sábado, 19 de maio de 2018

 
  19 DE MAIO DE 2018
LYA LUFT

Nossos trágicos limites


Com alguma frequência, pedem-me que fale ou escreva sobre famílias em transformação. Muita dor, angústia, medo e confusão nascem com essa ideia e essa realidade, pois até mudanças boas trazem inseguranças. Nem todas são as da borboleta emergindo, bela e livre, do casulo de alguma opressão: algumas são explosões de vulcão e borrifos de lava derretida que nos destroem ou marcam para sempre.

Está na moda falar em "transformação, mudança", com tom de orgulho - como se mudar fosse sempre positivo. No olho do furacão, não há muito tempo para raciocinar, e qualquer coisa, qualquer conceito, ainda que fake (estamos falando em modismos), nos dá algum conforto. Aliás, vicejam receitas: os "ter de" e "faça assim", mostrando nossa servidão a vários senhores e modelos.

A "nova família" sendo uma realidade em tantos casos, o sensato é assimilar: família já não é necessariamente a de pai, mãe, filhos, avós, tios e todo o cortejo, mas pode incluir a namorada do pai, o namorado da mãe, meios-irmãos que vêm junto com os novos relacionamentos - sem falar em famílias com duas mães e dois pais. "Tudo o que é humano me diz respeito", dizia o dramaturgo romano Terêncio, e tinha razão. Sobretudo quando se trata de sentimentos.

Vivemos tempos difíceis e vertiginosos, crianças e jovenzinhos, os mais vulneráveis, debatendo-se numa sociedade agitada, superinovadora, cheia de seduções, às vezes violenta, e preconceituosa. (Vejamos o detestável "politicamente correto", que quer excluir todos os que pensam diferente. Onde a independência, a liberdade de pensar e ser?)

Recentemente, assisti a um documentário sobre um tema tabu e terrível: suicídio de adolescentes, realidade amarga para emergências e hospitais, profundamente trágica para as famílias. Por que se matariam os jovenzinhos? Nem sempre, ou até raramente, por uma tragédia pessoal. Muitas vezes, algo mais amplo, mais vago e não menos pungente: solidão, falta de limites sentida como desinteresse, sem regras que signifiquem aconchego e abrigo, não importa se com pai e mãe, dois pais, duas mães, ou alguém solteiro. A diferença não está no gênero, mas na qualidade e quantidade de afeto, de colo, de escuta, de exemplo e serenidade, de firmeza.

Não é simples orientar os filhos: são incontáveis as possibilidades de vida e até profissão que se abrem para eles. Mas, atenção: a velha frase "quem ama cuida" é eterna. Não oprimir, não criticar demais, nem se neurotizar, mas estar presente, ser interessado, num ambiente de alegria e amor, respeito e ordem. Para crianças e adolescentes, o mundo ainda é informe: nós, adultos, temos de lhes dar algum sentido, vivendo, estimulando, com carinho apesar das naturais discordâncias ou brigas.

Voltando ao terrível assunto: raramente há culpados diretos quando um adolescente se mata. A dura verdade é que, se temos filhos, somos responsáveis; o trágico é que existem limites. Somos todos uns pobres seres humanos querendo fazer o melhor. Nem sempre podemos. Nem tudo dos nossos filhos podemos prever, conhecer ou entender. Como escreveu meu poeta preferido, Rilke, "a alma do outro é uma floresta escura": isso inclui todos aqueles que amamos.

LYA LUFT


19 DE MAIO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

O que faz as coisas darem certo

Duas pessoas. Ambas têm a mesma escolaridade. A mesma origem social. As mesmas oportunidades. Por que a vida é generosa com uma e fecha a cara para a outra? O destino e a sorte têm pouco a ver com isso.

O que tem a ver é o nosso comportamento. Coisas simples nas quais não prestamos atenção alguma. Coluna assumidamente autoajuda, aproveite a promoção.

Vou me demorar no que me parece mais importante: a forma com que cada um se comunica. A maioria dá o seu recado muito mal. Não estou me referindo apenas ao uso correto do português. A pessoa pode ser um acadêmico e, mesmo assim, ser um desastre ao transmitir o que pensa, o que deseja e quem é. Tampouco estou falando de sedução, xaveco. 

Estou falando de convocação para reuniões, convite para eventos, e-mails profissionais, bilhete para funcionários, mensagens de WhatsApp, postagens no perfil do Face, e, claro, as conversas, todas elas: presenciais, telefônicas, gravação de áudios. A gente simplesmente reluta em deixar as coisas esclarecidas, não dá a informação completa, não contextualiza. É tudo racionado, fragmentado, e a culpa nem é dos atuais vícios tecnológicos: ser preguiçoso na comunicação vem da pré-história. Sempre foi assim. As pessoas acreditam que as outras são adivinhas.

"Olá, desculpe o atraso da resposta, fim do ano desorganiza a gente, mas vamos em frente, queremos muito fechar um bate-papo com você. Pode ser dia 25 de maio?"

Exemplo que extraí da minha caixa de e-mails ontem, assinado por uma desconhecida. Fui checar na minha lista de excluídos se havia algum outro e-mail dela, pra tentar descobrir do que se tratava. Havia. De novembro, quando ela fez um convite em nome de uma empresa. Ressurgiu agora como se tivesse pedido licença para ir ao banheiro e voltado em 10 minutos. Não, não posso dia 25, obrigada, fica pra próxima.

Fazemos isso o tempo todo: não nos apresentamos direito, não retornamos contatos, não damos coordenadas, não cumprimos o que prometemos, não deixamos lembretes, não confirmamos presença, não explicamos nossos motivos, não avisamos cancelamentos, não falamos toda a verdade, não tiramos as dúvidas, não perguntamos, não respondemos. Parece tudo tão desnecessário. Aí o universo não coopera, e a gente não entende por quê.

Além de se comunicar bem, há outros três grandes facilitadores na vida, coisas que interferem no modo como as pessoas nos analisam e que garantem nossa credibilidade: ser pontual, ser responsável e ser autêntico - esta última, das coisas mais cativantes, pois rara. Se o Papa Francisco não é presunçoso, por que raios você seria?

É quase inacreditável: as coisas dão certo por fatores que estão totalmente ao nosso alcance.

Que tal ter aulas com uma das maiores escritoras do país? Cintia Moscovich começa na próxima segunda-feira uma nova turma da sua Oficina de Subtexto e ainda há vaga. Informações: oficinadosubtexto@gmail.com ou fone: 3346-6340.

MARTHA MEDEIROS

19 DE MAIO DE 2018

CARPINEJAR

Amar é também ser um fantasma

Gentileza no amor é também não chamar atenção.

Você pode provar que ama trazendo café na cama ou acordando a sua esposa com um ataque de beijos. Mas a maior demonstração é permitir que a sua companhia durma no final de semana. Ter consciência de que ela só pode esticar os horários no sábado e no domingo, quando não é obrigada a bater o cartão e despertar cedo para o trabalho. Preservar o sono da mulher lhe trará recompensas da cumplicidade e do bom humor. Não incomodar é o primeiro passo para o altar.

Se não sabe fazer massagem, pelo menos deixe a mulher relaxar sozinha nas cobertas e o tempo amansar as suas costas. 


