sábado, 29 de outubro de 2022



29 DE OUTUBRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Fim de uma etapa

Iniciei carreira como colunista de jornal em 1994, no finalzinho do governo Itamar Franco. Meu texto de estreia denunciava uma tendência retrô: a de que casar virgem estaria "voltando à moda". O segundo texto foi sobre mulheres que tomavam a iniciativa de chamar para sair. O terceiro, sobre o casamento não ser mais o único objetivo de nossas vidas. Virou um nicho: relacionamentos. Ciúmes, erotismo, religião, rock´n´roll, cinema, topless, homossexualidade, aventuras cotidianas. Escrevia sobre tudo, pois tudo envolve a relação entre as pessoas. Incluindo a política.

Sobre o governo FHC, palpitei três ou quatro vezes - em oito anos. No governo Lula, um pouco mais. Eram opiniões avulsas, não representavam meu trabalho como um todo. Isso até 2016, quando estarreci ao ver um deputado homenagear um torturador dentro do Congresso Nacional - me senti insultada. Não gosto de política e nunca demonizei ou santifiquei alguém: por mim, continuaria dando pitacos vez que outra, mas àquela altura eu tinha uma reputação de credibilidade e seria covardia não expor a minha indignação com o Brasil desaforado e perigoso que saía do armário. Passei a escrever, mais do que de costume, sobre os valores em que acredito, criticando quem ameaçava abertamente a democracia. Não estava em defesa específica de ninguém e de nada que não fosse a civilidade. Fiz o que achei que devia e aqui, por ora, encerro essa etapa.

Até que me sinta novamente horrorizada, não pretendo insistir neste assunto, mude o inquilino do Planalto ou não. Foi um processo doloroso e espero que tenhamos aprendido com ele. De minha parte, me sinto mais madura e mais íntegra como profissional. Arrisquei uma situação confortável para dar a cara à tapa - e me estapearam, mas não tanto quanto apanharam diversos outros colegas, a quem me solidarizo. Não foi fácil atravessar essa tormenta. Tentamos informar, conscientizar e combater fake news, mas não somos donos da verdade. A população é imensa e soberana.

É dela que virá o veredito.

Não virarei as costas para a política - a desinformação é uma arma letal que a gente aponta para nós mesmos - mas, daqui pra frente, voltarei a compartilhar reflexões sobre filmes, livros, dores, amores, descobertas, viagens, confidências. O universo entre quatro paredes, enquanto a vida corre lá fora. Sentimentos solares e o breu de cada um. As crônicas continuarão sendo um espelho do que sinto, vejo, temo e penso, mantendo a leveza da qual nunca me apartei. De resto, não são os eleitores que ganham ou perdem uma eleição, nem mesmo os candidatos. É o país. Sua história continuará sendo escrita. Que não venham páginas muito duras.

No próximo sábado (5), às 18h, autografarei Um Lugar Na Janela 3 na Feira do Livro de Porto Alegre, desta vez com direito a selfie e abraço, finalmente. Apareça.

MARTHA MEDEIROS

Seres humanos?


Para a frente é que se anda, diz o ditado. Pelo que a gente tem visto nos últimos tempos, só não se anda para a frente no que se refere aos humanos. 
Seres humanos, um tipo meio estranho de bicho, animais reprodutores de lixo, cantam Os The Darma Lóvers, banda de inspiração budista do eixo Porto Alegre-Três Coroas.

Nós somos seres estranhos. 

Quando um humano resolve que a cor da pele do outro é motivo para ofensa, foi-se a humanidade - se é que alguma vez ela existiu.

Sobra a vergonha. Que vergonha as cenas do Seu Jorge sendo xingado no clube que fez parte do crescimento de tantas crianças e de tantos atletas. O União era o pátio dos guris sem pátio, lugar em que os pais se sentiam seguros para deixar seus filhos, quando o meu era pequeno. Vergonha ver o clube na TV e nos jornais, as manchetes não deixando dúvida do que aconteceu ali.

Racismo. Podem dar qualquer desculpa, mas nenhum dos presentes imitaria o abjeto som de macacos se o cantor no palco fosse, por exemplo, o Fábio Jr. falando contra a redução da maioridade penal ao apresentar um jovem virtuose loiro de 15 anos. Também duvido que chamassem o Fábio Jr. de vagabundo e preguiçoso se ele fizesse alguma manifestação política - proibida por contrato, o que não justifica o racismo. Será que reparariam na roupa dele, se fosse o Fábio Jr.?

Nós somos seres intolerantes.

Quase ao mesmo tempo, revelou-se que uma aposentada e seu filho perseguiam e ofendiam o humorista negro Eddy Jr., vizinho dos dois em um condomínio de São Paulo. A vítima demorou a denunciar os agressores, convivendo com acusações e xingamentos racistas por muitos meses. No fim de semana, um menino preto de 10 anos, goleiro do seu time, sofria ofensas racistas por parte da torcida cada vez que fazia uma defesa. O caso é de Belo Horizonte, mas com certeza também aconteceu em um campinho perto de você. No estádio do seu time, no Brasil e no mundo inteiro. A repórter negra da televisão abriu a matéria assim: o que esse menino passou é o que eu e as pessoas pretas passamos todos os dias.

Nós somos seres cruéis.

Ninguém esqueceu do racismo sofrido pelo ex-árbitro Márcio Chagas em Bento Gonçalves, um dos episódios mais vergonhosos e criminosos da história do futebol. Em uma entrevista, Márcio falou sobre a preocupação do pai dele cada vez que os filhos saíam de casa: "Penso que a única preocupação dos pais de uma criança branca é se ela vai estudar ou não, se vai bem nos estudos ou não. Os pais pretos pensam em como ela vai sobreviver a determinadas situações. Lembro até hoje do meu pai, sempre que eu e meus irmãos saíamos, repetindo como se fosse um mantra: saiam bem arrumados, levem documentos, não corram na rua, se forem abordado pela polícia é ?sim, senhor?, ?não, senhor? e mais nada, porque eu quero que vocês voltem para casa".

Nós somos seres violentos.

A sociedade que não respeita as pessoas pretas no dia a dia também não tolera as pessoas pretas que se destacam. Só ver as ofensas dirigidas a Vinicius Júnior, Maju Coutinho, Titi Gagliasso, Beyoncé, a lista daria para encher páginas e páginas. Sobre outro caso escandaloso do final de semana passado, os policiais federais recebidos a tiros e granadas pelo ex-deputado e mentor de padre falso Roberto Jefferson, o país se perguntou: o que aconteceria se a polícia fosse recebida a tiros de fuzil por moradores pretos da favela? O país respondeu, sem nenhuma dúvida: mortes, mortes e mais mortes.

Se pareceu, ninguém aqui quer Bob Jeff morto, só preso mesmo.

