quarta-feira, 29 de outubro de 2014


29 de outubro de 2014 | N° 17967
MARTHA MEDEIROS

A tal correria dos dias

O que é luxo para você? Já houve quem respondesse: uma bolsa Prada, um vinho Romanée-Conti, a suíte do Hotel Hermitage em Montecarlo. Aí ostentar passou a ser brega, e as respostas mudaram: levar meus filhos à escola, almoçar em casa todos os dias, encontrar os amigos uma vez por semana. Tocante, mas familiar demais. Até que se optou por algo mais contemporâneo: luxo é ter tempo. É o que 10 entre 10 entrevistados respondem hoje.

Quem ousaria discordar? Luxo, de fato, é ter tempo. Ainda mais nestes dias turbulentos, em que se corre de um lado para o outro vivendo contra o relógio. Estão todos megaocupados, não estão?

É o que se diz. Você tem que renovar a carteira de habilitação, tem que cortar o cabelo, tem que visitar um cliente, tem que levar a bicicleta para o conserto, ir à farmácia, ao dentista, à aula de pilates, à terapia, esperar o eletricista, levar o cão para passear, mandar um sedex e ainda utilizar oito das 24 horas do dia trabalhando. Aliás, seu dia ainda tem 24 horas? Parabéns. Eu devo ter bobeado, pois afanaram umas cinco horas do meu.

Resultado: você não tem mais tempo para nada. E isso é uma constatação tão irrefutável, tão crível, tão corriqueira, que os outros não questionam, aliviando você da culpa que sente por estar sempre alegando falta de tempo quando, muitas vezes, a falta é de interesse.

Dar uma carona para sua tia tagarela até a rodoviária numa sexta-feira chuvosa às sete da noite? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

O filho do seu vizinho vai estrear como DJ de um bar no outro lado da cidade? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

Churrasco do pessoal da empresa no domingo, num sítio a 170 quilômetros de distância, sem sinal de internet, tendo que levar a própria bebida? Você adoraria, mas está entrando numa reunião. De condomínio, sério!

Marcaram reunião de condomínio para quarta-feira? Você adoraria, mas às quartas sempre fica doente.

Adiaram para quinta? Você acaba de baixar hospital.

Você não tem tempo para nada que não queira fazer, e ninguém o acusa de antipático porque estão todos na mesma situação, sem “tempo” para aquilo que antes nã tinha escapatóia, mas que atualmente tem, graças à abençada agenda lotada. Luxo mesmo é viver numa era tã esquizoide, que te concede a desculpa perfeita para estar em outro lugar.

Mas de mim você não escapa. No próximo sábado, dia 1º à 16h, autografarei as antologias Paixão Crônica, Felicidade Crônica e Liberdade Crônica na Feira do Livro de Porto Alegre. Nem pense em alegar falta de tempo. Arranje uma desculpa mais original ou então vá. Estou contando com você.


sábado, 25 de outubro de 2014


26 de outubro de 2014 | N° 17964
MARTHA MEDEIROS

A nova juventude

O que não falta é frase satirizando a primeira etapa da vida. Exemplo: A juventude é um defeito facilmente superável com a idade. Outro: A juventude é uma coisa maravilhosa, pena desperdiçá-la em jovens. Quem ultrapassou essa fase dourada hoje olha para ela com certo desprezo. Não de todo equivocado: a maturidade, de fato, se não é nosso período mais fértil, certamente é o mais sabido. Algum benefício tinha que trazer essa tal passagem do tempo.

No entanto, em vez de fazer coro com a soberba habitual dos maduros, vale dar uma espiada mais generosa para a garotada. Afora os neorretardados que proliferam nas redes esbanjando pobreza de espírito, a geração atual tem uma postura mais humanizada em relação a questões importantes da vida. Vale a pena escutá-los.

O tema da homossexualidade, ainda debatido à exaustão na mídia, já saiu de pauta entre os adolescentes. Nada mais natural do que meninos e meninas namorarem parceiros do mesmo sexo. Ser favorável ou desfavorável à causa gay? Concordo com eles: chega a ser constrangedor a gente se declarar a favor ou contra o que não nos diz respeito. É muita arrogância.

Quanto à busca por uma profissão, mudanças visíveis também. O dinheiro continua sendo uma preocupação, mas já não ocupa o topo das paradas. O que se deseja é fazer diferença para a sociedade, trabalhar no que se gosta, personalizar sua atuação, deixar marcada uma ideia, uma consciência, um caminho diferente, um novo olhar. Nem que para isso se invente uma profissão que nunca existiu, que se formalizem atividades que antes não eram consideradas. Estudar segue fundamental, mas a sequência colégio-vestibular-faculdade vem ganhando bifurcações. Se a felicidade não estiver na vida sólida e estável que os pais sonharam, paciência. Os sonhos dos velhos terão que se adaptar a uma realidade menos regrada.

Sim, ainda existem os adolescentes convencionais, que sonham com casamentos convencionais e empregos convencionais e que querem enriquecer, consumir e ser “alguém”. A diferença é que esse “alguém” padrão, que se amparava em hierarquias para estabelecer juízos de valor, não representa o jovem moderno que quer construir uma sociedade mais horizontalizada. A noção de riqueza está mudando de foco: ir para o trabalho de bicicleta pode dar mais status a um profissional do que conquistar uma vaga no estacionamento reservado aos patrões.