  
Relacionamentos terminam justamente porque não há respeito ao descanso sagrado. Parece bobagem, mas não poder dormir quando se quer cria uma antipatia fatal. Sempre haverá no par amoroso o que acorda cedo nas folgas e o que acorda tarde. Impor o seu ritmo e realizar bagunça para aproveitar o dia cedo como casal vai gerando a inimizade dos travesseiros.
Casamento é aprender a ser fantasma de manhã: andar na ponta dos pés para não acordar o outro e pegar as roupas sem fazer barulho. 


  
Estou virando craque em sumir. Educação é não aparecer. Não uso a lanterna do celular, organizo as mudas dos trajes na cadeira e encontro um jeito de cofre para driblar a ferrugem das dobradiças da porta. Qualquer baque ou barulho, ela acordará. Seu sono é leve. Empreendo uma espécie de missão secreta e uso o banheiro da visita para evitar o alarme da descarga. 


  
Eu me treinei para estar presente quando a esposa está de olhos abertos e a evaporar quando está de olhos fechados. No amor, para não enjoar, é fundamental experimentar todos os estados da vigília: sólida, líquida e gasosa. 


  
Porque é emocionante ser procurado pela casa assim que ela acorda. Eu me sinto um morto ressuscitado. Ela grita o meu nome pelos corredores. Como se eu tivesse fugido da relação. Passo a ser caçado pelos aposentos. Nem respondo de imediato para aumentar o suspense. Quando ela me acha, vejo a sua gratidão no abraço apertado de pijama e no seu beijo absolutamente tranquilo.
E o mais prazeroso, além de sua disposição alegre, é não precisar arrumar a cama. O último que acorda é o que sempre deve ajeitar o quarto.
CARPINEJAR


19 DE MAIO DE 2018
PIANGERS
Emoções


Eu estava sentado ao lado da minha filha de 11 anos na sala do cinema pra assistir à estreia de Divertidamente, aquele filme da Pixar que se passa dentro de uma menina de 11 anos, morena de olhos grandes, igualzinha à minha filha. No filme, a menina passa pelo furacão que é a pré-adolescência: tristeza por ter mudado de cidade, raiva dos pais, medo do ridículo, nojo da casa nova. As emoções que governam essa mesa de comando dentro do nosso corpo. 


Mais a alegria, que passa o filme todo tentando salvar memórias boas da menina. Minha filha gostou do filme, mas posso garantir que teria gostado muito mais se não tivesse que passar a sessão inteira me pedindo para parar de chorar. Pai, por que você está chorando tanto com esse filme?, ela me perguntava. Não sei!, eu respondia. Mas é claro que eu sabia. 


  
Eu estava chorando porque estava vendo na tela minha filha com tristezas diversas, raivas secretas, medo do mundo. Eu estava vendo minha filha como um ser humano, não mais como aquela menininha que a gente cuidou até então. A gente cuida do nosso filho por um tempo e por um tempo ele é uma mistura do pai e da mãe, alguma coisa de avó. Mas chega uma hora em que vai aparecendo outra coisa. Vai aparecendo ele mesmo. Aquele ali é nosso filho virando gente. Nosso filho virando gente grande. E dá medo porque eu conheço um monte de crianças legais, mas gente grande legal conheço só uma dúzia. 


  
Porque gente grande tem todos esses sentimentos escondidos. A gente aprendeu a ser fingido: guardar raiva, nojo, tristeza e medo. Expressar alegria apenas de vez em quando. Que se não descobrem que a gente está feliz demais. E isso pode ser usado contra a gente. E ser vulnerável é ser fraco. Eu sou forte. Eu não sinto nada. 


  
Como a gente quer que nossos filhos se expressem com clareza se a gente mesmo não se expressa? Se a gente mesmo não sabe o que sente? Ao longo da vida somos levados a esconder os nossos sentimentos, e de tanto esconder vamos esquecendo o que sentimos. Isso é raiva ou frustração? Isso é impaciência ou infelicidade? Isso é euforia ou alegria? Isso é amor por outra pessoa ou só por mim mesmo? 


  
Acho que é por isso que eu chorava no escuro do cinema. Porque via minha filha crescendo, aquela menininha que expressa todos os sentimentos, meio sem filtro, logo vai estar guardando as emoções, misturando os sentimentos, confundindo tudo. Como o pai, vai precisar de muita terapia. E de alguns filmes da Pixar, pra chorar escondida no cinema. 


PIANGERS

sábado, 12 de maio de 2018



12 DE MAIO DE 2018
LYA LUFT

A quem chamaremos "mãe"?

Nunca fui de me lamentar muito, nem de prolongar velórios pelo tempo afora: os amigos e amados que se foram estão vivos em mim. A primeira dor, grave ou mesmo dilacerante, vai cedendo aos chamados da vida, entre os quais os afetos, um pouco de força de vontade, a memória e a crença numa outra existência (talvez transformada) ajudam.

Certa vez, assisti à entrevista de um militar graduado, quando se iniciaram as providências para maior segurança no Rio, ele em traje civil, sossegado. Quando se falou em juventude, a jornalista perguntou se ele tinha filhos. Um segundo de hesitação, olhar mais sério, e a resposta simples: "Eu tenho dois filhos. Um já está no plano espiritual. Mas tenho dois, sim".

No meu momento muito difícil, aquilo me tocou. Não sou, nem sei se ele era, espírita praticante, apenas acredito, desde menina, que algo da energia, ou da consciência, da luz, do brilho de cada um, há de continuar. Visão consoladora? Sem dúvida, por isso eu a cultivo.

Não vou hoje falar na morte, mas em minha mãe, Wally. Tivemos uma relação de altos e baixos, de ótima a chata, nada grave, mas as naturais briguinhas de mãe e filha. Eu não era prendada, não me interessava minimamente por casa, cozinha, arrumações, atividades então ditas femininas, era péssima nos esportes (ela boa jogadora de tênis). Como já escrevi exaustivamente, eu queria sossego para sonhar, e ler, e tinhas grandes dificuldades com autoridade. Minha devotada mãe não conseguiu corrigir nada disso. Assim eu estava sempre fora do esquadro das filhas de suas irmãs, primas e amigas, o que numa cidade pequena tem muito valor.

Mas em outras coisas era minha cúmplice, como em acalmar meu pai com meus maus boletins no então ginásio, com pequenos atrasos nas saídas com a turma (em geral, a meninada americana cujos pais trabalhavam nos escritórios das fábricas de cigarro) ou com o namoradinho de toda a adolescência.

A vida, as escolhas e os acasos vão separando a gente no convívio diário. Eu morava aqui, meus pais, lá, na minha encantadora cidade natal. Meus filhos adoravam feriados e férias na casa dos avós, que os tratavam como príncipes. Ela era otimista, alegre de natureza, muito controladora, o que me aborrecia mortalmente, mas sempre interessada na família. Lembro-me perfeitamente de seu passo enérgico no corredor, sua voz bonita, sua risada feliz, lembro-me de como enchia a sala de flores e - entre críticas porque eu lia demais, era gordinha demais e sonhava demais - me cobria de cuidados e afeto.

