sábado, 29 de março de 2008



30 de março de 2008
N° 15556 - Martha Medeiros


Aventureiros

Ter uma família não é nada ruim para quem tem espírito de aventura.

Mas, para quem não lida bem com o imponderável, o melhor é deixar pra lá

Você está na dúvida se quer ter filhos, então resolve visitar um casal de amigos que tem duas crianças. É a oportunidade de observar a rotina de uma família bem constituída e descobrir se é um modelo de vida que você e seu marido gostariam de reproduzir. A grande noite chega. O menino tem 6 anos, e a menina, 3.

A casa está um circo, há um pano amarelado aparecendo por baixo do sofá e na televisão está passando o DVD do Shrek. "Ninguém mais ouve música aqui em casa, só trilha sonora infantil", comenta sua amiga com um sorriso perturbado. Aliás, sua amiga não senta, está sempre em pé, de um lado para o outro.

A menina não quer comer nada. O menino diz que está sem sono, apesar de tropeçar nas próprias pernas. A menina abre sua bolsa (não a dela: a sua!), tira de dentro o celular e aperta em todas as teclas.

O menino chora porque não quer ir pra cama: não quer, não quer, não quer. A menina dança no meio da sala e não deixa ninguém conversar, exige a atenção todinha pra ela. O garoto passa voando por um copo e o quebra.

A menina pede para você emprestar a pulseira que você está usando, aquela feita de delicadíssimos cristais que podem arrebentar por qualquer coisinha.

Ao sair do jantar, você e seu marido olham um para o outro, se beijam no elevador e, sorrindo, decidem: claro que vamos ter os nossos! Vai ser totalmente diferente!

Não adianta. Quem nunca teve filho projeta um futuro mirabolante: "Os meus serão calmos, estudiosos, comerão só alimentos saudáveis, dormirão cedo, não fumarão, serão sociáveis, esportistas, gostarão de livros, viverão junto à natureza, terão muitos amigos e irão à missa".

Amém. Você pode evitar de ter uns pestinhas, educação funciona. Mas é bom estar preparado para imprevistos. Filho é uma incógnita.

Pode odiar tudo o que você adora, pode ter um humor diferente do seu, pode querer morar numa comunidade no meio do mato, pode não ser chegado aos estudos, pode ser um gênio:

nosso controle é relativo. Muitíssimo relativo. Quem acha que ser mãe e pai é criar alguém à sua imagem e semelhança, começa mal.

Ter filhos é um ótimo projeto pra quem não é egoísta e entende o significado das palavras responsabilidade, respeito, adoração e liberdade. Filhos são outras pessoas, não são nós.

Não querê-los é um desejo tão legítimo quanto querê-los, encontra-se felicidade em qualquer situação, não obrigatoriamente nas convenções.

Mas creiam-me: vale a pena. Uma filha quer ser médica, a outra quer trabalhar com moda. Uma anda com saias curtíssimas e pinta as unhas de rosa-choque, a outra não tira o jeans e o All Star.

Uma sonha em conhecer o mundo todo, a outra reclama de almoçar fora. Uma toca guitarra, a outra é um projeto de patricinha. E ambas odeiam o verão!! Fazer o quê, internar?

Me divirto com as minhas duas. Ter uma família não é nada ruim, mas sempre vai ser muito diferente do que se imaginou.

Portanto, pra quem tem espírito de aventura, bem-vindo a bordo, mas quem não lida bem com o imponderável, melhor mesmo deixar pra lá. Ou é um prazer, ou melhor não ter.

Um excelente domingo especialmente para você. Vá na Redenção ou ao Moinhos de Vento, ou ao Marinha, não importa. Respire ar puro, caminhe e divirta-se neta Semana de Porto Alegre.

Diogo Mainardi

Entendeu, Tabatha?

O blog de Paulo Henrique Amorim está em nome da Nexxy Capital Brasil Ltda., de Luiz Roberto Demarco. A internet é assim. Os blogueiros jornalistas podem criar uma nova identidade por dia. Mas sempre dá para descobrir quem manda neles

Quando um internauta faz uma piada, ele acrescenta: "Hahahahahaha". Pode ser também: "Kkkkkkkkkkk". Ou simplesmente: "Rsrsrs". A internet representa o retorno da risada enlatada. É como se fosse um episódio de A Feiticeira. Agora, Tabatha tem um blog.

Além da risada enlatada, a internet também reintroduziu a claque. Blogueiros enchem de comentários elogiosos os blogs de outros blogueiros. E blogueiros enchem de comentários elogiosos seus próprios blogs, usando identidades falsas.

Os jornalistas que foram afastados da grande imprensa procuraram se reciclar na internet. Eles cancelaram o passado e se apresentaram como promotores de um jornalismo independente e transparente, trombeteando a internet como o caminho para o futuro.

Na realidade, o que ocorreu foi o contrário: eles retomaram algumas das práticas mais antigas e mais imundas do jornalismo, como a chantagem, a mentira, a propaganda do poder e a matéria paga.

O internauta bocó, da risada enlatada e da claque, certamente é mais propenso a ser ludibriado pela imprensa marrom instalada na internet.

Por sorte, os instrumentos para policiar esse tipo de jornalismo encontram-se na própria internet. Posso mostrar como isso acontece, citando um caso menor, muito menor.

Recentemente, Paulo Henrique Amorim foi demitido do iG. No dia seguinte, ele abriu um blog com seu nome. Um leitor sugeriu que eu desse uma espiada no registro do blog. Descobri que seu servidor era a Nexxia.

A Nexxia pertence a Luiz Roberto Demarco, aquele da Lojinha do PT, o comércio on-line dos produtos licenciados pelo partido para arrecadar fundos eleitorais: bonés, camisetas, broches, relógios.

Fiz um podcast sobre o assunto. Paulo Henrique Amorim me chamou de mentiroso, mas imediatamente tratou de mudar o servidor.

Fui escarafunchar o novo registro do blog de Paulo Henrique Amorim. A Nexxia sumiu. Na parte inferior da página, porém, aparece um número: # 4330799.

Clicando nesse número, a gente é direcionado para outra página. Nela, revela-se que o blog de Paulo Henrique Amorim estava em nome da Nexxy Capital Brasil Ltda., de Luiz Roberto Demarco.

O negócio fica ainda mais esquisito do que isso. Sabe como está registrado o domínio nexxy.com.br? Ele está registrado em nome da PHA Comunicação e Serviços S/C Ltda.

Nesse jogo de propriedades cruzadas, Paulo Henrique Amorim tem o domínio da Nexxy e a Nexxy tem o domínio de Paulo Henrique Amorim.

Tanto o blog de Paulo Henrique Amorim quanto o domínio da Nexxy foram registrados com o mesmo documento:
003.534.337/0001-77.

Uma rápida consulta no site da Receita Federal permite dizer que esse é o número de CNPJ da Nexxy. Paulo Henrique Amorim escondeu o homem da Lojinha do PT, mas ele continua lá, dando as cartas. Pelo menos até o momento em que redijo este artigo.

A internet é assim: basta uma clicada para alterar o próprio perfil, basta uma clicada para apagar a própria folha corrida.

Os blogueiros jornalistas podem criar uma nova identidade por dia. Mas sempre dá para descobrir quem manda neles. Entendeu, Tabatha?

Ponto de vista: Lya Luft

"Minha mulher é uma santa"

"Mulheres que ‘perdoaram’ o marido e continuaram com ele – a não ser quando há um recíproco e real desejo de refazer a relação – têm no olhar uma tristeza como de viuvez que não se apaga"

Ilustração Atomica Studio

Nada país tem seus espantalhos. Aqui, figurões se esbaldam contratando bailarinas com cartões pagos por nós, os trouxas. Simples assim.

Nos Estados Unidos, flagrados em algo imoral (para eles), batem no peito em público, com a "santa esposa" ao lado. Por que essas mulheres reprimem a dor e a vergonha, apoiando o malandro diante de todos?

Pressões políticas das quais não sabem se esquivar? Medo da solidão? Melhor infeliz, mas casada? Aí a gente fecha um olho e fica desgraçada para sempre? Casamento pode ser uma doença a dois.

"Minha mulher é uma santa", dizem os puladores de cerca desde o tempo das cavernas. Essa figura da "santa" em casa é um mito a ser removido do nosso imaginário: quase sempre elas são acumuladoras de ressentimento e mágoa, que um dia, ou no dia-a-dia, se vingam até sem perceber.

Com cobranças, com acusações, ridicularizando o maridão diante de outros, jogando os filhos contra ele. E, se um dia houver uma separação, pobre do moço: sobre ele serão lançadas todas as fúrias possíveis.

A mim essa figura constrange tanto quanto a "santa" mulher exposta à violação do privado pelo público diante do seu país, o que aparece especialmente nos Estados Unidos.

Diante das câmeras sôfregas ou no segredo da casa, a mulher naturalmente perdoa, deve perdoar? Ainda é o que se espera dela? Consegue eventualmente perdoar e seguir a vida com esse parceiro, sem ressentimentos, corroendo a vida por baixo do tapete? E por que razões permanece com ele?

Há quem, sabendo-se traída, argumente curto e grosso: "Agora tenho sossego na cama". "Eu me vingo gastando os tubos", ou ainda: "É pelo bem dos filhos" (eles exigem o martírio materno).

Mulheres que "perdoaram" o marido e continuaram com ele – a não ser quando há um recíproco e real desejo de refazer a relação – têm no olhar uma tristeza como de viuvez que não se apaga.

E o parceiro, confiante na impunidade, já ocupado em novas aventuras, nem se dá conta disso, enquanto a mulher segue em frente, remoendo sabe-se lá que dúvidas, passando sabe-se lá que valores aos filhos, e que modelo às filhas. A mãe vítima é um peso do qual dificilmente hão de se livrar.

E quando esse drama vem a público, com mulheres firmes ao lado de quem enxovalhou amor, confiança e família, mas por apego a cargo ou poder bate no peito, assistimos talvez ao último degrau na descida ao inferno pessoal feminino.

Todo o esforço para que em nossa cultura a mulher se valorize anulava-se no rosto devastado junto ao atrapalhado dom-juan americano, campeão de hipocrisia, que ganhou a imprensa semanas atrás:

ele fazia do combate à prostituição sua bandeira, mas era freguês de caderno de um caríssimo clube de alegres moças. Nem o nome ele precisava dar: era o Cliente Número Nove.

Flagrado, pediu desculpas e prometeu se comportar, como o moleque que roubou maçãs do quintal da vizinha. "Minha mulher é uma santa", há de dizer na roda de amigos. Mais um ser humano ferido de morte. Simples assim.

Lya Luft é escritora


Ela vai resistir?

Como a crise provocada pelo vazamento de informações sigilosas de gastos pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afeta o futuro de Dilma Rousseff, a candidata preferida de Lula para 2010

Ricardo Amaral

O fim do verão de 2008 deveria ser a temporada de maturação da candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República.

Faltando pouco mais de dois anos para a eleição de 2010, Dilma ainda está longe de ser a candidata oficial à sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas ela é a “primeira da fila”, na definição de um colega do Planalto.

A poderosa chefe da Casa Civil passou as últimas semanas de março em favelas do Rio de Janeiro e em cidades do Nordeste, visitando obras e projetos ligados ao Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

À sombra da popularidade do presidente, que a chamou de “mãe do PAC”, Dilma deveria faturar politicamente o projeto de investimentos de R$ 500 milhões. Mas sua agenda política andou para trás, por problemas na retaguarda da Casa Civil.

A “mãe do PAC” terminou a semana sob a suspeita de ter sido a madrinha de uma engrenagem que pôs na rua informações sigilosas sobre despesas pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e da mulher dele, a professora Ruth Cardoso.