Outro dia falava sobre tatuagens com duas garotas e me peguei aplicando o velho discurso a respeito do cuidado que elas deveriam ter antes de tomar decisões definitivas. Foi quando me dei conta de que até o definitivo mudou de configuração. Elas não veneram o “pra sempre” – o que acho ótimo, mas então por que fazer uma tatuagem? Simplesmente para homenagear uma etapa da vida. Não haverá arrependimento se o assunto não for levado com tanto drama. Tatuagem deixou de ser uma condecoração vitalícia. Nada mais é vitalício.


Basta que seja sustentável.

26 de outubro de 2014 | N° 17964
ANTONIO PRATA

A oposição fluorescente

Não vou votar no Aécio, hoje, mas enquanto estiver acompanhando a apuração, no início da noite, um lado meu torcerá secretamente para que ele ganhe. Esse meu lado (que não revelarei a ninguém, caro leitor, só a você, confiante na sua discrição) teme menos os próximos quatro anos sob um governo do PSDB do que os efeitos anabolizantes e lisérgicos que outro quadriênio petista pode causar à direita mais raivosa deste Brasil varonil.

Quando digo direita raivosa não estou me referindo a quem é a favor da independência do Banco Central, de um Estado menor e um superávit maior. Estou falando dos Bolsonaros e Felicianos, da turma que prega “direitos humanos para humanos direitos”, que deseja “afogar esses nordestinos” e diz, em rede nacional, que “órgão excretor não é órgão reprodutor”. (Aliás, quando ouvi aquele homúnculo cometer essa afirmação, com a segurança que só a profunda ignorância traz, me perguntei: será que ele faz xixi pelo sovaco? Ou ejacula pelo bigode? Mas não divaguemos, voltemos ao assunto).

A chegada do PT à presidência, 12 anos atrás, teve um pernicioso efeito colateral: por ser um partido historicamente ligado às minorias, permitiu à direita mais tacanha camuflar seu preconceito contra negros, mulheres, gays, índios e pobres sob uma papagaiada libertária, de crítica ao poder.

A partir de 2003, o cara vinha com uma piadinha jurássica do tipo “o melhor movimento feminino sempre foi o movimentos dos quadris” e queria aparecer na foto com um sorrisinho transgressor, tipo, “si hay gobierno, soy contra!”. Fazia um número de stand-up racista e alegava estar combatendo a censura do Estado e a opressão do politicamente correto. Falava “as zelite” e “meus deretcho” fingindo zombar do Lula, quando estava é babando a ancestral demofobia.

Tal reação conservadora me parece desproporcional aos avanços dos últimos anos. Afinal, apesar de alguma melhora, continuamos profundamente desiguais. Os negros seguem pior do que os brancos, as mulheres ainda ganham menos do que os homens, gays não podem se casar e, vira e mexe, são acariciados por heterossexuais com socos, pontapés e lâmpadas fluorescentes.

A direita raivosa, contudo, cada vez mais ensandecida, acredita que vivemos numa mistura de Venezuela com Sodoma. Pior: os inegáveis casos de corrupção e outras patacoadas do PT fazem com que o discurso retrógrado chegue àqueles que não comungam de seus preconceitos, mas se indignam, com razão, com os erros do governo. Se na passeata de apoio ao Aécio, na última quarta, em São Paulo, que a revista Economist chamou de “Revolução do Cashmere”, a multidão gritava “Viva a PM!”, o que gritará em 2018, caso a Dilma ganhe?

Com o PSDB no poder, porém, os paranoicos delirantes não teriam como ver, em cada esquina, a ameaça de uma revolução cubana comandada por travestis-negras-maconheiras-aborteiras. Abaixariam seus dedinhos exaltados e, cofiando os anacrônicos bigodes, teriam de assumir que seu ódio não é nada além do velho racismo, machismo, homofobia e demofobia do nosso Brasil varonil.


Sem alternância de poder não é só a situação que corre o risco de perder o pé da realidade: a oposição também precisa, de tempos em tempos, cair do seu troninho.

26 de outubro de 2014 | N° 17964
FABRÍCIO CARPINEJAR

Confirma

Votar não é somente eleger governador e presidente.

É a possibilidade de rever o bairro da infância e reencontrar antigos amigos.

Como a maior parte dos eleitores vota sempre no mesmo lugar, e costuma ser a zona do primeiro voto, tem a opção de visitar a família e rever colegas que nem o Facebook é capaz de localizar.

Muitos não transferem o título eleitoral, apesar da constante mudança de endereço. Apreciam preservar este domingo para exercer a nostalgia e a evocação dos laços.

A eleição torna-se uma repescagem da nossa memória. Um retorno sentimental às origens. Um passeio emocional para nosso ponto de partida.

Há quem viaje para sua terra natal com esse pretexto para conviver com os primos e tios. Há quem atravesse a cidade para caminhar nas ruas de suas malandragens infantis. Há quem entre de novo no colégio onde estudou, com aquela sensação estranha de invadir um santuário.

Rodoviárias e aeroportos estarão abarrotados de filhos pródigos com seus travesseiros e sua esperança por uma segunda chance.

Além de escolher nossos governantes, a eleição é o momento em que refletimos sobre o que nos tornamos e o que ainda queremos ser. Tem um contexto de reflexão e remissão, de julgamento de si e perdão ao outro.

Votar é virar a página de nossa biografia, retomar leituras interrompidas, soprar o pó das lombadas, tirar o marcador dos parágrafos incompreendidos.

Enquanto pensamos em quem receberá o peso verde de nossos dedos, decidimos o que podemos fazer com os nossos ressentimentos e brigas.

É definir – junto do país e do Estado – o destino de nossa paz individual.

Talvez seja a hora de aceitar a desculpa da mãe e matar a saudade do chimarrão na varanda de sua casa. Talvez seja a hora de prolongar o mandato por mais quatro anos de um amigo que a gente deixou de ver. Talvez seja a hora de levar o filho para conhecer onde passamos a adolescência.

