.

O Vaticano tem se preocupado em explicar a quantidade incômoda de padres pedófilos denunciados, mas, antes de tentar explicar, deveria julgar e, comprovado o crime, condenar. Punir. Prender. O fato de serem representantes de Deus não pode servir como atenuante, ao contrário. Está-se diante da hipocrisia sacramentada, do “vinde a mim as criancinhas” sem levar em conta nenhum dos preceitos que regem (ou deveriam reger) a religião, qualquer religião.

Enquanto houver condescendência, não haverá paz. A redução da violência passa pela punição imediata.

Falamos muito em investir em educação e esse é o principal caminho, lógico, mas é uma solução a longo prazo.

Para corrigir o agora, tem que se dar o exemplo agora. Vale para o casal Nardoni, vale para o estuprador assassino de Luziânia, vale para o fazendeiro que matou a missionária Dorothy Stang, vale para os mandantes e executores de Eliseu Santos e vale para todos os que escapam da lei porque não há policiais suficientes, nem servidores, nem dinheiro, nem equipamentos, nem espaço nas cadeias e, principalmente, por não termos a cultura do Tolerância Zero. Tolera-se quase tudo e, o que não se tolera, esquece-se com o tempo.

Aquelas três ave-marias que me mandavam rezar por ter matado aula ou brigado com meu irmão eram inúteis. Não havia crime, não havia pecado: havia inocência.

Não sei o que os adultos hoje dizem no escuro dos confessionários, o que os padres escutam por trás das treliças, só sei que Deus, em sua infinita bondade, perdoa fácil qualquer delito, seja o de uma criança que disse um palavrão até o de um adulto que admite um estelionato, basta ajoelhar, rezar e declarar-se arrependido.

Não por acaso, Arruda saiu da prisão anteontem recepcionado por orações, abençoado seja. Mas, sinceramente, troco a redenção divina pela Justiça terrena, que está fazendo mais falta.

Uma gostosa quarta-feira pra você. Aproveite o dia

terça-feira, 13 de abril de 2010



13 de abril de 2010 | N° 16304
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Devagar e com jeito

Tem gente que acha que o universo inteiro cultiva o maior interesse por seus negócios particulares. Eu estava esses dias num restaurante e o cavalheiro da mesa ao lado atendeu o celular como se estivesse no próprio timão de seu escritório.

“Não tem erro” – dizia para todos nós. E para confirmar essa afirmativa discorria longamente sobre números e cifras, promissórias e duplicatas, repartições e varas da Fazenda.

Não pensem que tudo isso tinha aparência de segredo. Bem ao contrário, revelando um sentido apreço pelo som da própria voz, o senhor em questão rivalizava em tom com uma gravação dos Três Tenores, servindo ao vivo uma ópera de suas transações no mercado.

Corta para uma fila. Uma fila é algo abominável, um atentado à dignidade humana. Pois ocorreu que estando eu em um banco, sujeito a esse suplício, fui submetido ao diálogo de uma cliente, que estava algumas posições à frente, com uma filha, ou amiga, ou cunhada.

“A Natércia saiu de casa mesmo?” –perguntava ela. E jurava então que já desconfiava, a Natércia, com aqueles olhos gateados, era uma dissimulada, quem não se lembrava da amizade dela com o empregado do cartório?

Paro aqui. Esses são tão somente dois exemplos de conversas que sou obrigado a ouvir todos os dias, de usuários de celulares. Não são, em absoluto, a maioria. Há pessoas sensatas que ocupam o aparelho para dar um recado, dizer que estão bem, cumprimentar por um aniversário ou por uma formatura.

Mas há os outros, os que confundem o mecanismo com a trombeta do Juízo Final. Bem característicos dessa espécie são os ressonantes. Por essa palavra entenda-se os que não se contentam em falar numa calibragem de altos decibéis.

São repetitivos. Reproduzem para o distinto público o que acabaram de ouvir. “A Anelise se separou do Aldrovando? “. “0 cachorro do barbeiro mordeu o doutor Anacleto?”.

E pronto: toda a redondeza é informada, embora não se interesse a menor que uma Anelise rompeu com um Aldrovando, que o mal-humorado cão do barbeiro atacou um doutor, logo o Anacleto.

Já que temos tantas leis, deveria existir uma determinando normas para o uso do telefone celular. O primeiro mandamento seria: “Só use o aparelho devagar e com jeito, assim como quem faz uma declaração de amor.”