Nós somos seres seletivos em nossa desumanidade, reservando nosso pior para os que julgamos diferentes. Nos chamam seres humanos. Mas isso nem sempre somos. Uma votação de paz e tranquilidade para você no domingo. Que seja um voto com esperança, alegria e humanidade.

CLAUDIA TAJES

29 DE OUTUBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

VACINAS EM SPRAY CONTRA COVID SUPREM LIMITAÇÃO DAS INJETÁVEIS

A China aprovou uma vacina em spray contra a covid-19. Essa versão inalatória foi desenvolvida pela CanSino Biologics, empresa da cidade de Tianjin. É uma das mais de cem preparações orais ou nasais em desenvolvimento no mundo.

Hoje, todas as vacinas disponíveis no mercado são injetáveis. Elas têm sido capazes de evitar as formas graves da doença, as internações hospitalares e os óbitos. No entanto, não oferecem proteção contra as apresentações mais benignas e não impedem a transmissão interpessoal do coronavírus.

Ao ser injetadas no músculo, essas vacinas estimulam a multiplicação dos linfócitos T -que destroem as células infectadas pelo vírus- e dos linfócitos B -encarregados da produção de anticorpos. Esses dois grupos de glóbulos brancos caem na corrente sanguínea e levam a resposta imunológica para os demais tecidos.

O problema é que eles não conseguem atingir concentrações elevadas nas mucosas nasais e nos pulmões, com a rapidez necessária para impedir a multiplicação viral nesses locais. Em outras palavras, enquanto os linfócitos e os anticorpos migram pela corrente sanguínea do local da injeção para a mucosa nasal e as vias respiratórias, o vírus tem tempo de se multiplicar e causar doença, embora menos grave.

Imunizantes administrados por via inalatória também disparam uma resposta imunológica que se dissemina pelo organismo, mas com a vantagem de estimular diretamente as células de defesa localizadas nas mucosas que revestem as fossas nasais, porta de entrada para o Sars-CoV-2. A prontidão da resposta pode ser decisiva para bloquear a entrada do vírus, proteger a pessoa e impedir a transmissão para os que entrarem em contato com ela.

Há vários estudos em andamento com vacinas que utilizam a via mucosa, administradas como primeira dose ou como dose de reforço para aqueles que já receberam as preparações convencionais.

Algumas são idênticas às injetáveis, outras têm composições diferentes. No caso da vacina em spray aprovada na China, a composição é a mesma da vacina injetável produzida pela mesma companhia, com a diferença de que emprega apenas 20% da dose.

Algumas vacinas em desenvolvimento testam se a forma de comprimidos ou gotas nasais têm a mesma eficácia. São estudos em fase mais inicial.

Das cem vacinas administráveis por via mucosa, cerca de 20 chegaram à fase de ensaios clínicos em seres humanos. Entre elas, quatro - duas na China, uma na Índia e outra no Irã - já chegaram aos estudos fase 3, que visam testar a segurança e a eficácia em relação às preparações injetáveis.

Em outubro do ano passado, o Ministério da Saúde do Irã aprovou e distribuiu 5 milhões de doses produzidas no país, pelo Instituto Razi, mas ainda não publicou os resultados dos testes. O mesmo acontece com a versão em spray da Sputnik aprovada na Rússia.

Ensaios clínicos com grande número de participantes ainda levarão de um a dois anos para ser iniciados na Europa e nos Estados Unidos. Em entrevista à Nature, Louise Blair diretora de vacinas e variantes do grupo Aifinity, disse: "Temos muitas vacinas. No momento, os países parecem satisfeitos com a redução significativa do número de hospitalizações. A vacinação por via mucosa não desperta o mesmo senso de urgência que as injetáveis tiveram no início da pandemia".

Os objetivos de qualquer vacina são os de prevenir a infecção de uma pessoa e evitar que ela a transmita para outra. Testes com preparações administradas diretamente nas mucosas nasais, em animais de laboratório, mostram que elas conseguem induzir níveis de imunidade local capaz de protegê-los da infecção pelo coronavírus, com mais eficácia do que as injetáveis.

Além de estimular as células imunologicamente competentes que residem na mucosa nasal, essa geração nova de vacinas inalatórias ou em gotas induz a produção de anticorpos protetores em níveis sanguíneos que nada ficam a dever aos dos imunizantes injetáveis.

Os sprays vacinais poderão revolucionar o campo de vacinologia. As viroses respiratórias infectam centenas de milhões de pessoas pelo mundo. A estratégia de estimular células imunocompetentes e anticorpos nas mucosas, ao botá-las em contato direto com o imunizante, faz todo o sentido. Essa tecnologia poderá nos livrar de gripes, resfriados e outros males que tanto desconforto nos trazem.

DRAUZIO VARELLA

29 DE OUTUBRO DE 2022
BRUNA LOMBARDI

A VASILHA

Outro dia coloquei uma vasilha de ração e uma de água num canto arborizado de uma praça para os bichos da rua. Ficou um acordo tácito entre os moradores de colocar alimento sempre que necessário. Quando voltei para botar mais ração, vi uma senhora bem vestida descer de um carro bom, pegar a vasilha e levar embora. Nem tive tempo de fazer um vídeo ou falar com ela e lá se foi minha vasilha.

Na hora fiquei com raiva porque não dá pra entender uma pessoa, sem a menor necessidade, fazer uma coisa dessas. Aí fui caminhando e lembrei de dois tipos de seres humanos: os sacadores (takers) e os doadores (givers). Existem pessoas que vieram para doar porque acreditam na abundância e os que só pensam em tirar, acreditam na escassez.

E por uma lei do Universo, aquilo que a gente acredita vai nos acompanhar pelo resto da vida. A sua visão pode trazer escassez ou abundância pra sua realidade. Existe gente que espalha orquídeas nas árvores da rua para deleite de quem passa. E gente que passa e arranca essas orquídeas, que vão morrer em breve em algum vaso.

Numa rua aqui perto, alguém colocou na calçada um banco, pedras com uma pequena fonte, plantas ornamentais e? música! Ainda não descobri quem fez isso, mas gostaria de passar lá e agradecer. Essa música suave toca o dia inteiro dando alegria para quem passa e cria um lugar sereno pra se sentar.

Por sorte ninguém levou nada. Fiquei pensando na mulher da vasilha e perguntando: por que ela fez isso? Roubar a vasilha de um animal da rua certamente não faz a menor diferença na vida dela, mas faz muita na dos bichinhos. Só posso entender como o gesto de uma taker que acredita na escassez. Um gesto de maldade.

Um conceito comum diz que ninguém é bom ou ruim, somos todos um pouco de tudo. Com o tempo, passei a discordar disso. Hoje acredito que pensar assim justifica uma série de ações pequenas e grandes que prejudicam alguém ou muita gente.

Fazer o que é certo e o que é errado é uma escolha deliberada. Uma posição que tomamos na vida diante de nós mesmos. Mesmo que ninguém me veja ou saiba que fiz uma ação do mal, eu sei. E isso é suficiente. Isso se chama consciência.