Votar é reunir nossas forças para enfrentar o passado e as rusgas de antigamente. É aperfeiçoar os planos de governo de nossa vida, reorganizar nossas alianças, rever o que não deu certo na gestão passada de nossos hábitos.

É renovar os votos de casamento, de parceria, de paternidade e maternidade.

Eu já desfiz desentendimentos com irmãos no dia da votação. Por acaso. Não marquei nada – o próprio destino agenda reconciliações.

Quando fui votar, aproveitando que a urna familiar continua sendo na Escola Tubino Sampaio, no bairro Petrópolis, um abraço inesperado, uma risada espontânea e uma lembrança tocante já foram suficientes para desarmar o ódio e reiniciar a cumplicidade.

O amor precisa de tão pouco para retornar a ser o que era. Nada supera o olho no olho, o rosto diante do rosto, a singeleza do corpo atento e carente pedindo proximidade.


Votar é também voltar. Voltar para o lugar inicial de nossa felicidade e se abastecer de afeto até a próxima eleição.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Miro Saldanha-Nem eu sei

Perfil Gaúcho - Miro Saldanha

Miro Saldanha-Primavera Pampeana


Miro Saldanha - Covardia

22 de outubro de 2014 | N° 17960
MARTHA MEDEIROS

Sem arrego

“Resmungos e ranger de dentes não vão ajudar, as coisas mudaram e precisam ser assimiladas o quanto antes, porque vieram para ficar. Resistir ao que de todo modo vai acontecer seria falta de sabedoria e perda de tempo.”

Me senti uma garotinha de cinco anos ao ler esse puxão de orelhas que havia sido direcionado a mim. Em três linhas eu havia sido chamada de birrenta e burra. Tranquei o choro.

Mas logo me dei conta de que eu não tinha mais cinco anos e que não deveria levar a reprimenda tão a sério, afinal, foi direcionada a mim, mas também a outros tantos, e por alguém que nem me conhece direito. Resolvi achar graça e tocar minha vida sem me perturbar com questões menores.

Mas ele não se abalou com meu pouco-caso e seguiu com a artilharia pesada.

“Tenha cuidado com esse cansaço que pesa sobre a alma, pois é ele que induz a acreditar na ilusão de que os problemas poderiam ser resolvidos de uma tacada só, com fórmulas mágicas. Isso não acontecerá de jeito nenhum.”

Rogando praga. Insolente. Quem disse que estou com cansaço na alma, quem?

Resolvi ler o que ele dizia sobre os outros signos. Realmente, ele não era um representante da geração paz & amor, mas pegava mais leve com Áries, Gêmeos, Libra. Comigo é que a rudeza imperava. Perseguição nítida.

A solução era simples: deixar de dar ibope para as suas ralhações astrológicas. Ignorar. Estava decidida a fazer isso a partir do dia seguinte. Porém, o novo dia amanheceu, como sempre amanhece, e eu me vi espichando o olho para aquele quadradinho minúsculo com três pequenas linhas onde cabia toda a ira do universo contra mim. Foi então que compreendi como funciona a cabeça dos leitores que odeiam certos colunistas do fundo do coração. Xingam, rosnam, ofendem, mas não os abandonam nem sob decreto.

“Nada que for feito intempestivamente ajudará a resolver coisa alguma. Certamente, não será fácil conter os impulsos, mas, se você não se empenhar nesse sentido, sua alma não merecerá ser chamada de humana. Contenha-se!”

Nunca homem algum ousou mandar eu me conter, o abusado foi o primeiro – e ainda usou ponto de exclamação!

Mas se há algo que sobra em mim é resiliência. Se ele acha que vou bater em retirada, engana-se. Vou continuar aqui, pode continuar me atacando, eu aguento.

“Os temores arraigados em sua alma (lá vem ele com essa história de alma outra vez) têm sobre você o poder que você lhes outorgar, nem um pouco a mais do que isso. Esses temores são fantasmas que assombram a perspectiva de progresso que se encontra disponível”.

Entendi. É tudo coisa da minha cabeça. Sou responsável pelas minhocas que coloco na cabeça, e você é apenas um filósofo a serviço dessa reles criatura que teima em não evoluir.


Não me faltava mais nada. Humilhada pelo meu próprio horóscopo.

sábado, 18 de outubro de 2014


19 de outubro de 2014 | N° 17957
MARTHA MEDEIROS

A fantasia de jogar tudo para o alto

“Me chame de louca e me ganhe para sempre.” Tá, não é bem assim, mas parecido. Quanto mais cresce e se estabiliza a campanha pelo politicamente correto, mais as pessoas gostam de serem chamadas de loucas. Mulheres, quase todas. Principalmente as que não são.

Mulheres em geral são responsáveis, centradas, focadas, sabem bem o que querem e o que não querem: uma maneira de dominar a loucura intrínseca que as tenta. Ainda por cima, mulheres são mães, o que elimina de vez a chance de saírem da casinha (a não ser que a criatura seja louca MESMO). Todas carregam dentro o gene da insensatez, mas a maioria se controla, precisa amamentar de duas em duas horas, não esquecer de buscar as crianças no colégio, providenciar arroz e feijão à mesa todo dia, como despirocar?

Então elas abafam o desatino (aquele mesmo desatino que quem não se responsabiliza por ninguém extravasa) e ficam ali curtindo a fantasia da demência em silêncio, imaginando: “E se?”.

E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse passar um ano meditando na Índia?

E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse morar sozinha num quarto-e-sala no centro da cidade?