Mais tarde, eu já adulta com filhos crescidos, ela viúva cedo demais, começou a ser arrebatada pelo Alzheimer, que lhe corroía a memória, os hábitos, a sensatez, e precisava de constantes cuidadoras, mais tarde de uma clínica, a conselho dos médicos. Quando morreu, há muito não sabia quem éramos: me chamava de "senhora" e ficava tranquila quando eu entrava no seu registro, sem tentar corrigir, esclarecer, avivar a memória irremediavelmente perdida. Vivi, vivemos, cenas comoventes ou trágicas.

Ao entrar, tranquilamente, nessa morada de mistério que chamamos morte, há anos quase nada dela restava. Mas ainda sinto, dolorosamente no meio das memórias bonitas e divertidas que me fazem sorrir, muita falta daquela a quem eu podia chamar de "mãe". Porque isso nada substitui.

LYA LUFT


12 DE MAIO DE 2018
MARTHA MEDEIROS


Primeira vez outra vez

Ao saber que o Donna estava celebrando 25 anos, fiz as contas para saber quando comecei a fazer parte dessa história. Descobri que desde sempre, praticamente. Meu primeiro texto para o caderno foi publicado em 03/07/1994, ou seja, 24 anos atrás.

Lembro bem daquela época. Eu recém havia retornado de uma temporada em Santiago do Chile, país que estava custando a se abrir: ainda não havia aprovado a lei do divórcio e liberdade sexual continuava um tabu - Madonna, por exemplo, não havia sido autorizada a fazer show na capital chilena durante uma turnê sul-americana. 

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos iniciavam uma campanha para estimular a abstinência entre os jovens, um movimento que visava reduzir a gravidez precoce, a incidência de aids e, de quebra, enternecer o coração (juro, isso também constava da defesa da virgindade). Pois o Brasil, que de santo nunca teve nada, embarcou nessa maluquice também: foram feitas reportagens com algumas atrizes em início de carreira que revelavam a intenção de se manterem virgens até o casamento. 

Impressionada com tanto retrocesso, escrevi um texto sem ter onde publicá-lo, mas um amigo, o jornalista Dinho Eichenberg, o fez chegar às mãos de Xico Reis, então editor de Donna, e foi assim que fiz minha estreia, num cantinho de página, dando uma opinião pessoal que ninguém tinha pedido. Reproduzo este texto hoje, nesta data querida, resistindo à tentação de revisá-lo e reescrevê-lo, vício de todo colunista. Por coincidência, o título é bem parecido com o da minha crônica de domingo passado, o que demonstra que, para certas lutas, 24 anos não é nada.

POR QUE NÃO UMA

MODA UNISSEX?

Responda rápido: o que está na moda hoje? Se você respondeu que são as botinas pesadas e as minissaias em xadrez escocês, acertou em parte. Um olhar mais atento nas entrevistas que dão as atrizes globais vai fazer você reparar que o que está na moda mesmo é ser virgem. Isso mesmo, como se a virgindade fosse uma calça boca de sino, que vira símbolo de uma década, desaparece, volta de novo, simples assim.

Parece bobagem, mas o assunto é sério. Lizandra Souto, Isabel Fillardis e Camila Pitanga têm todo o direito de fazerem a opção sexual que acharem mais adequada, mas a mídia tem que ter cuidado na hora de divulgar esta opção como um modismo. E, o que é mais grave, como um modismo exclusivamente feminino.

Faz muito pouco tempo que a mulher conquistou o direito de ir para a cama com o homem com quem vai casar, e até mesmo com o homem com quem vai jantar, sem que isso barbarize a sociedade. Qualquer mulher inteligente quer fugir da cilada que é descobrir só na noite de núpcias que o namorado carinhoso fica violento quando está sem roupa. Não há conto de fadas que resista. E os homens sabem disso muito bem, tanto que preservam o hábito milenar de transar com quantas mulheres for preciso, até encontrar aquela com quem vão viver para sempre.

Já somos muitas, mas não são todas as mulheres que escolhem livremente a vida sexual que querem ter. Muitas ainda se reprimem, têm medo de serem castigadas pelos pais e de virar o assunto preferido dos vizinhos. Não é justo que, com tanto caminho pela frente, já se comece a andar pra trás.

Abram o olho, garotas! Está para nascer o dia em que veremos o Vitor Fasano, o Edson Celulari e o Maurício Mattar na telinha exaltando a maravilha que é se guardar para a lua de mel. Antes que isso aconteça, o cinto de castidade já vai estar nas passarelas de todo o país.

MARTHA MEDEIROS

12 DE MAIO DE 2018
CARPINEJAR


Não leve a esposa para a consulta médica

Não cometa o pecado de levar a sua esposa ao médico quando está doente. Não poderá mentir depois ou suavizar os sintomas.

Tudo bem quando você era menor e dependia da carona de sua mãe no momento em que ardia de febre e ela entrava pela porta sem ser convidada, sacolejando a bolsa e com o distinto policial adulto para tecer as observações mais constrangedoras do inquérito pessoal. Significava uma fase de sua vida, de evidente dependência, não havia como se defender da gentileza impositiva.

Mas agora, com a mulher, tem condições de ir sozinho. Basta não fazer drama. O problema é que o homem faz drama na primeira sequência de espirros, como se fosse morrer engasgado. E convida a família inteira para assistir a sua morte psicológica e transforma o carro numa ambulância da Samu.

Se cometer a loucura de admitir a companhia da esposa, não falará nada. A cada pergunta, ela responderá em seu lugar. Será a reedição cruel da infância. Verá uma sucessão gratuita de delações de suas prazerosas molecagens:

- Ele anda de pés descalços pela casa.

- Ele dorme com ar-condicionado em 18 graus.

- Ele não leva casaco de noite durante o sereno.

- Ele não protege a garganta.

- Ele vem se alimentando mal, não come salada.

Só caberá o gesto de baixar a cabeça e concordar. Acabará sendo uma ovelha tosada na frente do doutor.

Com o diagnóstico e atestado para dois dias, não terá condições de jogar futebol na noite seguinte com os amigos (a gloriosa pelada da semana!) ou viajar a trabalho em uma reunião importante. Raciocine que ferrou a sua programação, pois contará com forte oposição, fiscalização e patrulha para mudar os hábitos e permanecer de molho.

Se você foi ao médico para sair da cama, ficará agora preso nela por um bom tempo. A esposa vai se transmudar em enfermeira, e não será uma fantasia erótica, porém cruel, aparecendo com o copo da água e a pilha de remédios a cada 12 horas. Enfrentará a obrigação de tomar toda a cartela de comprimidos por seis dias - quando, sozinho, longe de testemunha, tudo já estaria resolvido em 24 horas. Verá uma perseguição com termômetro pelos corredores e será forçado a vestir aquele maldito pijama de flanela presenteado pela sogra, apenas desarquivado em urgências.

E não ouse contrariá-la para não deflagar uma discussão de relacionamento e receber frases fatais sobre o seu comportamento inconsequente: "não vem pensando na gente e nos filhos", "não dá valor à saúde", "assim não viverá muito".

Você conferiu autoridade para a vigilância e não conta com margem de manobra para culpá-la, já que a esposa está cuidando gratuitamente, por puro amor.

Não transforme a gripe em quarentena. Pior que adoecer é perder a liberdade de fingir.