Cada vez que você decide, você escolhe. Roubar uma vasilha de um bicho de rua não é tão grave quanto matar um morador de rua, mas todas as ações residem no mesmo território, depende do quanto você avança nele.

Todos os dias vemos no noticiário coisas hediondas e na maioria provavelmente impunes. Tantas vezes perguntamos como alguém chega a esse extremo de maldade e o quanto se sente mortificado e arrependido pelo que fez. É surpreendente quando não existe arrependimento e a pessoa justifica com sua razão o que fez e o que causou. Cria uma lógica interna que só reforça a atitude que tomou.

A desconexão com os outros e com o sofrimento alheio, a absoluta falta de empatia, a frieza e indiferença são sintomas dos psicopatas. A escolha do mal começa nos pequenos gestos, nos pequenos sentimentos e se alastra. E é com essa escolha que cada um determina não só o seu caráter, mas o seu destino.

BRUNA LOMBARDI

29 DE OUTUBRO DE 2022
J.J. CAMARGO

O DIREITO ADQUIRIDO DE RECLAMAR

Quando jovens, e por consequência imaturos, estávamos sempre em conflito com os inseguros, esses tipos pusilânimes (acho que naquela época, mais toscos do que hoje, os chamávamos de frouxos), esses enrolados em quem sabe, depende, talvez, pode ser que não seja bem assim, melhor aguardar um tempo antes de decidir. Como se não tivessem cérebro, esse apêndice tão exuberante em nossas cabeças feitas para pensar.

E o conflito era, como sempre, desencadeado pela descoberta desses obtusos que não comungavam das nossas crenças, por mais óbvias que elas fossem. Na nossa opinião inteligente e isenta, claro.

Mas os embates eram menos truculentos porque se limitavam a discussões em ambientes restritos, que tornavam os desacatos bem menos frequentes, porque a nossa cara e a do desacatado continuariam ao alcance das mãos respectivas, nos dias e semanas que se seguiriam. A proximidade e o olhar crítico dos circundantes, muitas vezes amigos de ambos, era claramente um antídoto poderoso à grosseria.

Com a chegada da internet, o mundo foi transformado num imenso boteco, onde ninguém conhece ninguém, e então a bravata foi liberada. E os covardes, que escorreriam pela perna se encontrassem frente a frente o seu "inimigo" circunstancial, se transformaram em heróis, louvados por milhares de seguidores desocupados e ansiosos por quem soubesse aplicar um corretivo naquele que ousasse expor uma opinião diferente da tribo.

E assim brotaram os valentões, vitaminados por décadas de vida frustrada, à espera de uma oportunidade para tentar recompor com reles vingança o que sobrou de autoestima estilhaçada pelo convívio diário com a mediocridade.

Mas a construção de uma sociedade melhor não pode se deixar levar por rompantes de imaturidade, que impliquem em retrocesso, expresso na sua forma mais primitiva pela violência.

A violência, como atitude física, se revelou menos frequente, por ser limitada ao mundo real, onde a covardia amordaça o covarde, protegendo-o da humilhação presencial, mas se torna extremamente maligna no mundo virtual, que liberta o agressor das amarras do medo, liberando-o para ser o idiota ilimitado, que atinge seu ápice em épocas de radicalização raivosa.

Cumprido este ciclo, espera-se que o tempo seja um eficaz solvente do ódio e possamos recuperar a consciência de que o ser humano é uma obra eternamente inacabada, em construção. O que somos agora serve apenas como base para aquilo que seremos amanhã. Cada nova experiência, boa ou ruim, acrescenta algo em nós, que pode nos ajudar ou atrapalhar, mas que, de qualquer modo, faz parte do que somos (Puig, 1995).

Nesta reconstrução, não podemos perder tempo com a fantasia tola de que algum governante sozinho possa, efetivamente, mudar as nossas vidas. Seria ingenuidade demais.

Mas isso não nos isenta da responsabilidade de fazer escolhas, quando o que está em jogo é muito maior do que a questão da simpatia pessoal. Podemos repelir um ou os dois candidatos, mas o que vamos decidir é o modelo que eles representam. A liberdade de escolha é uma das maravilhas da verdadeira democracia, único regime que assegura este direito. Cabe-nos fazer desse privilégio um dever, que idealmente deva incluir os 32,2 milhões de omissos que ficaram em casa no primeiro turno, como se o país não fosse deles também.

Então, vença a inércia, saia de casa e ofereça uma chance ao seu país. Isso lhe dará, ao menos, o direito de reclamar no futuro. Que, bom ou mau, haverá.

J.J. CAMARGO

29 DE OUTUBRO DE 2022
ARTIGO

CHURCHILL, GOEBBELS E O TSE

De clichês, pouco se espera, mas algo se extrai. Se não, vejamos: "A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras", disse Winston Churchill, que, sem maltratá-la, liderou a resistência da Inglaterra ao totalitarismo de Hitler. "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta", ensinou Ruy Barbosa, que, dentre tantos epítetos, tem o de patrono dos Tribunais de Contas do Brasil. "Uma mentira repetida mil vezes se torna verdade", afirmava Joseph Goebbels, o ministro da propaganda que viabilizou o horror nazista.

Em 2017, fake news foi eleita a "palavra do ano". Desde então, seu uso indiscriminado adquiriu uma escala inimaginada, a distorcer a própria democracia, que se vê ameaçada em sua efetividade. Soterrados por fake news, repetidas à exaustão e endossadas pelos coabitantes das "bolhas" virtuais que as redes constroem, os eleitores são privados de informações fidedignas que lhes forneçam suporte para escolhas conscientes.

Nesse contexto de risco à democracia - que não admite alternativas, como aprendemos com Churchill -, é que se insere recente resolução do TSE, cuja constitucionalidade foi atestada pelo STF esta semana. Para novos males, remédios inéditos. O potencial destrutivo das mentiras propagadas "goebbelianamente" exige respostas imediatas, para que a Justiça não opere com o atraso alertado por Ruy, porque o voto não tem volta. Sem entrar no mérito quanto a erros ou acertos em casos concretos - que devem ser resolvidos pelo devido processo legal -, o poder de polícia do Tribunal da Democracia parece se aplicar à situação.

Que a ação das instituições para que o voto seja realmente livre e a consciência cívica dos cidadãos nas urnas propiciem uma eleição em absoluta normalidade, seguida da devida apuração, segura e confiável como sempre. E que o resultado do pleito, espelhando a vontade da maioria do eleitorado, seja respeitado, em prol da paz social que ansiamos e da manutenção de um Estado de direito democrático, que tanto custou a tantos. 