E se eu fizesse minha mala e aceitasse aquele emprego em São Paulo? E se eu fizesse minha mala e fosse cursar teatro em Nova York? E se eu fizesse minha mala e comprasse um sítio para ter a horta, o pomar e o jardim com que sempre sonhei? E se eu fizesse minha mala e me alistasse num projeto voluntário para finalmente dar um sentido a minha existência?

Tem sempre uma mala a ser feita no mundo das mulheres pseudoloucas.

Ou mais grave: um homem.

E se eu casar com ele mesmo ciente de que ele tem três ex-mulheres e oito filhos? E se eu fugir com esse desmiolado que só sabe tocar violão e mais nada? E se eu me arrepender de largar esse esquizoide que me fez mais feliz do que todos os homens sensatos que conheci?

Loucura e amor são parentes consanguíneos.

Quem olha de soslaio para uma mulher, jura que ela é confiável. Quase sempre é mesmo. Mas chame-a de louca, mesmo ela não sendo de fato, e terás uma mulher secretamente realizada em seus braços. Loucas, era tudo o que desejávamos ser, não fôssemos obrigadas a levar a vida tão a sério. Afinal, alguém tem que monitorar essa baderna aí fora.

19 de outubro de 2014 | N° 17957
FABRÍCIO CARPINEJAR

A MAIS CHATA DE TODAS

Sei que a chatice é mais nossa do que o outro. Só é chato quem não desperta a nossa curiosidade.

O chato é o que está interessado em nossa atenção, mas ele não nos interessa. Não é um problema dele, mas nosso.

A chatice é uma caridade que não deu certo. Não consegue conversar com a pessoa, por mais que tente. Despende o máximo de energia somente para cumprimentar.

Entre diversas espécies de chatos, nada supera a mulher que saiu de uma relação e só fala disso no primeiro encontro. A que mostra mensagens que troca com o ex no celular, pede opinião sobre o que deve fazer e cria uma histeria dos diálogos passados e dos inbox no Facebook.

É uma presença insuportavelmente incômoda.

Ela abusa da boa vontade de qualquer pretendente para desabafar e procurar cumplicidade.

Estão sozinhos, mas o acompanhante segura vela igual. Vela para um defunto.

Ela destrói o romance antes de começar. Com o que não seduz ninguém: a indiscrição.

Não se fala de relacionamentos anteriores no primeiro encontro, eis uma regra de etiqueta.

Transar ou não transar é o de menos. O que se deve guardar na carteira: não se fala de relacionamentos anteriores no primeiro encontro.

É uma falta de educação e de elegância.

Ainda não tem história junto, o mínimo de entendimento, e ela já deseja que ele concorde com seu sofrimento. É como rubricar um abaixo-assinado sem ler o que está escrito.

Não há sentido em despejar intimidade e detalhes escabrosos do que já viveu logo de saída. Nenhum tribunal é propício a flertes.

Uma mulher que desanda a criticar o ex no primeiro encontro provoca medo, assusta de verdade, parece psicopata.

Pois quem conta seus segredos com facilidade não terá respeito algum com o outro.

Você, que já fez isso, deixe agora de fazer, ouça meu conselho – que é de graça. Reserve o momento para arejar a cabeça, para oferecer uma chance, para distrair o coração, para curtir a prosa, a comida e o vinho.

Falar do ex é anticoncepcional do charme. É a pílula do dia seguinte do amor.

Desfaz o encanto. Pode vir vestida como uma princesa e será vista como megera. Pode liderar a pesquisa de intenções de voto e será percebida como a rainha da rejeição.

O primeiro encontro não é o momento para reabrir o passado, e sim para tentar descobrir um futuro diferente.

É de uma grande antipatia confundir aquele sujeito que aceitou sair, que se arrumou todo, com seu terapeuta, com sua cartomante, com seu conselheiro.


No fim da noite, o homem se identificará mais com o ex, e ainda vai invejar a inteligência dele por não estar mais ao seu lado.

19 de outubro de 2014 | N° 17957
ARTIGOS

O PESO DAS COISAS

O que é mais pesado? Um quilo de uvas ou um quilo de bananas? Um quilo de algodão ou um de chumbo?

Estas perguntas da idade infantil despontam nos “debates” entre os candidatos a nos governarem como presidente da República e governador estadual, como se o óbvio tomasse conta da vida e voltássemos a interpretar o mundo com a ingenuidade das crianças.

A uma semana da eleição que decidirá sobre nossos futuros governantes, a cada dia sabemos menos deles, do que foram ou são, do que pensam ou pretendem. Os debates cara a cara na TV deveriam servir para esclarecer posições e posturas e, assim, desvendar o passado e dissipar dúvidas sobre o futuro para que o voto fosse escolha consciente, não um simples apertar de botões na urna eletrônica, acompanhado de um suspiro de pesar do tipo “tudo dá no mesmo...”.

Não merecemos esse exibicionismo em que ambos os lados se proclamam “o melhor” e o “único honesto” para tentar encurralar o outro, como se debater fosse uma ferina troca de empurrões e tiros verbais. Desapareceram os compromissos com grandes projetos para enfrentar temas cruciais. O aquecimento global e a destruição da vida no planeta são o grande desafio do século 21, mas nenhum candidato fala nisso nem pia sobre o meio ambiente.

Ou, na visão infantil sobre “o que pesa mais” (um quilo disso ou um quilo daquilo?), os candidatos não sabem que o aquecimento global incide na saúde humana, na produção de alimentos e na vida em si?