Trata-se de um maço de 13 folhas de papel, relacionando os nomes de Fernando Henrique e dona Ruth a gastos com aluguel de veículos, material de higiene pessoal, alimentação, bebidas e até lixas para unhas.

Não há na lista nenhuma despesa que possa ser considerada exorbitante para um ex-presidente da República e sua família, mas a legislação proíbe que esses gastos, feitos com dinheiro público, sejam divulgados.

A chefe da Casa Civil deveria ser a guardiã dos segredos que vazaram, e por isso está no primeiro lugar de uma outra fila – da linha de tiro.

Os papéis foram parar nas páginas da revista Veja – que acusou o governo de tê-los produzido para chantagear a oposição – e do jornal Folha de S.Paulo, que acusou a subchefe da Casa Civil, Erenice Guerra, de ter mandado reunir os dados sobre despesas de FHC e dona Ruth nos arquivos da Presidência.

A ministra nega que tenha feito qualquer coisa que possa ser chamada de um dossiê contra os adversários políticos (Clique aqui e leia a entrevista), mas admite que os papéis reproduzem dados que estavam sob sua responsabilidade.

“Temos uma base de dados sobre gastos da Presidência deste governo e do anterior”, diz a ministra. “Fantasiar isso como dossiê para chantagem é rebaixar o processo político.”

Ela abriu uma sindicância para apurar o vazamento e, numa conversa com o presidente Lula na noite da terça-feira, prometeu entregar a cabeça do responsável. “Não transforme esse caso num problema maior do que ele já é”, disse Lula a Dilma, de acordo com três outros auxiliares diretos do presidente.

A coleção de cabeças cortadas do governo Lula tem exemplares vistosos. Os ex-ministros José Dirceu, antecessor de Dilma na Casa Civil, e Antônio Palocci, ex-ministro da Fazenda, foram tão poderosos quanto Dilma ou até mais.

Ambos caíram debaixo de acusações pesadas e depois de ter recebido de Lula apoio e conselhos. Dilma será a próxima? A pergunta que se faz em Brasília é se ela conseguirá resistir, estando sob suspeita e sob o bombardeio da oposição.

Sobre as suspeitas, o Planalto argumenta que tinha a obrigação de organizar a relação de despesas deste governo e do anterior, mas não conseguiu ainda explicar por que foram à luz apenas as do período FHC.

A simples suspeita de que o governo teria usado a máquina pública para levantar informações contra adversários políticos é um problema enorme. “Isso é gravíssimo, é o Estado policial sendo instaurado pelo PT”, diz o deputado Raul Jungmann (PPS-PE), de oposição ao Planalto.

“A acusação de montar dossiês não tem como colar na imagem da ministra, porque não combina com o perfil de pessoa séria que ela tem”, diz o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), aliado do Planalto. “O lugar que ela ocupa no governo, sua importância, é que explica o que está ocorrendo.”

A CPI Mista dos Cartões Corporativos, que caminhava para um tedioso zero a zero entre Planalto e oposição – ambos trabalhando para não revelar os gastos secretos do atual governo e do anterior – ganhou novo fôlego com o vazamento.

Na semana passada, numa tumultuada reunião que durou cinco horas, o Planalto fez valer sua maioria e derrotou, por 14 votos a 7, um requerimento convocando a ministra para esclarecer o episódio.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mandou carta ao Senado, abrindo mão do sigilo sobre suas despesas pessoais.

A iniciativa é inócua, porque o sigilo protege a Presidência da República, não seus eventuais titulares, mas serviu para acossar politicamente o governo.


29 de março de 2008
N° 15555 - Cláudia Laitano


Você não está sozinho

No início dos anos 90, uma pequena grande banda chamada R.E.M. gravou a música Everybody Hurts - algo como "todo mundo sofre".

A letra, simples e eficiente, lembra que as dores vão e vêm - e que por mais solitária que pareça uma experiência de infelicidade, ela é inevitavelmente compartilhada por boa parte da espécie: "Segure a onda/ Todo mundo sofre/ Você não está sozinho".

Essa canção doce e triste, que desde então tem servido de conforto em momentos difíceis para fãs de todas as idades, foi originalmente composta mirando o público adolescente.

Não os garotos de propaganda de refrigerante, sempre sorridentes e com a chapinha em dia, mas aqueles de carne, osso e espinhas, que enfrentam com dificuldade as mudanças e os novos desafios que vêm com o fim da infância.

Quem já teve 15 anos sabe como nessa etapa da vida é difícil colocar idéias e sentimentos sob perspectiva, entender que tudo que parece definitivo e absoluto, e às vezes doloroso, tende a não ser tão grave assim.

O clipe da música, outro pequeno clássico pop, mostra pessoas trancadas em um congestionamento, absorvidas por seus dramas cotidianos, cercadas de gente e ao mesmo tempo isoladas. O alvo eram os jovens, mas adultos de qualquer grande cidade identificam a cena. A solidão urbana é quase tão universal quanto as crises da adolescência.

"Você não está sozinho" parece voltar a dizer Michael Stipe, vocalista e compositor do R.E.M, ao falar publicamente de sua homossexualidade em uma reportagem publicada na semana passada na revista americana Spin.

Para quem acompanha a carreira da banda, a revelação não é exatamente surpreendente - muito pelo contrário. Mesmo assim, durante anos Michael Stipe foi cobrado por não fazer uma declaração pública explícita como essa que foi publicada agora pela revista.

Em parte, pela curiosidade maliciosa que cerca a vida de todas as celebridades - especulações sobre a vida sexual dos famosos fazem sucesso desde os tempos de Cleópatra - , mas também pelo significado simbólico de uma declaração desse tipo.

Aos 48 anos, o cantor admitiu que apenas agora chegou à conclusão de que falar de um assunto privado poderia ser importante para outras pessoas: "Hoje eu reconheço que ter figuras públicas que falem abertamente sobre sua sexualidade pode ajudar algum garoto, em algum lugar".

Em uma época em que anônimos e celebridades fazem da exposição da vida privada quase um gênero paralelo de ficção, a entrevista de Michael Stipe poderia soar banal - assim como a da atriz Jodie Foster, também assumindo a homossexualidade em público pela primeira vez, em dezembro do ano passado.

Mas para aqueles artistas que preferem se impor pelo trabalho e não pelas peripécias da vida particular, revelações desse tipo nunca são banais. E se justificam apenas quando servem a um propósito que ultrapassa suas trajetórias individuais.

Com suas declarações, Michael Stipe e Jodie Foster ajudam a desmistificar uma condição que pode trazer sofrimento para adolescentes e suas famílias quando faltam esclarecimento e empenho para lidar com a questão de forma honesta e natural.

Às vezes, um simples "você não está sozinho" pode fazer toda a diferença.

quinta-feira, 27 de março de 2008



27 de março de 2008
N° 15553 - Nilson Souza


A cara de Porto Alegre

Um garçom, uma ascensorista, uma engraxate, um taxista e um vendedor de flores disputam a eleição informal que Zero Hora promove para homenagear os porto-alegrenses nesta semana de aniversário da capital gaúcha.

Os candidatos foram indicados pelos leitores e selecionados por uma equipe de jornalistas, pelo critério das citações e da exclusão de celebridades como Paulo SantAna e Paixão Côrtes.

A Cara de Porto Alegre, nesta promoção, será a de um cidadão comum - ainda que cada indivíduo, por mais anônimo que pareça, tenha peculiaridades que o tornem incomum perante os demais.

Gostei muito dos personagens escolhidos, pois me parecem extremamente representativos do povo da minha cidade. Não os conheço pessoalmente, mas tenho certeza de que qualquer um dos cinco será merecedor desta distinção.

Basta observar as atividades que exercem. Todos trabalham com o público. Se receberam o reconhecimento da indicação espontânea é porque exercem seus ofícios com dedicação, eficiência e simpatia. Além disso, suas ocupações são emblemáticas.

O garçom é quase sempre aquele sujeito que procuramos tratar pelo nome já no primeiro encontro, porque a intimidade nos faz crer que seremos bem servidos. Quando o cara é esperto, gentil e brincalhão, conquista até mesmo os clientes mais exigentes. O garçom, muitas vezes, é mais do que um simples atendente: é psicólogo, pai, amigo e confidente.

Se o garçom for eleito, farei um brinde para ele.

A ascensorista nos leva para o céu dos arranha-céus e nos devolve em segurança à realidade do chão, sem cobrar ingresso pelo passeio. Discreta no seu cantinho, exerce o poder mágico de acalmar claustrofóbicos, orientar desorientados, elevar espíritos e baixar tensões e pretensões.

Talvez mereça o último andar do pódio.

Engraxate é aquela criatura que nos pega pelos pés e nos dá um lustro na alma, especialmente quando tem espírito alegre, sabe contar anedotas ou aplicar uma batucada de discretas cócegas. Como não admirar alguém que consegue transformar poeira em brilho e nos trata com o carinho das pelúcias?

Será justo se o prêmio for parar nas suas mãos manchadas de trabalho.

O taxista nos conduz pelos labirintos da metrópole, conhece todos os rumos e todas as saídas. Pode ser um contador de histórias ou um silencioso acompanhante dos nossos pensamentos em trânsito. Quando é hábil, sabe acelerar sonhos e frear preocupações.

Se couber a ele a bandeirada da vitória, serei o primeiro a aplaudir.

Mas tem um homem que semeia rosas na noite dos porto-alegrenses e mistura seu canto ao perfume das flores.

Ainda que, com temperatura elevada neste Rio Grande, tenhamos todos uma ótima quinta-feira.

quarta-feira, 26 de março de 2008



26 de março de 2008 | N° 15552
Martha Medeiros


Jogo de cena

O novo documentário de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena, merece ser visto por inúmeros motivos.

Primeiro, é um show de humanidade. Na tela, uma seqüência de depoimentos de mulheres anônimas de todas as gerações e classes sociais. Elas contam seus dramas particulares como se estivessem numa sessão de psicanálise.

São dramas parecidos com os de todo mundo: relações complicadas com filhos, separações conjugais, sonhos que foram adiados, superações, o enfrentamento da morte, mas cada uma dessas histórias torna-se única pelo foco, pelo close, pela atenção que somos convidados a dar para cada uma dessas desconhecidas: atenção que quase não damos a mais ninguém aqui fora.

O pulo-do-gato da obra é que esses depoimentos são intercalados pela aparição de atrizes famosas que interpretam essas mulheres anônimas, repetindo o mesmo texto.

Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão aceitaram o desafio, e aí vem o instigante do filme: não chegaram lá, apesar de toda a tarimba que possuem. Os depoimentos verdadeiros dão um baile nos depoimentos encenados.

Fica evidente que ninguém consegue reproduzir uma emoção verdadeira, a não ser que não seja confrontado com a referência que o inspirou, ou seja: essas atrizes dão vida a personagens fictícios em novelas e peças de teatro com total competência, a gente até acredita que seus personagens existam, mas quando eles existem mesmo e são confrontados com a interpretação que recebem, a interpretação é desmascarada como tal.

É incrível ver a reação das atrizes diante do resultado, elas ficam desestabilizadas por não conseguirem dramatizar com naturalidade aquilo que não é arte roteirizada, e sim vida real.

E é nessa desestabilização que as atrizes também mostram sua faceta mais humana - e acabam por participar do documentário com depoimentos delas mesmas. Aí funciona.

Enfim, é um jogo de espelhos fascinante.

Por fim, mas não menos importante, todas as mulheres que aparecem no filme, por mais que tenham vidas sofridas - e como têm! - não perdem sua graça.

