sábado, 25 de janeiro de 2020



25 DE JANEIRO DE 2020
LYA LUFT

Nós, os ferozes

Gosto das redes sociais, no que têm de útil, de bom, prazeroso e humano.

Fui talvez dos primeiros escritores a usarem computador, incrível facilitador do meu trabalho. Uso redes sociais, muito moderadamente, até por timidez quem sabe. Tenho Face, dois ou três pequenos grupos de amigas, uso Whats com moderação, sou de modo geral retraída.

Mas eu aprecio isso da comunicação. Converso com netos na Nova Zelândia ou Estados Unidos, acompanho um pouco sua vida e trabalho, conversava com filho na África, converso com amigos e amigas aqui perto, falo com pessoas com as quais raramente me encontraria. Aprendo muitíssimo no YouTube, vejo excelentes documentários, enfim também aí vou crescendo. 

Mas um aspecto me impressiona negativamente: a livre saraivada de insultos, em geral errados ou gratuitos, xingamentos de nível duvidoso, brigas ásperas por política ou qualquer opinião, com que tantos se digladiam. Expor a cara a qualquer objeto que nos joguem não é fácil. Os desastres de que se tem notícia nesse território, traições, engodos, armadilhas, negócios fraudulentos, difamações... a lista é grande. Como se, na tela, não importassem educação, gentileza, ninguém se constrangesse de magoar ou ofender outros.

Uma conhecida jornalista, minha amiga, com quem não necessariamente concordo sempre, tem sido insultada de maneiras degradantes, acusada de coisas hoje irrelevantes, mas graves se postas em público, difamada de graça por ódios ideológicos. Outra amiga, artista conhecidíssima, é xingada por ter usado legitimamente benefícios monetários criados para artistas poderem exercer seu ofício. Nada de ilegal, ou fraudado, nenhum roubo ou exagero. 

O príncipe Harry, nesse conflito certamente doloroso de se apartar da família real, tem sido chamado de "bundão", que valoriza a sua mulher mais do que a realeza, e "vai ver o que é bom". Por que o príncipe seria bundão, se na verdade sempre teve um lado rebelde, problemas emocionais que agora admite, relacionados com a morte brutal da mãe, se foi destacado duas vezes na guerra do Afeganistão onde serviu com distinção e valentia na Marinha e onde é muito respeitado? E por que de repente Regina Duarte é chamada de "Porcina"...?

Sei que é democrático usarmos de todos os meios e armas a nosso dispor. Sei que é democrático que figuras públicas sejam sujeitas a difamação, insulto, inverdades. Mas democracia deveria significar respeito: pela decência, pelos costumes, pela honra, pela verdade. E assim lembro esse ser predador que reside em todos nós, pronto a destruir, esmagar e sujar o outro, como se todos fossem adversários possíveis e iminentes.

E como se, embora humanos, tivéssemos licença de agir feito ferozes criaturas de uma selva primitiva e sombria.

LYA LUFT


25 DE JANEIRO DE 2020

MARTHA MEDEIROS

Uma sociedade plural

Nunca esqueci a letra de Jesus Cristo, gravada por Roberto Carlos (Quem poderá dizer o caminho certo é você, meu Pai). E continuo a me emocionar com os versos de Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, que definiu sua canção como agnóstica (Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/ E apesar de um mal tamanho/ Alegrar meu coração). Entre a crença e a dúvida, aumento o volume em Sympathy for the Devil, dos Stones, que alguns traduzem por Simpatia pelo Demônio, outros por Compaixão pelo Demônio: ou seja, ele também está no meio de nós. E agora? Preciso urgente de uma cultura nacionalista, heroica, que exalte as virtudes da luta contra o mal. Uma tarefa para o governo, que foi eleito para salvar esta alma perdidona aqui.

"Quando a cultura adoece" foi um dos termos usados naquele fatídico pronunciamento que, espero, tenha ficado pra trás. Cultura adoece? Sim, adoece. Uma cultura doente é uma cultura aprisionada, asfixiada. Uma cultura baseada em preceitos religiosos - e de uma única religião, sem considerar as outras. Uma cultura que visa orientar e tutelar o povo, e não diverti-lo e apresentá-lo a formas diversas de enxergar o mundo. Uma cultura totalitária, escolhida por um pequeno grupo que acha que sabe o que é melhor para você, para mim e nossos filhos. A gente só precisa dizer amém.

Este é o quadro clínico de uma cultura doente.

O episódio Alvim uniu direita e esquerda no mesmo espanto porque não foi uma patuscada a mais. Descortinou-se uma ambição: reger a cabeça dos brasileiros. Talvez você esteja preocupado apenas em conseguir um emprego e colocar comida na mesa. Seu desejo é muito justo. Aliás, é o mesmo de 220 milhões de habitantes. Mas estão querendo em troca que você apenas trabalhe, coma, reze e durma. Trabalhe, coma, reze e durma. Trabalhe, coma, reze e durma.

Não durma. Cultura é arte expandida, democrática, plural. Também alimenta o espírito. É o que nos torna mais humanos e menos preconceituosos. Faz a gente fantasiar, sonhar, se arrepiar. E também choca, surpreende, perturba. Arte é o que liberta da bolha e exercita a amplitude do olhar. A arte não precisa ser boazinha, papai-e-mamãe. Ela pode ser o que quiser. Insana, bonita, violenta, sagrada, profana, regional, universal.

Você é que escolhe o que quer conhecer e o que não quer. Um presidente é um servidor público, não é o Messias, não decreta o que é certo e errado para você, apenas promove a abertura de mentalidade para que todos se sintam incluídos. Você pode se emocionar com Roberto Carlos, com Gil, com Mick Jagger e com mais uma centena de diferentes artistas, simultaneamente, e estará tudo bem, pois vida é a explosão de sensações contraditórias que fazem você transcender a rotina escravizante de apenas trabalhar, comer, rezar e dormir.

MARTHA MEDEIROS

25 DE JANEIRO DE 2020
CARPINEJAR

As ameixas da Martha Rocha

Há de se duvidar do poder da fantasia. Ou, no mínimo, combatê-la. Quando colocamos algo na cabeça, dificilmente substituímos a idealização. A vida pode provar o contrário e seguimos mantendo o desenho intacto do capricho. Negamos a realidade para preservar o desejo.

É o que acontece comigo com a torta Martha Rocha. Esqueço que não gosto dela. Simplesmente a informação desaparece. Eu peço sempre com a volúpia da primeira vez, com o ineditismo da primeira vez.

Não que eu não goste da torta. Eu amo aquela cobertura de chantilly e nozes. É o que me liga ao prazer. Penso somente na cobertura e apanho uma fatia imensa, para me dar conta depois de que não me agrada o recheio de ameixa. Por alguma traquinagem mental, boicoto que ela traz as ameixas pretas amargas, que roubam o meu sabor, que anulam a baba de moça, o suspiro e os dourados fios de ovos.

A esposa não entende o desperdício do doce: por que me servi tanto se não vou comer? Fico encabulado de explicar.

Perco sempre o apetite no meio e o garfo, antes faminto e elétrico, começa a se arrastar, indolente, pelas bordas.

Já não sei se coloco um post-it na carteira: "Não coma Martha Rocha", para me prevenir de mim mesmo.

Esse meu ato falho se chama obsessão, enxergar somente aquilo que se quer e abstrair os defeitos. É a prática psicológica daquela expressão familiar "comer com os olhos".

