quarta-feira, 29 de maio de 2013


29 de maio de 2013 | N° 17447
EDUARDO VERAS

Aquém do horizonte

Há um poema de Rudyard Kipling em que o primeiro homem, depois de assistir ao primeiro pôr do sol, pega uma vara e risca uma linha no chão. Em seguida, o Diabo lhe chega por trás do ombro e comenta: “Ficou bonito, mas será que é arte?”. O assunto da anedota é o quanto a crítica se compraz em nos perturbar as certezas, mas nem por isso o poema deixa de contemplar o próprio tema da criação: o sol não está mais no horizonte; resta a linha.

Imagine agora essa linha sobre uma folha de papel, folha pequena, meio ofício. Imagine que a linha não é reta, feito a do poema, mas é como aquela dos skylines urbanos, acompanhando o ritmo dos edifícios.

Não precisa pensar em Noviorque, Porto Alegre já serve. Imagine agora que a linha define um único prédio, não um desses grandes e pretensiosos, que sua cidade tanto ama, mas um pequeno, já velho, três ou quatro andares. Imagine que, da linha para baixo, tudo se preenche minuciosamente; o lápis pastel se esfumaça em preto, cinza e branco, sugerindo planos, arestas, volumes.

Vê-se apenas o topo do prediozinho: a caixa d’água, as paredes sujas, alguma basculante, calhas, telhas, canos. Para cima da linha, além do que seria o horizonte, apenas o branco do papel.

Agora imagine que a parte debaixo desse prédio desenhado é recortada pelo que seria o perfil de um segundo edifício, um pouco mais baixo, dois ou três andares, ou ainda uma casa. Porém, em vez de desenhar esse segundo edifício, imagine que, em seu lugar, tudo permanece em branco. É como se aquilo que (não) aconteceu acima da linha do horizonte se repetisse nessa porção inferior do papel: tudo em branco. O desenho mesmo, aquilo que foi riscado, ocupa apenas o meio da folha.

Talvez seja algo difícil de imaginar. Tentei descrever como enxergo os desenhos de Marcos Fioravante, jovem artista de apenas 23 anos. Encerrou-se faz pouco a exposição que ele apresentava na Galeria Gestual, em Porto Alegre. Boa parte de seus trabalhos ainda pode ser vista no acervo da casa, ao vivo, ou em reproduções no site (www.gestual.com.br/art/mar cos_exposicoes.htm).


Os pequenos desenhos em preto e branco, representando o topo de modestos edifícios, parecem sintetizar o próprio sentido do que é – e como funciona – um desenho: o que se risca, mas também o que se deixa em branco, o que o contorno define, mas também aquilo que nem se risca e que, ainda assim, consegue definir um contorno. O espaço intermediário entre dois planos, e também os planos. O desenho surge, ao mesmo tempo, além do horizonte e aquém dele.

sábado, 25 de maio de 2013


26 de maio de 2013 | N° 17444
MARTHA MEDEIROS

À prova de influências

O medo nasce da história que contamos a nós mesmos. Descobri isso quando viajei sozinha pela primeira vez, aos 24 anos. Idade semelhante à da protagonista do livro que estou lendo, sendo que no caso dela a aventura foi bem mais radical que a minha: se eu mochilei de trem pela Europa, ela mochilou a pé por uma trilha numa região montanhosa dos Estados Unidos.

Andou mais de 1.700km em meio a uma natureza selvagem, sem nenhuma experiência e emocionalmente em frangalhos. É essa a história contada em Livre, de Cheryl Strayed.

Peregrinar é busca. De si mesmo, naturalmente, mas podemos encontrar também novos conceitos para a vida. É onde o medo às vezes entra para atrapalhar. Antes de sair de casa pela primeira vez, eu não havia criado a minha própria história sobre o medo.

Vivia protegida pela família, pelo conforto, pela estrada previamente pavimentada e sinalizada por meus pais – o medo que eu porventura sentisse havia sido herdado deles. Fazia parte da história de vida deles. Eu ainda não tinha a minha.

Só quando comecei a dar os primeiros passos sem retaguarda e sem companhia é que fui criando uma história mais autêntica para o meu medo. Decidi que ele não seria um personagem assustador, com capacidade de me paralisar. Meu medo, diferente do medo de outras pessoas, não me inibiria. Seria sutil. Ele apenas evitaria que a soberba tomasse conta: prepotentes potencializam riscos. Mas eu não permitiria que o medo me tornasse covarde. Na história que criei sobre o meu medo, não dei a ele tanto poder.

Sabemos que o medo tem uma boa assessoria de imprensa. Abra o jornal, assista aos noticiários de tevê, ouça o que dizem por aí: um prédio mal construído pode cair sobre sua cabeça, um maluco pode manter sua filha em cativeiro por 10 anos, você pode ser assaltado ao chegar ao trabalho às oito da manhã, o ônibus em que você viaja pode cair de um viaduto, o leite que você toma pode estar contaminado. Sem falar nas aflições emocionais: o medo de ser traído, deixado, de viver sem amor.

No entanto, nem o Jornal Nacional, nem Zero Hora, nem a internet, nada deveria pautar nosso medo, nem mesmo a experiência dos amigos. Informação nos prepara, mas não fecha caminhos. Eles continuam abertos para aqueles que contam para si mesmo outra história, à prova de influências. Para construir essa história, é preciso se escutar, estar conectado com os seus sentimentos reais, e não com os estimulados em escala industrial.


Se você disser para si mesmo que está disposto a abraçar o que vida oferece de bom e de ruim, o temor diminui. Em algum momento torna-se necessário sair da estrada pavimentada e se aventurar numa rota vicinal menos segura, só para lembrar do que é mesmo que sentimos medo, e por que. E voltar com a resposta que nos dará a bravura necessária para seguir adiante: teremos descoberto que o medo não passa de uma desculpa esfarrapada para ficar no mesmo lugar.

26 de maio de 2013 | N° 17444
FABRÍCIO CARPINEJAR

Esse cara não sou eu

Sou eu e ela aproveitando os 10 minutos de tolerância do despertador para ficar ainda mais abraçados.

Sou eu e ela brindando com xícaras de café.

Sou eu e ela dividindo o espelho na hora de escovar os dentes.

Sou eu e ela perguntando se está frio ou quente na rua para escolher as roupas.

Sou eu e ela fazendo planos para o final de semana em plena segunda-feira.

Sou eu e ela de mãos dadas no cinema até formigar os braços.

Sou eu e ela criticando a cafonice de alguém na rua.

Sou eu e ela no banco da praça tomando chimarrão e jogando pipoca aos pássaros.