No auge de seus depoimentos dilacerantes, surge uma ou outra frase que faz a platéia gargalhar, porque todas elas conseguem, em algum momento de sua narrativa, buscar algo que atenua o drama, que alivia a pressão, que relativiza o que está sendo contado.

Não importa que elas não sejam grandes intelectuais: são inteligentes em sua postura de vida, sabem que até do sofrimento é possível arrancar um sorriso.

Fiquei orgulhosa delas e de todas as mulheres que, mesmo mergulhadas em dor, não perdem a noção de que a vida é apenas uma breve passagem e merece ser curtida com esperança e sem reverência extrema.

No final das contas, ficou claro que a tal alegria brasileira é mesmo redentora.

Hoje Dia Internacional do Sofá, aproveite e que tenhamos todos, uma excelente quarta-feira.

terça-feira, 25 de março de 2008



25 de março de 2008
N° 15551 - Liberato Vieira da Cunha


As chamas do paraíso

Ao que lembro, o único sorteio que ganhei foi no Colégio das Dores.

Me vi agraciado com uma flamante bola de couro número 5, que não tardou a ser estropiada nos torneios de futebol da Rua João Manoel.

Mesmo assim, não desisto de seduzir a esquiva dama que atende por Fortuna. A cada vez que a Mega Sena acumula 40 milhões, preencho um único cartão, sempre apostando em números invariáveis. Se por engano ou distração algum dia fosse premiado, não compraria um iate, uma Ferrari ou um jatinho.

Me presentearia com uma ilha, pendurada entre o céu e o mar, em algum ponto do Pacífico Sul.

Ergueria ali uma casa ampla, confortável e simples. Ornaria suas paredes com honestas falsificações de bailarinas de Degas e das sombras e luzes de Georges de La Tour. Dotaria as estantes da Lírica de Camões, das Memórias Póstumas de Brás Cubas, dos heterônimos de Pessoa.

Anestesiaria de Bach, Beethoven e Brahms enseadas e montanhas, horizontes e areias, vagas e palmeiras, mas não de modo a calar a sinfonia dos pássaros.

Despertaria cedo para ouvir o derradeiro canto das sereias, contemplaria o mergulho do último reflexo do luar sobre os corais submersos, receberia os amigos, a aragem do oceano, o azul das tempestades, as amadas por quem penou de paixão meu inquieto coração.

E escreveria. Comporia um livro em que se contivessem vórtices e vértices, desejos e paixões, cenas, frases, momentos, gestos, posses e entregas, êxtases e angústias, palavras esquecidas, reflexões interditas.

Para que, quando frágil me surpreendesse; e não me restassem nem mais o canto das sereias e os corais submersos; e entrevisse o vulto da Barqueira, batesse um súbito vendaval e o livro e a casa e as bailarinas de Degas e os heterônimos de mim mesmo fossem consumidos em uma legião de partículas imersas nas chamas de luz que desde o início da eternidade ardem no paraíso.

Ótima terça-feira, e para os que começam o mestrado de Economia lá na PUC, cuja aula inaugural é hoje, sucesso e boa sorte nas suas pesquisas e propósitos.


25 de março de 2008
N° 15551 - Cláudio Moreno


Nossas musas

Desde Hesíodo, a maioria dos autores gregos usa o mito de Pandora para explicar a criação da mulher.

Uns dizem que essa criatura, moldada pelos deuses, teria vindo para aliviar a solidão masculina; outros, entre os quais se alinha Hesíodo, acusam-na simplesmente de ser uma forma maquiavélica de castigar os pobres machos indefesos.

Não abraço nenhum dos dois partidos porque ambos pressupõem a crença ingênua de que a mulher nasceu para servir ao homem, seja como prêmio, seja como punição. Para explicar a presença feminina no planeta, prefiro recorrer ao mito das Musas.

Foi Zeus quem as gerou. Preocupado em tornar o mundo melhor e mais cheio de beleza, o rei do Olimpo visitou, por nove noites sucessivas, o leito de Mnemósine, a deusa da Memória; nove meses depois, nasceram as nove Musas, a quem devemos dons maravilhosos como a música, a dança, a poesia e todas as outras artes, bem como o talento e a intuição.

Viviam sempre alegres e sorridentes; dançavam e cantavam com extrema doçura e leveza, acompanhadas pela lira de Apolo, a quem obedeciam.

Eram bonitas e graciosas, sempre vestidas com roupas diáfanas e esvoaçantes. Alguns chegam ao cúmulo de dizer que elas tinham olhos cor de violeta.

Sendo mulheres exemplares, tudo nelas estava voltado para a preservação da vida. Embora o sacrifício de animais fosse comum nos altares gregos, as Musas rejeitavam qualquer derramamento de sangue e só aceitavam oferendas de água fresca, leite ou mel.

Amavam a paz, e jamais escultor ou pintor ousou representá-las armadas, como costumavam fazer com Atenas ou Artêmis, deusas guerreiras.

Sim, eram pacíficas e benfazejas, mas tolo seria quem pensasse que isso era sinal de fraqueza, como veio a descobrir o pobre Tamiris, poeta tolo e presunçoso.

Todos sabiam que as Musas penetravam na mente dos mortais para torná-los criativos; o artista afortunado que recebesse sua visita não teria problemas para encontrar o ritmo e as palavras certas para suas composições - mas não adiantava convocá-las, porque, assim como a fome, o amor ou a alegria, elas só viriam quando assim decidissem.

Tamiris quis assumir o controle e as desafiou para um concurso musical: se vencesse, poderia possuir todas as nove; se perdesse, elas fariam com ele o que quisessem.

Elas o derrotaram, tiraram-lhe os olhos, a lira e a memória, para puni-lo, como diz nosso poeta Antônio Cícero, pela insensatez de querer possuir aquelas que já o possuíam.

E ai da mulher que ousasse competir com elas! As Piérides, hábeis cantoras, desafiaram as Musas - e elas as transformaram num bando de gralhas barulhentas.

As sereias, que tinham corpo de ave e rosto de mulher, caíram no mesmo erro de enfrentá-las - e elas tiraram-lhes as penas, fazendo com que nunca mais pudessem voar.

Assim eram elas, e ainda o são, as nossas musas: doces e suaves, trazem beleza e paz para os que sabem tratá-las como merecem; para os outros, no entanto... Cuidado com elas!

domingo, 23 de março de 2008


DANUZA LEÃO

Nossos nobres colegas

Minha sugestão é que os deputados e senadores passassem a ter um salário de R$ 70 mil

QUEM NÃO GOSTARIA de ter seu salário triplicado? Todos nós, inclusive - e sobretudo - os deputados. Então, vamos batalhar para que isso aconteça.

Sinceramente, acho que deputados e senadores ganham pouco. O salário não passa de R$ 12 mil e uns quebrados, mais R$ 35 mil de despesas de gabinete e R$ 15 mil de verba indenizatória. Total: R$ 62 mil.

Minha sugestão é que os deputados e senadores passassem a ter um salário de R$ 70 mil. Em qualquer lugar do mundo R$ 70 mil é um belíssimo salário, só que todas as despesas -todas - teriam que ser pagas pelos próprios.

Vamos organizar: para começar, o governo deveria vender todos os apartamentos que, supostamente, serviriam de moradia a seus congressistas e cortar a ajuda de custo de R$ 3.000 para quem preferisse morar num apart.

Com R$ 70 mil dá para pagar aluguel, não dá? Vendendo os apartamentos, cairiam as despesas de geladeira, máquina de lavar, televisão, sofás, roupa de cama, enfim, tudo que é necessário para que um representante do povo more com conforto.

Ah, e os carros: cada um compraria o seu, pagaria seu próprio motorista, suas multas, quando elas existissem, e sobretudo a gasolina, aquela que daria para ir à lua não sei quantas mil vezes.

E os assessores; cada um teria quantos quisesse, e nada os impediria de contratar a mãe, a mulher, os filhos, noras, genros, etc. O dinheiro sendo deles, teriam todos o direito de fazer o que quisessem com ele.

Também poderiam alugar uma casa para dar suas festas com direito às mais lindas moças da cidade, pois a conta não seria paga pelo governo.

As passagens poderiam ser quantas fossem, desde que pagas do seu próprio bolso e a imprensa, que no fundo é a culpada de tudo, não poderia reclamar de nada, pois cada um faria do seu dinheiro, ganho honestamente, exatamente o que quisesse.

Seria necessário um conselho de ética para fiscalizar tudo, inclusive para escolher quais os deputados que não perdem as reuniões da ONU, mas não sei se essa seria uma boa idéia (aliás, o que fazem esses deputados em Nova York?).

O último Conselho de Ética acabou desmoralizado, quando Marcílio Marques Moreira foi contra um ministro que era também presidente de um partido.

E como hoje, com a informática, qualquer empresinha chinfrim pode fazer "conference calls", todas as reuniões que custam fortunas, inclusive a de Davos, poderiam ser feitas pelas tais "conference calls", o que seria uma imensa economia para todos os países.

E o deputado que quisesse ir a Paris com sua esposa compraria passagens em cinco módicas prestações, pelo cartão. Mais: os deputados trabalhariam onze meses por ano, sem direito a faltar, tendo apenas um mês de férias, como qualquer cidadão.

O único problema é que para que tudo isso acontecesse seria preciso que os 500 e não sei quantos deputados votassem a favor dessas medidas - aliás, pra que tanto deputado?-, e fosse diminuído também o número de senadores. Tem sentido, Roraima ter o mesmo número de senadores que São Paulo?

Mas sabe quando é que alguma dessas coisas vai acontecer? Nunca. Porque ninguém, sobretudo os políticos, vão querer abdicar de nenhum dos privilégios que eles mesmos criaram para si.

Se não fosse pela bela arquitetura de Niemeyer, a vontade que dá é de jogar uma bomba - várias, aliás - e acabar com Brasília.

danuza.leao@uol.com.br

sexta-feira, 21 de março de 2008



Que nesta Páscoa, você receba muitas bênçãos dos céus e encontre junto ao ninho do

coelhinho, além dos ovinhos embrulhadinhos, muita paz, muitas flores, muitas alegrias e

muitas energias renovadas.

Que esta passagem traga realmente renascimento, amor, esperança e libertação!

Você é uma pessoa muito especial!

"Disse Jesus: Eu vim para que todos tenham vida e vida completa!" (João 10:10b).

quinta-feira, 20 de março de 2008



20 de março de 2008
N° 15546 - Nilson Souza


A música da vida

Dona Ana é um show. Já a tinha visto dirigindo o seu fusquinha no Fantástico, mas esta semana tive o prazer de ouvi-la numa entrevista mais demorada, no rádio. Fiquei encantado.

Ela falou de sua vida, de seu trabalho voluntário e de seus planos para o futuro. E passou tanta energia, tanta vibração positiva, tanta sinceridade e tanta ternura na sua fala que tive vontade de aplaudi-la, mesmo estando sozinho dentro do meu carro e com as duas mãos no volante.

Aplaudi com o coração e com um misto de lágrimas e risos que brotaram espontâneos. Dona Ana Variani é uma fenômeno comovente.

Ela tem 97 anos, mora em Bento Gonçalves e pretende renovar a sua carteira de habilitação no mês que vem. Dirige diariamente o seu fusquinha 74, num trajeto entre sua casa e o Lar do Ancião, para o qual dá assistência social gratuita.

Lá estão hospedados cerca de 60 idosos, todos mais jovens do que ela. Mas dona Ana, com o seu metro e meio de altura e uma disposição incomum, movimenta-se entre os velhinhos, dá comida na boca para uma vovozinha, conversa com outra e deixa no ambiente o perfume de seu vigor quase centenário.