É o que explica também o motivo de muita gente voltar para relações desgastadas e doentias. Deslembram que sofreram, que houve discussões monstruosas, abuso psicológico, incompatibilidade de temperamentos, e retornam a favor da construção idílica e ingênua do amor, decorrentes dos encontros iniciais, quando o casal não se conhecia de verdade. Apegaram-se somente aos sonhos e às promessas de um romance e abdicaram da dureza cotidiana. Não ajustaram a experiência. Não aprenderam com os erros. Não absorveram os problemas da rotina. Sentem saudade da quimera, da hipótese da imaginação, desprezando o conteúdo pesaroso dos anos juntos.

A reconciliação inexplicável com um parceiro da infelicidade se deve pela aparência cremosa, pela fachada soberana da sobremesa. As ameixas da frustração foram escondidas no inconsciente.

CARPINEJAR


25 DE JANEIRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

PARA QUE SERVE A HISTÓRIA?

AINDA EXISTE O PENSAMENTO DE QUE O ESSENCIAL ESTARIA NAS ÁREAS DE EXATAS E BIOLÓGICAS. AS CIÊNCIAS HUMANAS SERIAM ?PERFUMARIA?. NADA MAIS ENGANOSO. ALGORITMOS E NOVAS TECNOLOGIAS TÊM TORNADO OBSOLETO MUITO DO QUE FAZÍAMOS. PORÉM, ENTENDER A NATUREZA HUMANA É ALGO CADA VEZ MAIS NECESSÁRIO.

Sua história pessoal, a história da sua família e a do nosso país são partes essenciais da identidade de cada um. Quero pensar três perguntas para saber de história: utilidade, escrita e propriedade. Não escrevo para colegas de profissão, porém para o público leitor com sensibilidade e interesse. Começo pela primeira, a que lança a incômoda questão sobre o valor da História.

Vivemos em uma época de profunda polarização. Basta olharmos para os índices de aprovação e rejeição de Donald Trump, que se mantiveram praticamente inalterados desde sua eleição, para entendermos como há dois EUA no mesmo país. Os dois lados vociferam grande indisposição um com o outro. Situações similares podem ser observadas mundo afora. Em épocas eleitorais, tal tensão fica mais evidente, todavia se engana quem acredita que enterramos as machadinhas nos interstícios. 

Estarmos permanentemente polarizados já seria ruim, um sintoma de doença na democracia, segundo o livro Como as Democracias Morrem (de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, 2018). O pior é nossa falta de vontade ou incapacidade de superarmos os polos. Vou chamar esse fenômeno de "bolharização". Escolho viver em bolhas, em ilhas, isolado, apenas com meu mundinho, minhas coisas e pessoas. Outra ilha/bolha só pode ser povoada por gente ruim e perigosa, pois, na minha, apenas os anjos vivem.

História é sempre essencial. Em momentos assim, a História é ainda mais fundamental. E para que serve a História? Quem é historiador já ouviu essa pergunta de forma direta ou amenizada. Quando os EUA estavam em seu início, pobres e endividados, o futuro presidente John Adams (1735-1826), negociando acordos comerciais em Paris, escreveu para sua esposa, Abigail. Na carta, dizia que estava encantado com a corte francesa, seus luxuosos palácios, seus corredores e salões lotados de arte e História. 

Por outro lado, tomado pelo pragmatismo que marcaria parte da História nacional daquele nosso vizinho do Norte, mas também por certa inveja, refutava que aquilo não era o presente de sua nação. Afirmava que a geração dele deveria ser de engenheiros, de trabalhadores braçais estratégicos, pois tudo ainda estava por ser feito. Se essa geração triunfasse, a seguinte, dos filhos do casal, seria de arquitetos, mais despojados do peso de erguer a base, poderiam dar acabamento fino ao novo que ali se desenhava. Por fim, os netos poderiam ser artistas. Karl Marx, curiosamente, também dividiu o mundo assim: primeiro as necessidades materiais, depois o resto. 

A economia, depois a política. Ao fim, uma pátina de arte, um verniz de cultura. De forma mais comum, ainda existe o pensamento de que o essencial e prático estaria nas áreas de exatas e biológicas. As ciências humanas seriam adereço, "perfumaria". Nada mais enganoso. Algoritmos e novas tecnologias têm tornado obsoleto muito do que fazíamos. Porém, entender a natureza humana, suas variações em grupos ao longo do tempo e do espaço, é algo que está cada vez mais necessário. De perfumaria, passamos a artigo de primeira necessidade. Somos, nos dias de hoje, um valor fundamental em grandes centros de pensamento.

Vou desenvolver a ideia. É fundamental dar às coisas alguma perspectiva histórica. Isso quer dizer que um mesmo fato sempre pode ser lido de vários ângulos; que os agentes históricos se movem em um misto daquilo que podem fazer no contexto que lhes permite que algo seja feito. Em outras palavras, que muito pouco é natural quando se trata de humanidade. A vasta maioria de nossas ações e pensamentos é moldada por cultura, logo, muda com o tempo.

Além dessa desnaturalização, a perspectiva histórica nos ensina alguma humildade. Podemos estudar grandes homens e mulheres do passado, ou os mais humildes, e, inequivocamente, todos morreram. Assurbanipal foi grande em seu tempo, se sentia o homem mais poderoso da Terra. Quem é ele hoje em dia? Em que suas ideias prosperaram? As lentes da História ajudam-nos a ajustar o foco e dar aos fatos ocorridos dimensão e perspectiva para além do impacto imediato. Algumas questões somem, como as polêmicas diárias de mídias sociais, ao passo que a extrema relevância de outras pode nos ser despercebida.

Pôr as coisas em perspectiva, admitir que tudo tem mais de um lado e que todos precisam ser ouvidos não significa, contudo, que vale qualquer coisa em História ou que rever o passado para que ele me diga o que me interessa seja possível. História "desnaturaliza" o que parece inscrito no livro das leis físicas e biológicas. História revela o processo de construção de cada cultura. História sempre deve ser um desafio ao autoritarismo, ainda que muitos historiadores tenham se tornado defensores de ditaduras, infelizmente. 

Como há maus médicos, há maus profissionais da área da memória. História insere os conceitos no seu significado de época, evita anacronismos, revisita valores e desmancha dogmas pela sua própria natureza de perguntar e colocar em perspectiva. Historiadores críticos incomodam sistemas totalitários e foram perseguidos em regimes muito variados. Há muito mais para pensar e dizer, mas, por enquanto, precisamos dar espaço para a esperança e encerrar por aqui.

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, ?Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia?

LEANDRO KARNAL




25 DE JANEIRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

As descobertas do ano

Todos os anos a revista Science elege as 10 maiores descobertas científicas do período. Por restrição de espaço, selecionei cinco.

1 As fotos do buraco negro na galáxia Messier 87

Foi considerado o maior avanço científico de 2019.

Buracos negros são corpos maciços, às vezes maiores do que o sistema solar inteiro, espalhados pelas galáxias. Suas massas gravitacionais são tão descomunais que atraem para seu interior todos os raios luminosos e os corpos celestes que cometem a imprudência de passar por perto.

Como essas colisões emitem ondas gravitacionais, os astrônomos puderam detectá-las na Terra e comprovar matematicamente a localização desses gigantes que telescópio nenhum visualizava.

Em abril de 2019, um consórcio internacional com mais de 200 cientistas - entre os quais alguns brasileiros - conseguiu o que muitos consideravam impossível: revelar a silhueta desses monstros celestes, formada por uma parte central esférica, negra, circundada por um anel luminoso de fótons que entraram em órbita ao redor dela. As fotos foram publicadas no mundo inteiro.