Em compensação, Aécio e Dilma se deleitem em mútuas acusações, em tolas brigas infantis, cada qual buscando mostrar que o outro é pior. Quando indaga sobre a “lei seca”, Dilma não quer saber o que Aécio pensa da proteção no trânsito, mas insinuar que ele é afeito à bebida. Quando ele pergunta sobre o irmão da presidente, não quer saber da família, mas dizer que também ela cultiva o nepotismo. Tudo se reduz a um bate-boca, como o dos casais em crise, à beira da separação, em que cada lado vomita os defeitos do outro, não para salvar coisa alguma, mas para destruir o que ainda reste.

No Rio Grande, tudo é similar, embora menos desrespeitoso. Em vez de projetos e compromissos, Tarso e Sartori recitam migalhas, como se governar fosse distribuir esmolas à porta da igreja, deixando o resto nas mãos de Santo Antônio. Faltam propostas concretas, mas sobram apelos à emoção infantil e até as mães dos candidatos surgem recomendando o filho.

Nada é maior do que a figura materna, mas indago: pretender transformá-las em meloso artifício de propaganda não será um jeito de os candidatos continuarem a nos ocultar o que são de fato? Afinal, que mãe deixará de falar bem do filho?

Na caça ao voto (guiados pelos “marqueteiros”, não por ideias do mundo), os candidatos se autotransformam em “heróis supremos”. Ignoram que, na eleição, o fundamental é o eleitor, não o voto, pois sem eleitor não há voto nem eleição. Portanto, os candidatos devem respeito ao eleitor.

Nada é mais desrespeitoso, porém, que esse entrevero de maldades ditas à meia-luz, em que os candidatos inventam e fantasiam, como se o eleitor fosse um boneco de ventríloquo, que faz de conta que opina, quando nem sequer fala nem tem voz.

Nadamos sobre denúncias de falcatruas aceleradas. No escândalo mais recente, o da Petrobras e grandes empresas de obras, agora aparece envolvido também o PSDB de Aécio, e não só o PT, o PMDB e o PP, que apoiam Dilma. Tudo está à vista, tal qual o ebola na África Ocidental, que só começou a ser combatido, no entanto, ao se alastrar como perigo letal por todo o planeta.

Mas, aqui, a única medida do “debate” eleitoral é saber se um quilo de uva pesa mais do que um quilo de banana!


Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

RUTH DE AQUINO
17/10/2014 20h08
 

A coisa pública e a coisa privada

Comparar o debate eleitoral a programas de auditório é uma ofensa à TV popular

Não vale a pena ver de novo. Estou na contagem regressiva para o voto na urna. Se pudesse, não assistiria mais a debates porque, até agora, o futuro do Brasil não entrou em pauta. Comparar os últimos confrontos entre Dilma Rousseff e Aécio Neves a programas de auditório ou a reality shows é uma ofensa à televisão popular. Para quem curte linchamentos e golpes abaixo da cintura, talvez os debates dos “presidenciáveis” sejam uma boa diversão.

Uma causa do baixo nível da campanha é o medo que candidatos têm de ser entrevistados ao vivo na televisão. Campanhas em outros países também são apelativas, mas há muito mais entrevistas de candidatos na TV. São longas entrevistas, sem anúncios eleitorais, feitas por jornalistas e âncoras preparados para desafiar cada afirmação falsa ou exagerada e, assim, orientar melhor o eleitor.

Essa aposta na superficialidade, na imagem, na militância virtual e no bate-boca explica que Dilma não tenha apresentado, nem no primeiro turno nem até uma semana antes da decisão no segundo turno, um plano de governo. Não me lembro, nos países civilizados, de candidato nenhum à Presidência sem um plano de governo por escrito.

Mas não se pode exigir tanto do Brasil, não é? Um país que, após 12 anos governado por uma coligação entre o PT e oligarcas da direita, tem 13 milhões de analfabetos adultos e 35 milhões de analfabetos funcionais. Lula extinguiu a Secretaria de Erradicação do Analfabetismo. Criou o Ministério da Pesca. Os 39 ministérios e secretarias precisariam de um corte radical.

Treze milhões de brasileiros não sabem desenhar um “o” nem com a ajuda de um copo. Não sabem ler o que está escrito na bandeira do Brasil, Ordem e Progresso. Trinta e cinco milhões de brasileiros sabem, mas não entendem o significado. Mesmo diante do desastre da educação, nenhum dos candidatos explicou até agora como o Brasil erradicará o analfabetismo. Em quantos anos – 20, 30 ou 40 – o Brasil se equiparará à Coreia e será um campeão na educação?

Nenhum dos dois explicou em quantos anos os pobres não precisarão mais de Bolsa Família para não morrer de fome – como se pudéssemos nos conformar em transformar famílias de miseráveis em dependentes, enquanto a propina bilionária alimenta tantos corruptos parasitas. Em quantos anos o governo federal deixará de mentir, ao chamar de “classe média” quem ganha entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês? Deveria ser proibido chamar de classe média baixa quem ganha menos de dois salários mínimos por mês.

Como eleitora, cito uma série de incômodos que os últimos debates me provocaram. O primeiro é a falta de propostas concretas, perdidas na troca de ofensas pessoais. O segundo é a obsessão dos dois candidatos por Minas Gerais. Que eu saiba, o Estado não é modelo de gestão nem de indigestão. Basta de discutir Minas, porque nem os mineiros aguentam mais. Comecei a enjoar de pão de queijo.

Quero saber se faltará água; se a inflação continuará a subir; se o crescimento (?) ficará abaixo de 1% ao ano; se pacientes, de bebês a idosos, continuarão a morrer em fila de cirurgia, diante dos hospitais; se as obras continuarão a ser superfaturadas; se algum dia saberemos para onde vão nossos impostos; se o Estado deixará de praticar a violência oficial contra a mulher – sem creches em tempo integral, sem igualdade em salários e oportunidades. Muitas, condenadas à gravidez precoce ou à prostituição, especialmente no Norte e no Nordeste.