Parece um personagem de filme, uma espécie de gnomo do bem, capaz de apaziguar o mundo com o toque de sua mão trêmula e manchada pela passagem do século.

É uma mulher solidária, mas também determinada na busca de seus objetivos. Agora mesmo, resiste bravamente ao desejo do filho de afastá-la da direção do carro - com o compreensível propósito de preservá-la dos riscos de um trânsito cada vez mais agressivo e perigoso. Os argumentos de dona Ana, porém, são irrefutáveis:

- Dirigir é o meu único prazer. E eu ainda tenho boa vista e estou no meu juízo.

Mais juízo é impossível. De tão ajuizada, foi transformada em garota-propaganda da prefeitura de sua cidade natal, a qual promove com desenvoltura.

No início do mês, foi homenageada pelo governo do Estado com o Troféu Ana Terra, em reconhecimento ao seu trabalho social e comunitário. Nada mais adequado.

Dona Ana - forte, corajosa, capaz de suportar privações e de reconstruir vidas - poderia muito bem ser uma daquelas mulheres extraordinárias da literatura de Erico Verissimo.

Outro dia, vendo uma entrevista de Oscar Niemeyer, centenário e lúcido, falando sobre sua extensa obra e seus projetos atuais, fiquei pensando: "Bom mesmo é o arquiteto que o criou".

Agora, vendo e ouvindo dona Ana falar de sua vidinha simples, de sua obra maravilhosa e de seus planos futuros, ouso parafrasear o reconhecido projetista para fazer o fechamento deste comentário: "A vida talvez seja mesmo apenas um sopro, mas algumas pessoas conseguem transformá-lo numa bela música".

Uma ótima quinta-feira Santa para todos nós ainda que com temperatura super elevada por aqui, conforme pode-se ver aí a esquerda na Previsão do Tempo.

quarta-feira, 19 de março de 2008



19 de março de 2008
N° 15545 - Martha Medeiros


Furor tibetano

Semana passada, para explicar a uma amiga certas alterações do meu estado de espírito, fiz uma analogia: disse a ela que me sentia como se tivesse vivido durante muitos anos no Tibete e de repente tivessem me transferido para o Timor Leste.

Ela riu do contraste. Até dias atrás, quando alguém mencionava o Tibete, estava sugerindo um local de absoluta paz, perfeito para meditação, introspecção, suavidade.

Tibete, para mim, sempre foi sinônimo de calmaria, felicidade plena, compreensão mútua, dias longos, as montanhas em total comunhão com os seres humanos, enfim, um lugar hipoteticamente paradisíaco - não fosse o tédio e a facilidade de se pegar no sono.

Pois o Tibete está nas páginas de todos os jornais não por causa desse astral onírico e antiestresse, mas pelos conflitos e protestos dos tibetanos contra a dominação chinesa em Lhasa, a capital que virou mais um centro nervoso do mundo, o que, aparentemente, está em total contradição com os dogmas budistas.

Quem conhece bem a história tumultuada do Tibete sabe que essa ilusão de ele ser um país transcendental é apenas isso, uma ilusão - mas quem de nós não precisa de uma ilusãozinha de que a paz sobrevive em algum lugar?

Quando vi as imagens de monges chutando vidraças e atirando pedras em edifícios públicos, pensei: o mundo acabou mesmo. Monges tomados pela raiva! Revoltados! Agindo como estudantes da UNE em 1968! Como dói o desfacelamento de um estereótipo.

Mais uma vez um clichê se confirma: nada é o que parece ser. Nossa irritante mania de rotular tudo e todos impede que a gente enxergue o óbvio: pessoas calmas explodem, pessoas egoístas podem ser generosas, pessoas inteligentes fazem burradas, pessoas inexperientes acertam, pessoas chiques agem de modo horroroso, pessoas idosas têm muita energia - vai depender da situação.

Quando me perguntam se sou corajosa, respondo: corajosa para o quê? Para viajar sozinha, para entrar numa favela à noite, para brigar pelas minhas idéias, para matar uma lagartixa?

Sou corajosa e medrosa, varia conforme a circunstância. Você, por exemplo, é uma pessoa alegre? Depende onde e quando: alegre pra missa de sétimo dia, alegre pra feriado na praia, alegre pra reconhecer firma em cartório, alegre pra aumento de salário?

Ninguém corresponde 100% a um rótulo. Vale para todos os adjetivos e todos os pronomes pessoais: eu, tu, ele, nós, vós e eles, os tibetanos, esses odaras que também perdem a cabeça quando estão em jogo seus ideais.

Ainda que com chuva, conforme previsão que você pode conferir aí a esquerda no Blogger, que tenhamos todos uma ótima quarta-feira Santa.

terça-feira, 18 de março de 2008



18 de março de 2008
N° 15544 - Liberato Vieira da Cunha


Mutum

Mutum é um lugar que existe em mais uma dimensão: primeiro ele foi apenas um ponto da geografia de Minas Gerais, um lugar encantado e remoto, com a singela e terrível beleza de um fim de mundo, terra fértil mas quase desabitada;

depois, ele existiu na imaginação de Guimarães Rosa, que em 1956 lançou o livro Campo Geral, dentro do qual há uma novela de mesmo nome passada lá no Mutum, com a história do menino Miguilim; agora, ganhou forma e cartaz pelo filme de Sandra Kogut que assim se chama, Mutum.

Está nos cinemas e precisa ser visto por todo mundo que alguma vez foi menino tímido, criança amada e desamada, pequeno ser humano desejoso de conhecer o mundo para lá do horizonte familiar e/ou que tenha precisado haver-se com alguma perda forte.

O filme não requer nenhuma preliminar para ser apreciado, mas necessita de atenção, quando menos para o som das falas, sotaque muito diverso dos que conhecemos na redondeza ou pela televisão. A história se passa num confim do sertão, local afastado de tudo, depois do qual nada mais há; o tempo é agora, sem disfarces;

o ambiente, uma fazenda pobre, onde vive uma família patriarcal, pai, mãe, avó paterna, empregados e cinco filhos, um deles o Miguilim, aliás Thiago (personagem feito com muito acerto por Thiago da Silva Mariz).

O enredo é difícil de resumir sem machucar ou avançar demais: Thiago, de seus 9 anos, está voltando para casa, depois de haver ido à cidade para ser crismado, e vai reencontrar a família: seu querido irmão Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso, o ator), mais jovem e mais tranqüilo que ele, seus outros irmãos, sua avó quieta, e principalmente a mãe (Izadora Fernandes, exemplar no papel) e o pai, um truculento fazendeiro em crise, por um motivo dos mais relevantes para um patriarca como ele - sua mulher, a mãe de seus filhos, uma pessoa triste a partir dos olhos, talvez o esteja traindo.

Tem ainda o tio Terez, irmão do pai, que é quem leva e traz Miguilim/Thiago. Mais não se deve dizer agora, antes de o prezado leitor ir até o cinema.

Ou ir até o livro de Guimarães Rosa, que, como quase sempre ocorre, é melhor que o filme, pelas nuances que pode colocar à disposição do leitor.

Mas dizer isso não implica diminuir o filme, absolutamente: ele nos transporta para aquela secura afetiva da relação do menino com o pai, que julga seu filho alguém que o menospreza, assim como nos mergulha no oceano do afeto de Thiago com sua mãe, um daqueles momentos da vida em que o reconforto engolfa e supera qualquer dificuldade.

Sandra Kogut, em seu filme, teve a sabedoria de deixar implícitos certos momentos narrativos que Guimarães Rosa também deixou na sombra, o que é um acerto enorme em matéria de cinema, esta arte jovem que tantas vezes apela para o óbvio em nome da clareza.

E não cabe dizer mais, porque seria revelar o que o espectador tem que viver lá, na hora.

O filme conseguiu reunir de novo, num mesmo relato, a peculiar mescla de delicadeza, profundidade e atenção para os afetos mais antigos da experiência humana.

Se amanhã será quarta-feira santa, hoje deve ser terça-feira santa. Que ela seja ótima para todos nós.

segunda-feira, 17 de março de 2008



17 de março de 2008
N° 15543 - Kledir Ramil


Coisas estranhas

Nosso dia-a-dia é cheio de coisas estranhas. Coisas com as quais nos acostumamos a conviver, mas se formos pensar direito, parecem de outro mundo. Apesar de nós mesmos termos inventado ou descoberto.

Eletricidade - é a prova de que Deus existe, ou pelo menos de que "há muito mais coisas entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã filosofia". Não se vê, não se ouve e não tem cheiro, ou seja, é um negócio sobrenatural. Você só descobre o que é a eletricidade quando enfia os dois dedos na tomada e sente uma força poderosa, que queima até a raiz dos cabelos.

Lâmpada - um bulbo de vidro, com uma pequena resistência em forma de mola, que ao ficar incandescente ilumina tudo à sua volta. Não me pergunte como. Pra mim, é coisa do além.

Telefone celular - aparelho que toca musiquinhas chatas, em alto volume. Serve para tirar fotografias, escutar mp3, enviar torpedos e compartilhar seus problemas pessoais com as pessoas à sua aolta. Ah, e também para conversar com os outros, à distância.

Saca-rolhas - um pedaço de ferro retorcido, imitando um rabo de porco, que serve para abrir garrafas de vinho. O homem já inventou coisas admiráveis, no entanto o vinho continua sendo tampado com uma bucha de cortiça e destampado com um parafuso. Deve ser por uma questão sentimental. Ou talvez esteja aí o segredo de certos bouquets e sabores. Detalhe para o saca-rolhas de canhoto, com a espiral pro outro lado.

Elevador - caixa grande, cheia de botões, usada para carregar verticalmente pessoas de um andar a outro. Substitui, com vantagens, a escada, desde que haja energia elétrica.

Porta automática - um tipo de porta inteligente que percebe que você chegou e quer entrar. Ou sair. É uma evolução do famoso portão da caverna dos tesouros de Ali Babá, que funcionava ao comando da frase mágica: abre-te Sésamo!

Internet - entidade abstrata que cresce de forma assustadora e descontrolada. Há teorias que sustentam que é um vírus de origem alienígena.

Computador - máquina de escrever que também serve para jogar paciência. O grande prejuízo é que, ao escrever, o computador não imprime automaticamente cada letra. Você precisa primeiro terminar o serviço. Depois, vai necessitar um outro equipamento para fazer essa função. Claro, você terá que comprar uma impressora.

Mas o pior não é isso, é o preço do cartucho de tinta que é preciso trocar o tempo todo. Mais uma armadilha do mercado de consumo, por sua vez, uma das coisas mais estranhas inventada pelo homem.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana santa. Prepare-se para o coelhinho no domingo

domingo, 16 de março de 2008

Não esqueça de desligar o rádio antes de assitir ao vídeo.


DANUZA LEÃO

Rejeição e culpa

Para um filho, os pais devem amá-lo sobre todas as coisas e dedicar todos os momentos de sua vida a ele

NÃO É PRECISO muita coisa para que a gente se sinta rejeitado. A tendência natural é pensar que ninguém gosta da gente, ou pelo menos não tanto quanto se precisa. E disso se precisa muito.

Começando pelo básico: alguém acha que é -ou foi- amado suficientemente pelo pai e pela mãe?

Claro que não. E aquele dia em que os dois saíram para jantar fora e ir ao cinema? Você, com cinco anos e resfriado, queria que eles ficassem a seu lado, contando uma história, e dessa noite nunca se esqueceu.

É a maior prova de que eles jamais gostaram de você. E quando eles se separaram, a culpa não foi toda sua?