2 A reconstrução do impacto que extinguiu os dinossauros

Há 66 milhões de anos, um asteroide gigante se chocou contra a península de Yucatán, no México. O impacto e a atividade vulcânica gerada por ele extinguiram 76% das espécies presentes no planeta, entre as quais os dinossauros.

A partir de 2016, um programa internacional extraiu materiais do centro da cratera, situados a uma profundidade de 835 metros, que incluíram 130 metros pertencentes ao próprio asteroide. Os dados permitiram reconstituir minuto a minuto os eventos que se seguiram.

Rochas liquefeitas pelo choque monumental se espalharam pela atmosfera, provocaram intensa poluição e tempestades de pedras. As águas do oceano se elevaram e o enxofre presente na região vaporizou. No fim do primeiro dia, os tsunamis espalharam materiais como o carvão, resultante dos incêndios florestais. Em menos de uma hora, a atividade sísmica soterrou plantas e animais pelo planeta. A Terra foi resfriada e mergulhou na escuridão.

A despeito da catástrofe, a vida começou a se recuperar rapidamente. Samambaias e mamíferos não maiores do que os ratos sobreviveram. Em 30 mil anos o ecossistema estava recomposto. Em 100 mil anos, já havia palmeiras e mamíferos com o dobro do tamanho.

3 O homem denisovano

Há quase 60 anos, um monge budista encontrou uma mandíbula numa caverna do Tibet.

Em maio do ano passado cientistas aplicaram uma técnica nova, baseada na análise de proteínas, que permitiu identificar a mandíbula como pertencente a um homem denisovano, espécie que viveu na Ásia até 50 mil anos atrás, mais ou menos ao mesmo tempo do que os neandertais europeus. O resultado trouxe à luz esses misteriosos ancestrais e demonstrou o potencial revolucionário de um novo método de análise paleontológica.

Como há traços de DNA denisovano em asiáticos vivos, é provável que denisovanos tenham viajado para outros continentes e se miscigenado com os neandertais e os humanos modernos.

4 Um tratamento para o Ebola

Em 1976, foi descoberto o vírus Ebola, responsável por um surto com alta letalidade, em Yambuku, no Congo. Desde então, ocorreram outros, na África.

Em 1996, cientistas isolaram um anticorpo contra o vírus, no sangue de um paciente que se curou espontaneamente da doença. Mais tarde, foi obtida outra medicação a partir de anticorpos obtidos em camundongos geneticamente modificados.

Em 2019, saíram os resultados de um ensaio clínico, mostrando que uma combinação desses dois medicamentos foi capaz de curar 70% dos doentes com Ebola, enquanto a administração de cada um deles em separado curou apenas 50%. Finalmente, dispomos de um tratamento eficaz.

5 Bactérias e subnutrição

Milhões de crianças subnutridas têm dificuldade de se recuperar, mesmo depois de bem alimentadas. Uma década de pesquisas levou à identificação da causa: a imaturidade da flora intestinal.

Em 2019, foi descrito um suplemento alimentar barato e fácil de preparar, à base de grão de bico, banana e farinha de soja e de amendoim, dotado da propriedade de estimular o crescimento de bactérias benéficas nos intestinos dessas crianças.

Um ensaio clínico comprovou que crianças alimentadas com esse suplemento apresentam concentrações de determinadas proteínas no sangue, iguais às das bem nutridas que se desenvolvem normalmente.

DRAUZIO VARELLA


25 DE JANEIRO DE 2020
J.J. CAMARGO

A arte de se proteger

As vidas passaram a pertencer ao condomínio dos curiosos. deve-se escolher bem com quem se abrir
A primeira impressão que se tem, acompanhando as redes sociais, é que há um compartilhamento geral da vida dos envolvidos, nominados como seguidores, e que, por serem assim, camaradas, têm acesso a todas as informações do outro, cuja vida passou a pertencer ao condomínio dos curiosos. Todos rotulados como amigos, como se amizade pudesse ser banalizada.

Passando os olhos pelos comentários que seguem a qualquer relato, percebe-se que a maioria é constituída por fofoqueiros desqualificados, feito juízes implacáveis sob a toga da hipocrisia, protegidos pelo escudo da invisibilidade que lhes permite emitir opiniões fortes, que lhes escorreriam às calças se tivessem que dizê-las cara a cara.

E por que não há mais revolta por parte dos agredidos? Porque mesmo o mais tolo dos exibicionistas seleciona para divulgar apenas as trivialidades, essas mentirinhas idiotas que alguns usam para fazer parecer que são mais interessantes do que de fato são.

Que essa exposição vulgar e desnecessária não tem nenhum significado afetivo já se sabe desde que se percebeu que, quando alguém pretende materializar as ofertas de amizade, sugerindo um encontro formal, há uma debandada geral, como a afirmar que você pode ter 5 mil "amigos" cadastrados, mas terá, com sorte, uma meia dúzia que convidaria para jantar, misturar um vinho com histórias de afeto, e no máximo da intimidade, compartilhar o silêncio da reflexão.

Esses amigos do vinho e do silêncio confortável estão em outro compartimento, que a gente deve proteger com paredes blindadas e senhas criptografadas. Com eles podemos dividir tudo ou quase tudo, e se decidirmos omitir alguma informação a nosso respeito eles entenderão, porque amigo não se melindra e sempre entende que existem razões para a privacidade.

O Juliano era um cara do bem, pouco chegado a superlativos, na empresa, na ambição e na vida. De origem humilde, envelheceu preocupado que a família pudesse ter dificuldade de sobreviver a sua ausência. Talvez tenha percebido que sua prole era daquele tipo que acha que tudo que puder ser no cartão e, em várias parcelas, é barato.

Tendo descoberto uma bomba-relógio dentro do peito, seguiu fazendo tudo o que pudesse fazer, sem aparentar sofrimento. Quando chegou ao limite, me confidenciou: "Este segredo está me atormentando e acho que podes me ajudar! Quando me descobri doente, senti que ainda teria algum tempo, e proteger minha família da notícia ruim me pareceu adequado. Agora, na reta final, não quero ninguém com pena de mim. Curioso é que, à medida que o tempo foi passando, fui perdendo o medo de morrer e o meu único desejo secreto seria apenas espiar o dia da minha morte. Com um enorme receio de descobrir que minha família possa chorar menos do que chorou pela Ludi, uma poodle fofinha que tivemos. E aí, conto ou não conto? Pensei em dividir contigo essa dúvida, mas agora, só de te contar, me decidi: deixa estar. Eles não podem me ajudar, nem merecem o castigo de sofrer com antecedência. Além disso, eu também ainda não me recuperei da falta que sinto da minha poodle".

J.J. CAMARGO


25 DE JANEIRO DE 2020
MÁRIO CORSO

"Escrever Ficção"

Se você pensa que sua vida não está fácil, não imagina a dos escritores, especialmente os iniciantes. Está cada vez mais difícil conseguir um personagem. Reunir uma dúzia para montar um romance, então, é quase impossível.

Se o escritor é famoso, os personagens sabem que o destino é certo, que serão conhecidos, então embarcam na fantasia. Mas para quem está começando, e tudo é aposta, as negociações são duríssimas. Quando se consegue um bom personagem, ele traz junto uns cupinchas sem a menor densidade, e você não sabe como e onde usá-los.