Sou eu e ela trocando cumprimentos de pernas debaixo da mesa.

Sou eu e ela se beijando devagar para respirar melhor dentro do beijo.

Sou eu e ela guardando as rolhas de nossos vinhos.

Sou eu e ela escondendo surpresas no armário da cozinha.

Sou eu e ela ouvindo os problemas sem jamais dizer que não é nada (é horrível ouvir que não é nada quando se sofre).

Sou eu e ela relatando as confusões do trabalho, e exagerando para soar engraçado.

Sou eu e ela disputando quem acessa primeiro a web.

Sou eu e ela arrumando a casa depois de festa.

Sou eu e ela colocando ao mesmo tempo nossas fotos no Facebook.

Sou eu e ela dançando com a cabeça voltada ao teto.

Sou eu e ela lendo o mesmo livro, um esperando o outro terminar o parágrafo para virar a página.

Sou eu e ela adivinhando o que significa certas palavras antes de consultar o dicionário.

Sou eu e ela em silêncio barulhento quando nos emocionamos com uma história.

Sou eu e ela mordendo os lábios no momento da excitação.

Sou eu e ela dividindo os moletons mais gastos.

Sou eu e ela atendendo ligações de madrugada dos amigos em fossa.

Sou eu e ela dando desculpas furadas para não sair no frio.

Sou eu e ela pedindo: por favor, coce minhas costas.

Sou eu e ela passando a roupa um pouquinho antes da festa.

Sou eu e ela atentos quando um dos dois levanta no meio da noite.

Sou eu e ela encardindo as meias pelos corredores do prédio.

Sou eu e ela confessando ciúmes com humor.

Sou eu e ela guardando as caixas de sapatos e as embalagens dos presentes.

Sou eu e ela mudando de canal sem parar sempre alegando que nunca tem programa bom.

Sou eu e ela conferindo se fechamos a porta.


Não sou o cara, mas melhor do que isso: sou um casal.

25 de maio de 2013 | N° 17443
NILSON SOUZA

Antropófagos

O sapateiro foi bem além das chinelas e acabou deixando impressionante registro histórico de uma viagem ao Brasil recém-descoberto. Falo do francês Jean de Léry, que desembarcou no Rio de Janeiro em 1556 para fabricar sapatos na chamada França Antártica. Na volta à Europa, escreveu uma verdadeira obra-prima sobre a viagem, feita numa caravela precária e em condições de extremo risco. Li sua aventura na última edição da Revista de História da Biblioteca Nacional e ampliei um pouco mais o meu fascínio pelos exploradores do século 16, que enfrentaram um mar de adversidades para conhecer e colonizar o novo mundo.

Léry veio também para pregar o protestantismo e apaixonou-se pelos índios tupinambás, nos quais reconhecia muito mais autenticidade, lealdade e franqueza do que em seus próprios patrícios. Ele descreve os hábitos e costumes rudimentares dos selvagens, mas espanta-se mesmo é com alguns franceses que já conviviam com os índios e que, como eles, passaram a praticar o canibalismo.

Depois de um ano entre os nativos, nosso escriba retornou com uma carga de pau-brasil e alguns animais exóticos para exibir aos financiadores da viagem. Só que a volta foi tão acidentada, que acabou rendendo a melhor e mais perturbadora parte de seu relato. Em quatro meses de navegação, em grande parte com o barco à deriva, a fome da tripulação apertou. Quando acabaram os mantimentos, sobrou para os macacos e papagaios embarcados como mascotes.

Depois, os marinheiros famintos comeram os ratos do navio, por fim as velas de sebo e até mesmo solas de sapatos. Conta Léry: “Mal podíamos falar uns com os outros sem nos agastarmos e, o que era pior, sem nos lançarmos olhares denunciadores de nossa disposição antropofágica”. Estavam todos prestes a se entredevorar quando avistaram a terra.

O livro de Jean de Léry, História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil, teve sete edições em francês e algumas em latim, pois os relatos de viagem eram um gênero literário muito apreciado na Europa no século dos descobrimentos. Deviam ser mesmo. Quem não se deliciaria com detalhes daquelas fantásticas excursões pelo mar bravio rumo a um mundo desconhecido? Gente corajosa, aquela. Era tanta precariedade, falta de higiene, alimentos deteriorados, doenças e brutalidades, que muitos aventureiros morriam antes de chegar ao destino. Mas foram esses intrépidos que uniram a Europa à América e expandiram a civilização.


Nós, os humanos, somos mesmo uns bichos estranhos e curiosos. Talvez sejamos todos antropófagos por natureza, mas nossa fome de conhecimento chega a ser maior do que o nosso instinto de sobrevivência.
WALCYR CARRASCO

Não quero ser saudável

Já quis fazer um regime que prometia saúde perfeita e viver tão conservado quanto uma múmia egípcia. Lá pelos meus 20 anos, era a macrobiótica. No início do regime, passei dez dias à base de arroz integral cozido sem temperos. Segundo os macrobióticos, o arroz, superior a qualquer outro alimento, limparia meu corpo das toxinas e impediria doenças futuras. Minha esperança era tanta que perguntei: “Cura miopia e astigmatismo também?”.

Não, o arroz integral dedicava-se a enfermidades mais assustadoras. Eu me conformei a continuar de óculos, apesar da primeira pontada de decepção. Depois dos dez dias, já com a pele amarelada e as maçãs salientes, tive direito a complementar o cardápio com gergelim, bardana e feijão-azuqui. Ai, que tristeza era cada refeição! Lembro até hoje a noite em que sonhei com um hambúrguer-salada voando na minha direção. As folhas de alface batiam que nem asinhas! No dia seguinte, mergulhei na primeira lanchonete que vi. E me esbaldei nos hambúrgueres. Adeus, macrobiótica!

Sempre tive o pendor por uma dieta saudável. Ando curioso com os veganos. Trata-se de um vegetarianismo radical, sem a ingestão de nenhum produto de origem animal. Inspirações, sim. Um amigo foi recentemente a um restaurante vegano em São Paulo. O cardápio do dia era feijoada! Uma adaptação vegetariana, claro. Brócolis substitui o bacon? “Foi uma das piores experiências da minha vida”, disse ele.

Nos sites dedicados a produtos veganos, descobri até salsicha vegetariana. Suspeito que é para facilitar a introdução à dieta. Outro amigo, um advogado barrigudo, disse:

– Se comer salada fosse bom, tinha rodízio.

É verdade. Existe rodízio de carne, de pizza, de sushi. Alguém pode me indicar um rodízio de berinjela, espinafre, escarola, alface? Se comer salada fosse bom, tinha rodízio. Alguém me indica um de berinjela, espinafre, alface?