CARPINEJAR

12 DE MAIO DE 2018
PIANGERS

Um bom presente de Dia das Mães


Se você quer realmente dar um bom presente de Dia das Mães pra sua mãe, se quiser realmente agradá-la, em primeiro lugar, não compre presentes caros. Presentes não são apenas coisas compradas. Presente não é apenas almoço de Dia das Mães em restaurantes lotados, onde a família esperará horas para ser atendida. Presentes de Dia das Mães se espalha pelo ano todo.

Comece lavando a louça. Se você quer realmente dar um presente pra sua mãe, lave mais a louça. Seque e guarde. Comece a cozinhar pra ela. Ajude nas tarefas domésticas. Deixe-a escolher o que vão ver na televisão. Fique menos no celular. Se ainda mora com ela, faça o esforço de ajudar. Ouça o que ela pede com atenção. Respeite-a.

Se você não mora mais com a mãe, telefone mais vezes. Mande mensagens em momentos aleatórios dizendo que a ama. Diga com corações, com emoji agradecido. Que bom que você existe, mãe. Obrigado por tudo o que fez e faz por mim. Faça visitas surpresas durante a semana. Diga que a admira, fora de datas especiais.

Se você quer realmente dar um presente pra sua mãe, não fume. Você é a coisa mais importante pra sua mãe. É terrível pra ela vê-lo se destruir. Pare de fumar neste domingo e será o melhor presente de Dia das Mães. Pare de beber antes de dirigir. Diga a ela: "Nunca mais vou beber e dirigir. É um presente a você, mãe". Se alimente bem. Leve sempre um casaco nos dias frios. Cuide-se.

Se você quer realmente dar um presente de Dia das Mães pra sua mãe, seja feliz. Pare de trabalhar tanto, passe mais tempo com a família, cure o estresse fazendo nada. Vá mais a praia. Tenha filhos. Adote um cachorro. Medite. Passeie com ela de mãos dadas, dizendo o quanto a vida é boa. O quanto valeu a pena tudo o que ela fez por você, pra que você pudesse ser feliz. Tudo o que os pais dela fizeram, e os pais dos pais dela.

Se você realmente quer dar um bom presente pra sua mãe, faça isso. Esteja mais perto além das datas comemorativas. Espalhe os presentes durante o ano todo. Começando agora, neste domingo.

PIANGERS

12 DE MAIO DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

GUARDIÃ DAS PRÉ-HISTÓRIAS



De tempos em tempos, meu aniversário coincide com o Dia das Mães - como neste 13 de maio. Sempre gostei dessa vizinhança no calendário, mas a data ganhou novos significados, como não poderia deixar de ser, depois que passei a ser duplamente homenageada em domingos como este.

Gosto de pensar que as duas comemorações são, de certa forma, complementares. Se nenhuma outra pessoa no mundo dá tanta importância ao seu aniversário quanto sua mãe, festejar a data é lembrar que a estrela principal daquele dia não era você - ou apenas você. Todos os aniversários são uma espécie de filial do Dia das Mães no resto do ano. O meu, neste domingo, é matriz e filial.

O aniversário marca a passagem do tempo, a mudança de idade, o amadurecimento, mas é também uma piscadela para a nossa infância. Seja reunindo os amigos mais próximos em uma mesa de bar, seja festejando em grande estilo com dezenas de convidados, estamos sempre tentando reviver aquela sensação infantil de que este dia é realmente especial, e o mundo (ou pelo menos o nosso mundinho) parou para celebrar nossa existência. ("No tempo em que festejavam o dia dos meus anos / Eu era feliz e ninguém estava morto. / Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos / E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer", resume o poema de Fernando Pessoa.)

No aniversário, ninguém se constrange em soprar velinhas, cantar, bater palmas - mesmo que o aniversariante esteja rodeado de netos. Pelo contrário. Quanto mais velho a gente fica, mais parecidos com festas infantis ficam os nossos aniversários. Como se esse dia do ano servisse exatamente para convidar de volta à mesa a criança que um dia fomos. Enquanto isso, o adulto dentro de nós fecha para balanço por 24 horas: tudo bem até aqui? O que poderia estar melhor no ano que vem? Um ano a mais, descontadas as ansiedades de cada etapa da vida, pode parecer apenas mais do mesmo. Ou ser tempo mais do que suficiente para que tudo vire de cabeça para baixo - o que pode ser um alívio ou um tormento.

Se no dia do meu aniversário ainda posso brincar de ser criança, no Dia das Mães sou irremediavelmente adulta. Durante boa parte da minha vida, esse dia teve um rosto, um cheiro, um calor. A palavra "mãe", dita de forma banal ou como um pedido de ajuda ou carinho, instaurava um campo de afeto que me envolvia e situava no tempo e no espaço - e no centro do universo (pelo menos na minha fantasia). Enquanto viveu, minha mãe foi o repouso e o conforto da parte de mim que nunca vai crescer.

Quando minha filha nasceu, a palavra "mãe" começou a apontar para fora e para frente. O vetor do tempo se inverteu. Agora sou eu a guardiã das pré-histórias de outra pessoa, e a palavra "mãe", dita por ela, vem acompanhada de expectativas, sonhos, aflições, perguntas. Enquanto uma parte de mim nunca esqueceu como é ser filha, a outra está sempre aprendendo a ser mãe.

CLÁUDIA LAITANO


12 DE MAIO DE 2018
PAULO GLEICH

Filhos ingratos

O desafio de um filho é conseguir frustrar sua mãe, pois deve a ela nada menos do que sua existência

Este domingo é aquele dia especial em que se demonstra toda gratidão e amor àquelas sem as quais nenhum de nós estaria aqui: as mães. Filhos pequenos entregarão cartões e presentes confeccionados para ela na escola, os já crescidos levarão um presente ou, ao menos, sua própria presença - e, dado o caso, os netos! - para um farto almoço ao redor da mesa familiar. Haverá risos, abraços, selfies, tudo emoldurado em palpitantes corações.

Fora do mundo da publicidade e de outras fantasias idílicas, porém, a coisa não é bem assim. As relações entre mães e filhos não são sempre um mar de rosas, sequer um padecimento no paraíso, como se dizia: às vezes, o padecimento é um inferno mesmo. Brigas, desavenças, queixas, desilusões são ingredientes próprios de qualquer relação afetiva, e não teria como ser diferente naquela onde primeiro se experimenta o amor.

Freud nunca disse que a culpa de nossas desgraças é da mãe, mas o que ele, sim, revelou é que levamos para sempre a marca dessa relação primordial cheia de tramas e conflitos. Diferente do que diz a Bíblia, é Eva, não Adão, quem tira um pedaço de seu próprio corpo para gerar uma nova vida. Essa origem tão carnal da vida humana é algo talvez impossível de elaborar totalmente, tanto para mães como para filhos: jamais haverá palavras suficientes para compreender totalmente essa experiência excessivamente real.

Uma queixa frequente entre as mães é a de ingratidão por parte dos filhos. É um sentimento mais ou menos presente e consciente, mas está lá, seja expressado explicitamente ou nas entrelinhas, habilidade na qual as mães são pós-doutoras. E elas não deixam de ter razão: os filhos são realmente uns ingratos, fadados a desapontá-las repetidamente, já desde muito pequenos.