Claro que personagens clichês dão sopa e consegue-se barato, mas ninguém vai longe com eles. Não há trama, por melhor que seja, que engate com heróis sem profundidade. Sem falar do problema da máfia russa, que faz contrabando de personagens e, ainda por cima, sendo a maior parte falsificados. A novela já impressa e só então ele descobre que a heroína inglesa na verdade é búlgara. Percalços da vida de escritor...

Aprendi isso e muito mais no genial: Escrever Ficção - um manual de criação literária, do Luiz Antonio de Assis Brasil. Um livro que desborda o tema. Foi escrito para ensinar a escrever ficção, mas é igualmente útil para acurar a leitura. Além disso, de inhapa, para aprendermos a ser menos chatos quando contamos nossas histórias.

Sim, estamos sempre contando histórias, as nossas, da nossa vida. Você pode escolher aprender a contá-las melhor ou seguir sendo maçante. Afinal, tem quem consiga nos fazer rir e nos ensinar algo com a descrição de uma ida à feira; e tem quem esteve em todos os lugares bacanas do mundo e não consegue nos transmitir 20 centavos da magia que testemunhou. Tudo depende da amarração da narrativa, e esse é um livro sobre narração e seus segredos. O que vale para a escrita pode ser transposto para a fala.

O livro é um condensado das aulas e da experiência do autor durante décadas de ensino de escrita criativa. Boa parte da nova safra de escritores gaúchos saiu dessa oficina. Quem não pode ter essa experiência ao vivo encontra nele excelentes pistas de como tudo se deu e se dá. Assis Brasil segue na ativa na PUCRS.

Há uma filosofia própria do autor na obra: ser ficcionista é uma forma de exercer nossa humanidade. É isso que faz o livro sair outra vez do seu campo, pois planta ideias sobre a condição humana, sobre como a ficção tanto nos traduz como nos constitui.

O que faz um escritor ser um escritor? Leia o livro para saber. Posso adiantar a minha tese: tudo começa quando um sujeito descobre que seu dom na vida é mentir. Se ele for um escroto, descortinam-se mil possibilidades rentáveis; mas se ele for de boa cepa, não lhe resta senão ser escritor. Portanto, um escritor é um mentiroso com caráter. Sua arte faz do falso algo mais real do que o verdadeiro.

MÁRIO CORSO


25 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O segundo prato de massa

Eu não devia ter comido aquele segundo prato de massa. Estávamos jantando no Eataly, eu, a Marcinha e o Bernardo, mais os amigos Grace e Edward, e pedi um tagliatelle al ragu. Oh, como gosto de tagliatelle al ragu! Não diria que é meu prato preferido porque comida é como livros ou música: há muitas possibilidades sublimes, não se pode distinguir apenas uma em detrimento de todas as outras.

No entanto, devo admitir que o tagliatelle al ragu ocupa espaço especial no meu estômago e também no meu coração, como os romances de Truman Capote e as canções de Belchior.

Dizem que o tagliatelle foi inventado por um cozinheiro italiano para o casamento de Lucrécia Borgia com o duque de Ferrara. O cozinheiro teria se inspirado nos lindíssimos cabelos loiros de Lucrécia para criar essa massa deliciosa. O que me faz deduzir que os fios de cabelo de Lucrécia eram grossos, porque, segundo as severas normas gastronômicas italianas, o tagliatelle tem de ter uma espessura de 8 milímetros, não mais, não menos.

Por causa dessa história, cada vez que peço um tagliatelle penso em Lucrécia, e isso torna o prato ainda mais saboroso.

Lucrécia foi uma protagonista de seu tempo. Era filha de ninguém menos do que? o papa! Sim, o papa tinha filhos e amantes. Uma delas, contava-se na Roma de então, a própria Lucrécia.

O papa de que falo foi Alexandre VI, um espanhol que antes se chamava Rodrigo Borgia. Outro de seus filhos, César, também cometia incesto com Lucrécia e era desesperadamente apaixonado por ela. Maquiavel escreveu sua grande obra, O Príncipe, baseado em César Borgia, a quem considerava um ladino governante.

Os Borgias não hesitavam em eliminar incautos que ousassem se atravessar em seu caminho. Para isso se valiam de diversos meios. Um deles, o famoso veneno cantarella, pó branco que Lucrécia guardava dentro da pedra oca de seu anel. Quando o desafeto não estava olhando, ela abria o anel, despejava cantarella em sua taça de vinho e esperava que ele bebesse. O coitado tomava um gole e, antes que pudesse dizer cucamonga, caía se contorcendo em dores excruciantes, vomitando, excretando sangue pelos olhos.

Lucrécia sabia ser má.

Há uma excelente série sobre os Borgias. O título é, bem, Os Borgias. O papa é interpretado por Jeremy Irons, mas quem mais se destaca é um coadjuvante que faz um misterioso, sombrio e crudelíssimo assassino profissional. Assista. Vale a pena.

A história do tagliatelle não é citada no seriado. Pena, porque tagliatelle al ragu é uma espécie de símbolo da Itália. Há brasileiros que acreditam que é o mesmo que massa à bolonhesa, mas vá falar isso na Bolonha para ver a reação deles. Os bolonheses rebaterão que massa à bolonhesa simplesmente não existe!

No jantar a que me referi, três de nós escolhemos esse prato, os três homens. Eu estava com fome e, quando o pedido chegou, pensei que eles poderiam ter servido uma porção mais alentada. Mas, tudo bem, fui em frente, comi com gosto e concentração. Nessas oportunidades, deixo que os outros deitem falação e me dedico à comida. Fiz bem. Estava supimpa.

Porém, quando olhei para o lado, vi que o Bernardo havia deixado quase tudo. Dera umas três ou quatro garfadas e desistira de comer.

- Que foi? - perguntei. - Não gostou?

- Gostei, mas tinha comido pão antes?

Era verdade. O restaurante havia oferecido um couvert com pão italiano e azeite de oliva e burratta, e o Bernardo atacara aquelas preliminares com devoção que se deve ter com as principais. Paciência, não ia forçar o guri a comer. Mas fiquei olhando para aquele prato de tagliatelle al ragu abandonado, o queijo parmesão derretendo sobre o molho vermelho, aromático, sedutor, convidativo. Pensei: é até um pecado deixar toda essa comida aí, esfriando. E resolvi fazer algo que não se faz em restaurantes finos: puxei o prato do Bernardo para mim e mandei ver. Comi tudo! E, ao terminar, senti que havia passado do ponto. Lembrei-me daquele velho ensinamento chinês:

"Jamais te arrependerás de comer pouco!".

Mas era tarde para beber da sabedoria oriental, parecia que eu engolira uma bola de futebol e a culpa, a velha culpa, agora me torturava. "Por quê?", dizia para mim mesmo em silêncio. "Por quê?"

Como tantos temerários de cinco séculos atrás, eu me perdera entre o emaranhado dos cabelos de Lucrécia. E Lucrécia, nós já aprendemos, sabia ser má.

DAVID COIMBRA


25 DE JANEIRO DE 2020
ALMANAQUE GAÚCHO

Saudade não tem idade

Ainda que, hoje em dia, seja difícil imaginar, trintões e quarentões que viveram a juventude na época hão de lembrar que, no início do século 21, a Rua João Alfredo era uma via, até certo ponto, sossegada, que delimitava as bordas da boemia do bairro Cidade Baixa, na Capital. Na João Alfredo, nos primeiros anos da década passada, havia apenas três bares - Oficina Etílica, Mercatto D?Arte e Ossip.