Garanto que a humanidade seria mais feliz e o mundo uma ópera com um final venturoso como o paraíso perdido.

sábado, 10 de abril de 2010



11 de abril de 2010 | N° 16302
MARTHA MEDEIROS


Mind the gap

Temos que ter cuidado com o vão, que é a distância entre a vida que você sonha e a vida como ela é

Quem já viajou para outros países, especialmente os de idioma inglês, e andou de metrô, já deparou com o aviso que há em cada estação subterrânea. Ou está escrito no chão, ou os alto-falantes avisam: Mind the gap. Significa cuidado com o vão. Não caia. Não dê um passo em falso. Fique atrás da linha amarela. Não avance. Não arrisque cair nos trilhos. Mind the gap. Mind the gap.

Estava eu, numa noite de sábado, assistindo em casa ao filme Notas de um Escândalo, cujo atrativo maior é o duelo de duas grandes atrizes, Cate Blanchett e Judi Dench, quando a personagem da insatisfeita Cate saiu-se com essa frase: “Temos que ter cuidado com o vão. Que é a distância entre a vida que você sonha e a vida como ela é”.

A distância entre a vida que você sonha e a vida como ela é.

Mind the gap, pois a queda é dolorosa. Mantenha-se com os pés firmes na vida que você tem. Claro que a vida sonhada é determinante para a busca da felicidade, claro que é essa vida “do lado de lá” que nos mantém despertos, claro que o sonho é mais inspirador do que a realidade, porém, cuidado com o vão. É onde a gente se machuca.

O túnel de uma estação de metrô costuma ser recheado de cartazes publicitários. Fotos de ilhas caribenhas para vender cartão de crédito, fotos de mulheres sublimes para vender cosméticos, fotos de casais jovens e apaixonados para vender roupas. Um mundo lindo e perfeito, sem tédio, sem dívidas, sem solidão. Ali, do outro lado do vão.

E a gente olhando tudo isso, parado, em pé, segurando uma mochila pesada, enquanto espera o trem.

Se você está viajando a turismo, se está em outra cidade ou em outro país, de certa forma já está do lado de lá do vão, está vivendo um instante de deslumbramento, em que se encontra longe de casa, longe do trabalho, com algum dinheiro pra gastar, com tempo livre, tirando umas férias da rotina e de você mesmo: não seria essa a descrição perfeita de “a vida que você sonha”?

Férias é sempre um passeio por essa outra vida, a idealizada.

Mas pense bem: imagine uma vida eterna de prazeres, sem hora para dormir nem para acordar, com o mundo bem resolvido, o céu sempre azul, um amor tranquilo, champanhe e caviar dia e noite. Uma semana, um mês, dez anos sem motivos pra chorar, sem um compromisso a cumprir, sem um desafio.

Fazendo essa transferência, consigo me ver estampada nas paredes de uma estação, eu e minha vida de comercial de cartão de crédito, olhando aquela outra mulher na plataforma oposta, em pé, esperando o trem para levá-la a uma reunião de trabalho, a um encontro que pode frustrá-la ou surpreendê-la, a um bairro em que pode estar chovendo, a um acontecimento que deixará seu coração palpitando, e penso que talvez eu continuasse angustiada com a imensa distância que há entre a vida que a gente sonha e a vida como ela é.

Estamos sempre de olho na outra margem, na plataforma de lá. E o vão nunca some.


Excesso de proteção faz mal ao seu filho

Boa parte das crianças e adolescentes brasileiros vive como dentro de uma bolha, protegida dos aspectos mais triviais da realidade. É preciso dar-lhes autonomia, porque o maior risco é criar uma geração despreparada para a existência


Daniela Macedo e Gabriella Sandoval
Montagem sobre fotos Istockphoto e Pedro Rubens


A preocupação com a segurança da prole é de ordem biológica: sem ela, nenhuma espécie animal conseguiria reproduzir-se e perpetuar-se. No âmbito humano, durante milhares de anos, os cuidados com as crias seguiram o padrão dos mamíferos em geral: eram interrompidos quando elas começavam a tornar-se capazes de alguma autodefesa e de ajudar seus pais na obtenção de comida.

A preocupação atual com os filhos – e sua exacerbação, a superproteção, assunto desta reportagem – tem origem histórica bem definida. No Ocidente, a infância e a adolescência, tais como as conhecemos, são uma criação econômica e cultural do fim do século XVIII, período imediatamente posterior à Primeira Revolução Industrial na Europa.

Até então, crianças e adolescentes, assim considerados em suas limitações e peculiaridades, existiam apenas nas classes mais abastadas, nas quais eram educados com esmero por serem herdeiros da fortuna da família e para que pudessem representá-la apropriadamente na idade adulta. Meninos e meninas até 14, 15 anos, oriundos dos extratos sociais mais baixos, eram tidos só como "gente pequena" – e, portanto, sujeita a trabalhos tão pesados quanto o permitisse a sua força física.