Outro incômodo é a deselegância. Já seria uma boa iniciativa que os dois candidatos se tratassem de “senhor” e “senhora”, em vez de “você”. As caras e bocas de Dilma e Aécio também são bregas. Um pouco mais de cerimônia e sobriedade ajudaria a tornar o confronto mais agradável.

Se Dilma quer provocar e perguntar se Aécio dirigia o carro bêbado, por que não tem a hombridade de falar claramente? Tem vergonha de agir como Collor? Se Aécio bebeu uma gota ou uma garrafa antes de dirigir, por que não diz claramente que não soprou no bafômetro por causa disso e pede desculpas por esse lapso, em vez de falar na carteira vencida? Tem vergonha?

Ver Dilma se colocar como paladina da ética e dizer que seu papel, como presidente, é “investigar e punir”, como se as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público não ocorressem à revelia dela e do PT; como se, a cada escândalo revelado, Dilma não culpasse a imprensa; como se assessores, ministros e diretores de estatais, condenados por envolvimento em maracutaias, não fossem elogiados por Lula e por ela, aplaudidos e fotografados com punhos erguidos. Ouvir de Dilma que o governo do PT “não mexe com a coisa pública em benefício de quem quer que seja”, no meio desse escândalo abissal da Petrobras... aí, sério, é hora de trocar de canal.


quarta-feira, 15 de outubro de 2014


15 de outubro de 2014 | N° 17953
MARTHA MEDEIROS

Quartos de hotéis

A maioria das pessoas adora hotéis. Eu também adoro quando estou acompanhada, já que é sinônimo de lua de mel, minha modalidade favorita de viagem. O mundo lá fora deixa de importar e me converto: era exatamente o que estava precisando, um tempo alienado para praticar todo o amor que houver nessa vida.

Mas nem sempre estamos acompanhados. A inspiração deste texto veio da exposição fotográfica do argentino radicado na França Daniel Mordzinski, chamada Quartos de Escrita – Retratos de Escritores em Hotéis. Ele clicou 70 escritores hospedados em diversos locais do mundo. Há quem tenha sido captado em momento íntimo e introspectivo e há os que fizeram poses bem-humoradas. O elenco é de respeito: estão entre eles Saramago, Vargas Llosa, Jorge Amado, Umberto Eco, Philip Roth, Verissimo, Nélida Piñon, García Márquez, Jorge Luis Borges, Jonathan Franzen – a nata.

Literatura e hotel formam uma dupla mística. O Pera Palace, em Istambul, até hoje é conhecido como a segunda casa de Agatha Christie. Assim como ela, muitos autores iniciaram ou terminaram seus romances entre as quatro paredes impessoais de uma espelunca de beira de estrada ou de suntuosas suítes. Romances literários e romances carnais também – num hotel, tudo acontece.

Viajo muito a trabalho e conheço bem a sensação de ser uma escritora recolhida em um quarto isolado entre centenas de outras portas: também sou envolvida pela introspecção, mas não produzo. Nem uma única linha escrevo fora do escritório que mantenho em casa. Preciso da dinâmica dos dias para me impulsionar.

Num quarto de hotel, o tempo sofre uma estagnação, a falta de rotina engessa os minutos e as horas. As Horas. Nome do romance de Michael Cunningham, em que ele escreve uma das cenas mais pungentes da literatura norte-americana, a fuga de uma dona de casa para um quarto de hotel a fim de resgatar sua solidão. Que melhor lugar para esse encontro íntimo?

Não sei se paro de viver quando estou sozinha num quarto de hotel ou se estou viva demais, além do que posso suportar. Para mim, trabalhar em um quarto de hotel significaria acolhê-lo e por ele me sentir acolhida, no entanto, não consigo invocar essa familiaridade. Preciso que a mística se mantenha: eu e ele com a respiração suspensa por sermos dois estranhos sabedores do nosso curto e estéril tempo de convívio. O nada define minha estada.

Sozinha num quarto de hotel, sou ninguém. Não escrevo porque perco minhas referências. A paz vira melancolia. Tudo é lindo, limpo, confortável, mas se alguém tentasse me fotografar, me pegaria totalmente fora de foco.

*Na próxima atualização do meu site, segunda-feira, postarei algumas fotos da exposição e demais comentários, em martha-medeiros.com


quarta-feira, 8 de outubro de 2014


08 de outubro de 2014 | N° 17946
MARTHA MEDEIROS

Cara limpa

Não sou analista política e não tenho conhecimento para avaliar o que faz com que um candidato se eleja e outro não. São inúmeras as variantes que levam a um determinado resultado, mas uma coisa me chamou a atenção nesse pleito: o discurso ensaiado não comove mais.

É tanta coisa em jogo numa eleição que os políticos se cercam de marqueteiros e assessores a fim de não desperdiçarem nem um segundo do seu tempo. Cada palavra, cada verbo, cada expressão é meticulosamente estudada para provocar tal e tal reação. Dá certo nas propagandas de maionese. Quando o produto é gente, não é bem assim: o eleitor percebe não só a embalagem e o slogan, mas o que fica subentendido.

Coloque uma câmera de TV na frente de qualquer pessoa e diga: está no ar, pode começar a falar. Não é fácil para ninguém. Nem para amadores, nem para profissionais. Porém, tem sido mais danoso justamente para os profissionais, que ao se tornarem figuras públicas assumem uma imagem farsesca e esquecem quem são de verdade. Ficam empertigados e exageram na sisudez. Não se permitem coçar a cabeça, sorrir, brincar. Mantêm o esqueleto rígido e a voz grave para transmitir autoconfiança absoluta. Mas quem é tão autoconfiante assim?