Um dos problemas para me tornar vegano, além da minha gulodice, é que dietas alimentares se tornam uma espécie de religião. Alimentar-se passa a ser um ritual. Um grupo de vegetarianos descobriu o óbvio: vegetais também têm sentimentos. Prova disso: plantas que crescem ao som da música clássica têm um desenvolvimento mais harmonioso que as que “ouvem” rock. 

Mas nunca ouvi uma cenoura gritar “ai, ai”ao ser ralada. Não conheço a linguagem das cenouras, talvez se lamentem e eu não perceba, pois tenho consciência de que gritaria que nem louco se me passassem num ralador. Alguns vegetarianos tratam de respeitar aqueles que devoram. O filho de um amigo casou-se com uma vegana radical. Todos os dias, antes de comer, fazem um ato de contrição.

– Desculpe, alface, por eu te comer – diz ela. – Você é nossa amiga, e agradecemos por nos alimentar – afirma ele.

Esse é um dos motivos pelos quais não me tornei vegano. Imagino estar na mesa com executivos da televisão ou de editoras, para discutir um contrato. E dar um beijo num rabanete.

– Rabanete querido, vou te morder. É a cadeia alimentar que me obriga a isso. Perdoe-me, meu amigo.

Como, depois dessas palavras, ser respeitado ao discutir cláusulas de um contrato? Mesmo assim, reconheço que ser vegano tem seu valor. Uma amiga atriz, adepta da dieta, parece uns 20 anos mais jovem. Sem plástica. Quem sabe, estabelecer um laço de amor com os vegetais traz vantagens.

Mais me assustam os crudivoristas. Como o próprio nome diz, são adeptos de comida crua. São vegetarianos mais radicais que qualquer outro. Sem dúvida, é uma dieta menos onerosa. Na decoração, eliminam-se os fogões. Imagino que congeladores também, mesmo porque verduras cruas ficam péssimas quando descongeladas. Muita gente preconceituosa pode imaginar que fará mal ao organismo, que alimentos crus não oferecem os nutrientes necessários.

Feita com cuidado, é uma dieta saudável, sim. Só que a pessoa fica chata. Deixa de sair com com os amigos. Passa a viver num círculo de crudivoristas como ela. Uma vez, fui com um amigo a uma churrascaria.

– Só como salada – disse, ao servir-se. – Mas por que veio aqui comigo? – Coma à vontade. O rodízio passava: maminha, alcatra... Você já devorou uma picanha sob o olhar de censura de alguém do outro lado da mesa? Botando culpa?

Ultimamente, apesar do meu namoro com os veganos, me conformei em ser o que sempre fui. Um boi gordo. Comer de forma saudável deve ser ótimo. Mas a vida vira um tédio. Gosto de reunir os amigos em torno de uma mesa, rir e comer, sem pensar no destino horrível do atum e do salmão. Ser guloso é uma vocação.


quarta-feira, 22 de maio de 2013


Dove Retratos da Real Beleza (Versão Estendida)

O VALOR DE UMA PESSOA

se eu nao estiver aqui amanha...pense nisso!!!

Nada na vida é por acaso

Me Desculpa

Mensagem de Amigo


22 de maio de 2013 | N° 17440
MARTHA MEDEIROS

Bom de briga

Quarta passada escrevi sobre as vantagens de se ter o hábito da leitura e, para minha surpresa, recebi um e-mail engraçado, ainda que a graça fosse involuntária: um senhor de 60 anos defendeu furiosamente a ideia de que ler é uma perda de tempo, válvula de escape de preguiçosos que preferem o ócio à realidade – muito melhor seria viver, praticar esportes. Não explicou como uma coisa impede a outra, mas seu ataque contra os livros foi tão veemente, que quase acreditei que os verdadeiros alienados são os que se dedicam às “histórias dos outros”, como ele disse.

Eu estava a ponto de incinerar minha biblioteca e comprar uma passagem para a Austrália quando um livro me caiu em mãos e resolvi lê-lo – uma despedida antes de começar a viver de fato. Quem mandou? Decidi que continuarei criando mofo, tudo por causa de Bom de Briga, do australiano Markus Zusak, livro que dá prosseguimento a O Azarão, lançado meses atrás.

Se no primeiro livro os personagens Cameron e Ruben, dois irmãos desajustados de uma família modesta, gastam suas tardes planejando uns crimezinhos mequetrefes pela vizinhança, agora, no segundo livro, eles cresceram um pouco, mas só em tamanho: continuam sem saber o que fazer para se tornar alguém.

Até que, por causa de uma briga de rua, os irmãos recebem um convite para lutar às ganhas, valendo dinheiro. É o mais próximo de um emprego que eles já chegaram. A família está na pindaíba, almoça e janta sopa de ervilhas. Os garotos topam.

Os dois livros são excelentes. Uma prosa seca e poética ao mesmo tempo. Está ali, sem pieguice, o processo de iniciação à vida (pois é, os personagens vivem, ao contrário de nós, leitores barrigudos). Em poucas páginas, o significado de vitória e derrota. Dois guris que batem, esmurram, até que o perdedor saia de dentro deles. Que descobrem que a vida é um ringue onde, não importa quanto apanhemos, o importante é levantar do chão.

Não pretendo me inscrever no Ultimate Fighters para levar uns sopapos de verdade. A literatura me aproxima dos efeitos. Emociona, estimula, dá a impressão de que também vivo aquilo tudo, ainda que, segundo o senhor que se orgulha de nunca ter lido um livro, leitura seja um subterfúgio para não frequentar nem ringues nem parques, nem quadras de esporte, nem aeroportos, nem bares, enfim, aquilo que os amantes dos livros ignoram que exista.

Markus Zusak se tornou mais conhecido por A Menina que Roubava Livros, mas esses dois romances que escreveu antes de seu best seller trazem um experimentalismo salutar à criatividade. A crítica, positiva, rotula como “livros para jovens”. Obrigada pela parte que me toca, mas discordo. São universais e uma aula para quem deseja aprender a escrever, já que escrever, ao menos, está atrelado à vida, a julgar pelo próprio autor, Markus Zusak, que a despeito de passar algumas horas em frente ao computador fazendo seu ofício, não esconde de ninguém que o que gosta mesmo é de surfar.

sábado, 18 de maio de 2013



18 de maio de 2013 | N° 17436
NILSON SOUZA

Proteína com perninhas

Nunca acordei pensando que era um inseto, como o célebre personagem de Kafka, mas tenho tanto respeito pelas formigas, que nem me atrevo a investigar minhas vidas passadas. Chego mesmo a desviar de meu percurso nas caminhadas matinais quando vejo uma carreira de bichinhos na calçada. Aprecio-as pela disciplina e pela determinação, especialmente aquelas que carregam pedaços de vegetais bem maiores do que elas próprias.