29 DE OUTUBRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

OPINIÃO DA RBS

O veredito das urnas

Neste domingo à noite, o país saberá se o quadriênio à frente será de continuidade na Presidência da República ou se as urnas apontarão para a alternância no poder. A mesma encruzilhada estará diante dos gaúchos na disputa pelo Palácio Piratini. Seja qual for o desfecho das duas eleições, há um fato maior a enaltecer: as escolhas serão feitas por meio do voto livre e secreto de cada cidadão ou cidadã apto a manifestar a preferência sobre quem deseja para governar o Brasil e o Rio Grande do Sul entre 2023 e 2026.

Em uma democracia, o ato de votar é o mais importante exercício da cidadania. Na ação de digitar e confirmar o número do candidato está compreendido o endosso a uma linha de pensamento ou a um projeto de país ou Estado - embora muitas vezes a rejeição a um nome também mova a decisão. Como é uma escolha na prática irrevogável ao menos até o próximo pleito, idealmente o voto deve ser resultado de profunda reflexão. Afinal, são os próximos quatro anos que estão em jogo, nas definições se o Brasil será presidido por Jair Bolsonaro (PL) ou Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e se Eduardo Leite (PSDB) ou Onyx Lorenzoni (PL) conduzirá o Estado no período do mandato a seguir.

É inconteste que a eleição para o Palácio do Planalto magnetiza mais o eleitor. Nos dois polos e mesmo entre cientistas políticos, a votação deste 30 de outubro é considerada uma das mais importantes da história do Brasil, pelas diferenças entre o que as candidaturas simbolizam e pelo fato de serem os dois líderes mais populares das últimas décadas do país. 

Consolidados há um bom tempo na posição de oponentes que fatalmente protagonizariam o enfrentamento eleitoral em 2022, Bolsonaro e Lula e seus apoiadores aguerridos travaram uma disputa voto a voto que, muitas vezes, escorregou para episódios lamentáveis de violência. Pelo bem do país, o que se espera é uma conduta responsável de ambos a partir do veredito das urnas, seja qual for a posição de cada um - vencedor ou derrotado. A eleição tem de terminar neste domingo, sem terceiro turno.

O eleitor tomará uma decisão soberana, que deve ser respeitada. Em nome da pacificação do Brasil, aguarda-se que quem não for o escolhido tenha uma atitude civilizada, de espírito democrático, e reconheça o resultado. O mesmo comportamento se espera de seus seguidores, admitindo a legítima vontade da maioria.

Do vencedor, o país aguarda uma postura magnânima, com acenos ao apaziguamento e à promoção da concórdia na base da sociedade, pela força do exemplo. O presidente eleito ou reeleito deve deixar claro, no primeiro pronunciamento à nação, que vai governar para todos, o que inclui a parcela relevante da sociedade que sufragou o adversário. Além de enfrentar os mais urgentes temas do país em áreas como saúde, educação e economia, é chegada a hora de pregar o serenar de ânimos político, institucional e nas relações pessoais.

Votar é um direito e um dever de cada cidadão apto, um gesto movido pela aspiração cívica de colaborar com a construção coletiva de um futuro venturoso para o Brasil e para os brasileiros. A conclusão do pleito, materializada nos números finais anunciados pela Justiça Eleitoral, é a manifestação soberana do eleitor. É preciso crer que as candidaturas e seus partidários, em submissão à Constituição e em linha com as regras do contrato social, se mostrarão cientes de suas responsabilidades para com a estabilidade do país. Seguidas essas premissas, o Brasil dá mais um passo na direção do fortalecimento da democracia.

sábado, 22 de outubro de 2022


22 DE OUTUBRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Bastidores de uma fake news

Vou contar a história, alguns já conhecem. Em 1º de novembro de 2000, véspera de Finados, publiquei uma coluna chamada A Morte Devagar, toda ela com parágrafos iniciando da mesma forma: "Morre lentamente quem não troca de ideia... Morre lentamente quem vira escravo do hábito... Morre lentamente quem evita uma paixão....".

O recado era simples: nem sempre a morte nos colhe em definitivo, ela pode subtrair nossa vida em suaves prestações, à medida que colecionamos desistências. O texto foi muito compartilhado por e-mail, a principal rede social da época. Não demorou, passou a circular com novo título - "Morre lentamente" - e novo autor: Pablo Neruda.

Um texto inédito do maior poeta chileno, Nobel de Literatura? Ganhou o mundo, claro, enquanto algumas pessoas, intrigadas, me mandavam mensagens: mas não foi você que escreveu? Ainda bem que a Fundação Neruda também tirava as dúvidas de quem a consultava, mas como esclarecer a grande massa de leitores que ignorava a estatura da obra de Neruda e que, inocentemente, acreditou na mentira sem averiguar?

Tempos depois, um repórter me ligou. Queria uma declaração sobre a reviravolta que havia acontecido na Itália. Ué, o que aconteceu na Itália? Ele me contou: Clemente Mastella, ex-ministro italiano da Justiça, havia lido o meu texto no Parlamento do país, atribuindo-o a Neruda. Seu discurso ganhou notoriedade na imprensa, pois comunicava sua renúncia ao cargo, precipitando o fim do apoio do seu partido ao governo de Romano Prodi, o que provocou a também renúncia do então primeiro-ministro. Olha a confusão.

Os jornalistas italianos logo descobriram o equívoco na atribuição da autoria e tive meus 15 minutos de fama por lá. A partir desse episódio, "Morre Lentamente" ganhou ainda mais repercussão, agora com minha assinatura recuperada. Passou a ser utilizado em aberturas de palestras nos Estados Unidos, virou letra de música na França, inspirou uma exposição de fotos na Índia, ganhou traduções mundo afora. 

Nunca ganhei um centavo com isso, é como se fosse de domínio público. Tudo bem, nem tudo precisa virar dinheiro. Me dei por feliz com a correção feita, com o alcance da leitura e guardei as lições. Mentiras se espalham mais rápido que a verdade. A maioria das pessoas acredita em tudo o que escuta e lê, sem checar. Um texto sem pretensões pode ganhar uma projeção inesperada, basta que algum detalhe seja manuseado.

Agora imagine o tamanho do estrago provocado pela avalanche de informações intencionalmente falsas que têm sido disparadas, de hora em hora, no WhatsApp. Por preguiça em conferir se é verdade antes de espalhar, podemos não só passar atestado de ignorantes, mas ajudar a matar o país lentamente.

MARTHA MEDEIROS

22 DE OUTUBRO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Debate

Começa com um dos debatedores atirado do sofá, vendo o Instagram no celular. A outra debatedora entra na sala. - Jorge, amanhã eu quero o teu guarda-roupa arrumado, com tudo dobradinho nas prateleiras e nas gavetas.

- Amanhã eu tenho outras prioridades. Vou encaixar o quarto no meu plano de ação para os próximos dias.

- Vou te dar plano de ação. O teu quarto está virado em uma pocilga. A quantidade de meias sem par já passou de todos os limites. Juntei umas 12, todas duras, furadas, fedorentas. E o cheiro de cigarro, então? Tu tem coragem de fumar dentro do quarto sabendo que o teu irmão pequeno tem asma? Eu nem sabia que tu fumava!