Estamos sedentos de gente espontânea, sincera, natural e falível. Gente que assume ter dúvidas e que se coloca disponível para tentativas reais, não para feitos heroicos. Sartori foi um exemplo. Recebeu mais de 2 milhões de votos e desconfio que metade de seus eleitores nunca tenha ouvido falar dele antes de agosto. Por que angariou tanta simpatia? Porque não agia como um boneco de corda, não tinha o texto decorado na ponta da língua, não se apresentou como super-herói. Extra, extra!

Havia alguém com essas características também na corrida presidencial: Eduardo Jorge, do PV. É claro que é mais fácil ser natural quando a visibilidade é pequena. Não tendo nada a perder, nenhuma declaração é arriscada. Mesmo eu levando essa vantagem dele em consideração, me pareceu outro exemplo de autenticidade.

A empáfia é cafona. Já não há paciência para lideranças empostadas e inacessíveis. Saindo da política para a religião: até os ateus saúdam o papa Francisco, por quê? Ora, porque tem gente ali dentro. Não é uma carcaça blindada circulando pelo mundo. Ele está no meio de nós – mesmo.


Falar com o coração, se abrir, desarmar-se, nada disso garante que a criatura será um bom governante. Naturalidade sem bons projetos, experiência e instrução não serve para nada. Ainda assim, prefiro quem mostra a cara àqueles que usam máscaras. Estou em campanha pela espontaneidade – na política e fora dela. Basta de semideuses de fachada. É hora de voltarmos a ver gente transmitindo alguma emoção.

terça-feira, 7 de outubro de 2014


07 de outubro de 2014 | N° 17945
FABRÍCIO CARPINEJAR

Ainda confundo amor com apego

Os amigos são minha família para meus familiares.

É meu temperamento de gringo, herdado dos pais.

Penso que o pior pode acontecer. Penso em sequestro, assalto, violência, quadrilhas, máfia.

Os pesadelos mais terríveis nascem da imaginação, não dos sonhos.

Não me perdoaria só de supor que um ente amado de casa pode ser machucado e não agi para defendê-lo com antecedência.

Para um italiano da colônia, a covardia está no pensamento, não acontece na reação aos fatos: é simplesmente não se antecipar.

Sou chato para a esposa e filhos. Mas não tem jeito. Quando um deles viaja, sempre digo que conheço alguém onde eles estão indo e alcanço o endereço e o telefone em caligrafia caprichada.

É uma regra de meu paternalismo: cuidar excessivamente daqueles que amo, a ponto de sufocar.

Tenho tendência de Google Maps.

Entendo que estou sendo prevenido, eles entendem que estou sendo paranoico.

Se a minha mulher parte para a Argentina, logo saco de minha caderneta de contatos quem eu conheço de lá.

– Olha, tenho esses amigos argentinos. Quando precisar de qualquer coisa, não deixe de procurá-los.

Entrego o papel com os endereços e um mapinha. Chego a avisar os hermanos de que ela está indo e para ficarem a postos. Converto uma situação eventual (último caso) em prioridade.

É óbvio que ela jamais vai telefonar. Não há esperança. Não há sentido na proposta.

Ela não pediu nada, sabe se virar sozinha, tem seus próprios amigos e conexões. Mas não canso de repetir o rito a cada viagem.

Ela decidiu aceitar para gerar menos trabalho. Dobra o papel para nunca mais encontrar em sua bolsa. Eu, louco de pedra, tento ver em que zíper colocou o recado para lembrá-la mais adiante. Vá que me diga que perdeu a folhinha...

Minha filha vai para o Chile, faço um rastreamento dos conterrâneos no país de Neruda e já providencio uma lista de retaguarda.

Ela se ofende com razão, transmito a impressão de que não confio nela, concedo tratamento de menor de idade, instauro um clima de suspeita que não fortalece o relacionamento.

Eu atropelo a confiança com o controle que vem do meu medo. Eu retiro a independência de qualquer um com meu protecionismo. Porque confundo ainda amor com apego. Apego é não sair de perto, amor é estar por perto.

Todo gringo tem células espalhadas pelo mundo.


Não me dou conta, mas sou o pior que pode acontecer para minha família.

sábado, 4 de outubro de 2014


05 de outubro de 2014 | N° 17943
MARTHA MEDEIROS

Comida no prato

Daniel Filho é um diretor incansável, sempre disposto a novos desafios, mesmo já tendo conquistado seu lugar de honra entre os maiores nomes do cinema e da tevê brasileira. Quando ele tinha 72 anos e filmava o longa-metragem sobre Chico Xavier, alguém perguntou por que ele não parava de trabalhar. Ele respondeu: Minha mãe me ensinou a nunca deixar comida no prato. E tem comida no prato.

Filosofia do dia a dia. Está explicada a dificuldade que muitos sentem ao se aposentar. Ainda tem comida no prato. É uma sensação comum também a todos os que são sutilmente convidados a saírem de cena, tendo suas solicitações de emprego negadas ou deixando de serem chamados para participar de reuniões familiares e sociais. Como assim, se ainda tem comida no prato?

Mais do que comida no prato, ainda existe fome.

O ser humano aceita a ideia da morte (real ou figurada) apenas quando não se reconhece mais como um faminto, quando o corpo cansa, a mente falha e a alma pede pra sair. Quando não há mais vontades, desejos, planos. Quando não vê mais necessidade de alimentar-se do que a vida oferece – música, cinema, amigos, natureza, sexo. Quando não há mais um sonho para renovar a energia, um projeto passível de realização, nenhuma esperança de que amanhã tudo possa mudar. Quando a sensação for de completo enfado. Quando não houver mais comida no prato.