Também me despertam compaixão outros insetos, como aquele que parece um rinoceronte em miniatura e está sempre virado com as patas para cima, sem conseguir se aprumar. Quando deparo com um desses, procuro desvirá-lo para que retome o seu rumo. Também tenho um crédito de bom-mocismo com os voadores: já fui severamente advertido por um companheiro de viagem por reduzir abruptamente a marcha do carro na estrada, apenas para não atropelar uma borboleta.

Sinto-me, portanto, moralmente impedido de seguir a recomendação que a ONU deu na semana passada para combater a fome no mundo: comer insetos. Muitas espécies têm mais proteína do que a carne, garantem os especialistas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. E lembram que grilos, gafanhotos e larvas de diversas espécies já são consumidos em mais de 120 países, sendo apreciados inclusive nos sofisticados restaurantes europeus que vendem comidas exóticas. Com todo o respeito, argh!

Como nunca passei fome de verdade, não posso dizer que jamais comerei qualquer coisa. Mas enquanto houver um pacotinho de miojo disponível no mundo, os insetos que se preocupem apenas com seus predadores naturais – como uma lagartixa que habita os recantos escuros da minha sala de trabalho em casa. Chamo-a, carinhosamente, de Tixa. Ela, sim, tem um verdadeiro fascínio pelos bichinhos que se deixam atrair pela luz. De vez em quando, sai da sombra e faz um rápido lanche, antes de retornar ao seu esconderijo. Segue a orientação da FAO e parece mesmo forte e saudável.

Se alguma vez estive perto de provar alimento de lagartixa, foi quando prestei serviço militar. Muitas vezes, comi comida fria porque perdia um tempão enorme separando os gorgulhos do feijão.

E tinha colega de farda que nem olhava para o prato. Haja estômago! Já ouvi dizer que alguns cearenses comem tanajuras, aquelas formigas gigantes que aparecem na época das chuvas. Não é o pior: tem gente pelo mundo que come aranha caranguejeira, escorpião, larva do bicho-da-seda e outras criaturas tão indefesas quanto repelentes.

Mas nem só de insetos vive o homem. Li que na Tailândia um chefe de cozinha ficou famoso por preparar um prato exótico que garante ser muito saboroso: lagartixas fritas.

Má notícia para a minha companheira de serão.


Os seios de Angelina
RUTH DE AQUINO

Esta mulher é surpreendente. Nunca entrou para o primeiro time de atrizes, mas chegou a ser a mais bem paga de Hollywood. Fez filmes bem ruins, estrelou fracassos comerciais. Ficou famosa ao interpretar uma heroína de videogame, Lara Croft. Ganhou um Oscar de Coadjuvante, em 1999, como uma jovem transtornada em Garota, interrompida.
>>Angelina Jolie é um bom exemplo contra o câncer?

Não é, portanto, por seu desempenho profissional que Angelina Jolie ganhou a estatura de musa transcendental e universal. Ela jamais foi uma grande atriz. Na vida real, inventou e reinventou para si mesma personagens transgressoras e radicais. Quantas Angelinas foram desconstruídas até ela chegar à capa das últimas revistas como uma deusa sublime, arauto do sofrimento de milhões de mulheres?

Angelina se impôs primeiro por uma beleza exótica, quase excessiva. Olhos imensos e verdes. Lábios tão carnudos que prestaram um desserviço a mulheres loucas e ansiosas para ganhar “a boca da Jolie”, com preenchimentos mal-sucedidos. Pernas longuíssimas, exibidas em fendas criadas por estilistas.

A perna direita de Angelina, exposta por um modelo preto e recortado de Versace, na cerimônia do Oscar do ano passado, ganhou, em minutos, um perfil no Twitter com mais de 10 mil seguidores. Sua pose inspirou montagens hilárias de anônimos. A perna “apareceu” em quadros clássicos, como A última ceia, de Leonardo da Vinci, e em cenas históricas, como a chegada do homem à Lua.

Compondo com os olhos, a boca e as pernas, uma outra parte do corpo de Angelina sempre esteve em evidência no tapete vermelho, pelos decotes e vestidos tomara que caia: os seios fartos, um dos símbolos de sua sensualidade. Foram esses seios que Angelina decidiu retirar e substituir por próteses, como medida preventiva contra o câncer.

Não falarei sobre detalhes médicos, o pânico da hereditariedade ou as siglas de genes mutantes. O que me interessa – e sempre me intrigou nessa atriz americana de ascendência alemã, eslovaca, canadense e holandesa – é sua personalidade. Se olharmos para sua biografia, a decisão de Angelina de fazer e anunciar a dupla mastectomia no jornal The New York Times tem tudo a ver com sua vida, nada convencional.
Não foi por seu desempenho profissional que ela ganhou a estatura de musa transcendental...

Alguns enxergam seu ato como coragem, outros como precipitação. Muitos acham sua cirurgia uma oportunidade valiosa para discutir abertamente um dos maiores medos das mulheres. Hoje, não fazemos só mamografias anuais, mas ultrassonografia e ressonância magnética das mamas. Conversei com um mastologista que se confessou surpreso com a quantidade de casos de câncer e a baixa idade de pacientes: “É como se fosse uma moda, uma onda”, disse ele.

A fama de Angelina e a repercussão de seu artigo ajudarão mulheres a conhecer métodos de prevenção e cura. Ou aumentarão a fobia feminina. A conclusão mais óbvia e sensata é: cada caso é um caso. A escolha de Angelina foi radical. Mas ela sempre foi radical.

Os pais se separaram quando era bebê. Aos 7 anos, estreou no cinema ao lado do pai, o ator Jon Voight, com quem brigou muito, até conseguir enfim remover seu sobrenome paterno na Justiça. Aos 14 anos, desistiu das aulas de teatro.

Queria ser agente funerária. Usava só negro. Pintou os cabelos de roxo. Definia-se como uma “garota punk com tatuagens”. Sofria surtos de depressão. Vivia se cortando, colecionava facas – e cicatrizes. Tem dois ex-maridos. No primeiro casamento, vestia calça de couro preta e uma camiseta branca. Escreveu o nome do marido na camiseta com seu próprio sangue. Revelou ser bissexual e gostar de relações sadomasoquistas.