- Mãe, em primeiro lugar, eu exijo respeito ao meu espaço. Tu deter o poder econômico nessa casa não faz de ti minha dona.

- Aqui eu detenho os meios de produção, também. Porque tu, imprestável, não é capaz de lavar um prato. Nunca arrumou nem a tua cama, quanto mais juntar esse monte de copo que deixa espalhado por aí.

- Eu estudo, não é esse o combinado? Cada qual com o seu papel, um sem interferir no lugar do outro, todos dando o seu melhor por uma sociedade em equilíbrio.

- Equilíbrio, menos no meu orçamento, com o tanto de aula particular que eu pago para tu passar a cada trimestre. Tu pegou oito recuperações, Jorge. OITO. Até de Educação Física, a única matéria que tu gostava!

- Agora eu estou mais ligado nas coisas da filosofia. Meu quarto é o reflexo do meu pensamento, é a tradução da minha preocupação com as minorias.

- Só pode estar de brincadeira com a minha cara. Minoria, naquela esculhambação, só as pulgas e as baratas. Isso se já não forem maioria.

- Eu não vou entrar em uma discussão dialética contigo.

- Jorge, custa tu arrumar teu quarto?

- Acho que nós temos as nossas diferenças mas, no fundo, queremos a mesma coisa: condições de vida melhores para todos. - Para a tua vida ficar melhor, só se tu reencarnar como filho do Luciano Huck.

- Nós temos que nos unir contra o mal maior, que é o Seu Olavo, o vizinho do bloco B, que chutou o Fidel porque achou que a coleira vermelha dele era uma indireta comunista. Eu estou fazendo um abaixo-assinado para levar na próxima reunião de condomínio.

- O que o Seu Olavo tem a ver com o teu quarto, Jorge? Tu está fugindo do assunto. Eu quero saber a que horas tu vai arrumar aquela espelunca.

- Os guris estão me chamando para jogar Call of Duty. Depois a gente conversa.

- Vai fugir do debate? Não tem vergonha? Não honra as calças que tu veste?

- Começou a baixar o nível. Não vou aceitar provocações baratas. Fui!

- Não vai nem fazer as considerações finais?

- Preciso da minha camiseta do colégio. Se eu for sem ela amanhã, a diretora disse que eu não entro. Mais uma falta e fico de recuperação em Educação Artística também. Me ajuda a encontrar?

- Valei-me, meu Paulo Freire. - A gente funciona melhor quando une as forças, né? Foi tu quem me ensinou isso.

- Amanhã a gente debate esse ponto. Agora tira esse tênis podre do meu sofá e baixa o volume da TV.

Encerra com Seu Olavo, no bloco B, ouvindo os tiros do videogame e chutando a parede.

CLAUDIA TAJES

22 DE OUTUBRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

A língua é viva e pertence aos usuários. Regras consagradas mudam. A grande questão é que existe um equilíbrio desejável entre a tradição e o uso do português, por exemplo. Sim, a língua não pertence apenas aos especialistas. É justo supor que ela também não é só minha.

Shakespeare inventou muitas palavras. Algum tradicionalista que invoque os grandes autores do passado, em relação ao inglês, deveria imaginar que clássicos eram, também, transgressores. Guimarães Rosa era um gênio da composição de termos não dicionarizados ou de usos linguísticos pouco usuais. Difícil saber se o autor do Grande Sertão: Veredas inventava ou apenas registrava oralidades e falas populares mineiras. Quando alguém me diz que temos de imitar os clássicos, sempre imagino que a pessoa saiba pouco da capacidade inventiva e rebelde de escritores de primeira linha.

Devo e posso adaptar os usos da língua ao momento atual. Delivery, abaixo do Equador, não existia há poucos anos. Hoje, é termo necessário. Profetizo vida longa a air bag, milk shake, trailer e shopping center. Num dia, podem vestir trajes adequados à última flor do Lácio. Assim ocorreu com os termos basquete, iate, uísque e xampu (grafo sem aspas ou itálico, porque eram anglicismos que foram adaptados). Eram convidados com passaporte estrangeiro; hoje, pertencem ao time verde e amarelo.

Os termos de origem francesa ou inglesa interagem sem um debate forte. A língua tropeça quando estamos falando dos novos usos de gênero. Usar o masculino, implicando toda a espécie humana, é norma vigente há séculos. Reconheçamos: a norma nasceu de um mundo patriarcal e misógino. Evita-se o feminino não apenas como prática gramatical, todavia pela exclusão real das mulheres. Gramática tem gênero, ideologia e preconceito. É estranho querer manter uma norma da época de Dom Dinis (1261-1325) lendo um texto no seu smartphone contemporâneo. A língua não é de pedra, nem é de vapor. Ela não me pertence; ela não me ignora.

Gosto de usar "todas e todos" para abandonar o invisível do feminino. Não tenho raiva, mas ainda não consigo empregar regularmente todes. Acho exótico grafar txdxs, deixando o "x" como incógnita a ser preenchida pela identidade de cada pessoa.

Vamos refletir. Uma pessoa tem raiva porque vê todes. Alega que isso não existe. Se eu escrevi e alguns usam, existe. Porém, a mesma pessoa não apresenta raiva contra as outras mudanças. Vejamos. "Vossa Mercê" era usado apenas para os reis que concediam benefícios, mercês. O "vós" também era exclusivo de altos aristocratas. No fim da Idade Média, pelo uso, grandes comerciantes passaram a usar Vossa Mercê entre si. Na Idade Moderna, Vossa Mercê reduziu-se para "você". Eclodem formas populares no Brasil como "vosmecê". Claro: o uso do você encontrou vozes contrárias. Avancemos para o mundo da digitação. A forma sem vogais é quase consagrada: "vc".

Que "você" seja uma palavra consagrada sem disputas, mas o uso de "todas e todos" desperte tantos debates é apenas sinal de que os irritados nunca estudaram linguística ou gramática histórica. Volto a dizer: eu estranho todes.

Em 2050, na prova de Redação no Enem, pode existir uma questão sobre os tempos primitivos quando um grupo impunha o masculino, subentendendo o feminino. Lembre-se disto: pelas normas atuais, Camões não seria aprovado em prova de redação.

Leio bastante sobre os debates gênero e língua. Há mais paixão do que conhecimento dos processos transformadores do nosso idioma.

Tenho de incorporar shopping center porque, até 1966, não existia o conceito contido nas palavras em inglês. Um novo modelo de compras implicou novo termo. Há 200 anos, os homens comandavam tudo; as mulheres não tinham acesso ao voto ou ao estudo superior. O masculino dominava sobre o feminino, e o uso gramatical consagrava isso. Não é uma norma divina ou feita de aço: é uma convenção que correspondeu a um momento. 