Com o avanço tecnológico, que resultou em máquinas que substituíram as atividades braçais e na necessidade de formar artesãos e operários qualificados para manusear equipamentos complexos e atender aos padrões de qualidade cada vez mais altos da indústria, o exército de crianças e jovens pobres passou a ser alvo de uma preocupação inédita: a de que crescessem saudáveis e pudessem, desse modo, ser adestrados para servir como a mão de obra requerida pelos novos tempos.

Foi da vertente econômica que nasceram os conceitos de infância e adolescência – os quais, mais tarde, ganharam contornos mais delicados, complexos, graças às descobertas da pediatria, da psicologia e da pedagogia.

Com as crianças e os adolescentes, surgiu ainda uma rede de proteção tanto no plano jurídico como no familiar. Leis foram feitas para preservar o direito à integridade física e mental dos menores de idade (aliás, uma concepção originada daquelas de infância e adolescência), e pais e mães passaram a ser mais ciosos da saúde e da educação de seus filhos.

Não seria inapropriado dizer que o amor maternal e paternal, no plano mais geral, é fruto das mudanças provocadas pela Revolução Industrial. Ultrapassadas as portas do século XXI, o que aterroriza muitos pais é ver suas crianças e jovens atingidos por violências que, até os estertores do século XVIII, não fariam seus congêneres perder o sono – e que não assombram, para além da medida, a maior parte das famílias atuais.

Ou seja, com a infância e a adolescência, não nasceram somente os pais responsáveis, mas também os pais assustados e, por consequência, superprotetores. "Eles podem ser tão prejudiciais para a formação emocional de seus filhos quanto pais negligentes", diz a psicóloga Ceres Alves de Araujo.

No Brasil, os superprotetores temem, sobretudo, o risco de sequestros, assaltos e acidentes e a oferta abundante e livre de álcool e drogas. Há, no entanto, um limite entre a preocupação aceitável e a excessiva, que pode fazer mais mal do que bem a uma criança ou adolescente.

Quando a criança é pequena, é razoável ter medo de que ela se machuque no parquinho, mas é inaceitável um pai ou mãe que não a deixe brincar na casa de um amigo de escola, longe de sua vista.

É compreensível ficar com o coração aflito nas primeiras vezes que o filho de 18 anos sai de carro sozinho – no entanto, trata-se de um exagero evidente negar a ele esse tipo de liberdade. Hoje, uma família de classe média pode erguer um muro em torno de seus filhos – incluído o não metafórico.

Para tanto, os pais superprotetores valem-se de recursos tecnológicos, como o celular que permite monitorar as andanças da moçada, e da nova dinâmica familiar, mais aberta e propensa ao diálogo.

Íntimos como nunca de seus filhos, eles se utilizam dessa proximidade de amigo justamente para controlá-los. E abandonam a parte mais difícil da paternidade, que é deixá-los seguir em frente. Tais pais "amigos" conhecem ou já identificaram no Orkut ou no Facebook cada um dos colegas do filho, e não veem problema nessa invasão de privacidade.

Aparentemente, um filho sob a vigilância irrestrita dos pais está mais seguro. Mas há um risco na vida sem riscos, o que inclui atender a todos os pedidos da criança ou do jovem. Pais que adotam para si e para seus filhos esse tipo de estratégia ignoram uma peça-chave do desenvolvimento humano: a autonomia.

É aquela capacidade – e sensação poderosa – de fazer escolhas. E também de aceitar seus próprios limites e reconhecer que, não raro, as escolhas podem estar erradas. Num artigo recente, o psiquiatra americano Michael Jellinek, professor de Harvard e chefe da psiquiatria infantil do Hospital Geral de Massachusetts, escreveu que, do momento em que um bebê nasce até a hora em que ele entra na faculdade ou sai de casa, a questão central de sua existência é conquistar independência. Tirar isso de um filho pode ser uma viagem sem volta.

"Vemos o tempo todo exemplos de crianças que finalmente quebram a bolha em que vivem e se transformam em adolescentes rebeldes além do aceitável, um atalho para que se tornem adultos frustrados", disse ele a VEJA.

Em geral, os pais superprotetores são inseguros e ansiosos. Temem que seus filhos deixem de amá-los, esforçam-se para não fracassar em sua educação e têm pavor de ser julgados por parentes e amigos. Tudo somado, excedem-se na ânsia de acertar sempre. "O exercício da paternidade passou a ser visto sob a ótica de um julgamento social, dos mais rígidos e seletivos", diz o psicólogo Luis Russo.