O desafio de um filho é conseguir frustrar sua mãe, pois deve a ela nada menos do que sua existência e sobrevivência. Há as que facilitam essa tarefa por suportar melhor a frustração, lidando como podem com a dor do afastamento. Outras têm mais dificuldades e sempre encontram formas de mantê-lo por perto, seja demandando ostensivamente sua presença, seja com estratégias mais veladas - o que às vezes é ainda mais eficaz. A possibilidade de um filho crescer tem também íntima relação com a capacidade da mãe de deixar-se desiludir.

No melhor dos casos, um filho consegue ser ingrato e rompe com o sentimento de obrigação em corresponder totalmente ao amor materno, e assim parte para descobrir o que há para além do ninho. Não é uma tarefa fácil, sobretudo porque o colo materno às vezes chama de volta com mil cantos de sereia, despertando a nostalgia de tempos em que ela fazia tudo por ele. Mas também é difícil para a mãe deixar de ver em seu filho, mesmo adulto e com grandes conquistas, o pequeno ser que ela gerou e que dela dependeu inteiramente. Algumas chegam a confessá-lo sem pudor: "Para mim, será sempre meu bebê".

Mães que se queixam que seus filhos são ingratos deveriam, por isso, sentir-se muito orgulhosas: fizeram um bom trabalho. Puderam suportar, com mais ou menos dificuldade, que eles não permanecessem devotos a elas e, assim, pudessem deixá-las um pouco de lado para tornar-se adultos. São os filhos que não conseguem jamais ser ingratos os que deveriam ser lamentados: ficam pagando para sempre uma dívida interminável, cujo preço acaba sendo sua própria vida.

Paulo Gleich escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Abrão Slavutzky.

Jornalista e psicanalista, escreve quinzenalmente paulogleich@yahoo.com - PAULO GLEICH

12 DE MAIO DE 2018
DIA DAS MÃES

Mãe e filho formados juntos


Em meados de 2013, Rosane Reck­tenvald Grenzel, 45 anos, seguia de Boa Vista do Buricá para Horizontina, onde o filho do meio, Roberto Grenzel Filho, hoje com 24 anos, faria sua matrícula em Engenharia Mecânica. No caminho, o garoto expôs suas inquietações: não era o curso que ele realmente gostaria de abraçar. Contou à mãe o desejo de seguir para a Odontologia. Foi uma viagem breve, mas de revelações que mudariam a vida de ambos.

- No carro, naquele momento, eu contei a ele que era meu sonho fazer Odonto. Mas casei muito cedo, com 18 anos, tive minha primeira filha, Bárbara, com essa idade e, por conta disso, eu entendia que era algo impossível de se realizar. Era um sonho que deixei guardadinho - relembra Rosane.

Roberto Filho tinha receio de que o pai não aprovasse a mudança. A rota da viagem foi desviada para a fábrica de estofados da família, localizada em Três de Maio, também no noroeste do Estado. Lá, Rosane e o filho apresentaram a alteração de planos a Roberto Grenzel, que prontamente incentivou que a mulher embarcasse, ao lado do garoto, na empreitada pelo mesmo diploma. Começava a aventura de Rosane e Roberto Filho como mãe e filho e também como colegas na Faculdade Especializada na Área da Saúde do Rio Grande do Sul (Fasurgs), em Passo Fundo.

Depois da aprovação de ambos no vestibular, a dupla precisou aparar algumas arestas para que aquela caminhada conjunta não tivesse desgastes extras além da dedicação às aulas e aos trabalhos acadêmicos. Roberto Filho lembra que a ideia de estudar com a mãe não lhe agradou inicialmente:

- Eu queria viver a minha vida universitária como os outros colegas. Achei bem chato.

Rosane também se viu, aos 41 anos, tendo de reorganizar rotinas. Deixou a filha mais nova, Laura, à época com 13 anos, com o pai em Boa Vista do Buricá, passava a semana em Passo Fundo estudando e, aos finais de semana, voltava para casa para rever o marido, o pai, as duas filhas e os amigos.

- Foi uma experiência maravilhosa, mas, meu Deus, como foi sacrificante. Eu vivia com o coração partido de deixar minha filha, de ficar longe do meu marido, da fábrica. E as pessoas ainda me diziam que eu estava louca, que estava velha para isso, que não tinha por que inventar de estudar naquela altura da vida. Nossa, hoje me emociono ao falar disso tudo. Não me sentia velha e eu estava realizando um sonho - relembra Rosane, às lágrimas.

O primeiro semestre na faculdade foi de ajustes. Rosane e Roberto Filho perceberam que algum distanciamento seria salutar ao progresso de ambos no curso. Logo, a mãe deixou claro a professores e colegas que ali, na faculdade, ela era apenas a colega de Roberto Filho, não a mãe. Portanto, nada de queixas sobre o filho, já que não se fazia isso com os outros estudantes.

PIADINHAS NO INÍCIO, ADMIRAÇÃO DEPOIS

Nos primeiros meses de aula, enfrentaram alguns olhares curiosos e até piadinhas por estarem juntos em sala de aula. Muitos achavam que Rosane faria tudo pelo filho, inclusive os trabalhos e as provas. Com o tempo, ganharam acolhimento e admiração. Rosane tornou-se aluna exemplar, e Roberto Filho aprendeu a curtir a vida universitária sem entender a mãe como uma vigilante implacável.

- A gente brigava de vez em quando, mas logo entendíamos que precisávamos um do outro. Minha mãe não saía da frente dos livros, eu saía bastante - diverte-se o filho.

Rosane acabou ganhando o carinho dos jovens colegas - alguns, inevitavelmente, tratados quase como seus próprios filhos. Participava dos grupos de estudo (Roberto garante que ela fazia os melhores resumos das matérias) e das confraternizações. Se ensinou, também aprendeu.

- Como a gente se engana quando pensa que sabe mais do que os filhos só porque tem a experiência da vida. Minha cabeça se ampliou muito na convivência com os mais jovens. Passei inclusive a entender melhor meu filho e todo o mundo dele, onde talvez eu jamais chegaria se não estivesse junto nesse período. Tenho muita gratidão por esses jovens que conheci. Eu doava, mas recebia muito também - relembra Rosane à reportagem.

Em fevereiro, mãe e filho celebraram a formatura. Duas semanas antes da colação, Rosane machucou o pé e precisou receber o diploma de cadeira de rodas. Roberto Filho, claro, foi quem conduziu a formanda-colega- mãe ao cerimonial.

- Foi demais. Sei de todos os sacrifícios que ela teve para realizar esse sonho - orgulha-se o rapaz.

Mas a trajetória lado a lado de Rosane e seu guri não se encerrou com a graduação. Mãe e filho já trabalham para abrir um consultório em conjunto em Boa Vista do Buricá. Rosane também vislumbra uma especialização, interrompida em razão do problema no pé. Ela reconhece a principal lição dessa conquista:

- Não podemos, sendo mulheres e donas de casa, principalmente, deixar nossos sonhos morrerem dentro da gente. Não podemos.

Conselho de mãe.