E quando o pai, já separado, foi convidado para aquele fim de semana de sonho, e propôs trocar o tal fim de semana que ia passar com o filho; ele se sentiu tão rejeitado e abandonado quanto um menino de rua, e o pai vai passar o fim de semana - e o resto da vida- massacrado pela culpa.

As crianças vão para o analista se queixar dos pais, os pais vão para o analista para dizer que foram péssimos pais, e assim la nave va.

Mas um dia essas crianças crescem, se casam, têm seus filhos, se separam, se apaixonam e agem com seus filhos exatamente como seus pais agiram com ele.

Vão todos para o analista, claro, e aos 50, 60 anos, continuam se queixando; um de ter sido rejeitado, o outro sofrendo por não ter dado mais atenção aos filhos.

Todos têm razão, claro, mas querer que um pai ou uma mãe aos 25, 30 anos, em plena juventude, com os hormônios explodindo, passem as noites em casa contando histórias para os filhos na hora de dormir é contra qualquer lei da natureza, e um dia eles vão entender.

Qual seria a solução? Ter filhos aos 40, depois de ter feito todas as loucuras? Não sei. Para um filho, os pais devem amá-lo sobre todas as coisas, e dedicar todos os momentos de sua vida a ele.

Eu conheço um que, aos 45, leva a namorada para a praia para vê-lo surfar, e ai dela se se virar para pegar um sol nas costas. E ai daquele pai que uma noite não pode passar uma hora jogando um joguinho na televisão porque precisa entregar um trabalho no dia seguinte.

Se tiver marcado um cinema, esse filho, aos 40, ainda vai lembrar do assunto, achando que seu pai e sua mãe não foram como deveriam ter sido -e sofrendo, claro.

Queremos atenção total dos que nos cercam, sobretudo quando somos crianças, e quando envelhecermos é que vamos saber o que é falta de atenção de verdade. Para que isso não aconteça, é preciso ter vida própria, e desde cedo.

Mas quantos momentos teriam sido tão bons, se mãe e filho pudessem se dizer francamente "naquele dia quase te matei, de tanta raiva", e darem uma boa risada, lembrando.

Porque isso acontece, entre pessoas normais. E falar também dos momentos, jamais verbalizados, em que a mãe amou -e ama- esse filho loucamente, mais que qualquer coisa na vida, e que depois que ele cresceu nunca mais disse, porque não faz parte da nossa cultura fazer declaração de amor a filho grande, até porque ele é o primeiro a não querer ouvir essas coisas depois que cresce, olha que mundo mais louco.

Ah, se a gente pudesse botar eles no colo quando desconfia que estão tristes, e abraçar, apertar, cobrir de beijos, como quando eram pequenos; mas como eles cresceram, não se pode. Mas ah, se eles soubessem; ah, se a gente conseguisse dizer.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 15 de março de 2008



16 de março de 2008
N° 15542 - Martha Medeiros


Os quatro fantasmas

Só convivendo amigavelmente com a finitude, a liberdade, a solidão e a falta de sentido da vida é que conseguiremos atravessar os dias de forma mais alegre

Leiga, totalmente leiga em psicanálise, é o que sou. Mas interessada como se dela dependesse minha sobrevivência.

Para saciar essa minha curiosidade, costumo ler alguns livros sobre o assunto, e acabei descobrindo (não lembro através de qual autor, sinto muito) as quatro principais questões que assombram nossas vidas e que determinam nossa sanidade mental.

São elas:

1) sabemos que vamos morrer;

2) somos livres para viver como desejamos;

3) nossa solidão é intrínseca;

4) a vida não tem sentido.

Basicamente, isso. Nossas maiores angústias e dificuldades advém da maneira como lidamos com nossa finitude, com nossa liberdade, com nossa solidão e com a gratuidade da vida. Sábio é aquele que, diante dessas quatro verdades, não se desespera. Realmente, não são questões fáceis.

A consciência de que vamos morrer talvez seja a mais desestabilizadora, mas costumamos pensar nisso apenas quando há uma ameaça concreta: o diagnóstico de uma doença ou o avanço da idade. As outras perturbações são mais corriqueiras.

Somos livres para escolher o que fazer de nossas vidas, e isso é amedrontador, pois coloca a responsabilidade em nossas mãos.

A solidão assusta também, mas sabemos que há como conviver com ela: basta que a gente dê conteúdo à nossa existência, que tenhamos uma vontade incessante de aprender, de saber, de se autoconhecer.

Quanto à gratuidade da vida, alguns resolvem com religião, outros com bom humor e humildade. O que estamos fazendo aqui? Estamos todos de passagem.

Portanto, não aborreça os outros e nem a si próprio, trate de fazer o bem e de se divertir, que já é um grande projeto pessoal.

Volto a destacar: bom humor e humildade são essenciais para ficarmos em paz. Os arrogantes são os que menos conseguem conviver com a finitude, com a liberdade, com a solidão e com a falta de sentido da vida.

Eles se julgam imortais, eles querem ditar as regras para os outros, eles recusam o silêncio e não vivem sem aplausos e holofotes, dos quais são patéticos dependentes.

A arrogância e a falta de humor conduzem muita gente a um sofrimento que poderia ser bastante minimizado: bastaria que eles tivessem mais tolerância diante das incertezas.

Tudo é incerto, a começar pela data da nossa morte. Incerto é nosso destino, pois, por mais que façamos escolhas, elas só se mostrarão acertadas ou desastrosas lá adiante, na hora do balanço final. Incertos são nossos amores, e por isso é tão importante sentir-se bem mesmo estando só.

Enfim, incerta é a vida e tudo o que ela comporta. Somos aprendizes, somos novatos, mas beneficiários de uma dádiva: nascemos. Tivemos a chance de existir. De se relacionar. De fazer tentativas. O sentido disso tudo? Fazer parte. Simplesmente fazer parte.

Muitos têm uma dificuldade tremenda em aceitar essa transitoriedade. Por isso a psicoterapia é tão benéfica. Ela estende a mão e ajuda a domar nosso medo.

Só convivendo amigavelmente com esses quatro fantasmas - finitude, liberdade, solidão e falta de sentido da vida - é que conseguiremos atravessar os dias de forma mais alegre e desassombrada.

Diogo Mainardi

O esquerdismo clinicamente morto

"Li que Dilma Rousseff perdeu 12 quilos para se eleger à Presidência. Pelo que entendi, trata-se do principal ponto de sua plataforma eleitoral. Estou torcendo para que Dilma Rousseff seja a candidata do PT em 2010. Estou torcendo muito. Sem a Dilma, o PT chega em terceiro lugar. Com a Dilma, ele chega em quinto"

"Como deixei de ser um esquerdista clinicamente morto." É mais ou menos esse o título de um artigo de David Mamet no Village Voice. Para quem está boiando, David Mamet é um dos maiores dramaturgos dos Estados Unidos. Village Voice é um jornal de Nova York. E "esquerdista clinicamente morto" é todo mundo menos a patota de VEJA, considerando-se o que se diz por aí a nosso respeito.

David Mamet foi um esquerdista clinicamente morto até o dia em que se pegou imprecando contra a rádio pública americana. Ele se deu conta de que suas antigas idéias políticas já não refletiam a realidade: do preconceito contra as grandes empresas – cujos produtos ele consumia – ao ódio pelos militares – que arriscavam a vida para protegê-lo de um mundo hostil.

Ele passou a questionar o papel do governo, rejeitando o intervencionismo estatal, um dos mitos inabdicáveis dos esquerdistas clinicamente mortos: "Mas, se o governo não intervém, como é que nós, meros seres humanos, vamos fazer?

Eu li e refleti, e me ocorreu que eu conhecia a resposta, que é a seguinte: parece que nós simplesmente sabemos". Para demonstrar isso, David Mamet fez um paralelo com o teatro: "Tire o diretor de uma peça teatral e o que acontece? Em geral, menos conflitos, um período mais curto de ensaios e um resultado melhor".

O teorema de David Mamet pode ser aplicado a todas as esferas da política. Dilma Rousseff está tentando cacifar sua candidatura presidencial graças ao PAC. Tire Dilma Rousseff do PAC e o que acontece? Menos conflitos, um período mais curto de obras e um resultado melhor.

Estou torcendo para que Dilma Rousseff seja a candidata do PT em 2010. Estou torcendo muito. Sem a Dilma, o PT chega em terceiro lugar. Com a Dilma, ele chega em quinto. Quinto é bem melhor do que terceiro.

Com a Dilma é bem melhor do que sem a Dilma. Os esquerdistas clinicamente mortos parecem entusiasmados com Dilma Rousseff. Eu também. No que se refere à sua candidatura, pode-se dizer que sou esquerdista clinicamente morto.

Li que Dilma Rousseff perdeu 12 quilos para se eleger à Presidência. Pelo que entendi, trata-se do principal ponto de sua plataforma eleitoral.

Quem também emagreceu um bocado no último período foi Caio Blinder. O suficiente para se eleger vereador. Caio Blinder é a Dilma Rousseff do Manhattan Connection.

Passei a semana com ele, para a festa dos quinze anos do programa. Falamos sobre o passado e sobre o futuro. O passado remete a 1993, quando o Manhattan Connection foi ao ar pela primeira vez. Em 1993, eu era um romancista sem leitores. É bom ser um romancista sem leitores.

A gente só pensa na posteridade. Agora minha vida piorou tremendamente. Eu só penso no futuro, e o futuro é muito mais aborrecido do que a posteridade. Meu futuro é tentar sobreviver aos esquerdistas clinicamente mortos.

Ponto de vista: Lya Luft

Uma história de delicadeza

"Dirão que aprovo que uma adolescente engravide e dê seu bebê. Não aprovo nem recomendo. Recomendo que a gente abra os olhos e veja em Juno a história de delicadezas que o filme também é"

Raramente comento livros e filmes: estou do outro lado do balcão. Mas leio e escuto da parte de profissionais ou amadores, que pensam saber de tudo, demasiadas bobagens sobre o assunto. Eu apenas dou a minha interpretação da humanidade expressa no filme Juno. Original, provocador, às vezes irritante. Não me interessa se é ou não um "grande filme". Por que só assistir aos chamados grandes filmes e só ler os ditos grandes livros?

Ilustração Atômica Studio

Para os moralistas, Juno é o elogio da irresponsabilidade: uma adolescente americana engravida quase por acaso, é apoiada pela família, mas resolve entregar o bebê a quem julga que serão bons pais.

Para os convencionais, será improvável: uma quase-menina passa pela prova extrema da maternidade, dá a criança, e tudo termina com ela e o namorado cantando num jardim florido. Mas o filme, como a adolescente Juno, é singular. Todo o tempo a gente hesita entre botá-la de castigo e botá-la no colo.

Solitária, caminha contra a corrente de seus colegas nos corredores da escola, expondo-se aos olhares críticos. Surpreende por ser muito mais informada do que o habitual em sua idade. Nada convencional, mas vivendo num lar afetuoso, transa sem proteção, engravida.

Mesmo apoiada pela família, resolve tomar a si as decisões: vai fazer um aborto numa clínica. Protegendo-se da emoção, com a típica arrogância dos assustados, fala do bebê como "a coisa" que ela simplesmente vai expelir.

Mas a natureza inclui sentimentos além de hormônios, ou faz hormônios manipular sentimentos. Dando-se conta de que tem dentro de si uma pessoazinha, "com unhas", Juno desiste do aborto: vai dá-la ao que parece um casal ideal. Responsável, ela sabe que, com seu namorado de 16 anos, não tem condições de criar um filho e não quer passar esse encargo para a família.