Com o ator Brad Pitt desde 2005, estabilizou sua vida amorosa. Mas não se domesticou. Ela já tinha dois filhos adotivos, do Camboja e do Vietnã, e o casal adotou mais um na Etiópia. Angelina passou a liderar campanhas humanitárias, tornou-se embaixadora da ONU para refugiados. A primeira filha biológica de Angelina e Brad nasceu na Namíbia, em 2006, e foi batizada como Shiloh Nouvel.

Os filhos gêmeos, Knox Leon e Vivienne Marcheline, nasceram em Nice, na França, em 2008. O casal vendeu as fotos para duas revistas de celebridades por uma fortuna – US$ 14 milhões –, que afirmou ter doado à fundação beneficente Jolie-Pitt.

Hoje, Angelina tem sete tatuagens no braço, com as coordenadas geográficas dos lugares de nascimento de Brad e dos filhos. Aprendeu a pilotar aviões. “Voar”, afirmou, “é ainda melhor que sexo.” Ela prometeu que só casaria oficialmente com Brad quando o casamento homossexual fosse permitido em todos os Estados Unidos.

Diante de uma vida assim, a dupla mastectomia preventiva aos 37 anos, sem o menor sinal de câncer, não deveria surpreender tanto. É inútil enquadrar Angelina em algum padrão. 




Não me magoe..

Tudo em mim é

Frágil e vulneravel

Sou sentimentos

E emoções...

Maria Bonfá 

Lindo final de semana pra você..


quarta-feira, 15 de maio de 2013



15 de maio de 2013 | N° 17433
MARTHA MEDEIROS

Sociedade ilimitada

Tenho um amigo que é inteligente, mas nunca desenvolveu o hábito de ler. Fui a primeira escritora que ele conheceu pessoalmente, então aproveitei para, devagarzinho, introduzi-lo nesse novo mundo, primeiro dando a ele livros meus (ora, ora), e depois sugerindo outros melhores.

Ele foi bastante receptivo, mas eu percebia sua dificuldade em se fixar na leitura, em realmente embarcar na história – lia três páginas num sábado, mais três na quinta-feira, e assim, nesse pinga-pinga, levava meses até chegar à última. Semana passada, conversamos e ele me contou, orgulhoso, que já havia lido seis livros desde o início de 2013.

Parece pouco para quem lê 40, 50, 60 livros por ano, mas se compararmos com a média nacional anual (quatro, sendo que apenas dois são lidos até o fim e estão incluídos a Bíblia e os didáticos), seis livros de ficção entre janeiro e maio é uma façanha.

Meu amigo está lendo mais, e com mais voracidade. Ele até brincou comigo: “Pareço aqueles fumantes viciados que quando estão no finalzinho da carteira já precisam ter outra fechada aguardando”. Ele fuma apenas três carteiras por dia, ainda bem que não é um fumante viciado.

Seis livros e mais ampliação de horizonte. Seis livros e a mágica de começar a escrever melhor, a se desamarrar de ideias prontas, a descobrir como vivem e sentem outras pessoas. Seis livros e menos televisão, seis livros e menos conversa fiada, seis livros e mais autoestima, seis livros e emoções nunca antes experimentadas, seis livros e outros seis na sequência, e mais 10, mais 17, quantos forem necessários até criar em cada leitor a sensação de pertencer a uma sociedade aberta, culta e evoluída.

Escrevi agora sobre a sensação de pertencer e isso me remeteu ao Clube Social Pertence, conduzido por Sarita Zinger e Victor Freiberg, que há 13 anos trabalham com deficientes. É um projeto de socialização de jovens que possuem poucas oportunidades de deixar o convívio familiar, devido a suas necessidades especiais.

O clube programa saídas, em pequenos grupos, para cinemas, teatros, restaurantes, churrascos, jogos esportivos e outros eventos, a fim de que aqueles que possuem restrições físicas e mentais possam desenvolver múltiplas vivências e se sentir integrados. A experiência tem sido um sucesso, mas falta mais divulgação, então eis os contatos: www.clubesocialpertence.com.br e www.facebook/clubesocialpertence.com.br.

Nem todo vício é ruim. Nem toda dependência é danosa. Um livro emendado no outro. Uma pessoa contando com outra. O que parece prisão, é justamente o contrário.

terça-feira, 14 de maio de 2013



14 de maio de 2013 | N° 17432
CLÁUDIO MORENO

Uma conversa sem fim

Muito tempo se passou até que o homem se desse conta de que o bebê, ao contrário dos outros pequenos mamíferos, precisa muito mais do que leitinho morno e um soninho tranquilo para poder se criar. No séc. 13, na época das Cruzadas, o formidável Frederico II ainda não sabia disso quando levou a cabo – e com trágico desfecho – um curioso experimento para pesquisar a origem da nossa linguagem.

Frederico, conhecido como “o espanto do mundo”, estava disposto a descobrir qual era a língua ancestral da Humanidade; para isso, encerrou dois órfãos recém-nascidos numa cabana, sob o cuidado de uma ama de leite, que deveria, no mais absoluto silêncio, cuidar para que estivessem sempre limpos e alimentados, sem jamais brincar com eles, cantar para eles ou tomá-los nos braços.

Ele imaginava que as duas crianças, crescendo sem jamais ter ouvido palavra alguma, terminariam, no momento certo, por falar alguma coisa, revelando assim qual era a mais antiga de todas as línguas. Infelizmente, como relata um cronista da época, todo esse cuidado foi em vão, pois os bebês, privados dos risos, dos afagos e da tagarelice carinhosa com que a fêmea humana trata a sua cria, não conseguiram sobreviver.

Em compensação, dois séculos depois, no Renascimento, nenhum pintor famoso deixaria de retratar uma ou várias madonas – aquelas mulheres serenas que iluminam, com seu sorriso suave, o bambino que trazem no colo. A lição tinha sido aprendida: muito além da biologia, somos seres sociais; para sobreviver, nossos filhotes precisam ser envolvidos pelo olhar e pelas palavras da mãe – aquela doce linguagem que todos bebemos com o leite e que, com muita justiça, chamamos de “língua materna”.

Pois a lembrança daquela sensação de prazer e segurança que emanava da voz amorosa da mãe não será, por acaso, o motivo principal de partilharmos a vida com alguém? Elegemos alguém que vai nos ouvir e que vai falar conosco: toda vida em comum se baseia nesse diálogo familiar, retomado a cada dia, em que as palavras e os tons de voz adquirem um sentido comum e secreto que só os dois podem entender.

Se você ainda pergunta por que todos ainda casam, aqui vai uma pista: o casamento é uma viagem a dois; sentados ao lado de quem escolhemos, vamos tagarelando infinitamente, trocando ideias sobre a paisagem e as pessoas, falando de nossas vitórias, misérias e aspirações. Para quem tem sorte, é uma divertida conversa sem fim.