12 DE MAIO DE 2018
DIA DAS MÃES

Passos inspiradores


Na casa de Lenita Ruschel, 80 anos, as filhas seguiram os passos da mãe sem qualquer chance de isso ser apenas uma força de expressão. Bailarina renomada em Porto Alegre, com mais de seis décadas de atuação e uma coleção de prêmios, Lenita viu suas três gurias também desenvolverem a paixão pela dança que a fisgou ainda criança. É verdade que a infância entre sapatilhas e pliês facilitou o encantamento por esse universo, mas Déborah, Helena e Sílvia tiveram liberdade para escolher seus rumos.

Trilharam suas próprias trajetórias, mas sem tirar os pés do tablado, e conduziram suas formações para o trabalho que desenvolvem nas escolas de balé - atualmente seis unidades - que a mãe fundara anos atrás.

- Foi algo que cresceu naturalmente na nossa vida - conta Helena.

Nenhuma esconde a inspiração materna e o orgulho de levar adiante um sonho que se tornou familiar. Mesmo ali, compartilhando o ambiente de trabalho, cada uma achou seu espaço individual.

Déborah, a filha mais velha, dedica-se ao repertório clássico e ao contemporâneo e se envolve na organização de eventos grandiosos, como o Natal Luz de Gramado. Helena voltou-se à dança clássica e à coreografia, é a especialista em Royal Ballet. Sílvia levou sua formação em Pedagogia para trabalhar com a criançada na escola e ainda cuida da parte administrativa. As três têm na figura de Lenita uma referência incontestável, ainda que não possam dizer que brigas não aconteçam.

- Ah, claro que tem umas briguinhas, mas isso é natural, né? - diverte-se Lenita.

Déborah credita à mãe os primeiros ensinamentos e o incentivo de persistir. Hoje, Lenita costuma dizer que são as filhas - e os netos - o grande estímulo para que, do alto de seus 80 anos, ainda mantenha uma rotina de trabalho e aprendizado.

- Ela diz que a incentivamos, mas é ela, todo dia aqui, que nos incentiva - diz Débora.

- É a minha musa, a minha diva - derrete-se a caçula Sílvia.

O peso do nome da mãe no cenário da dança do Rio Grande do Sul também não comprometeu decisões e reavaliações entre as três irmãs. Se por um lado tinham uma grande professora dentro de casa, elas são incessantes na busca por conhecimento, atualização e inovação. E, mesmo nesse ímpeto de trazer novidades, toparam com a figura vanguardista da mãe.

- O balé de adultos, que hoje é um sucesso na nossa escola, foi uma coisa que ela inventou 20, 30 anos atrás. Hoje, sou eu quem dá essas aulas inspirada nela - conta Helena.

- Ela foi a responsável por tudo... Por tudo de bom na minha vida - completa Déborah.

12 DE MAIO DE 2018
MARTA GLEICH

14 milhões de usuários


No dia 21 de setembro de 2017, há pouco mais de sete meses, lançamos a plataforma GaúchaZH. Enchemos a empresa de balões cor de laranja, em um dia de celebração nas redações e no núcleo digital, onde o site e aplicativos foram desenvolvidos. Mas havia, sim, aquele nervosismo da estreia. Tínhamos dois sites vencedores, o da Zero Hora e o da Rádio Gaúcha, por que inventar?

O problema é que os dois sites tinham público e conteúdos similares. Se você quisesse acessar uma notícia aqui do Estado, procurava onde? No site da Gaúcha ou no site da ZH? Reunimos forças e lançamos produtos digitais mais modernos, mais rápidos, mais funcionais, com o melhor conteúdo produzido por todos os jornalistas, colunistas e comunicadores da rádio e do jornal. Tudo num só lugar. Na teoria, parecia bom. Mas, e na prática, será que iria funcionar?

Poucos meses depois, podemos dizer que funcionou, e muito bem. Sabem quantos usuários alcançou em abril o GaúchaZH? 14 milhões. Um recorde absoluto. O número de sessões (vezes em que os usuários interagem com GaúchaZH) também foi recorde: cresceu 27,55% desde a estreia.

Obrigada, leitores, ouvintes, usuários, por números tão expressivos. Mas não pensem que o fato de o GaúchaZH ter dado muito certo vai nos fazer parar de inventar, não. Para seguir acompanhando e atendendo nosso público, estamos sempre lançando novidades. Acabamos de lançar mais uma, na última semana: o programa 11 Copas do Pedro, com Pedro Ernesto Denardin.

Se você ainda não conferiu, dê uma passadinha lá.

Diretora de Jornalismo Jornais e Rádios - MARTA GLEICH

sábado, 5 de maio de 2018


05 DE MAIO DE 2018
LYA LUFT

Amor e dor


Subtítulo de um livro meu, recente, em que considerava o quanto somos um país de miseráveis, pois a parcela pobre ou miserável da população é gigantesca, certamente jamais calculada direito, sempre "por cima", no grito, a olho. Nem incluo aqui os miseráveis dos campos e povoados do Norte e Nordeste, ou mesmo Centro, ou por todo o Brasil, sem água potável, sem esgoto, sem casa que se possa chamar assim, morrendo à mingua devido à seca eterna, como o menininho que certa vez citei aqui, que, quando interrogado pelo repórter sobre o que gostaria de comer se pudesse pedir, respondeu com vozinha débil (Lygia Fagundes Telles chamaria "voz de formiguinha debaixo da mesa"): arroz.

Ele não queria sorvete, torta, brigadeiro, creme, fruta, nem mesmo feijão. Se tivesse arroz, estaria contente. Nunca esqueci o menino, o tom de voz, a carinha, e minha profunda vergonha: que país somos, afinal? Diariamente, hora a hora, escuto as quantias trágicas e bizarras, inimagináveis para o brasileiro comum, que se esvaíram do país, isto é, das mãos do povo, de cada um dos miseráveis - e mesmo de nós, os medianinhos -, em propinas, desvios, roubalheira e nem sei quanta indignidade mais.

Diariamente, novos vexames, novos horrores, novos crimes: pois um país que tem tantos miseráveis e tantos bilionários desonestos é, em si, criminoso (ainda que só por omissão, distração ou burrice).

O símbolo disso tudo é para mim, hoje, o edifício incendiado e desmoronado do centro de São Paulo - 24 ou 26 andares, cinco ou oito habitados, quase (tudo informações "mais ou menos") 350 pessoas se a conta é correta, pois muitos com certeza ali dormiam ou moravam e não estavam "cadastrados". Não acredito em apenas quatro desaparecidos. Pode haver muitos cadáveres calcinados nos escombros, mas serão revelados?

Há em São Paulo, segundo a prefeitura, mais uns cem edifícios nas mesmas condições: inseguros, mortais, e ocupados. Só ali no entorno desse desabado, uns oito. Vão-se fazer investigações, vão-se tomar providências. Vão-se nomear comissões e fazer projetos, o que em geral significa ZERO providências concretas. Vergonhoso ver os laudos contraditórios feitos por várias entidades, ONGs (ah, algumas dessas ONGs...), prefeitura, bombeiros, que vão desde "sem maior problema" até "nenhuma segurança". Tudo arquivado ou simplesmente ignorado.