Com bravata típica, insiste em que tudo é apenas um processo fisiológico, mas encanta-se com a ecografia da criança, a madrasta a faz comer comida saudável e pede que não chegue "perto do microondas".

A certa altura, o casamento dos candidatos à adoção desmorona. Primeira reação nossa (minha): agora ela vai ficar com a criança, ou terá um caso com o futuro pai adotivo.

Mas – um de seus encantos – o filme tem surpresas: observadora e determinada, vendo a candidata a mãe, já separada do marido, brincando amorosamente com uma criança, Juno decide entregar-lhe o bebê.

A princípio impliquei com a cena final: depois de tudo, violão e flores? Mas um autor de ficção escreve o que quiser. Uma adolescente nada fútil entrega seu bebê para adoção num gesto consciente, aprende a amar o pai dele, um meninão feioso que, segundo ela, é "o cara mais legal de todos".

A vida segue: que seja boa. Dirão que aprovo que uma adolescente engravide e dê seu bebê. Não aprovo nem recomendo. Recomendo que a gente abra os olhos e veja em Juno a história de delicadezas que ele também é.

Lya Luft é escritora


Por que o Brasil pode vencer a corrupção

Declínio, devassidão e indecência. as palavras mais usadas pelos dicionários para definir corrupção envolvem um incômodo tipo de decadência moral.

Pesquisas recentes revelam que a corrupção é o principal motivo de vergonha dos brasileiros, acima da violência e da pobreza. Essa grande vilã é ainda mais nefasta por ajudar a perpetuar a miséria e a criminalidade.

Com a corrupção, interesses pessoais se sobrepõem aos coletivos. O bem comum dá lugar ao enriquecimento ilícito de poucos.

Experiências internacionais mostram que combater a corrupção é o primeiro passo para conter o crime organizado e também para criar instituições sólidas em todos os países. É fato que o Brasil progrediu nesse campo. Desde a Constituição de 1988, os procuradores do Ministério Público podem agir de forma independente na fiscalização de políticos e funcionários públicos.

O Congresso também tem ampla liberdade para investigar o governo. Há órgãos atuantes na fiscalização das contas públicas, como a Controladoria-Geral da União (CGU) ou os tribunais de contas. Já flagramos parlamentares, governadores, prefeitos e até um presidente – Fernando Collor, que sofreu impeachment.

Esse avanço institucional se dá de modo gradual. À medida que as denúncias iluminam o submundo da política e da burocracia estatal, a descoberta de novas brechas para a corrupção permite aperfeiçoar ainda mais as instituições.

Nesta primeira edição de ÉPOCA Debate, procuramos entender como o Brasil tem avançado no combate à corrupção e o que falta para que o país consiga debelar esse problema secular.

Investigar, identificar e prender suspeitos é o primeiro passo no combate aos corruptos

A maior novidade dos últimos anos no combate aos corruptos tem sido a ação da Polícia Federal. Com operações de nomes estrepitosos – como Gafanhoto, Gato de Botas, Cavalo de Tróia, Sanguessuga ou Navalha–, a PF foi a instituição que mais avançou no combate à corrupção.

Entre 2003 e 2006, foram desbaratadas organizações criminosas que movimentaram mais de R$ 50 bilhões e fizeram o país perder, em desvio de dinheiro e sonegação fiscal, mais de R$ 18 bilhões, o equivalente ao orçamento anual do Estado do Paraná. Em muitos casos, a PF foi acusada de cometer exageros e de transformar suas operações em espetáculos televisivos.

Mas o salto institucional é indiscutível. “Rompemos com a inércia do imaginário do cidadão. Hoje, todos estão conscientes de que podem ser alcançados pelo Estado”, diz o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa.

Esquemas de desvio de dinheiro público, antes considerados um aspecto inerente à burocracia estatal, passaram a ser investigados, denunciados e desbaratados, sem poupar empresários, juízes ou políticos.

O retrato da impunidade

Investigar, identificar e prender suspeitos é, porém, apenas o primeiro elo da corrente de combate aos corruptos. Condená-los a penas severas na Justiça é o passo seguinte – e é nesse ponto que o Brasil tem falhado. É isso o que mostra o mais completo levantamento já realizado no país sobre as investigações da Polícia Federal nos últimos anos.

Durante três meses, ÉPOCA pesquisou, uma a uma, todas as 292 operações realizadas pela Polícia Federal entre junho de 2003 e dezembro de 2006. Dessas, 216 se referiam a casos de corrupção, com o envolvimento de agentes e órgãos públicos (são esses os casos apresentados no quadro que percorre as próximas páginas).

O levantamento não incluiu as operações realizadas a partir de 2007 – o critério foi averiguar apenas as operações com intervalo de tempo suficiente para que os processos na Justiça chegassem, pelo menos, ao fim de julgamento na primeira instância. Para medir o resultado das operações da PF, a reportagem entrevistou mais de uma centena de delegados, procuradores e juízes envolvidos nessas ações.

Decantou cada inquérito entregue pela PF ao Ministério Público e as denúncias remetidas para os tribunais de Justiça. O objetivo era descobrir quantos presos, afinal, foram efetivamente condenados e punidos com cadeia. As conclusões foram as seguintes:

nas 216 operações, a Polícia Federal prendeu 3.712 pessoas para averiguação entre elas, havia 1.098 funcionários públicos (107 da própria PF) apenas 432, ou 11%, tinham sido condenados pela Justiça em primeira instância até o fim do ano passado
dos condenados, só 265 realmente estavam cumprindo pena de prisão até o fim do ano passado – 7% de todos que foram detidos.

Tradução: de cada cem suspeitos detidos pela polícia, apenas sete acabaram na cadeia. Esses números revelam a ineficiência da Justiça em punir com rapidez. Eles sugerem que o Brasil, no combate à corrupção, vive a clássica situação do copo cheio pela metade: ele está meio cheio, mas também meio vazio.

Avançamos, é verdade. Mas não o suficiente para derrotar o principal motor da corrupção: a impunidade. Quando apenas sete de cada cem suspeitos de corrupção vão para a cadeia, fica difícil para um corrupto imaginar que ele poderá ser punido por seus crimes.

O Brasil perde a cada ano 5% do PIB por causa da corrupção, segundo um estudo da FGV

“A certeza da punição é o que diminui o crime, e não uma pena mais ou menos dura”, diz a cientista política Maria Tereza Sadek, professora da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores especialistas brasileiras em Justiça (clique aqui e leia a entrevista). “Os comportamentos desviantes são estimulados se as pessoas não têm a certeza de que serão punidas.”

O combate à corrupção no Brasil lembra o mito grego de Sísifo. Por ofender os deuses, Sísifo fora condenado a empurrar uma pedra montanha acima. Quando chegava ao topo, a pedra rolava montanha abaixo.

Sísifo precisava, então, refazer todo o trabalho. Se a Justiça falha na punição dos corruptos, se é a impunidade que prevalece, o país fica sempre, como Sísifo, empurrando pedras montanhas acima, num esforço inútil.

O primeiro efeito da impunidade é a lassidão moral que se abate sobre a sociedade. Os brasileiros se acostumaram a associar corrupção ao desvio de verbas públicas. Mas ela é mais que isso.

Vai do “presentinho” que a empresa oferece ao funcionário público até a compra de sentenças no Judiciário. É a propina que as quadrilhas pagam aos fiscais para extrair e contrabandear madeira ilegalmente; o suborno do policial de rua que faz vistas grossas à prostituição infantil e ao tráfico de drogas; o “ágio” pago à auto-escola para tirar a carteira de habilitação sem fazer exame.

Longe dos grandes escândalos que ganham os holofotes da mídia, a corrupção se dissemina no varejo anonimamente. Ao incorporar o suborno como inevitável – graças à sensação de impunidade –, o país incorre numa auto-sabotagem velada. O fiscal que deixa entrar mercadorias pirateadas da China permite a concorrência desleal à indústria brasileira.

O funcionário público que desvia um lote de vacinas expõe as pessoas ao risco de morrer. Onde há um servidor público corrupto, o Estado perde eficiência, a população deixa de ser atendida como merece e o crime se fortalece.

Tudo isso tem um custo econômico. O Brasil perde, a cada ano, o equivalente a 5% do PIB, ou R$ 130 bilhões, por causa da corrupção, segundo cálculos do economista Marcos Fernandes, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo. “O custo da corrupção não é só o valor do dinheiro drenado do poder público e dos indivíduos”, diz Fernandes.

“O problema grave da impunidade é que ele é sintoma de insegurança jurídica.” A segurança jurídica – um conjunto de regras claras e estáveis em que todos confiem – traz investimentos, crescimento, empregos, inovação e difusão de tecnologia. A corrupção piora os indicadores sociais porque retira dinheiro da segurança, da saúde e da educação, contribui para a manutenção da carga tributária e reduz a competitividade da economia.

De acordo com os estudos de Fernandes, o PIB do Brasil poderia crescer até 2 pontos porcentuais a mais todos os anos, se não fosse a corrupção. Por causa da impunidade, a economia brasileira comporta-se como um trem que anda mais devagar do que poderia porque uma de suas rodas está fora dos trilhos.

O que fazer para evitar que o Brasil continue a carregar as pedras da corrupção montanhas acima, apenas para vê-las cair logo em seguida? A experiência de outros países ensina que um dos caminhos mais eficientes para inibir a corrupção é tornar as ações dos governos mais transparentes. A falta de informações é uma aliada dos s corruptos.

O segredo, nesse caso, chama-se internet. No Brasil, nos últimos anos, foram desenvolvidos alguns sites que permitem o acompanhamento detalhado de gastos do governo, a conferência de despesas e receitas de campanhas eleitorais e até as declarações de bens de parlamentares eleitos.

Os mais conhecidos são o Portal da Transparência, do governo federal, o site do Tribunal Superior Eleitoral e o Projeto Excelências, mantido pela ONG Transparência Brasil.

Todos eles contêm informações que, a rigor, são públicas há muitos anos, mas eram inescrutáveis, pois estavam escondidas em cartórios eleitorais ou escaninhos do governo.

Transparência tende a inibir os corruptos. Como os dados podem ser rastreados, fica perigoso roubar. A idéia por trás do uso da internet como ferramenta de combate à corrupção é permitir que cada cidadão seja um fiscal em potencial. É um entendimento cada vez mais comum em democracias desenvolvidas.

Os órgãos de controle não têm condições de olhar tudo. Eles trabalham por amostragem ou a partir das denúncias que recebem. Ao dar transparência total às informações públicas, os sites permitem que qualquer um verifique algo que pareça estranho, a quantidade e a qualidade das denúncias aumenta.

A corrupção, conseqüentemente, diminui. Há, ainda, um segundo fator positivo na divulgação de dados públicos na internet: a transparência inibe a iniciativa dos corruptos. Como os dados podem ser rastreados, fica cada vez mais arriscado roubar.

Um avanço maior, porém, só será possível com um choque de gestão e da qualidade na atuação do Judiciário e das instituições envolvidas no combate à corrupção. O trabalho desses órgãos, em muitos casos, não costuma ser coordenado.

A Controladoria-Geral da União, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e os tribunais de contas têm pouca ligação com a PF e com o Ministério Público. A polícia e o Ministério Público travam disputas agressivas pelo comando das investigações. E os dois têm divergências com a Justiça. Quando esses litígios são superados, bons resultados aparecem.