14 de maio de 2013 | N° 17432
FABRÍCIO CARPINEJAR

Aritmética da solidão

Quando fiquei novamente solteiro, estava decepcionado com o mundo.

Entendia a solidão como sarcasmo. Minhas roupas não enchiam mais uma máquina de lavar, a comida estragava na geladeira, toda noite era fim melancólico de domingo.

Não fazia sentido estar sozinho. Logo eu, que sempre defendi a vida a dois, logo eu, que sempre valorizei o casamento, logo eu, que dizia que liberdade na vida é ter um amor para se prender – me enxergava amaldiçoado, raivoso com a falta de sorte, ofendido com as separações.

Reclamava da sina aos amigos da injustiça, já profetizava que ficaria encalhado o resto dos dias, já me preparava para ser um canalha incorrigível, já prometia encerrar o destino romântico e rasgar as crônicas enternecidas.

Minha filha Mariana buscou me acalmar. Saiu comigo para esfriar o drama. Afinal, até ópera tem intervalo. – Pai, dá um tempo na choradeira... – É fácil dizer porque não é contigo.

– Está se sentindo o único separado da terra, que coisa, relaxa, olha para os lados. – É que parece que jamais vou encontrar a mulher de minha vida. Adoro a convivência a dois.

– Você já é dois, pai.

Aquela frase me confortou: eu era dois. Era inteiro. Não dependia de ninguém para me completar. Não precisava levantar os braços para o ônibus de recolhe. Não morreria de sede como uma samambaia. Poderia me cuidar, me dar ao luxo de ser egoísta e não mendigar alianças.

No momento em que aceitei a solteirice, e sorria dentro dela, conheci Juliana. E tudo que abandonei floresceu furiosamente em meus olhos.

O cara que não queria mais um envolvimento sério voltou a oferecer declarações eternas. O cara que não queria mais casamento passou a se imaginar no altar. O cara que não queria mais ter filhos descartou de vez a vasectomia. O cara que não mais confiava nas mulheres começou a desconfiar dos homens.

O namoro venceu o apocalipse, mas não eliminou a dúvida. Havia o receio de reprisar histórias anteriores.

Fui conversar com Juliana: – Eu sou dois sozinho. – Pode ser três comigo – ela corrigiu.

Eu ri. E completei: – Então, posso ser quatro contigo. Eu e minha solidão, tu e tua solidão. Nunca mais seria metade de ninguém. Nem de mim mesmo.

sábado, 11 de maio de 2013



12 de maio de 2013 | N° 17430
MARTHA MEDEIROS

Filhos criados

Mãe é para sempre, presença necessária em qualquer etapa da vida, tanto que, nos nossos momentos mais difíceis, é nela que pensamos mesmo que ela já tenha falecido. Mãe é um consolo universal, pois sabemos que ninguém nos ama ou amou tanto quanto ela. Na hora do sufoco, entre rogar a Deus ou à nossa adorada progenitora, Deus fica de estepe e nem se atreve a reclamar.

Porém, abnegação tem limite. Mães são amorosas e dedicadas aos seus filhotes, mas, secretamente, contam os dias para vê-los bem criados, tocando suas próprias vidas profissionais e afetivas, dando a elas o descanso merecido e a certeza da missão cumprida.

Como filha, fiz minha parte: com 19 anos já trabalhava, com 24 morava sozinha, com 27 estava casada e aos 29 engravidei e comecei a formar minha própria família, enquanto minha mãe, no mesmo período, foi fazer faculdade (aos 40 anos), trabalhar, viajar, reposicionar-se na sociedade – claro que sempre por perto a fim de paparicar as netas, só que agora de um jeito desobrigado, só love, só love.

Pois as coisas mudaram bastante. Filhos saindo de casa na faixa dos 20 anos, abrindo mão de mordomia? Melhor não contar com isso.

Não faz muito tempo, na faixa dos 20, todos cumpriam os cinco marcos da vida adulta: finalizavam seus estudos, conquistavam independência financeira, casavam, tinham filhos e seu próprio endereço. Hoje, raros cumprem cedo essas metas. Entre os 20 e 30, ainda estão zonzos diante de tantas opções e preferem adiar o amadurecimento até... até que suas mães os expulsem de casa. Só que mãe não expulsa filho. E eles, óbvio, vão ficando.

Em defesa deles, há um estudo que diz que há uma área do córtex cerebral que leva realmente até 30 anos para se formar, justamente a área responsável por planejamentos e priorizações. Hum, chegou em boa hora essa desculpa científica. Porém, depois dos 30, como se explica que ainda haja adultos vivendo com os pais, sem darem um rumo certo à vida?

O fato é que os jovens andam comodistas, relutando em se jogar no mundo sem alguma garantia. Mas que garantia? Ninguém constrói a própria história sem arriscar, errar, se frustrar, tentar de novo, passar por dificuldades, erguer-se, cair, erguer-se outra vez. Como irão amadurecer sem viverem essas experiências? Enquanto eles analisam calmamente a questão, as mães veem o tempo passar e continuam servindo o almoço todos os dias para marmanjos que ainda não decidiram o que querem ser quando crescer.

Você não deve ser um desses filhos, claro. Meus leitores são autônomos, donos do próprio nariz, e visitam as mães por amor e saudade, não para pedir arrego. Mas, se por uma hipótese remota, você ainda for um kidult, como se diz lá fora (mistura de kid + adult), dê uma trégua para sua mãe ao menos nesse domingo. Leve flores, e não sua roupa para ela lavar.

RUTH DE AQUINO

Os maiores medos das mães

Não importa a classe social. Não importa a idade. Ou o endereço e a profissão. Não importa se é casada ou solteira. O maior medo da mãe é que seu filho ou sua filha não seja feliz. Por mais impalpável que seja esse medo, por mais subjetivo que seja o conceito de felicidade, a mãe, em sua onipotência, acredita ser a pessoa mais essencial para fazer de seu filho ou de sua filha um adulto feliz.

Um dos medos comuns é não ser uma boa mãe – e esse adjetivo tem dezenas de significados. O que é ser boa mãe? Ela costuma ter obsessão em manter o filho e a filha alimentados, agasalhados e saudáveis, qualquer que seja a idade, como se isso os livrasse de todas as maldades do mundo. Tantas mulheres se culpam pelas desventuras dos filhos. Onde foi que errei? É uma culpa inútil, não leva a nada. Uma culpa perigosa, porque retira dos filhos a responsabilidade por seus caminhos e os infantiliza.