O momento mudou, outros gêneros foram reconhecidos como possíveis (claro, já existiam). Você aceita todos os termos estrangeiros no seu computador, usa palavras variadas para novas ferramentas e, quando se trata de gênero, torna-se um purista estudioso da gramática, invocando a tradição que você ignora em todos os outros campos.

Como eu respondi a uma senhora em uma palestra, que me exclamou: "Machado de Assis usava apenas todos!". Eu disse: "Sim, mas só admitiu homens na sua nova Academia Brasileira de Letras. Excluiu pessoas como a senhora". Continuei: "Machado não desejou mulheres no seu grêmio linguístico. A senhora reconhece valor no uso da palavra, mas quer ter a voz que teria sido negada na época? Uma coisa implicava a outra".

Reconheço que tenho certos conservadorismos em português. Reconheço ainda mais que minha posição pessoal não faz a língua mudar. Se você usa todes, tudo bem. Se prefere fazer uma "feminagem" para evitar o termo homem em "homenagem", sem problema. Cada um de nós tem uma velocidade específica diante do que é novo. Apenas devemos prestar atenção que as mais diversas mudanças na língua são aceitas com tranquilidade por todas e todos. De repente, quando se trata de gênero, surge o ódio.

Tenho esperança de que você perceba: seu problema pessoal não está na gramática normativa, mas em outro lugar.

LEANDRO KARNAL

22 DE OUTUBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

O CIRURGIÃO MAIS VELHO DO MUNDO

Durante a Primeira Guerra Mundial, os soldados diziam que amputar uma perna era morrer duas vezes: a primeira durante a operação, a segunda, de febre. De fato, infecções bacterianas do coto do membro amputado eram tão frequentes, que a cirurgia só era indicada em casos de gangrena, sangramento incontrolável e outras situações extremas.

A descoberta da caverna Liang Tebo, em Bornéu, na Indonésia, acaba de revelar que esse tipo de cirurgia já era realizado há muito mais tempo do que imaginávamos. Liang Tebo é uma caverna com 160 metros cúbicos, formada por três câmaras com pinturas pré-históricas nas paredes da câmara superior, que datam de 31 mil anos atrás, no Pleistoceno tardio.

Em 2020, escavações no assoalho dessa caverna encontraram um cemitério a 1,5 metro de profundidade. Entre as ossadas, chamou a atenção a de um adulto deitado de costas, com as pernas flexionadas, na qual faltava o pé esquerdo. O esqueleto foi batizado de TB1.

Acompanhada com scanning a laser, a remoção cuidadosa dos ossos mostrou que 75% deles estavam preservados, bem como todos os dentes. Os estudos das cartilagens de crescimento nas extremidades ósseas (epífises), da sínfise púbica e da formação dos dentes permitiram concluir que se tratava de um espécimen de Homo sapiens, com 19 a 20 anos de idade. A análise do formato do crânio e da pélvis não permitiram identificar o gênero, embora essas características estivessem mais próximas do sexo masculino.

A espectrografia de massa combinada com a ressonância magnética por spin, estimou a idade da ossatura como sendo de uma pessoa que teria vivido entre 31.519 e 30.704 anos (com 95% de probabilidade).

É o túmulo mais antigo de um homem moderno, numa ilha do Sudeste Asiático. Mas o que mais chamou a atenção dos paleontólogos foram as evidências de que a amputação do pé seccionou os ossos da perna - tíbia e fíbula - com incidência oblíqua, numa linha regular, como a das incisões cirúrgicas. Por acidente, uma amputação com essas características só poderia ser provocada por lâminas metálicas de uma máquina moderna. Esmagamento por acidente ou mordida de animal deixariam fragmentos ósseos irregulares, jamais um corte oblíquo linear.

Características como o crescimento distal do fêmur do lado amputado, para compensar a redução do comprimento da tíbia e da fíbula, a consolidação parcial entre esses dois ossos da perna (consistente com as fases finais do trauma da amputação) e o comprimento deles comparado aos da perna direita, mostraram que a amputação ocorreu na infância.

O processo de remodelação óssea identificado na fíbula permitiu concluir que a cirurgia teria sido realizada de seis a nove anos antes da morte de TB1.

A realização de uma cirurgia dessas proporções sugere que, no Pleistoceno tardio, milhares de anos antes do advento da agricultura, numa população de caçadores-coletores que habitavam cavernas, cirurgiões já tinham adquirido conhecimentos anatômicos sobre a disposição topográfica dos músculos, ossos, artérias, veias e nervos dos membros inferiores, que lhes permitia executar uma intervenção que só se tornaria rotina 30 mil anos mais tarde.

Certamente tal expertise não surgiu da noite para o dia. Deve ter sido fruto de um longo aprendizado, por acerto e erro, que antecedeu a operação de TB1.

A ausência de sinais de infecção no coto dos ossos amputados, mostra que os médicos tinham as noções de assepsia que faltavam aos cirurgiões da Primeira Guerra Mundial. Que anestésicos locais, banhos, desinfetantes e antissépticos de origem vegetal foram empregados? Sem cuidados pós-operatórios adequados, TB1 não teria sobrevivido. Numa região montanhosa como aquela da caverna, ele deve ter recebido cuidados fisioterápicos e ajuda da comunidade para se movimentar.

As informações sobre os sistemas de saúde e os procedimentos médicos e cirúrgicos nas comunidades de caçadores-coletores são rudimentares. Estão limitadas à descrição de poções preparadas com plantas medicinais, suturas de lacerações, trepanações cranianas, mutilações genitais como a circuncisão e a remoção do clitóris. Supúnhamos que cirurgias mais complexas não estavam ao alcance dessas sociedades.

A descoberta de que amputações cirúrgicas já eram realizadas nas cavernas é desconcertante.

DRAUZIO VARELLA

22 DE OUTUBRO DE 2022
MONJA COEN

DIREITA, ESQUERDA, CENTRO

Somos um só corpo e uma só vida. E há diversos olhares e pareceres sobre a realidade. Podemos fazer escolhas.

Buda era conhecido como um ser que despertou e que trilhava o Caminho do Meio. Esse Caminho do Meio de Buda não significa o centrão político no Brasil atual. É o Caminho da Sabedoria, do Despertar. Que ora faz uma curva à esquerda e ora faz outra curva para a direita.

Como andar reto por ruas curvas? Esse frase é de um caso antigo que mestras e mestres sugerem a seus discípulos e discípulas para penetrar durante as práticas de Zazen, práticas de sentar-se em Zen, práticas meditativas.

Estar em Zazen não é apenas ficar parado apreciando a natureza, o vento, a brisa e os pensamentos, sentimentos. É ir além de si. É transcender a si e aos outros. É tornar-se montanhas e águas, sol, vento, terra, insetos, paredes, tijolos, cercas, grama, árvores, pássaros, peixes, répteis, aves. Ser o todo manifesto sem perder a sua individualidade - que se mistura a tudo que é, foi e será.