R$ 18 bilhões(1)
Esse é o prejuízo que governo federal, Estados e municípios tiveram com as quadrilhas presas pela PF entre 2003 e 2006. Os principais crimes foram desvio de verbas e sonegação fiscal

R$ 50 bilhões
Foi o que as quadrilhas presas pela PF movimentaram até ser pegas

A Polícia Federal apreendeu R$ 298,7 milhões em jóias, pedras preciosas e dinheiro (em espécie, cheques, cheques de viagem e títulos ao portador) - (1) Cálculo feito com base nas estimativas da Polícia Federal, Receita Federal, do INSS, Ibama e Ministério Público Federal

A importância da boa gestão é a principal lição do exemplo positivo da Polícia Federal. O aumento da produtividade da PF no combate à corrupção é resultado do investimento maciço em recursos humanos, tecnologia e gestão. De 2003, primeiro ano do governo Lula, até hoje, o orçamento da PF cresceu de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,5 bilhões por ano.

O efetivo aumentou com a contratação de quase 3 mil novos agentes, delegados e peritos. Para atrair profissionais mais qualificados, a remuneração foi melhorada. O salário inicial dos delegados, antes muito inferior ao dos promotores e ao dos juízes, passou de R$ 8.300, em 2003, para R$ 12.900.

Essas melhorias foram acompanhadas de maior autonomia nas investigações. Então comandada pelo delegado Paulo Lacerda, hoje à frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a PF aplicou mais de US$ 35 milhões na compra de equipamentos para perícia, grande parte deles importada do exterior.

Dois prédios foram construídos para acomodar o Instituto Nacional de Criminalística de Brasília. Foram montados ou ampliados os laboratórios para exames químicos, genéticos, de balística e de análise de imagens e som.

A capacidade de produção de análises e de laudos periciais aumentou 300%, segundo a PF. Com o quadro de funcionários maior e mais bem-preparado, a PF mudou também o método de trabalho de seus agentes. Antes, o esforço era concentrado na investigação e na prisão de suspeitos. Agora, o foco passou a ser desarticular quadrilhas inteiras.

Para desatar o nó da impunidade, a melhoria da gestão tem de ser levada para dentro do Poder Judiciário, segundo reconhecem as próprias associações de magistrados e juízes. Num estudo produzido com o Banco Mundial, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) coloca o aumento da eficiência como o principal desafio para superar a crise na Justiça.

“Falta aos juízes formação de administrador. Os concursos de juízes exigem dos candidatos conhecimentos de Direito, mas nada de Administração”, diz Rodrigo Collaço, ex-presidente da AMB. Essa cultura bacharelesca, predominante até agora, é uma das causas da impunidade, como mostra a próxima reportagem.

TRABALHARAM NESTA EDIÇÃO EDITORES: David Friedlander, Celso Masson e Guilherme Evelin REPORTAGEM: Ana Carolina Prado, Andréa Leal, Belisa Frangione, Josimara Silva, Larissa Soriano, Rodrigo Turrer,Thais Arbex e Wálter Nunes FOTOGRAFIA: André Sarmento, Paula Mendanha ARTE: Marcos Marques e Ricardo Martins INFOGRAFIA: Luiz Carlos Salomão e Marco Vergotti.

Ilustração: Nílson Cardoso. Fotos: Rogério Cassimiro/Folha Imagem e reprodução


15 de março de 2008
N° 15541 Cláudia Laitano


Livros que não lemos

Em Se um Viajante numa Noite de Inverno, o escritor italiano Italo Calvino propõe uma série de categorias heterodoxas em que os volumes poderiam ser classificados nas prateleiras de uma livraria imaginária: livros que você pode passar sem ler, livros que você leria voluntariamente se tivesse várias vidas para viver mas infelizmente são só estes os dias que lhe restam, livros que você tem a intenção de ler mas seria necessário primeiro ler outros, livros que tratam exatamente do assunto que o interessa neste momento, livros caros demais que pretende comprar quando baixarem à metade do preço.

A brincadeira é divertida. Basta olhar para a prateleira de casa que você imediatamente começa a inventar suas próprias categorias: livros que você pretende ler na aposentadoria ou em caso de prisão domiciliar, livros que apareceram na sua casa sabe deus como, livros que estão francamente além das suas chinelas intelectuais mas você não perde a esperança, livros que alguém lhe deu sem nenhum motivo apenas porque achou que você iria gostar (e tem gesto mais doce do que esse?).

A lista não tem fim, talvez porque as leituras e os leitores, muito mais do que os livros, são infinitos e virtualmente inclassificáveis.

Pois um livro lançado no Brasil no início do ano chama a atenção por sugerir um sistema de classificação literária em que a categoria mais óbvia de todas, lidos e não lidos, é tratada como uma distinção artificial e dispensável.

Em Como Falar dos Livros que Não Lemos?, o professor de literatura francês Pierre Bayard sugere que os livros se dividem, essencialmente, entre os desconhecidos (LD), categoria que supera largamente todas as outras, os que apenas folheamos (LF), os que ouvimos falar (LO) e os que esquecemos (LE).

O título divertido lembra uma versão adulta para aqueles manuais de literatura para vestibulandos que prometem, ainda que nem sempre explicitamente, fazer o guri passar na prova sem que ele tenha que dar se ao trabalho de ler mais do que o resuminho da obra. Trata se de um título enganador mas não duvido que muito gaiato tenha caído na armadilha.

Embora seu objetivo explícito seja dessacralizar a leitura, o livro não dá nenhuma dica para quem pretende impressionar a audiência mostrando erudição. O que o livro tenta mostrar é que não ler nem sempre significa ser totalmente alheio ao conteúdo de um livro.

O autor propõe que existem diversas formas de "não leitura" do sujeito que não tem o menor interesse pelas letrinhas ao leitor diligente e compulsivo, que, mesmo lendo muita coisa, está condenado a permanecer com a pilha de livros LD superando todas as outras.

Se os méritos da prática universal da não leitura não costumam ser mais exaltados, defende o autor, é porque pouca gente, no cada vez mais reduzido mundo letrado, tem coragem para admitir que fala, e às vezes até escreve, sobre livros que nunca leu.

A tese, obviamente polêmica, pode ser entendida como um elogio à preguiça, um convite à leitura de orelhas e resenhas no fim, todo o esforço de consumir livros estaria condenado a ser uma gota em um oceano de possibilidades.

Mas essa seria uma leitura cínica e superficial. Mostrando como é possível falar de livros sem tê los lido (na universidade, na mesa de bar e até diante do próprio escritor) resta um único motivo, genuíno e insubstituível, para dedicar tempo e paixão à leitura: a vontade de ler.

quinta-feira, 13 de março de 2008



13 de março de 2008
N° 15539 - Nilson Souza


O primeiro imperador

Meu professor de História ficou me devendo esta: não sabia, ou não lembrava, que Dom Pedro I tinha sido tão canalha. Nesta onda de celebrações de 1808, o ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil, a televisão mostrou outro dia um documentário sobre as peripécias do príncipe rebelde. Ele aprontou um bocado desde que chegou à colônia, com nove anos.

Era um moleque perverso, que se divertia batendo no queixo dos meninos escalados para beijar-lhe a mão. Não queria saber de estudar, passou a adolescência na noite e metendo-se em brigas, até transformar-se no mais famoso mulherengo do futuro Império.

Seus biógrafos contam que ele deixou filhos por tudo que é canto, inclusive de uma monja, até mesmo porque era considerado a única pessoa bonita da família de Bragança - o que os quadros da época parecem mesmo confirmar, tanto em relação aos homens quanto às mulheres.

Mas a curta e intensa história do herói da nossa Independência, que viveu apenas 36 anos, tem duas versões. Uma é esta que referi acima, o lado irreverente do nobre português.

A outra é a história a oficial, que o retrata como ousado, valente e até como um estadista de idéias avançadas, no seu retorno a Portugal, onde morreu tuberculoso sob a vigilância do Dom Quixote pintado na parede do mesmo quarto em que nascera.

Na reportagem televisiva, o primeiro imperador do Brasil é mostrado como um homem extremamente autoritário, que abusava do poder e não tinha o mínimo respeito pela esposa. Aparece, inclusive, como suspeito de sua morte.

Depois de transformar a amante em dama de honra da imperatriz, o nosso príncipe de 18 nomes (Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon) teria agredido a mulher, que estava grávida e se recusava a participar de um baile na corte.

Não sou dos mais influenciáveis, mas este relato me revoltou o estômago. Certo, eram outros tempos, a história pode estar mal contada, talvez seja intriga da imprensa panfletária da época.

Mas cheguei a ter ímpetos de pichar o viaduto que leva seu nome em Porto Alegre, por irônica coincidência conhecido como Viaduto da Marli.

Torço até para que o meu professor de História, meu ídolo no tempo de estudante, abandone temporariamente sua aposentadoria e me procure para reposicionar o príncipe na sua verdadeira dimensão.

Talvez eu tenha faltado alguma aula. Ainda assim, não sei como vou reagir no próximo 7 de Setembro.

Excelente quinta-feira e tropeços ocorrem mesmo com máquinas infalíveis como estavam dizendo do Inter. E hoje é a vez do Grêmio mostrar sua Garra.

quarta-feira, 12 de março de 2008



12 de março de 2008
N° 15538 - Martha Medeiros


Bom humor

Em fevereiro, Paulo SantAna escreveu uma crônica falando das dificuldades que os mal-humorados sofrem no seu dia-a-dia e recomendou que as pessoas que padecem dessa maldição passem a sorrir mais, porque assim suas vidas automaticamente mudariam para melhor. Parece simplista, mas eu concordo com essa tese em gênero, número, grau, altura e largura.

Eu só acrescentaria que esse "sorrir" não significa sair por aí feito um bobalhão. O sorriso nem mesmo precisa ser aparente. Basta que a pessoa possua uma alegria interior e que a manifeste através das suas atitudes no dia-a-dia.

Ao ler a coluna, me vieram dois comediantes à cabeça. Não conheço nenhum dos dois pessoalmente, só sei deles o que a imprensa revela. Estou falando de Chico Anysio e Jô Soares, dois gênios.

Chico talvez seja até superior na criação de tipos, mas não vem ao caso. Ambos são absolutamente talentosos. Mas só um deles me parece bem-humorado.

Daqui de longe, apenas observando o que leio e ouço por aí, me parece que um continuou amigo de suas ex-mulheres, enquanto o outro parece ter cultivado uma mágoa relacionada a todo o seu passado. Um parece se divertir com o que faz, o outro parece estar cumprindo contrato.

Um se sente à vontade para experimentar coisas novas e se dedica a atividades diversas, o outro enjaulou-se e espera até hoje por um reconhecimento que julga não ter.

Um se sente agraciado pela vida, o outro sente que a vida ainda lhe deve honras. Um parece não ter preconceitos, o outro parece julgar todos que cruzam seu caminho.

Um tem um sorriso gaiato, o outro tem um sorriso contido. Tudo isso pode não corresponder ao que eles são de verdade, mas estou falando de imagem, de impressão causada. E é a impressão que tenho deles.

Essa percepção não merece ser desprezada. Você pode ter o mesmo talento que um colega seu, as mesmas condições para realizar-se, e no entanto a rabugice pode ser decisiva para que um deslanche e o outro fique pra trás.

Existe alguém que seja mal-humorado porque quer? Até tem, mas muitos simplesmente nasceram assim e fizeram do seu mau humor um traço de caráter.

Se quisessem, poderiam aliviar-se um pouco desse ranço, mas não se esforçam, não percebem o redemoinho em que vivem, a falta de horizonte, a limitação de seus atos. São pessoas bacanas e generosas, mas que, sem se darem conta, tornaram-se blindadas.

Falta-lhes inteligência emocional, uma habilidade que despertou o interesse científico há poucos anos, mas que já é considerada essencial para as relações interpessoais, a fim de que se evitem conflitos desnecessários.