Existe hoje, nas famílias, um medo mais concreto, quase tão paralisante quanto um pesadelo. É um medo maior que o filho ficar sem emprego ou ser assaltado. As mães receiam que os filhos se viciem em drogas, percam a saúde e o rumo. Esse sentimento foi detectado por uma pesquisa publicada pelo jornal Folha de S.Paulo. As drogas sempre existiram, mas, hoje, elas atemorizam 45% dos paulistanos.

É muito. Fácil entender. Drogas são hoje mais letais e disseminadas. O crack e seus efeitos devastadores estão expostos nas esquinas, nos parques, na mídia. E desafiam governos, que parecem perdidos e impotentes. Não há campanhas maciças nas escolas nem conversas suficientes em casa sobre os perigos, que podem ser irreversíveis. Vejo, desolada, o choro de mães, amigas ou não, cujos filhos estão internados por cocaína. Eles entram, saem, entram de novo – a luta pela reabilitação é eterna.

Na semana passada, um atleta promissor do Fluminense, Michael, de apenas 20 anos, foi suspenso por uso de cocaína. Com os olhos marejados, Michael admitiu precisar de tratamento. Pode ficar até dois anos fora dos gramados. O problema não é o período de punição imposto a ele, mas sua chance real de se livrar do vício e de não desperdiçar seu talento e sua vida.

Adianta conversar com os filhos? Adianta. Desde cedo. Mas o amor e o rigor maternos não são suficientes. Sempre defendi que escolas levem turmas de adolescentes a presídios e clínicas para escutar depoimentos de quem se deixou destruir pelas drogas. O rito da iniciação continua o mesmo, lúdico e prazeroso, como se não houvesse amanhã. Antigamente, estudantes fumavam cigarro de tabaco no banheiro da escola para transgredir e se sentir parte da turma. O mesmo acontece hoje com drogas mais letais.

Há ainda um medo específico, de mãe para filha. Apesar de toda a luta pela igualdade e contra a discriminação de gêneros, um temor persiste com a filha menina: a violência sexual, o estupro. Tive somente filhos homens. Não conheço, portanto, o medo materno de que uma filha seja vítima de abusos. Estupro é um dos crimes mais covardes e nojentos da espécie humana. E atinge incomparavelmente mais meninas e mulheres do que meninos e homens.

Não há fronteiras para essa barbárie. Na semana passada, um menor armado com revólver estuprou uma jovem mulher de 30 anos num micro-ônibus no Rio de Janeiro em plena luz da tarde. Um pastor, Marcos Pereira, foi preso, acusado de ter violentado dezenas de mulheres, várias delas menores. A Escola Britânica do tradicional bairro da Urca, no Rio, prendeu em flagrante um faxineiro que filmava alunas adolescentes com um celular escondido no banheiro.

Em Cleveland, nos Estados Unidos, foi preso um ex-motorista de ônibus escolar, o porto-riquenho Ariel Castro, de 52 anos, que estuprava e mantinha em cativeiro três jovens, raptadas por ele entre 2002 e 2004. No Brasil e no mundo, meninas e mulheres estão sendo estupradas neste exato instante, por pais, parentes, ex-maridos e ex-namorados, vizinhos, conhecidos e desconhecidos.

A mãe do menor que estuprou a passageira do ônibus, uma mulher de 45 anos que vive numa favela carioca, entregou o filho à polícia e disse: “Criei ele com tanto carinho. Nunca imaginei que fosse capaz de cometer um crime desses”. A mãe do algoz sequestrador nos Estados Unidos, Lílian Rodriguez, disse, chorando: “Sou uma mãe com dor. Peço desculpas pelo que meu filho fez. Peço perdão a essas mães – e que as meninas me perdoem. Tenho um filho doente que cometeu um crime terrível”.

É duro para as mães. Depois de engravidar, parir, amamentar, embalar, passar noites em claro, criar, educar, desdobrar-se em trabalho dentro e fora de casa, elas só querem que seus filhos e filhas sejam felizes.

quarta-feira, 8 de maio de 2013



08 de maio de 2013 | N° 17426
ARTIGOS - Afif Simões Neto*

Um batalhão de jovens interditados

Sou juiz de Direito em uma das Varas de Família e Sucessões de Santa Maria. São duas ao todo. Na que trabalho, devem circular perto de 3 mil processos. Desses, uns 200 são de interdição. Para quem não sabe, alguém é interditado quando, com mais de 18 anos, perdeu a capacidade mental para a prática de atos da vida civil, por qualquer um dos motivos indicados pela lei.

Decretada a interdição, será nomeado curador para a proteção da pessoa e dos bens do interdito, que, por exemplo, não pode casar-se, assinar contratos, abrir uma conta bancária, uma sapataria, comprar uma bicicleta nem que seja. Nenhum documento assinado por ele tem validade. Vira uma coisa, pois não tem vontade própria, dependendo exclusivamente do que os outros possam fazer por ele.

Realizo as audiências de interdição em uma quarta-feira do mês, à tarde. São sempre mais de 12 processos pautados. Pois bem: dois deles, dando de barato, dizem respeito a jovens, com até 30 anos ou um pouco mais.

Quando algum laudo médico acompanha a petição inicial, é certo que o CID aponta a esquizofrenia como causa para interditar, e mais certo ainda que todos eles – eu disse todos – confessam ao juiz que passaram a consumir maconha ainda na idade juvenil. O pontapé inicial da desdita foi dado, invariavelmente, pelo “inofensivo baseado” fumado na saída do colégio ou nas festinhas da turma.

Claro que indivíduos que já sofrem de esquizofrenia e apresentam histórico pessoal de consumo da erva ou outras substâncias demonstram um início mais precoce da doença do que aqueles esquizofrênicos que nunca usaram maconha ou outras drogas. Mas o que quero relatar aqui é que passou a me assustar, analisando os processos de interdição de pessoas jovens, a relação “consumo de maconha – esquizofrenia”.

Pelo que dá para ver, o uso regular da Cannabis sativa apresenta um risco potencial para o desenvolvimento de transtornos esquizofrênicos, e esse risco está diretamente relacionado com a utilização contínua do entorpecente de forma precoce. Assim, é lógico, é evidente, salta aos olhos, que a redução do uso da maconha entre os jovens poderia colaborar efetivamente na prevenção de futuros casos de esquizofrenia.

Mas aí, o que se vê, ao invés de campanhas nacionais agressivas para alertar dos riscos do consumo, são notáveis de academia – que da missa não sabem a metade – apresentando proposta para alterar o Código Penal, a fim de que a maconha seja legalizada, sob o fundamento de que sua utilização seria reduzida e que eliminaria a ação dos traficantes.