Estamos vivendo momentos preciosos de discussões, debates, afirmações categóricas. Esquecemos a capacidade do diálogo, de ouvir, escutar para entender que há diversas maneiras de administrar um país e uma casa, empresa, família, estado, cidade. Quando formos capazes de nos reconhecer e de nos ouvirmos claramente, poderemos tomar decisões inteligentes, sábias e compassivas.

Será que todos os seres estão incluídos nas propostas dos grupos aos quais nos identificamos? Será que podemos ser a transformação que queremos no mundo? Se achamos feio debates com insultos, grosserias, baba grossa saindo da boca de líderes nacionais - preste atenção: você também se manifesta dessa forma? Detesta quem compete com você ou respeita seus adversários?

Imaginemos um campo de futebol onde os jogadores, técnicos e árbitros se insultassem incessantemente. Não haveria jogo, apenas grosseria. Quem vestiu a camisa de um time não quer trocar para de outro time - é verdade.

Mas os jogadores profissionais, como alguns políticos nacionais, trocam de camisa, trocam de time - pelo salário, pela experiência, por seu próprio ganho e aprendizado. Jogam pelo prazer de jogar. Não estão preocupados com as apostas que fizeram para este ou aquele time. São profissionais capazes de fazer gol contra o time que os criou. Sem lágrimas e saudades dos antigos companheiros.

Para os torcedores, é quase impossível trocar a camisa do Grêmio pela do Inter. Impensável. Vestiu a camisa - algumas vezes antes de nascer mesmo - e morre com ela. "Coloquem a bandeira do time em cima do meu caixão", tenho ouvido pessoas fazer esse pedido.

O segundo turno das eleições está mais próximo. As brigas, mais acirradas. Sempre alguém querendo convencer alguém de sua escolha. É o processo democrático... Mas não precisa ser um processo de insultos e cuspes. Pode ser de diálogo. Infelizmente, os que dialogam não são ouvidos. Apenas os que berram - seja lá o que for que estejam pensando, falando e/ou fazendo.

Há medo e apreensão. Há divertimento e expectativa. Lembrem-se de refletir para escolher e votar para o bem de todos os seres. Caminho do meio é se tornar o caminho. Mãos em prece

MONJA COEN

22 DE OUTUBRO DE 2022
J.J. CAMARGO

A SALA DE AULA, UM LUGAR SAGRADO

O que há lá? Esta é uma pergunta dispensável, porque quem já passou por ali sabe bem, mesmo que não consiga explicar. E com quem não passou, não perca tempo, ele não vai entender.

Cada professor, do seu jeito, constrói sua história, em que afeto e gratidão se misturam com uma intensidade própria e única.

Convidado para ministrar uma palestra sobre morte encefálica e doação de órgãos, em um colégio particular, encontrei a diretora da escola, uma velhinha encurvada, sorriso quase triste, como fachada de uma vida serena e amorosa, dedicada a uma juventude que ela seguiu amando, mesmo depois de sacudida por novos conceitos conflitantes com seus padrões pedagógicos.

Nunca se chateou com isso. Pelo contrário, em cada relação tumultuada, assumia com naturalidade que ela, com a experiência de décadas, tinha muito mais condições de restabelecer o equilíbrio afetivo do que aquele pobre adolescente que nem tinha percebido que não é por acaso que arrogância rima com ignorância.

E então, com talento e delicadeza de uma veterana escultora de almas brutas, ela se debruçava em cuidados e mimos para descobrir a espessura da camada de afetos negligenciados, certamente responsável pela desconfiança reativa a qualquer expressão de carinho.

"E foi assim que passei a vida colecionando diamantes, alguns tão maravilhosos, que por causa deles ainda não consegui abandonar a escola, mesmo depois de tantos anos, que garantiriam com sobras a aposentadoria", ela me disse.

Segredou-me que nos últimos anos vinha sofrendo pressão da sua família, que não entendia porque ela tinha que se submeter aos caprichos de uns rebeldes, de uns mal educados. "Uns capetas mal criados", assegurara uma filha. "Não consigo convencer meus filhos que, para mim, eles podem ser uns pestinhas, sim, mas são diabinhos muito inteligentes e são maravilhosos quando consigo convencê-los de que eu preciso muito do carinho deles. O problema é que, às vezes, eu não consigo, e então fico tão mal, que nem quero ir para casa!"

Foi inevitável compartilhar com ela o fascínio de ser professor, que muitos, mesmo com anos de magistério, nunca se expuseram à descoberta, e sem saber o que perderam, festejam a aposentadoria com a alegria de quem abandona o cárcere depois de longo tempo de reclusão.

Em retribuição, repeti a ela a minha história preferida, que contei durante uma aula há uns 10 anos: a de uma garotinha transplantada, que ligava para o consultório, no meio da tarde, só pra dizer: "Tio, tô com saudade!". Naquele dia, quando a aula terminou, uma aluna me disse, muito emocionada: "Professor, eu lhe prometo que vou ser uma médica tão boa, mas tão boa, que um dia meus pacientes haverão de ligar só pra dizer que estão com saudades minhas!".

Quando nos despedimos, com reminiscências repartidas, a minha anfitriã tinha no olhar a paz dos confessionários. E eu, a alegria de ter encontrado alguém capaz de compartilhar, na plenitude, a magia desse encanto.

J.J. CAMARGO

22 DE OUTUBRO DE 2022
CARPINEJAR

O outro lado do balcão

Completo meio século neste dia 23. Quem é de fora vai se preocupar com a minha aparência: dirá que nem pareço ter essa idade. Quem é íntimo vai se interessar pela minha essência: dirá que justifico a minha idade.

O que muda é que, aos 50, passamos para o outro lado do balcão. Não somos mais servidos, começamos a nos servir, a nos atender, distanciando-nos de qualquer dependência. Não vamos mais esperar que alguém faça o que desejamos. Dispensamos a telepatia, a idealização, a necessidade das surpresas. Antes cobrávamos amor, a partir de agora nos resolvemos com o autocuidado.

Você transforma a sua existência em seu próprio negócio. Não vai trabalhar para mais ninguém. Pode até falir, mas é senhor dos seus horários. Aprendeu a dizer não a compromissos suspeitos e constrangedores. Para sair de casa, tem que valer realmente a pena.

Não pede aprovação para viajar, para sumir, para enlouquecer, para errar, para amar.

Não se assusta com as suas tristezas, até acha agradável um dia de chuva para organizar as emoções. Não é insaciável com as alegrias e com o sol, conhece o momento de se retirar antes da insolação e deixar a saudade chegar.

Nada é tão grave que não possa ser consertado, nada é tão lindo que não possa ser esquecido. Você percebe que não é tudo o que imaginava a seu respeito, mas também não é tão pouco quanto o que os outros dão por você.