"Assim como hoje se exige que as pessoas sejam bem-sucedidas, saudáveis e magras, é preciso ser um pai exemplar de um filho idem", afirma. Trata-se de um fenômeno bastante atual. Nos Estados Unidos, pais com esse perfil ganharam o nome de helicopter parents, ou "pais helicópteros". Eles pairam sobre a vida das suas crianças com enorme estardalhaço.

O assunto foi tema de capa da revista americana Time em novembro passado. "Se o filho tira uma nota que os desaponta, vão direto à escola e exigem que ela seja mudada. Quando ele esquece um livro ou uma apostila em casa, correm para levá-lo à escola.

Dessa forma, não permitem que ele sinta o constrangimento que serviria de alerta para que se lembrasse de tomar conta de sua vida", disse a VEJA a americana Hara Estroff Marano, editora da revista Psychology Today.

Atualmente, a escola é o único espaço em que boa parte das crianças e adolescentes tem, de fato, de assumir responsabilidades. Ao passarem pelos portões escolares, deixam o posto de príncipe ou princesinha da família para se tornar um entre tantos outros alunos.

É um dos grandes pesadelos dos pais superprotetores: a exemplo do que ocorre na vida doméstica, eles exigem tratamento individualizado na escola. Sua interferência na rotina pedagógica é uma realidade que irrita professores e diretores. "Já recebemos ligações de pais indignados com uma discussão no pátio antes mesmo de os inspetores nos avisarem da briga", conta Vera Malato, coordenadora do departamento de orientação educacional do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. Sim, em certos momentos de dificuldade, os filhos recorrem ao celular em que estão gravados os números de papai e mamãe.

Como efeito colateral da superproteção, os especialistas em educação infantil começam a notar um aumento no número de crianças ansiosas e inseguras. Não é difícil identificar uma delas em sala de aula: é a que pede atenção e aprovação para cada tarefa que realiza.

Consulta os professores com frequência quase insuportável. Fora da sala, tem medo de se machucar no parquinho (mesmo essa excrescência americana que é o playground de chão emborrachado), evita ir sozinha ao banheiro, pede ajuda a todo momento. Tamanha dependência está na raiz da baixa autoestima.

O problema é tão presente nas escolas que, em algumas delas, como a paulistana Emilie de Villeneuve, são feitas atividades para estimular a autonomia dos pequenos. Há, por exemplo, um "acampadentro", em que alunos de 5 e 6 anos passam uma noite na escola e são incentivados a tomar decisões simples como o que trazer, em que cama dormir e o que comer no café da manhã.

Parece incrível, mas, para muitos, o ato da decisão é um tormento. Em outra iniciativa da escola, o aluno adolescente que falta à aula por motivo de doença é convidado a explicar, ele mesmo, a ausência. "Nossa ideia é que crianças e adolescentes tomem a iniciativa antes de levar as questões para o pai ou a mãe", diz Luiza Cesca, diretora do colégio.

Pergunte a um pai superprotetor por que ele age assim e a resposta será: "Só quero o melhor para o meu filho". O perfil desses pais, segundo os psicólogos consultados por VEJA, é o seguinte: nascidos na década de 60 – em geral, a partir de 1964 –, têm filho único ou filhos com grande diferença de idade.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as famílias brasileiras têm, em média, 1,8 filho. Nos anos 70, eram 6,2 filhos. Um quarto das mães tem filho único. Elas demoraram a ter o primeiro herdeiro, que foi ansiosamente desejado e aguardado: 26% das crianças nascidas em 2008 eram filhos de pais com mais de 30 anos. Ou seja, as crianças – mais escassas – se tornaram mais "preciosas".

Na casa da família paulista Toscano, cada passo de Matheus, de 13 anos, é dado sob o olhar atento dos pais. Fazer trabalho na casa dos amigos, nem pensar. "Não vejo necessidade. A maioria das mães trabalha fora e sei que a empregada não vai tomar conta", diz sua mãe, a representante comercial Dalva, de 48 anos. Só há pouco tempo o garoto recebeu autorização para esquentar a própria comida no micro-ondas.

A mãe sugeriu que ele lavasse o prato depois do almoço, mas o pai vetou: "Ele tem medo que o Matheus se corte. Até hoje meu marido amarra o tênis do filho antes do jogo de futebol", afirma Dalva.

Histórias assim são comuns nos consultórios de psicólogos e pediatras. "A maioria desconhece – ou prefere ignorar – as aptidões do filho. Acredita que ele não tem idade para executar tarefas para as quais já está capacitado", diz o pediatra Ricardo Halpern, da Sociedade Brasileira de Pediatria. Certa vez, ele atendeu um menino de 10 anos que enfrentou uma situação constrangedora quando, durante uma excursão, pediu à professora que cortasse o seu bife.