Acontece que o traficante também vende crack, cocaína, heroína, ecstasy e outros tipos de drogas. Além disso, em países como Holanda, que liberaram o “bagulho”, foi comprovado que em nada diminuiu o consumo. A maconha é nociva, sim, e é a porta de entrada para uso de outras drogas, ou vocês conhecem algum craqueiro, já na finaleira da vida, que não tenha sido maconheiro antes?

Pena que as ações em Vara de Família corram em segredo de Justiça. Se não fosse assim, gostaria muito de convidar essa gente liberal, que acha o máximo liberar maconha para adolescentes, para dar uma passadinha, sem compromisso, numa quarta-feira à tarde, na 2ª Vara de Família de Santa Maria.

Talvez o desespero de um pai, de uma mãe, pedindo ao juiz, pelo amor de Deus, que interdite o seu filho amado, que mais parece um zumbi fuçado pela maconha, pudesse trazê-los à realidade.

*JUIZ DE DIREITO


08 de maio de 2013 | N° 17426
MARTHA MEDEIROS

Causa e efeito

Ao assistir à peça Arte, que esteve recentemente em cartaz em Porto Alegre, no festival Palco Giratório Sesc, tive a mesma sensação de quando assisti a Deus da Carnificina, não por acaso obras da mesma autora, a fantástica Yasmina Reza. É incrível a capacidade que ela tem de criar situações que nos desconstroem.

Sem piedade, ela evidencia o quanto somos todos patéticos. Fazemos um dramalhão por pequenas coisas, expomos carências infantis e perdemos a compostura por nada. Somos experts em desproporção entre causa e efeito.

Será que um dia conseguiremos equalizar nossas reações, dar a elas uma medida exata? Acho improvável. Vida também é teatro. Por mais humildes que sejamos ao reconhecer nossos exageros diante de alguns acontecimentos, dificilmente conseguimos nos conter.

Defendemos nossas opiniões com todas as ferramentas de que dispomos: palavra, voz, gestos, paixão, raiva. E dá-lhe atrapalhação. Agimos de forma farsesca acreditando estar sendo espontâneos.

Fazemos piada de assuntos graves e, por outro lado, levamos a sério as maiores bobagens. Amamos alguém e o atacamos. Desprezamos alguém e o tratamos com mesuras. Somos vigorosamente contra ou a favor, como se de nossas posições dependesse nossa vida.

E chegam a ser inocentes nossas tentativas de compreender a nós mesmos, aos outros e ao mundo. Eu, particularmente, gosto muito dessa busca, mas sem perder a consciência de que, onde quer que eu chegue, ainda estarei a milhões de anos-luz da compreensão absoluta.

De certa forma, ainda bem. O que viria depois da compreensão absoluta?

Claro que as coisas podem ser mais simples, mas nunca serão exatas. Não há como ter controle sobre algo em constante movimento: a própria vida. É tão grande o número de influências, ideias, sensações e circunstâncias que nos impactam diariamente, que nunca teremos uma verdade pronta e empacotada para lidar com elas – e muito menos uma estabilidade emocional condizente com a experiência. Sempre estaremos falando num tom mais alto, tentando assim nos defender contra o susto que é ser confrontado diariamente com nossa vulnerabilidade.

O que admiro nesses dois textos de Yasmina Reza, Arte e Deus da Carnificina, é que ela mostra claramente o delírio de se levar a ferro e fogo situações banais, a absurda insistência em querermos causar boa impressão e a inutilidade de nos comportarmos como se estivéssemos diante de um tribunal.

Sendo assim, o que nos resta? Rir. No que diz respeito às nossas relações pessoais, a vida segue sendo mais cômica do que trágica.

sábado, 4 de maio de 2013



05 de maio de 2013 | N° 17423
Martha Medeiros

O Michelangelo de cada um

Escultura não era algo que me chamava atenção na adolescência, até que um dia tomei conhecimento da célebre resposta que Michelangelo deu a alguém que lhe perguntou como fazia para criar obras tão sublimes como, por exemplo, o Davi. “É simples, basta pegar o martelo e o cinzel e tirar do mármore tudo o que não interessa”. E dessa forma genial ele explicou que escultura é a arte de retirar excessos até que libertemos o que dentro se esconde.

A partir daí, comecei a dar um valor extraordinário às esculturas, a enxergá-las como o resultado de um trabalho minucioso de libertação. Toda escultura nasceu de uma matéria bruta, até ter sua essência revelada. Uma coisa puxa a outra: o que é um ser humano, senão matéria bruta a ser esculpida? Passamos a vida tentando nos livrar dos excessos que escondem o que temos de mais belo.

Fico me perguntando quem seria nosso escultor. Uma turma vai reivindicar que é Deus, mas por mais que Ele ande com a reputação em alta, discordo. Tampouco creio que seja pai e mãe, apesar da bela mãozinha que eles dão ao escultor principal: o tempo, claro. Não sou a primeira a declarar isso, mas faço coro.

Pai e mãe começam o trabalho, mas é o tempo que nos esculpe, e ele não tem pressa alguma em terminar o serviço, até porque sabe que todo ser humano é uma obra inacabada. Se Michelangelo levou três anos para terminar o Davique hoje está exposto em Florença, levamos décadas até chegarmos a um rascunho bem acabado de nós mesmos, que é o máximo que podemos almejar.

Quando jovens, temos a arrogância de achar que sabemos muito, e, no entanto, é justamente esse “muito” que precisa ser desbastado pelo tempo até que se chegue no cerne, na parte mais central da nossa identidade, naquilo que fundamentalmente nos caracteriza.

Amadurecer é passar por esse refinamento, deixando para trás o que for gordura, o que for pastoso, o que for desnecessário, tudo aquilo que pesa e aprisiona, a matéria inútil que impede a visão do essencial, que camufla a nossa verdade. O que o tempo garimpa em nós?

O verdadeiro sentido da nossa vida. Michelangelo deixou algumas obras aparentemente inconclusas porque sabia que não há um fim para a arte de esculpir, porém em algum momento é preciso dar o trabalho como encerrado. O tempo, escultor de todos nós, age da mesma forma: de uma hora para a outra, dá seu trabalho por encerrado.

Mas enquanto ele ainda está a nossa serviço, que o ajudemos na tarefa de deixar de lado os nossos excessos de vaidade, de narcisismo, de futilidade. Que finalmente possamos expor o que há de mais precioso em você, em mim, em qualquer pessoa: nosso afeto e generosidade. Essa é a obra-prima de cada um, extraída em meio ao entulho que nos cerca.