Onde estamos, quem somos? E as falsas ONGs e movimentos (homenageio aqui as verdadeiras ONGS heroicas), que reúnem pobres desamparados e assustados em manadas dizendo-se salvação da pátria, cobram taxas e expulsam quando, segundo relatos, alguém "se recusa a participar de manifestações nas ruas" para ganhar R$ 30, pão com mortadela e suco artificial.

Este país nós somos? Muitos leitores dirão que não têm nada com isso, pagam impostos, ainda ajudam algumas entidades e fazem doações aos pobres - e assim se eximem. Desculpem: enquanto pusermos nas nossas lideranças as raposas velhas ou novas que estão com seus respeitáveis rabos presos em mil investigações de corrupção, somos todos responsáveis por mais essa tragédia brasileira, sobre a qual escrevi, em parte, no Paisagem Brasileira, de 2015, com o subtítulo Amor e Dor pelo Meu País. Os dois sentimentos continuam muito vivos.

LYA LUFT

05 DE MAIO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Um mundo unissex


Era por volta de 8 de março, Dia da Mulher. Uma amiga comentou que um evento alusivo à data tinha sido cancelado. Uma palestra. Você não vai acreditar quem a empresa havia convidado, ela disse. Eu não fazia ideia. Chuta, insistiu. Mas ela nem esperou eu pensar em um nome, entregou direto: O Marcos Piangers!!. Silêncio. O Piangers é ótimo, eu disse. Por que cancelaram? Ele ficou doente?. Minha amiga fez aquela cara de hellooou e gritou nos meus ouvidos: PIANGERS É HOMEM!!

Eu sei que Piangers é homem e logo entendi a gafe da empresa: convidou um macho para palestrar num evento "cor-de-rosa". Entendi, mas não entendi. Piangers viaja por todo o Brasil dando palestras sobre sua experiência de ter sido um menino que foi criado só pela mãe, o que o estimulou a ser um pai mais do que participativo de suas duas filhas. Piangers é aquele cara desassombrado com a paternidade: assume sua função com prazer, com responsabilidade, com criatividade. Escreve sobre isso em jornais, participa de programas, grava vídeos, conscientiza: pai não é decorativo, não é apenas um provedor. Pai educa, pai ama, pai brinca, pai orienta, pai vacila, pai é uma mãe também.

Piangers é um feminista. Ora, um homem que faz outros homens repensarem seu papel dentro de casa é um aliado. Nosso empoderamento passa também por viver ao lado de maridos e namorados que compreendam que homens não têm que "ajudar" a cuidar dos filhos, e sim que reconheçam a profundidade da sua missão na criação deles. Logo, Piangers colabora demais. Qual o problema de ele palestrar num evento dedicado às mulheres? Achei a proposta avançada - só que não rolou.

Além da tripla jornada de trabalho, somos vítimas de assédio, violência, machismo. Somos as maiores interessadas em acabar com este quadro de abuso, mas não as únicas interessadas. A maioria dos homens não é bandido. Eles têm irmãs, filhas, namoradas, esposas, mães, primas, tias, avós - estão cercados por mulheres e talvez queiram conversar conosco sobre tudo isso. Por que estamos impedindo-os de participar desta revolução?

Mudar padrões de comportamento depende da gente: não aceitar piadinhas preconceituosas, denunciar agressões, fortalecer a autoestima. Com quem praticar essa nova postura? Com os homens com quem convivemos, pra início de conversa. Então me parece producente trazê-los para perto em vez de isolá-los. Assim como Piangers, há outros que têm a cabeça aberta sobre o atual papel masculino. Admito: sou fã de homem. Fico nervosa com clubes da luluzinha. Não quero fazer parte de nenhuma tribo sexista. Lutamos tanto para quê? Para expulsar os homens depois da nossa ocupação ou para fundar uma nova sociedade ao lado deles, de igual para igual?

O Dia das Mães está aí. Que Piangers faça muitas palestras. Ao formatar um novo pai, ele adianta bastante o nosso serviço.

MARTHA MEDEIROS


05 DE MAIO DE 2018
CARPINEJAR

Geringonça preguiçosa



A máquina de lavar pratos é inútil. Uma invenção bem intencionada, mas inútil.

Você precisa desengordurar primeiro os pratos com o papel, para colocar na esteira. Com a canseira que leva para ajeitar a louça no interior do aparelho, já daria tempo para limpar tudo.

A máquina de lavar pratos é uma geringonça preguiçosa. Vem cheia de restrições. É alérgica a frutos do mar e intolerante a lactose e a glúten. Ou seja, não aceita quase nada.

Ela jura que é Napoleão no manicômio da cozinha, sofre da mania de grandeza da máquina de lavar roupa. Ao ser comprada já avisa:

- Eu vou para a sua casa. Só que não lavo panelas e frigideiras.

O que adianta, então? Não cuida justamente do pior, da maior herança do sebo. No lugar dela, terá que estragar as unhas esfregando o contorno das formas.

Ler o manual de instruções é ler o que não pode fazer, nunca o que pode fazer.

Na verdade, ela não trabalha para você, você trabalha para ela. É a sua doméstica, o seu auxiliar de luxo.

A máquina de lavar não resolve o fundo arenoso das mamadeiras, as bordas vincadas das vasilhas empestadas, não ajuda com o pesado da vida doméstica. É simplesmente uma prateleira com espuma.

Vejo que também é machista. Não limpa copos e cálices sujos de batom. Tem dificuldades de relacionamento com o público feminino. Assim também constrange solteiros e incrimina infiéis, cria casos e encrencas amorosas preservando as manchas.

Talvez ela apenas sirva para dissuadir as visitas de colaborar com a louça no fim do almoço ou do jantar. Convenhamos, é uma desculpa muito cara.

CARPINEJAR

05 DE MAIO DE 2018
PIANGERS

Duro


Ninjas invisíveis cortadores de cebola me fizeram chorar no momento em que conversava com um amigo e ele me respondeu à pergunta: Qual você acha que foi seu maior erro como pai?. Ele tem dois filhos, um de 15 anos e uma garotinha de dois. Acho que fui duro demais com meu primeiro filho, ele disse. Chorei na hora porque acho que também fui duro demais com você, Anita.

Acho que a grande decepção da vida da minha filha mais velha, minha companheira de passeios, minha amiga de conversas antes de dormir, minha primogênita e por sete anos a dona de toda minha atenção, acho que sua grande decepção foi quando tive uma outra paixão, sua irmã mais nova. Quando dividi minha atenção, meu café da manhã, minhas brincadeiras de beijar barriga, meu amor e meu carinho. Acho que ela se sente magoada até hoje.

E acho que todas as vezes que ela tentou chamar minha atenção, da forma infantil como as crianças tentam chamar nossa atenção, fui duro e seco. Todas as vezes em que ela falou coisas feias ou fez algo apenas para me chamar atenção, para dizer "Eu ainda existo, pai!", para recuperar seu posto eternamente perdido de filha única, percebi como pirraça e fui duro. 

Fui duro como minha mãe foi, às vezes, e como os namorados da minha mãe eram quase sempre. Fui firme, como eles, para que ela não virasse uma pessoa ruim, para que não achasse que poderia ter tudo, para que não se tornasse uma dessas adolescentes que não dão valor a nada. Em geral, pais são duros com os filhos para que não sejam insolentes, arrogantes, desaforados. Somos duros para que sejam bons.