"A criança corre o risco de ser excluída do grupo por ser diferente das outras", afirma. Quando, durante uma partida de futebol, os pais tiram satisfação com o técnico por deixar o filho no banco de reservas ou com um colega por não passar a bola, estão tentando, erroneamente, poupá-lo de frustrações.

"As crianças superprotegidas acham que os outros resolverão todos os seus problemas. Por isso, o risco de se tornarem compulsivas ou entrarem no universo das drogas é maior.

Com elas, conseguem a sensação de mundo cor-de-rosa que os pais proporcionavam enquanto as mantinham dentro de uma bolha", explica a psicóloga Mara Pusch, da Universidade Federal de São Paulo.

A ciência começa a voltar sua atenção para os efeitos da superproteção no cérebro e no comportamento de crianças e adolescentes. Parece exagero? Não é. Há casos como o do menino Ivan (nome fictício), de 9 anos, que foi alimentado à base de papinha até os 3 anos.

De tanto ouvir seus pais dizerem que ele poderia engasgar com comidas sólidas, o garoto passou a recusar tudo o que não fosse apresentado a ele na forma de sopa ou mingau. Ivan pode ter superado completamente essa deficiência.

Mas algo em sua habilidade motora e em sua confiança pode ter sido afetado. Até bem pouco tempo atrás não se sabia disso, mas a falta de brincadeiras livres, sem a interferência de adultos, pode prejudicar o bom desenvolvimento das faculdades cognitivas. Há riscos também no excesso de preparação estudantil dos filhos. Um pai pode e deve estimular seu filho a ter atividades extracurriculares. Mas o excesso não deixa de ser um ato de superproteção e, como tal, não faz bem.

Uma pesquisa da Universidade de Montreal, no Canadá, publicada no início deste ano, mostra que o nível de controle dos pais pode determinar se a criança terá uma relação harmoniosa ou obsessiva com um determinado hobby ou atividade esportiva. "Descobrimos que adultos controladores podem estimular comportamentos obsessivos em seus filhos ao ensinar-lhes que a aprovação social só se consegue por meio de excelência", escreveu uma das autoras do estudo, a psicóloga Geneviève Mageau.

Outro estudo mostra que a falta de obrigações dentro de casa tem criado uma geração pouco preocupada com o próximo. E o pior: os pais estão relutantes como nunca em pedir ajuda doméstica aos filhos. De acordo com os psicólogos ouvidos por VEJA, não há nada de errado em distribuir tarefas: é bom para a autodisciplina e para ajudar a construir a autoconfiança.

Pedir a um menino que lave um tênis sujo de barro ou que arrume a cama não deveria ser visto como punição. É simplesmente algo que ele deve fazer por ser parte de seu cotidiano.

"Uma criança não é um projeto, um troféu ou um pedaço de argila que se pode moldar como uma obra de arte. Só vai prosperar como pessoa se tiver permissão para ser o protagonista de sua própria vida", disse a VEJA o escocês Carl Honoré, autor do livro Sob Pressão – Criança Nenhuma Merece Superpais, publicado no Brasil pela editora Record.

Eliminar do desenvolvimento infantil todo desconforto, as decepções e até mesmo a brincadeira espontânea – e ainda por cima pressionar as crianças com a exigência de sucesso total – é um erro de rumo gravíssimo. Sem enfrentarem desafios próprios nem se confrontarem com limites, as crianças tornam-se adultos incapazes de superar as vicissitudes (veja o quadro abaixo).

As consequências da infância e adolescência superprotegidas já são mensuráveis: os jovens atualmente levam mais tempo para sair de casa, começar a trabalhar e formar uma família.

Quando chegam ao mercado profissional, não conseguem lidar com as exigências reais. Frequentemente se sentem injustiçados e incompreendidos. E frustram-se com facilidade.

Em resumo, se você quiser ter um filho com possibilidade de ser feliz e realizado (nunca há garantias), proporcione a ele a liberdade possível em cada etapa de sua vida.

E lembre-se do que disse o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850): "Chega um momento na vida íntima das famílias no qual os filhos se tornam, voluntária ou involuntariamente, juízes de seus pais". Para ter um julgamento razoavelmente justo, não seja negligente – mas também não seja superprotetor.