O cenário começou a mudar quando as casinhas antigas passaram a ser ocupadas por pubs como Nega Frida e Paraphernalia, que aderiram ao movimento de revalorização da música popular brasileira nas pistas de dança, protagonizado por DJs como Jovi Medeiros, Damon Meyer e Manoel Canepa, além de Fred Lima. Aliás, o fenômeno se repetia nos bares Mr. Dam, na José do Patrocínio, e Escambo, na Luiz Afonso, que também promoviam festas com MPB.

Até ali, o Pé Palito era um brique de "antiguidades modernistas", como definia o proprietário Marcos Dorneles, falecido em 2018. Em 2004, o local se transformou em casa noturna, preservando, por algum tempo, as cadeirinhas penduradas no teto como decoração. Já na noite de abertura, o Pé Palito causou furor quando um dos presentes, Dayal Benítez (garçom do bar Ocidente na época), resolveu ficar nu na pista.

- Fazia isso com frequência nas festas. Era comum o pessoal perguntar quando me via chegando: "Que horas o Dayal vai tirar a roupa?" - conta ele, divertido.

Dayal justificava a ousadia com a vontade de afrontar o tabu da nudez, mas, naquela fria noite de inverno, o desacato não caiu bem.

- O que está pensando? Só quem pode ficar nu nesta casa sou eu! - recriminou o dono do Pé Palito, dando a festa por encerrada.

O incidente não impediu - muito antes pelo contrário - que, logo em seguida, o Pé Palito se tornasse a principal referência de casa noturna na João Alfredo. No auge do sucesso, recebeu visitantes famosos, como os atores Luana Piovani e Marcos Pasquim e os músicos Beto Lee (filho de Rita Lee), Tonho Crocco (da banda Ultramen) e Serginho Moah (da Papas da Língua). Alguns, como Marco Mattoli (do Clube do Balanço), deram até canja nas pickups e vinis.

Enquanto Dorneles aperfeiçoava a estrutura física em sucessivas reformas (chegou a agregar a casa vizinha ao espaço do bar), Nilo Pinheiro cuidava da área administrativa e Patrícia Duarte trabalhava na produção das festas. Mas a marca principal do Pé Palito era a trilha sonora do DJ Fred, elaborada com ritmos brasileiros, principalmente samba, samba-rock e MPB.

Com o esgotamento do revival de música brasileira e o advento da onda de sertanejo universitário, o Pé Palito perdeu espaço, fechando suas portas em 2011. Hoje, o endereço da João Alfredo, 577, está ocupado pelo Margot Bar & Club.

- Antes, a figura do DJ era vista quase como subproduto da festa. O Pé Palito ajudou a mostrar que o discotecário é um artista e que ele é importante para a cena cultural - afirma Fred Lima, atualmente radicado em São Paulo.

ALMANAQUE GAÚCHO



25 DE JANEIRO DE 2020
OBITUÁRIO

Aos 84 anos, morre Ibsen Pinheiro

Um dos principais nomes do MDB no RS, o ex-presidente da Câmara comandou a sessão do impeachment de Fernando Collor

Ibsen Pinheiro morreu na noite de sexta-feira, aos 84 anos. Ele realizava tratamento de saúde no hospital Dom Vicente Scherer, na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, quando teve parada cardiorrespiratória. Faleceu por volta das 21h, de acordo com a sua assessoria. Nascido em São Borja em 5 de julho de 1935, foi presidente da Câmara dos Deputados entre 1991 e 1993, no governo Fernando Collor.

Também foi presidente do PMDB estadual, deputado estadual e vereador. É conhecido ainda pela sua atuação como jornalista, procurador de Justiça, promotor, advogado e ex-dirigente do Sport Club Internacional.

Ibsen começou a sua carreira como jornalista, trabalhando na prefeitura de Porto Alegre entre os anos de 1959 e 1960. Durante a década de 1960, atuou na Rádio Gaúcha e no jornal Zero Hora, escrevendo principalmente artigos sobre esporte.

Em 1969, chegou pela primeira vez à vice-presidência do Internacional, em um grupo chamado "os mandarins", que ficou na história do clube por liderar uma era de conquistas que culminou com os títulos do Campeonato Brasileiro em 1975, 1976 e 1979.

Retornou aos microfones da Rádio Gaúcha em 1971. Na década de 1970, foi integrante também do programa Sala de Redação, então apresentado por Cândido Norberto.

Na política, foi eleito pela primeira vez em 1976, assumindo o cargo de vereador de Porto Alegre pelo MDB. Conhecido por sua verve e qualidade no discurso, logo começou a despontar, sendo eleito deputado estadual, em 1978, e deputado federal, em 1983. Obteve a reeleição em 1986, participando da construção da Constituição de 1988.

No início da década de 1990, Ibsen foi um dos nomes mais importantes da política nacional. Presidiu a Câmara dos Deputados durante o mandato de Fernando Collor de Mello, entre 1991 e 1993, sendo responsável pela instalação da primeira comissão parlamentar de inquérito que deu origem ao processo de impeachment. Presidiu a sessão que afastou Collor da Presidência.

Em maio de 1994, diante do escândalo dos anões do Orçamento, Ibsen teve o seu mandato cassado por 296 votos favoráveis, 139 contra e 24 abstenções. O processo criminal, entretanto, foi arquivado por falta de provas em 1995.

Ele se reelegeu deputado federal em 2006. Três anos depois, foi relator do texto que previa uma reforma política, que não foi adiante. Em 2010, relatou o projeto que previu a redistribuição dos royalties do pré-sal. Em 2014, voltou à Assembleia, onde permaneceu por mais um mandato. Também retornou à vice-presidência do Inter em 2016.

A esposa dele, a jornalista Laila Pinheiro, morreu em 2013. Ibsen deixa um filho e uma neta. Até a meia-noite de sexta-feira, informações sobre velório e enterro ainda não haviam sido divulgadas. O governador Eduardo Leite informou que decretaria de luto de três dias no Estado.


25 DE JANEIRO DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO

"O Chile está passando por um problema de maturidade"

Fernando Schmidt Ariztía, embaixador do Chile no Brasil

Passados três meses, as manifestações nas ruas de Santiago diminuíram mas não foram encerradas. O governo, acusado inicialmente de truculento, ouviu boa parte das reivindicações - fez mudanças drásticas na aposentadoria e no sistema de saúde. O país passará por plebiscito no dia 26 de abril para definir se a população quer nova Constituição. Em entrevista à coluna, o embaixador chileno no Brasil, Fernando Schmidt Ariztía, comenta o que mudou no país depois da onda que abalou a nação.

O modelo econômico adotado pelo Chile era elogiado por muitos governos. O que deu errado?

Não é necessariamente o modelo que está sendo questionado. Estão sendo questionados elementos do chamado modelo que ameaçam as vantagens, a consolidação de uma classe média. O país está passando por um problema de maturidade. A classe média, imensa maioria do país, está acostumada a passar férias no Exterior, tem um, dois, três carros às vezes, e conta com nível de consumo consolidado, começou a se sentir ameaçada por alguns elementos, como a previdência. Está em andamento uma bateria de reformas previdenciárias. O segundo elemento é a reforma no sistema de saúde, onde já foram aprovadas duas ou três mudanças para dar satisfação a alguns elementos, como lista de espera (para consultas), preços dos medicamentos e outros aspectos. Essa é uma demanda que se manifestou nas ruas de Santiago pacificamente desde o dia 18 de outubro. São manifestações pacíficas, que todos endossam como parte da nossa democracia. Isso contrasta com a violência.