Acho que fui duro, muitas vezes. Acho que ser duro é importante e impor limites nos ajuda a tornar nossos filhos pessoas melhores. Só me arrependo de, tantas vezes, não ter explicado por que estava sendo duro. Não ter sido gentil, ao mesmo tempo em que era firme. Erramos por falta de tempo, de paciência. Apenas depois de ser pai entendi os erros da minha mãe. E perdoei-os. Perdoe meus erros, minha filha.

PIANGERS

05 DE MAIO DE 2018
CLAUDIA LAITANO

O resto é silêncio


Até Darwin pintar na parada, revolucionando a forma como o homem observa a natureza, a biologia era uma ciência descritiva. A ninguém ocorreria investigar por que as girafas têm pescoço comprido ou os morcegos enxergam melhor à noite. Bichos e plantas haviam sido colocados na Terra (plana) do jeito que são - como nós - para servir ao Criador. Não por acaso, até o final do século 18 o estudo da história natural era dominado por pastores, abades, diáconos, monges. Entre outros motivos, porque descrever a imensa variedade de seres da natureza era uma forma de celebrar a grandeza da criação divina.

O jogo começou a virar quando o monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), aquele das ervilhas, passou a se perguntar como um organismo individual transmitia informações a seus descendentes da geração seguinte. Em paralelo, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) estava investigando como os seres vivos transmitiam informações sobre suas características ao longo de mil gerações. Os dois lançariam as bases da Teoria da Evolução e de tudo que se sabe hoje sobre genética.

Essa maravilhosa saga da inteligência humana é narrada de forma épica - com muita aventura, suspense e trairagem - no livro O Gene, do médico indiano Siddhartha Mukhrerjee. E por que a pior aluna de Biologia do Colégio Rosário está escrevendo sobre um livro de ciência? Primeiro, porque é uma leitura que eu recomendo muito - e Mukhrerjee vem a Porto Alegre, em setembro, para o Fronteiras do Pensamento. Segundo, porque esse percurso fascinante só foi possível graças a homens como Mendel e Darwin, que ousaram fazer perguntas que contrariavam não apenas a Igreja, mas o senso comum de sua época.

Nesse sentido, arte e ciência têm muito em comum. Ambas são métodos para compreender o mundo (a ciência) e a experiência humana (a arte). Artistas e cientistas erram, mas a arte e a ciência permanecem acima dos erros individuais. Para entender a natureza, o cientista faz perguntas e testa hipóteses. Algumas dessas perguntas podem abalar o status quo - e cientistas como Galileu Galilei e tantos outros pagaram um preço alto por isso. O certo é que nenhum avanço científico é possível onde não existe curiosidade ou não se tem liberdade para fazer perguntas.

Para algumas pessoas, arte é um quadro bonito guardado em um museu - ou aquelas coisas que donos de restaurante gostam de pendurar na parede. Mas a arte, como a ciência, é também um método para fazer perguntas: quem somos, como sentimos, como é o lugar e a época em que vivemos. O artista faz isso usando técnicas que às vezes conversam com o grande público, às vezes não. Assim como a ciência, a arte muitas vezes ultrapassa o próprio horizonte.

Se não dá para culpar o monge Mendel por ter ajudado a implodir alguns dogmas da igreja, não podemos culpar os artistas por desrespeitarem valores estabelecidos na hora de criar, pensar ou criticar. Pode-se gostar ou não do que um artista faz ou diz, mas não se pode exigir da arte que use paletó e gravata, respeite os mais velhos e fique longe dos dogmas e das autoridades. Arte e ciência precisam de liberdade. E o resto é silêncio.

Ou melhor, silenciamento.

CLAUDIA LAITANO

terça-feira, 1 de maio de 2018


01 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

Uma noite no Soho


Foi a famosa arquiteta gaúcha Cris Camps quem nos indicou a Piccola Cucina, pequena joia em forma de cantina incrustada no pâncreas do Soho, em Nova York. Chegamos lá, eu, a Marcinha e o Bernardo, e um italiano que, suspeito, era o próprio dono veio nos atender enrolado em um avental e atrás de um sorriso. Nós não tínhamos feito reserva, mas, se déssemos uma volta de 20 minutos pelo bairro, ele nos garantiria uma mesa perto da janela, com vista para um naco feliz da Big Apple.

Então está bem, era uma boa ideia, estávamos em um lugar aprazível para passeios curtos. Saímos e vimos espécimes interessantes da fauna humana, como um cara que vestia calças prateadas e usava uns óculos parecidos com aqueles do Zé Bonitinho e uma linda modelo de pele negra como as madrugadas sem lua da Praia Brava, que era fotografada no meio de uma rua de paralelepípedos. Vinte minutos não são nada, até porque nossa fome não passava dos cinco pontos na Escala Richter. Voltamos e a mesa estava posta, esperando por nós. Sentamos. E só aí notamos como era o lugar.

Tocava uma música que faz bom sucesso nos Estados Unidos, em que uma moça de origem cubana chamada Camila Cabello canta que, embora ela viva em Atlanta, metade de seu coração bate em Havana. É uma música cheia de ginga latina, cheia de malícia morena, que faz você se balançar instintivamente, e era bem isso que todos faziam no restaurante: balançavam-se. Alguns, acomodados em suas cadeiras, ondulavam os ombros, enquanto outros, sobretudo as mulheres, puseram-se de pé e dançavam em frente aos seus pratos de macarrão. Olhei em volta e vi que os garçons também dançavam e, lá na cozinha, exposta por uma grande janela de vidro, os cozinheiros lidavam com panelas e caçarolas e requebravam feito Travoltas.

Na mesa ao lado da nossa, um senhor de uns, sei lá, 76,4 anos, rebolava, cantava e acenava para um grupo de oito mulheres que serpenteavam perto da parede. Sorri. A Marcinha sorriu. O Bernardo sorriu. Logo nós também cantávamos: "Havana uh-na-ná!".

Notei que aquele senhor dançante era italiano. Ele estava acompanhado de outros três italianos ou de ascendência italiana. Tudo era italiano por ali e, por isso, pedimos massa, a minha com molho vermelho, que molho branco é fraude. Vou dizer: estou me lixando para essa dieta dos carboidratos.

A música continuou rodando, e o restaurante foi se esvaziando aos poucos. Antes de pedirmos a conta, o senhor italiano levantou-se, foi à cozinha e beijou os cozinheiros. Depois, beijou os garçons, beijou as moças que dançavam na mesa próxima à parede e, na saída, passou a mão na cabeça do Bernardo como um americano jamais passaria. Na rua, ele montou em uma lambreta e foi-se embora em alta velocidade.

Paguei, por fim, e nos levantamos. Quando o dono do restaurante viu que estávamos indo embora, pulou de alguma sombra, correu na minha direção e estendeu a mão. Cumprimentou-me calorosamente, de um jeito nada anglo-saxão. Caminhando pela calçada do Soho, comentamos que climas assim calorosos só são possíveis entre latinos e que isso fazia toda a diferença no estado de espírito de uma pessoa. Havana uh-na-ná, cantava a moça, dizendo que metade do coração dela estava em Cuba. Metade do nosso está no Brasil.

DAVID COIMBRA