Curitiba vence prêmio global de cidades sustentáveis

O prêmio é concedido por uma organização sueca. O principal programa apresentado por Curitiba foi o Biocidade, que condiciona as ações do município à questão ambiental
Redação Época, com Agência Estado

Curitiba foi escolhida para receber o prêmio Globe Award Sustainable City 2010, do Globe Forum, entidade sueca que reúne empreendedores preocupados com a sustentabilidade global. "É uma vencedora muito sólida, com um plano que integra todos os recursos estratégicos conectados com inovação e sustentabilidade futura", disse o presidente do comitê de jurados do Globe Award, Jan Sturesson, ao anunciar a escolha hoje.

A entrega será em 29 de abril no Museu Nórdico de Estocolmo, com a presença do prefeito Luciano Ducci (PSB).

Curitiba foi agraciada com um prêmio dado às cidades mais verdes do mundo

A capital paranaense disputava o prêmio com Sidney (Austrália), Malmö (Suécia), Múrcia (Espanha), Songpa (Coreia do Sul) e Stargard Szczecinski (Polônia). Curitiba foi escolhida por unanimidade pelo comitê.

A nota do Globe Forum destacou que "a abordagem com que a cidade encarou os desafios da sustentabilidade é bem delineada e gerenciada numa clara demonstração de forte e saudável participação da comunidade e integração da dimensão ambiental com as dimensões intelectual, cultural, econômica e social". O principal programa apresentado por Curitiba foi o Biocidade, que condiciona todas as ações do município à questão ambiental.

Curitiba tem hoje média superior a 50 metros quadrados de área verde por habitante. De acordo com o secretário municipal do Meio Ambiente, José Antonio Andreguetto, a preservação é possível em razão do planejamento urbano de longo prazo, da prioridade para criação de parques, de políticas de educação ambiental e de políticas de incentivo.


10 de abril de 2010 | N° 16301
CLÁUDIA LAITANO


Sob a cerração

Neblina, névoa, nevoeiro, fog: quatro palavras com o mesmo significado e nenhuma delas serve para descrever um dia branco e difuso de um típico inverno gaúcho. A linguagem é assim, utilitária na aparência, mas cheia de conexões invisíveis – com a nossa história, nosso lugar no planeta, nossas pequenas nostalgias particulares.

É por isso que para a maioria de nós, nascidos neste lado de cá do mundo, “neblina” é apenas o nome de um fenômeno meteorológico. É preciso dizer “cerração” para que o sentido da palavra se espatife em milhares de cacos de memórias igualmente difusas – manhãs dos tempos de escola, madrugadas prolongadas, um domingo que amanheceu frio, mas com promessa de sol e céu azul para um passeio no fim da tarde.

O filme Os Famosos e os Duendes da Morte, premiado nos festivais do Rio e de Punta e exibido este ano em Berlim, tem muitos méritos, mas o menos comentado talvez seja o de reunir algumas das mais belas cenas de cerração já vistas no cinema. E digo cerração, e não neblina ou fog, porque o filme foi rodado no Vale do Taquari.

Trata-se de um filme “sensorial”, se é que existe esse gênero, em que a história importa menos do que o ambiente para o qual ele nos transporta, uma cidade pequena do Interior, que poderia ser qualquer uma, mas calha de nos ser familiar pela paisagem, pelo clima e pelo sotaque da gente alemoa que povoa o lugar – filmados com delicadeza extrema e distanciamento na medida pelo paulista Esmir Filho.

O diretor encontrou no livro do gaúcho Ismael Canepelle a definição de adolescência que o atraiu para a história: “Viver no lugar em que você nasceu, porém sentindo que aquele não é o seu lugar”.

O personagem principal é um garoto de 16 anos, fã de Bob Dylan, que se relaciona com o mundo por meio da internet – como a maioria dos meninos e meninas da sua idade, seja no Vale do Taquari ou do Reno. A cidade pequena em que ele mora às vezes parece bucólica, às vezes limitada.

Viver perto da família às vezes é aconchegante, noutras sufoca. O próprio personagem principal oscila entre o final da infância e o início da vida adulta, e toda essa instabilidade não poderia ter uma tradução visual mais apropriada do que a cerração que confunde os olhos e borra o horizonte.

Um dos elementos centrais do filme é a ponte de madeira onde se dá o desfecho da história. Uma ponte que pode ter muitos significados dentro da história, inclusive o de ressaltar essa ligação inédita que a internet proporciona entre a vizinhança interiorana mais remota e a metrópole.

Esse menino de Lajeado que vai de bíci pra escola e fala “tu”com aquele sotaque que nos soa tão familiar tem que decidir a que lado da ponte ele pertence, como tantos antes dele.

A diferença é que “o outro lado do rio”, o universo que ele sonha explorar, tem uma embaixada instalada ao lado da sua cama: o mundo imaterial e virtualmente sem fronteiras dos relacionamentos que se estabelecem na rede.