O presidente Sebastián Piñera tem aceitado as reivindicações por medo de que a crise derrubasse seu governo ou porque reconhece os problemas do modelo chileno?

É um reconhecimento das dificuldades. Tudo o que está fazendo é um ajuste bastante drástico de diversos gargalos que já tínhamos. Trata-se de consolidar os ganhos. A imensa maioria das pessoas no Chile rejeita a violência e quer que todo esse estado caótico termine.

O governo reconhece que eram necessários ajustes ao modelo liberal chileno?

O modelo é o livre-mercado e isso não está em jogo. Não é o Estado que quer intervir na vida das pessoas. O Estado vai intervir mais, sim. Mas sem atingir o essencial. Não se trata de nacionalizar meios de produção. Nenhuma das propostas aponta para alterar a autonomia do Banco Central, para expropriar a poupança dos trabalhadores.

O senhor acredita que é necessária a elaboração de uma nova Constituição?

Necessária ou não, é um debate que está colocado. Constituições não resolvem problemas diários das pessoas, como a fila do hospital. Novas constituições às vezes são necessárias para renovar o pacto político. Mas os problemas não são resolvidos por elas. Quando uma constituição é renovada o que se está dizendo é que o pacto político também será renovado.

No início dos protestos, em outubro, o governo decidiu colocar o Exército nas ruas para reprimir manifestações. A medida foi questionada porque lembrou a ditadura. Foi um erro?

O governo tem o dever de garantir a ordem pública, que o cidadão possa se movimentar livremente, abrir sua loja sem preocupação. Deve garantir os direitos dos cidadãos. Como quando o Exército interveio no complexo da Maré, do Alemão (no Rio de Janeiro), mas isso não significa que o governo está utilizando as Forças Armadas para consolidar uma ditadura.

< A SEMANA QUE EU VI

EUA ARMADOS

Grupos pró-armas deram incrível demonstração de força na segunda-feira ao marcharem pelas ruas de Richmond, na Virgínia (EUA), contra a política do governador democrata que deseja limitar o acesso a arsenais. Foi indicativo da polarização da sociedade americana que se prepara para a corrida eleitoral.

TRUMP

O presidente Donald Trump foi o grande vencedor da primeira sessão do processo de impeachment no Senado. Republicanos conseguiram, na terça-feira, barrar o pedido dos democratas por novos depoimentos e pelo acréscimo de documentos ao caso.

GUAIDÓ

Juan Guaidó, líder da oposição venezuelana, que se autoproclamou presidente em 23 de janeiro de 2019, foi recebido em Davos, durante o Fórum Econômico Mundial, como chefe de Estado. Não se sabe o que ocorrerá quando tentar voltar a seu país - uma ordem o proibia de deixar o território, sob pena de ser preso.

RODRIGO LOPES


25 DE JANEIRO DE 2020
REFORMA TRIBUTÁRIA

Bolsonaro contraria Guedes e nega possibilidade de imposto do pecado

Em entrevista após chegar em Déli, na Índia, na sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não haverá nenhum imposto do pecado, sobre produtos açucarados, álcool e cigarro, contradizendo o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Guedes havia pedido que sua equipe estudasse a possibilidade de tributar esses produtos.

- Ô Moro, aumentar a cerveja não, hein Moro. Acho que o Moro gosta de uma cervejinha. Será que ele gosta? - disse Bolsonaro, confundindo Guedes com o ministro da Justiça, Sergio Moro.

Segundo Bolsonaro, a orientação do governo é não ter "qualquer majoração de carga tributária".

Depois, reiterou, acertando o nome do ministro:

- Ô Paulo Guedes, eu te sigo 99%, mas aumento no preço da cerveja, não.

O ministro da Economia pediu ao grupo responsável pela reforma tributária que faça simulações para reagrupar numa mesma categoria todos os produtos que possam ser prejudiciais à saúde.

A lista em análise, além dos tradicionais cigarro e bebidas alcoólicas, inclui os produtos com excesso de açúcar, considerados um fator para a obesidade, especialmente a infantil, elevando o risco de desenvolvimento de doenças graves como diabetes.

A ideia da equipe de Guedes é aproveitar a reforma tributária para fazer a modificação.

Segundo Bolsonaro, não haverá tributação nem sobre álcool, nem sobre os outros produtos que são prejudiciais à saúde.

- Não tem como aumentar a carga tributária, todo mundo consome algo de açúcar - afirmou o presidente.

Foi durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, que Guedes cogitou a nova tributação. Além disso, um dos objetivos do governo na atualização é promover a simplificação, reduzindo o número de alíquotas e classificações, bem como as exceções às regras.

O governo federal já decidiu que não vai elaborar sua própria reforma tributária, mas enviar sugestões aos projetos que já estão tramitando na Câmara e no Senado.

As duas propostas que estão nas Casas já preveem, além do Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS, nos moldes de um imposto sobre valor agregado), um imposto seletivo para desestimular o consumo de produtos como cigarro, bebidas alcoólicas e armas. A novidade é a inclusão de produtos com açúcar.

Agenda

Bolsonaro chegou para visita oficial de três dias à Índia. No sábado, participaria de reuniões com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e outras autoridades do país, e de banquete oferecido pelo anfitrião.

Neste domingo, o presidente brasileiro é o convidado de honra para participar do desfile do Dia da República na Índia.

E, na segunda-feira, Bolsonaro tem agenda para fazer a abertura do seminário empresarial Brasil-Índia. De lá, irá para o Taj Mahal, um dos principais e mais famosos pontos turísticos, que será fechado para o presidente e sua comitiva. 



25 DE JANEIRO DE 2020

INFORME ESPECIAL

Dona Tereza

Vi Dona Tereza pela última vez no teatro. Sentada numa fila lá detrás, ao lado da filha Sissi, esposa do Zé. Não havia na plateia ninguém parecido com a Dona Tereza. Franzina e forte, vestido floreado, carregava em seus 102 anos lucidez e energia incomuns.

Conheci Dona Tereza no século passado. Eu sempre me surpreendia como, com mais de 90, ela subia e descia escadas sozinha, passos seguros. Me espantava com a força do seu aperto de mão, com sua voz firme e com o arroz de leite, receita do Alegrete, que preparava quando era aniversário de alguém ou em outra data especial.

Dona Tereza era sogra do Zé Victor Castiel. Moraram 30 anos na mesma casa. O Zé sempre sonhou com uma família assim: a esposa, as crianças, ele, a vó e o cachorro. Até que Dona Tereza, pertinho dos 100, já não subia e descia escadas sem corrimão e sem ajuda. Foi quando ela se mudou.

O lugar que a acolheu era dos melhores. Dona Tereza continuava a conviver com a família, nos churrascos de fim de semana e nas constantes visitas que fazia e recebia. Logo se adaptou ao novo espaço. Sagrou-se, com mérito e justiça, campeã de videogame da clínica de repouso.

Há uns dois anos, Dona Tereza deu um susto. No dia seguinte, recebi uma foto dela, firme, cozinhando para as amigas. "Kkkkk, olha a vó depois do AVC", foi o comentário do Zé. Ele e a Dona Tereza brincavam com tudo, até com a morte. Dona Tereza se queixava, de vez em quando, disso e daquilo. O Zé, que não perde viagem, respondia: "A senhora fique bem à vontade...". Ela o xingava, carinhosa, e todo mundo ria.