É através dessa inteligência que um gordo pode parecer leve, enquanto um magro pode pesar tanto a ponto de não sair do lugar.

Hoje, Dia Internacional do sofá, aproveite para aqueles amassos e tenhamos todos uma excelente quarta-feira, ainda que com chuva por aqui.

terça-feira, 11 de março de 2008



11 de março de 2008
N° 15537 - Liberato Vieira da Cunha


Ilha de lembranças

Que lembranças eu levaria para uma ilha deserta?

Começaria pelas notas de um piano que nunca descobri de onde vinham, mas que acalentavam minhas noites e embalavam meus sonhos de adolescente. Eram um mistério perfeito e tudo o que é perfeito não precisa ser decifrado.

Não esqueceria o som do bonde subindo devagar a Rua Duque, um pedaço de luz rompendo a escuridão, um compasso lento pautando o tilintar das moedas, as conversas dos últimos passageiros, o suspirar de uma menina cujo nome era solidão.

As pedras azul e rosa da Rua João Manoel eram um livre, cambiante território, ora pavimento de campeonatos de futebol, ora a passarela por onde desfilavam os casais de enamorados. Mas aí veio o asfalto e cobriu tudo e já não se ouviram nem gritos nem sussurros.

As reuniões dançantes de sábado à tarde, os bailes da Reitoria constituíam um ritual romântico que culminava num gesto de ternura explícita: a face colando-se com a face. E o mundo girava então em azul profundo.

Os discos de vinil e as músicas que eles continham, de The Platters a Appassionata. Havia neles algo de sólido e de delicado, como um livro ou uma tela, e exerciam um tipo de fascínio a que só se sobrepunha o das próprias melodias.

As férias de julho em Cachoeira, quando nasciam amizades que iriam se prolongar por toda a vida e eclodiam paixões súbitas como as que só podem acontecer aos 16 anos na cidade que reunia as mais belas garotas do universo.

As primeiras visitas a Montevidéu, uma metrópole em plena florescência, que a cada quadra e esquina tinha um gosto que depois se perdeu. Ali era o Exterior. Ali era a civilização, em cada vitrine e confeitaria e loja e nas pessoas que se vestiam como se vivessem em Madrid.

As crônicas da revista Manchete. Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos produzindo a cada semana pequenas obras-primas que tornavam a literatura um artigo de primeira necessidade.

E os filmes da Grace Kelly.

E mais não digo porque a ilha se tornaria pequena para o tamanho de minha nostalgia.

Ainda que com chuva, mas com temperatura bem mais amena, que tenhamos todos uma excelente terça-feira.

segunda-feira, 10 de março de 2008



Lances por encontro com Scarlett Johansson no eBay ultrapassam U$ 38 mil
Publicidade - da Folha Online

Os lances para ganhar um encontro com a atriz Scarlett Johansson, 23, no site de leilões eBay já ultrapassam os US$ 38 mil (cerca de R$ 64 mil).

O valor inicial do leilão era de US$ 0,99, e o prêmio dá direito a conhecê-la pessoalmente na estréia de seu próximo filme, "He's Just Not That Into You".

O leilão termina na próxima quarta-feira (12). Quem ganhar também receberá duas entradas para assistir à estréia mundial do filme, em qual Johansson divide cena com astros como Jennifer Aniston, Drew Barrymore e Ben Affleck.

Max Morse/Reuters

Lances por encontro com Scarlett Johansson no eBay ultrapassam US$ 38 mil

O prêmio inclui também um passeio de carro com chofer, que levará o felizardo ao cinema onde ocorrerá a estréia. O lançamento acontecerá em julho em Los Angeles ou Nova York. O vencedor também receberá serviço de cabeleireiro e maquiagem.

O leilão foi divulgado pela própria atriz de "Encontros e Desencontros" em um vídeo no YouTube. No vídeo, Johansson afirma que o que o dinheiro obtido será destinado à ONG Oxfam América.

A atriz colabora com a Oxfam desde 2005 e, em 2007, viajou para Sri Lanka e Índia para conhecer os programas contra a pobreza da organização.

Além de Scarlett, outros artistas já participaram deste programa de leilões organizado pela ONG, entre eles Tom Hanks e Shakira.

Ao fim da disputa pela intérprete de "Match Point - Ponto Final", haverá um leilão com Kristin Davis na estréia mundial do filme "Sex and the City".

sábado, 8 de março de 2008



09 de março de 2008
N° 15535 - Martha Medeiros


A obsessão por ser perfeita

Pergunte a si mesma: assumir tantos compromissos e ser tão tirânica em relação ao seu desempenho está fazendo de você uma mulher mais feliz?

Sou perfeccionista demais!", costumam exclamar algumas mulheres, sem deixar claro se estão se auto-elogiando ou se autocriticando. Por via das dúvidas, saio de perto. Já não tenho paciência para essa busca desenfreada pela perfeição.

Quem disse que, ao assumirmos certas atribuições outrora masculinas, teríamos que virar as mestras em eficiência, as PhD em produtividade?

Atualmente, mulheres tripulam foguetes, presidem países e são autoras de descobertas científicas. Mas você, que não é astronauta, nem presidente de nada, nem candidata a Einstein, anda se cobrando insanamente por quê?

A independência feminina era pra ser divertida, onde é que deu errado? Sua agenda está mais cheia do que a da Condoleeza Rice.

Você não consegue se conceder meia hora para fazer as unhas. Está tão estressada que quase cai em prantos quando seu patrão dá uma bronca.

E você não dorme, criatura. Você acredita mesmo que cinco horas por noite é suficiente? Você passa seu creme anti-rugas antes de se deitar e, quando acorda, elas estão todas lá, triplicadas pelo cansaço.

E nem adianta tentar encontrar uma horinha para aplicar botox porque sua dermatologista está sem hora livre até agosto - ela é mulher como você, portanto, outra maluca viciada em agenda cheia. Estamos todas perdendo feio para este que deveria ser nosso aliado, mas virou um inimigo: o tempo.

Pergunte a si mesma: assumir tantos compromissos e ser tão tirânica em relação ao seu desempenho está fazendo de você uma mulher mais feliz? Se a resposta é não, pare tudo e troque por um cotidiano mais realista.

Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero. Pois inclua na sua lista o Culpa Zero. Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo de vida para os outros.

Seu pai e sua mãe, se tinham juízo, também não se apegaram a esta expectativa. Você não é Nossa Senhora. É, humildemente, uma mulher. E se não aprender a delegar, a priorizar e a se divertir, diga adeus ao melhor dos luxos.

Porque luxo não é ter a agenda lotada, não é ser sempre politicamente correta, não é encarar qualquer trabalho por dinheiro, não é atender a todos e criar para si mesma a falsa impressão de ser indispensável. É ter tempo.

Tempo para fazer nada. Tempo para fazer tudo. Tempo para dançar sozinha na sala. Tempo para bisbilhotar uma loja de discos. Tempo para sumir dois dias com seu amor. Três dias. Cinco dias! Tempo para uma massagem.

Tempo para receber as amigas em casa. Tempo para fazer um trabalho voluntário. Tempo para procurar um abajur novo para seu quarto. Tempo para conhecer outras pessoas. Para fazer um curso. Engravidar. Ou para conhecer uma cidade bem longe.

Tempo, principalmente, para descobrir que você pode ser perfeitamente organizada e profissional sem precisar deixar de existir. Porque nossa existência não é contabilizada por um relógio de ponto ou pela quantidade de memorandos virtuais que atolam nossa caixa postal.

A mulher moderna anda muito antiga. Acredita que, se não for super, se não for mega, se não for uma executiva ISO 9000, não será bem avaliada. Está tentando provar não-sei-o-quê para não-sei-quem.

Desacelerar tem um custo. Talvez seja preciso esquecer a bolsa Prada, o hotel decorado pelo Phillipe Starck e o batom da Mac, mas se você precisa vender a alma ao diabo para ter tudo isso, francamente, está precisando rever seus valores.

E descobrir que uma bolsa de palha, uma pousadinha rústica a beira-mar e o rosto lavado (ok, esqueça o rosto lavado) podem ser prazeres 5 estrelas e nos dar uma nova perspectiva sobre o que é, afinal, ter um luxo de vida.

Ótimo domingo, com muito sol por aqui e de céu completamente azul neste Rio Grande do Sul.

Diogo Mainardi

Imbecilidades imobiliárias

"Lula se desmoralizou nos últimos anos. O que lhe resta é tentar pegar uma carona com Barack Obama. Mas Lula é pior do que Obama.

Pior em tudo. E o Brasil é pior do que os Estados Unidos. O que mais diferencia os dois países: no Brasil,a imbecilidade compensa"

Lula e Barack Obama têm um ponto em comum. Apenas um: o jeito para os negócios imobiliários.

Na última segunda-feira, começou em Chicago o julgamento do empresário Antoin Rezko. Ele é acusado de corromper funcionários de um fundo estatal.

Antoin Rezko ajudou a financiar a carreira política de Obama. Pior: ajudou-o a comprar sua casa, arrematando o terreno adjacente e repassando-o em seguida, a um precinho camarada, ao próprio Obama.

Cobrado pela imprensa, Obama declarou que, ao aceitar a ajuda de Antoin Rezko, cometeu uma "imbecilidade".

O caso de Lula é mais antigo e mais conhecido. A sua imbecilidade foi ter morado por nove anos numa casa de propriedade do advogado Roberto Teixeira, sem pagar aluguel.

O assunto surgiu quando um antigo dirigente do PT acusou algumas prefeituras petistas de favorecer uma empresa ligada a um familiar de Roberto Teixeira.

O PT abriu um inquérito para apurar a denúncia. Interrogado pela Comissão de Ética do partido, Lula contou que, depois da campanha eleitoral de 1989, chamou Roberto Teixeira e lhe comunicou o seguinte:

"Roberto, você não precisa dessa casa, não precisa, tem muitos imóveis aqui, eu vou ficar nessa casa". E, de fato, ficou. Nove anos. Sem pagar aluguel.

Como se trata de Lula – e a gente sabe como ele é –, um bom negócio acabou emendando em outro bom negócio. Quando ele saiu da casa de Roberto Teixeira, comprou um apartamento de cobertura. Quem lhe ofereceu a oportunidade?

Sim: Roberto Teixeira. Lula deu alguns detalhes sobre o negócio aos comissários do PT: "Eu falei: ‘Roberto, eu não tenho dinheiro.

Estou pedindo para o Paulo Okamotto vender meu carro e estou querendo vender um terreno’. Roberto falou: ‘Eu compro o teu carro’. Aí eu vendi o terreno por 72 paus e comprei o apartamento".

Isso tudo é velharia. É velharia o fato de que o carro de Lula foi vendido por um valor acima do de mercado. É velharia o fato de que ninguém registrou em cartório a venda de seu terreno por 72 paus.

Os protagonistas dos dois negócios imobiliários prosperaram. Lula se tornou presidente da República. E Roberto Teixeira se tornou um advogado com acesso ao presidente da República.

Lula se desmoralizou nos últimos anos. O que lhe resta agora é tentar pegar uma carona com Barack Obama. O DIP lulista já fez a patetice de associar um ao outro.

Mas Lula é pior do que Obama. Pior em tudo. E o Brasil é pior do que os Estados Unidos. Pior em tudo. O relacionamento de Obama com seu financiador está sendo escarafunchado pela imprensa e pela promotoria pública dos Estados Unidos.

Obama sentiu o efeito disso na semana que passou, com os primeiros sinais de esvaziamento de sua candidatura a presidente. É o que mais diferencia os dois países: no Brasil, a imbecilidade compensa.