PS: a atriz gaúcha Áurea Baptista, comovente no papel da mãe do protagonista, é um talento local daqueles que merecem estátua na Praça da Matriz por ainda não terem cruzado a ponte.

quarta-feira, 7 de abril de 2010



7 de abril de 2010 | N° 16298
MARTHA MEDEIROS


Amantes em cascata

“De onde saiu essa, tem muito mais”. Em algum momento você já deve ter escutado essa frase. Pois ela se aplica perfeitamente à onda do momento: descobre-se um amante de uma celebridade e aí começa o efeito cascata. “Também fui!”. “Eu também, eu também!”.

O caso Tiger Woods não deveria nem ter vazado para a imprensa, já que é assunto privado e nada tem a ver conosco, mas vazou, e a partir daí ele teve sua vida devassada pelos jornais.

Entendo que para os patrocinadores é uma saia justa associar sua marca a um atleta que já não é só visto como campeão, e sim também como um don-juan, porém isso continua não tendo nada a ver conosco, é questão de business, um provável descumprimento de alguma cláusula de contrato.

Mas virou assunto de todos. Tiger Woods se desculpou publicamente uma dúzia de vezes e amanhã volta a competir no Masters de Augusta, primeira prova do Grand Slam do golfe. Detalhe: com seis agentes do FBI lhe fazendo escolta.

Já as amantes devem ter considerado muito honroso se expor para usufruir dos holofotes por dois ou três dias e depois voltar à obscuridade, mas com alguma graninha no bolso, seja em troca de uma foto exclusiva ou de uma entrevista bombástica.

Abro parênteses: é diferente das mulheres que, algum tempo atrás, tomaram coragem para denunciar um médico que abusava sistematicamente de suas clientes.

Uma delas deu o pontapé inicial das denúncias e depois choveram outras tantas, mas não acredito que fizeram isso para aparecer, já que não há mérito algum em sofrer abuso de um médico – fizeram porque se sentiram amparadas pelo grupo para puni-lo judicialmente. Fazer justiça é diferente de vingança. Fecho parênteses.

E agora surgem Michelle McGee, Melissa Smith e Brigitte Daguerre. Quem são as moças? Ex-amantes do marido de Sandra Bullock, o que tem nome de fora da lei, Jesse James. De onde saiu uma, tem pipocado outras tantas.

Uma mulher acorda certa manhã e pensa: hoje vou procurar um jornalista pra dizer que também fui amante de Jesse James. Com que intuito? Só pode ser vingança por ter uma vida opaca, ou vingança do homem que não a amou o suficiente, ou vingança da atriz que está em alta. Haverá uma resposta certa?

Talvez a resposta seja: discrição hoje é um valor em desuso. Há muitas vidas vazias, carentes de atenção, que topam pagar qualquer mico para aparecer.

Irão me criticar: e os que traíram, são santos? Não são. Cada adulto faz o que manda seu desejo. Mas, certos ou errados, devem explicações apenas aos prejudicados. Eu não me sinto prejudicada com o comportamento sexual de Tiger Woods ou do marido de Sandra Bullock, não sou casada com eles.

Me sinto mais prejudicada ao ver mulheres ainda buscando fama depois de deitarem na cama, comprometendo algumas conquistas femininas, entre elas a de fazer sexo por prazer, e não para utilizá-lo como moeda de troca.

Excelente quarta-feira. Aproveite o dia

terça-feira, 6 de abril de 2010



06 de abril de 2010 | N° 16297
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Mora na filosofia

A edição de Veja de 31 de março traz más notícias para os amigos da sabedoria. Uma reportagem de Marcelo Bortolotti lembra que os oito milhões de estudantes brasileiros matriculados no ensino médio começaram a receber este ano, porque assim manda a lei, aulas de filosofia e sociologia.

Mas, longe de ser uma boa nova, o que se vê é um desfile de conceitos simplificados e um festival de velhos chavões de um marxismo primário.

Para se ter uma ideia do estrago, no Acre, uma das metas do currículo de sociologia é ensinar os alunos a produzir regimentos internos de sindicatos de trabalhadores e, no Espírito Santo, a filosofia abarca da culinária capixaba aos ritmos indígenas.

Ora, a sociologia e a filosofia frequentam os bancos das escolas médias brasileiras desde o século 19 e foram obrigatórias, com pequenas interrupções, entre 1925 e 1971. Este último ano é, aliás, fatídico. Uma reforma da educação, eclodida bem nessa época, decretou o exílio, não só das duas disciplinas, como do latim e do francês, em benefício do monopólio do inglês, da morte da redação e do império das cruzinhas no vestibular. Tudo aliás bem ao estilo da data da edição de Veja.