Sábado passado encontrei, no teatro, a Dona Tereza. Vestido floreado, ao lado da filha. No fim do espetáculo o Zé, do palco, tomou a palavra e disse: "Dedico essa peça à minha sogra...". A plateia, achando que era mais uma piada, caiu na gargalhada. O Zé insistiu: "É sério, minha sogra, a Dona Tereza, 102 anos, está ali". As pessoas viram que era verdade e aplaudiram - um aplauso longo e emocionado. Dona Tereza levantou a mãozinha, quase tímida, agradecida e feliz.

Então, na segunda, menos de dois dias depois, Dona Tereza se sentiu um pouco indisposta. Melhorou em seguida mas, mesmo assim, decidiu se deitar. A enfermeira, atenta, perguntou como ela se sentia. "Estou bem", respondeu. Virou para o lado, fechou os olhos e não mais os abriu.

Na terça, o velório teve abraços e risos e lágrimas e histórias. "Foi lindo o que aconteceu no sábado, ela recebeu aquele carinho todo, partiu sem sofrer, aos 102, isso é uma bênção", eu disse. Então a Sissi fez a frase que deu sentido definitivo a esse enredo de final simples e, por isso, grandioso: "Foi aplaudida... e saiu de cena".

Na capela N do São Miguel e Almas, serena e rodeada por flores, Dona Tereza descansava com o mesmo vestidinho estampado escolhido para ir ao teatro hoje vazio, mas onde as palmas ainda ecoam.

POR QUE BOLSONARO TENTA ESFRIAR MORO

A política se move pela lógica do poder. Ao tentar esfriar Sérgio Moro, o criador impede que a criatura se volte contra ele. As pesquisas mostram que o Ministro da Justiça e da Segurança é mais popular do que o seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, que sonha com a reeleição. A julgar pelo cenário de hoje, o maior adversários desse sonho não é Lula, nem o PT, nem Luciano Huck. O inimigo potencial está na própria trincheira.

Não é a primeira vez em que Bolsonaro cutuca Moro. E nem a última. Teoricamente, o melhor dos mundos para o presidente é a permanência do ministro no governo, mas com menos visibilidade.

Em nenhum momento o ex-juiz da Lava-Jato autorizou vincular o seu nome a uma candidatura ao Planalto. Mas essa é uma decisão a ser tomada lá na frente, em 2022. Bolsonaro sabe disso. Preventivamente, trabalha para esfriar seu ministro mais popular. Esfriar não é congelar. Nem fritar. Nesse caso, vale a velha máxima. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose.

601

é o número de famílias auxiliadas pelas doações de bens e utensílios domésticos pelo Mensageiro da Caridade na Região Metropolitana, entre janeiro e outubro de 2019. "Os mais pobres sempre são os mais afetados por catástrofes naturais ou agravamento das condições socioeconômicas", lembra Luís Carlos Campos, diretor da Cáritas Arquidiocesana, Secretariado de Ação Social da Arquidiocese de Porto Alegre. Interessados em doar: (51) 3223-2555.

PENALIDADE

O Tribunal de Justiça do Estado, através da sua 5ª Câmara Cível, decidiu, durante a semana, que o dono de um imóvel que teve uma vidraça quebrada por uma bolinha de golfe vinda do Country Club não tem direito a indenização por dano moral.

Os prejuízos materiais foram reparados pelo clube. Relator do acórdão, o desembargador Jorge Luiz Lopes do Canto afirmou: "Não foi demonstrado que o evento narrado na inicial transbordou a esfera do mero dissabor do dia a dia, atingindo o equilíbrio psicológico da parte autora, cuja casa foi atingida em razão da prática desportiva".

Não fui eu. Dessa vez.

INFORME ESPECIAL

25 DE JANEIRO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Ódio bonitinho


O caso recente do vídeo bizarro do ex-secretário da Cultura do governo Bolsonaro, com estética e mensagem nazistas, serviu para tirar da toca vários democratas de ocasião. A reação negativa foi basicamente unânime, mas não coerente. Muitos demonstraram ojeriza ao teor da peça, ao mesmo tempo em que não se importam de enaltecer outras ideologias totalitárias ou métodos violentos.

Vejamos o caso do "músico" Marcelo D2, mais conhecido por sua apologia da maconha. Talvez empolgado após o consumo da erva ou um filme de Tarantino, o ativista "paz e amor" publicou um tweet em que desejava tatuar à faca no rosto desses "nazistas" todos uma suástica. Vários usuários denunciaram a postagem, mas parece haver um duplo padrão na rede social, onde o "ódio do bem" é tolerado quando vem da esquerda.

Já a deputada federal do Rio pelo PSOL, Talíria Petrone, que se descreve como "professora de História, negra, feminista", achou adequado reverenciar o genocida Lênin no aniversário de sua morte. Ela descreveu o psicopata como o "cara que ousou substituir o poder do Czar, o Rei, pelo de Conselhos de Operários, Soldados e Camponeses - os Soviets". Em seguida, analisou: "A revolução foi traída, mas Lênin, pelo exemplo e pelos escritos, é eterno".

De fato, é eterno no mausoléu dos crentes do comunismo e no rol dos maiores assassinos da História. Recomendo inclusive o livro da historiadora Helen Rappaport sobre os últimos dias dos Romanov, que deixa claro o grau de perversidade do sujeito. A postagem gerou forte reação negativa nas redes sociais, mas nem um pio da grande imprensa.

Uma das coisas mais importantes hoje é acabar com o salvo-conduto da extrema-esquerda, com o duplo padrão de quem detona Pinochet enquanto louva Fidel Castro, cospe no nazismo enquanto enaltece o comunismo. Nesse sentido, até que o vídeo tosco do ex-secretário cumpriu uma missão nobre involuntária.

Enquanto partidos como o PT e o PSOL forem considerados normais pela imprensa brasileira, haverá olavismo e gente como Roberto Alvim por aí, ganhando destaque como contraponto a essa insanidade. A esquerda caviar pariu o bolsonarismo radical.

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 18 de janeiro de 2020



18 DE JANEIRO DE 2020
LYA LUFT

Pra quem acredita

Acreditei em muita coisa até quase o fim da infância e até hoje acredito em um monte de coisas, algumas das quais até duvido, mas faço calar a dúvida - porque, às vezes, acreditar é melhor, mais sábio ou... mais confortável.

Um pouquinho covarde, e daí? Nem todo mundo tem de ser herói. Venerei Joana D?Arc no livro de Erico Verissimo, que iluminou parte de minha infância e meu amor pelas palavras, mas não queria estar no lugar dela. Mas neste mundo, nesta hora, bem que a gente precisava de um pequeno exército de Joanas D?Arc e cavaleiros correspondentes.

Mas... ignorar é tão doce... fingir pode ser tão tranquilo... e por outro lado, quem aguentaria enfrentar todas as loucuras deste mundo, desta hora? Então a gente vai toureando com as realidades ruins, do jeito que dá. Dinheiro curto? Fechamos a bolsa, a carteira. Filho malcriado? Repensamos nossa atitude com ele, mesmo sem saber se deve ser para mais carinho ou mais dureza.

Mil recomendações sobre alimentação e saúde? Carne vermelha, morre mais cedo. Muito carboidrato, idem. Tudo depende do ponto de vista, do ângulo e das possibilidades de cada um. Há bastante tempo, como menos carne mas nunca foi por convicção, por não querer matar e comer quem tem rosto, cara ou focinho e pode me encarar. Talvez o corpo vá se adequando ao que lhe serve melhor.