Não tem interesse em promover uma grande festa de aniversário, com o único objetivo de agradar aos amigos. Na verdade, você observa, de modo retroativo, que jamais conseguia curtir as suas comemorações, tão focado em receber as visitas e ser simpático, só limpando a bagunça ou abastecendo copos e pratos.

Hoje privilegia pequenas reuniões com convidados escolhidos a dedo, que não se incomodarão quando quiser sair de cena.

É a serenidade vindo. Você já não se considera invencível, imortal. Admite a ideia de poder morrer a qualquer momento, mas tampouco perdeu a esperança ou está disposto a desistir da sua vida. É uma coragem que vem da aceitação dos limites. É uma limpidez da vontade que não permite mais adiamentos.

Seus filhos estão crescidos, e não é possível mudar radicalmente o jeito como enxergam você. Não cometerá extravagâncias para conquistá-los. Ou foi bom pai pelo conjunto da obra até aqui, ou será um nome na certidão de nascimento deles. Não existem milagres ou repescagens, é o período de colher o que foi plantado.

Se alguém próximo se afasta, você respeita, não força afinidades. Se um desconhecido se aproxima, você acolhe, aproveita melhor os acasos.

Não se aflige à procura de consenso, não mente para atalhar benefícios, não se martiriza buscando uma unanimidade. Não há culpados pelas suas mágoas, restando apenas a responsabilidade de ter vivido. Saiu do rebanho por uma trilha pessoal.

Tolera as divergências porque seu temperamento já se encontra formado. Sabe que seu gênio não é fácil. Não tenta se iludir fingindo que é de trato simples. Melhor a solidão sincera do que a bajulação. Melhor enfrentar a oposição do que não ter opinião nenhuma.

Suas dores são roupas que ficam limpas nas suas gavetas, não são postas em trânsito dentro de malas. Não leva e traz os seus sofrimentos, muito menos os exibe para terceiros.

Aproxima-se emocionalmente de seus velhos, que estão há mais tempo no outro lado do balcão. Finalmente para de julgar seus genitores. Mostra-se livre para a gratidão. Não se compara com eles nem se vangloria por tomar decisões totalmente diferentes das que adotaram em seus caminhos. Entende as suas escolhas, provações, renúncias e sonhos. Ri do que não tem solução e se esforça para escutar mais do que falar.

Cinquenta anos é quando os ouvidos nascem.

CARPINEJAR

22 DE OUTUBRO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

PARA ONDE IR?

A poucos dias do segundo turno eleitoral, o tema fundamental não aparece nas propostas dos candidatos a presidente ou governador. A preservação do meio ambiente é relegada a plano inferior ou não é mencionada. Não aparece sequer naquelas promessas mirabolantes da politicagem, como se bastasse dizê-las para que se concretizem como mágicas.

Nem como promessa vaga, porém, o tema fundamental do século desponta nos candidatos do segundo turno. No Rio Grande do Sul, os aspirantes a governador nem sequer fazem alusão à transformação das águas do Guaíba em pestilentas cloacas devido à eventual abertura de uma mina de carvão a céu aberto em terras alagadiças às margens do Rio Jacuí, próximas a Porto Alegre. O processo está arquivado, mas poderá ser reaberto no futuro para dar lugar à poluidora mina.

Querem que o Guaíba se transforme em fonte de imundície ainda maior do que o Arroio Dilúvio na Capital, como este jornal mostrou dias atrás?

Leite e Onyx ignoram o assunto, como se água não fosse essencial à vida em si. O meio ambiente, como um todo, não aparece sequer como promessa vaga nos debates dos candidatos ao Piratini. Pensarão eles que o tema fundamental do século não tem qualquer ligação com as atribuições de governar?

Na campanha presidencial, a situação se repete. Nos debates pela TV, Lula da Silva tocou no tema apenas de raspão, enquanto Bolsonaro o ignorou. Tal qual no debate dos aspirantes a governador, o dos presidenciáveis foi uma troca de insultos e de acusações de "mentiroso".

Na única vez em que o debate poderia apontar planos de ensino, Bolsonaro cometeu um absurdo só comparável a ter dito que a vacina da covid provocava aids. Citou o Graphogame (um passatempo eletrônico) como forma de resolver o analfabetismo gerado pela pandemia, e afirmou que o aplicativo finlandês alfabetiza pelo celular: "No tempo do Lula, a garotada se alfabetizava em três anos, e agora levará seis meses", disse ele.

O próprio Ministério da Educação lembra, porém, que o aplicativo é só "um apoio" que não alfabetiza por si próprio.

A atual disputa política virou uma soma de invencionices absurdas, em que até Satanás apareceu. Jamais fora assim. Votar corre o risco de não ser mais um ato de civismo e de civilidade para virar só imposição da lei.

FLÁVIO TAVARES

22 DE OUTUBRO DE 2022
ARTIGO

O EMPREENDEDORISMO GANHA OURO EM PORTO ALEGRE

Porto Alegre respira empreendedorismo. Desde que assumimos, colocamos o empreendedor como protagonista. Acreditamos na mudança cultural que sedimenta a visão de que só há transformação social se houver desenvolvimento econômico. Por isso, quem gera empregos e renda precisa de menos burocracia, mais agilidade e serviços que melhorem o ambiente de negócios.

Este ambiente é formado pela tecnologia e pela inovação em todos os processos, mais facilidade para abrir e fechar empresas, digitalização de serviços, capacitação de pequenos e microempreendedores, parcerias público-privadas, concessões de espaços públicos pela boa gestão, além do diálogo com o setor produtivo. Trabalhamos para atender a todos os requisitos para que o empreendedor se preocupe apenas com seu negócio, em vez de perder tempo e dinheiro com sistemas burocráticos e engessados.

Aprimoramos os serviços da Sala do Empreendedor, local onde reunimos os serviços relacionados à atividade econômica da cidade. Reduzimos o tempo de abertura de empresas para poucas horas. Incluímos, no mesmo ambiente, atendimento da Vigilância Sanitária, Secretaria da Fazenda, orientação jurídica da Procuradoria-Geral do Município, instrução do Corpo de Bombeiros e oferta de microcrédito em parceria com instituições bancárias.

Em âmbito educacional, qualificamos empreendedores por meio do Cidade Empreendedora, além da própria equipe que atende ao público. E cada esforço deste trabalho foi recompensado. Recebemos o Selo Ouro, reconhecimento de que estamos fazendo cada vez mais pela nossa cidade. A certificação é resultado da parceria entre o Sebrae e a Fundação Nacional da Qualidade (FNQ) para reconhecer os esforços de melhoria nos serviços e no atendimento aos empreendedores.

Entendemos que o empreendedorismo é a mola propulsora da economia, do avanço social e de oportunidades. O selo é uma certeza de que estamos no caminho certo, com muitos desafios ainda para conquistar. O papel da prefeitura é a interlocução com quem produz e a oferta de ferramentas adequadas para que a iniciativa privada prospere, melhorando a vida da cidade e das pessoas.