Tive a sorte de estar matriculado no Colégio Anchieta antes dessas catástrofes. Estudávamos então, nas arcadas do velho conjunto de edifícios que se estendia da Rua Duque à Fernando Machado, algo mais do que uma concepção do mundo ou de uma visão de vida.

Mais do que os sentidos etimológicos, imergíamos nós, os adolescentes de 15 a 18 anos, na gênese do pensamento, na fase mítica ou afilosófica, na atitude grega, na Escola Jônica. Aprendíamos que o homem é mais psíquico que material, que a história do pensamento humano se confunde com a própria história da razão humana.

Nomes como Tales de Mileto, Anaximandro, Demócrito, Heráclito, Pitágoras, Eurípedes, Anaxágoras, Parmênides nos eram quase familiares. Sem falar em Sócrates, Platão e Aristóteles. É claro que isso não nos absolvia de aprender Matemática, Química, Física ou Biologia, ou de entoar Canto Orfeônico.

Aí veio o 31 de março, já aqui duas vezes citado, e tudo isso foi abaixo. Agora as coisas parecem estar mudando. Tenho uma sobrinha que estuda latim em sua escola particular. Estuda também filosofia. Há essa nova lei que devolve matérias esquecidas aos currículos.

Não importa se, de início, estejam elas contaminadas de um viés ideológico. A sensatez haverá de superar a superficialidade. E a educação será outra vez uma construtora de consciências.

Uma gostosa terça-feira. Aproveite o dia

sábado, 3 de abril de 2010



04 de abril de 2010 | N° 16295
MARTHA MEDEIROS


Vidas gastas antes do tempo

A pergunta mais aterrorizante hoje em dia é: “Que idade você me dá?”

Um dos fenômenos mais comentados nos dias que correm é a longevidade humana e seus efeitos estéticos. Hoje um homem ou uma mulher pode chegar aos 70 anos com cara de 60, e aos 60 com jeito de 50, lembrando que os 50 são os novos 40, e assim eliminamos 10 anos da nossa aparência, bastando para isso uma boa alimentação, exercícios físicos e uma ajudazinha de procedimentos que se tornaram corriqueiros, como aplicações de botox, preenchimentos e intervenções cirúrgicas.

Por causa disso, a pergunta mais aterrorizante hoje em dia é: Que idade você me dá?. Por favor. A pessoa pode ter 36, 48 ou 57, como responder sem ferir suscetibilidades? Dos 30 aos 60 estão todos com a mesma cara.

Reconheço que a nossa aparência jovial é um assunto que já saturou. Ninguém fala em outra coisa, e os elogios que são ouvidos nas ruas só confirmam o milagre do rejuvenescimento.

“O tempo não passa pra você”.

“Rapaz, você está igual, só que com menos cabelo”.

“Você já tem 50? Ninguém diria!”

Até parece que conseguimos finalmente parar o tempo. Mas é mentira que estamos todos com a mesma cara. Olhe bem para o rosto de uma mulher que passou anos lavrando a terra no interior do Estado e criando sete filhos sem ajuda alguma. Quantos anos você lhe dá?

Estamos esquecendo que, para muita gente (um grupo bem maior do que a nossa turminha), perdura outro milagre: o do envelhecimento precoce. São aquelas pessoas que você jura que têm 40 anos, mas que têm 29.

Que você daria uns 55 sem titubear, mas que acabaram de completar 38. Só que eles não estão nas páginas das revistas para exibir esse também inacreditável efeito estético que a vida lhes proporciona.

O rosto conta a nossa história? Estou certa disso. Conta a respeito das facilidades cosméticas que tivemos acesso, aliadas ao nosso bem-estar e à nossa qualidade de vida, já que nossos problemas quase sempre são de ordem psicológica e se alojam mais na alma do que na pele.

Mas muita gente traz no rosto as marcas da luta diária pela sobrevivência, onde não há acesso a complexos vitamínicos, filtros solares nem muito motivo para achar a vida encantadora.

Eu a vi na tevê dia desses: era uma mulher com o corpo delicado, mas com mãos de estivador por causa do manuseio da enxada. Acorda todos os dias às 4h da manhã e lava seu cabelo desgrenhado com sabonete e água gelada. Seu rosto inteiro parecia a ponta de um dedo murcho, como quando se fica muito tempo dentro da piscina. O pescoço era um despenhadeiro.

Dois seios vazios, dois braços manchados e um filete de voz. Parecia ter uns 90 anos, no entanto, era bem mais jovem do que eu e você, ninguém diria.