Então como se faz?, perguntam. Existe uma coisa chamada bom senso, com que todos nascemos e que pode nos orientar bastante bem. Além disso, receitas, sugestões ou ordens, que vêm de fora, mudam com o tempo. E com os costumes.

Na infância de minha mãe, comia-se pão feito em casa, com banha de porco em lugar de manteiga, mais saboroso, diziam. Eu me horrorizei quando me disseram. Nenhum dos meus tios morreu cedo devido a isso. Piolho na cabeça da meninada mesmo em colégio caro? Neocid em pó e touca de banho da mãe por uma hora, depois lavar, e deu. Ninguém que eu conheça ficou louco por isso.

Chinelada quando preciso, que ninguém é de ferro e sobretudo meninos ativos, depois de dois ou três dias de chuva fechados em casa na praia, fazem qualquer um perder a cabeça. Gritaria, empurrões, mãe, o mano tirou meu carrinho, mãe, o mano baixou minha calça, mãe, dá um jeito nesses guris pelamordedeus.

Desconfio um bocado dessas modas e ídolos que hoje nos atropelam e confundem, principalmente a meninada. Todo rico não presta. Moralidade é coisa de velho. Emprego, só ganhando bem de saída, e sem chefe pra atazanar a gente. Para segurar seu homem ou enlouquecer sua mulher (amante se for o caso), as recomendações são tão acrobáticas que o melhor seria voto de celibato. Pensando bem, eu ainda acredito em muita coisa: decência, gentileza, afeto; confiança e respeito; boa administração de dinheiro e amor; um pouquinho de loucura aqui e ali, às vezes mergulhar e ver o que acontece.

E, como respondi certa vez a uma das minhas crianças que perguntava sobre gnomo e fada, "pra quem acredita, existe", eu acredito que somos trapalhões mas não inteiramente burros: o ser humano acaba consertando, um pouco, as bobagens que faz ou as tragédias que causa.

LYA LUFT

18 DE JANEIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

A noite inteira

Qual seu conceito de luxo? Você não responderá que é um iate ancorado no píer de Portofino nem dirá que é uma penthouse em Nova York de frente para o Central Park - mesmo que seja. Não vai dar essa bandeira, já aprendeu que ostentar é cafona. Dirá que luxo é ter tempo, resposta óbvia e condizente com os dias apressados de hoje, ou dirá que luxo é ter amigos de verdade, e de fato é, já que colecionar seguidores é um delírio cujo efeito ainda foi pouco pesquisado. Pode também falar sobre a família, instituição que anda em alta, ou enaltecer a saúde, sem a qual nada prospera. Mas, se fosse obrigado a transcender as respostas óbvias, o que responderia? O meu luxo: dormir uma noite inteira sem despertar no meio.

Não precisam ser 10 horas sequenciais, não sou de extravagâncias. Estou falando em desmaiar por seis horas seguidas, desfalecer por sete horas ininterruptas. Às vezes, acontece. Às vezes? Pois é. Deveria ser corriqueiro, não esporádico.

Geralmente, deito cedo. Entre 23h e 23h30min já estou em sono profundo. Até que, por volta de duas da manhã, sede! Preciso de um gole d´água (maldito vinho do jantar). Às quatro, um inexplicado suor escorre pelo corpo. E, logo depois, um arrepio de frio. Puxo o lençol até o pescoço, para dali a 10 minutos jogá-lo no chão e logo juntá-lo de novo e me cobrir com o edredom, e assim sucessiva e esquizofrenicamente.

Se não acordo com a sede ou com os calorões, acordo com o canto dos pássaros - o dia começa mais cedo para eles. Ou é um mosquito que resolveu passear rente ao meu ouvido. Ou são as trovoadas lá fora. A filha que chegou de madrugada. O gato que mia. O WhatsApp que apita. Uma música no andar de cima. A buzinada de algum notívago comemorando a vitória do seu time - às três da manhã! Se nada disso desperta você, parabéns, sono pesado é uma bênção. Tomara que a criatura com quem você divide a cama seja tão abençoada quanto, mas duvido.

O mais provável é que sua pessoa amada vá ao banheiro duas vezes por noite, vire de um lado para o outro, ronque, tenha cãibras, fale durante o sono, acenda a luz pra ir atrás de um ansiolítico, encasquete que não trancou a porta da frente, escute um barulho lá fora e pergunte: "Você também escutou esse barulho lá fora?" e você "hã? que barulho?" e ela, "esquece, acho que me enganei, dorme, amor", deixando você mais acesa que um farol noturno no meio do oceano - quem inventou essa história de que precisamos dormir ao lado de quem amamos? Romantismo tem limite.

E eu nem falei de casais com bebês recém-nascidos.

Dormir uma noite de ponta a ponta sem acordar uma única vez. Melhor que iate, cobertura em Nova York, bangalô nas Maldivas, uma adega de vinhos italianos, centenas de curtidas no seu post. Luxo mesmo é, depois de um dia eletrizante, apagar sem sobressaltos.

MARTHA MEDEIROS


18 DE JANEIRO DE 2020
CARPINEJAR

Votos de casamento

Há uma expectativa exagerada nos votos de casamento, como se o destino da relação dependesse da força arrebatadora de um discurso, como se o amor pudesse ser avaliado pelas metáforas.

O noivo e a noiva sofrem com a idealização. Não basta ser sincero, tem que encantar. Espera-se que Shakespeare suba de repente das cordas vocais, que Goethe baixe generosamente no altar.

Vive-se o constrangimento de precisar descrever em palavras todo o sentimento por alguém, tarefa que não é fácil sequer para poetas veteranos.

Os convidados do casamento esperam a justificativa do sim, não somente o sim, a explicação do sim, não se bastam com o sim.

Casar torna-se um teste oral diante da família e dos amigos.

O casal é forçado à missão de descrever em poucos minutos a sua história, ser engraçado e lírico ao mesmo tempo, arrancar lágrimas e risadas de lembranças especiais e marcantes e comover quem testemunhou a evolução do romance. Os dois são postos na tribuna, nos holofotes da igreja, para serem julgados pelas suas lábias.

Mas nem todo mundo sabe falar bem. Nem todo mundo tem o talento da oratória. Força-se uma situação desnecessária, criando equívocos e preconceitos, ainda mais num momento de nervosismo e tradicional gagueira.

Aqueles que não escrevem, que não contam com uma biblioteca na memória, que não desenvolveram a sedução verbal, que não partilham da rotina de se expressar também amam. E amam sinceramente, muito além das frases de efeito.

Não merecem essa tortura e humilhação pública. Talvez seja difícil para eles fundamentar a escolha. Mas os seus murmúrios monossilábicos apresentam uma avassaladora sinceridade. Não mentem com promessas. Não se alongam em floreios e digressões. São diretos e, nem por isso, menos profundos.

Não duvide das intenções de quem é direto e prático. Existe um concurso literário que não prova nada, que não determinará o quanto se gosta do outro. Até porque as mentiras são bonitas, e a verdade costuma ser discreta.

Não se fie nos votos do casamento, não espere a nebulização de versos, às vezes amar é tão natural quanto o ar que se respira.

As palavras devem ser quentes e verdadeiras como um beijo, não as melhores, porém as que realmente os noivos acreditam.

Dizer o eu te amo já é mais do que suficiente para honrar o comprometimento.

CARPINEJAR