Será que esse dia chega, mesmo?

Às vezes me consola pensar que sim, que chegará o dia em que estarei esgotada de tantas emoções vividas, de tanta agitação em volta, e a ideia de descansar em paz não será tão aterrorizante. Trabalho feito, missão cumprida, uma vida aproveitada até a rapa – o que mais se pode querer? A comida some do prato e levantamos da mesa sem a sensação de estarmos nos antecipando. É um plano de retirada maduro e consciente.

Porém, converso com pessoas que estão na chamada terceira idade e elas me dizem: não mesmo. Não é assim. “Quero mais”, dizem todas elas, mesmo com artrite, catarata, andando de bengala. “Quero mais.” Alcançam o seu prato para o chefe da cozinha e exigem uma porção adicional, e mais uma, e outra, e de novo. Quem ousará acusá-las de fominhas?


Para quem encara o fato de ter nascido como um privilégio, para quem não permite que suas potencialidades, mesmo reduzidas, sejam vencidas pelo desânimo, para quem domina a arte de temperar o convívio com as pessoas que ama nunca chegará o dia de declarar-se satisfeito. Aos 79, aos 84, aos 91, aos 98: enquanto a vida parecer suculenta, ninguém há de cruzar os talheres.

05 de outubro de 2014 | N° 17943
FABRÍCIO CARPINEJAR

Bem que tentamos

Não conseguimos nos separar.

Fracassamos ao nos separar.

Somos incompetentes para a despedida.

Tem gente que não dá certo junto, a gente não dá certo separado.

A vida fica muito pior quando isolados.

Em nossa combinação, tempo é distância, distância é saudade, saudade é amor urgente.

Eu, que adoro miolo de pão, tiro o excesso para lhe imitar. Não compreendo se é imitação ou influência, percebo que, em sua ausência, você continua ao meu lado, eu é que desapareço. Vivo reproduzindo suas atitudes e gestos. Sou um mímico de seu rosto. Sou um intérprete de sua risada.

Intriga-me este mistério que não nos permite o fim da relação. Qual a fatalidade? Será maldição? Carma? Dívidas de vidas passadas? Macumba? Reza?

Por que não nos desamamos?

De onde vem essa obsessão, essa vontade louca de estar sempre colado?

Nem a diferença de idade nos aparta, nem as personalidades diferentes nos distanciam, coisa alguma, problema algum.

É como se descobrisse que somos vampiros do amor: não há morte em nossa entrega.

Já tentamos de tudo para nos separar – e não funciona. Já abusamos dos desaforos, das ofensas, das discussões, do ciúme, das brigas, dos barracos. Já falamos mal um do outro, já rifamos o passado, já criamos atritos, inventamos o inferno, metemos a família no meio, chamamos os amigos para complicar o final. E só fortalecemos ainda mais os laços.

Cá estamos, mais apaixonados do que no primeiro dia. E ninguém entende nada, muito menos nós. Geramos crises em nossos terapeutas.

Nosso amor não morre! Nosso amor não acaba!

Eu me assusto com a promessa de longevidade, talvez tenhamos que envelhecer juntos, talvez seja necessário aceitar os fatos, talvez a mala não seja nossa porta, talvez o aceno seja para os outros, talvez nosso sangue sonhe filhos.

De tanto criar hipóteses, investigar nossa convivência, explorar nossas confusões, eu acredito que não iremos nos separar por um simples motivo: fizemos algo de errado no início. Cometemos uma grande gafe. Uma falha imperdoável.

Não sabemos quem disse o primeiro eu te amo.

Não assinalamos o autor da declaração fundadora. Não anotamos o nome do corajoso.

Lembramos de tudo, menos de quem disse o primeiro eu te amo.

Recordamos de nossas viagens, dos aniversários de cada passo, dos detalhes microscópicos de nossos hábitos, menos quem falou primeiro. Quem declarou primeiro. Quem transformou o endereço em destino.


Se não sabemos quem falou o primeiro eu te amo, resta-me crer que já nascemos nos amando. E eu, muito antes, privilégio de quem é mais velho.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014


02 de outubro de 2014 | N° 17940
MÁRIO CORSO

Happy Harbor

– Não, senhor, Bois de Boulogne não é uma raça de gado de corte nem de leite.

– Não, senhora, não é um molho, é um bosque em Paris, mas não me pergunte como se pronuncia. Aliás, estamos dando desconto para quem souber pronunciar o nome desse edifício.

Essas falas podem ocorrer na compra de um apartamento, mas nunca de uma sala comercial, pois essa será no Wall Trade Corporation Tower Prime Building. Ou coisa que o valha, que, mesmo com todo esse nome, talvez tenha apenas quatro andares.

Os nomes dos nossos imóveis comerciais tendem ao inglês, e os residenciais têm mais liberdade criativa, mas o francês comparece com maior frequência. É Maison pra cá, Petit Village para lá. Confira você mesmo – a leitura dessas propagandas de lançamento em sinaleira pode ser bem divertida.

Até se conseguem imóveis com nomes em português, mas são mais baratinhos, vocês me entendem. Chic mesmo é uma engronha que a gente não pesca bem, mas que tem web space, fitness center, smart laundry, indoor pool, home theater, playground, petspace enfim, algo para você que tem lifestyle. Você compraria um apartamento onde nem ao menos existe um espaço gourmet? Sem falar no kids space com área baby?

Sabe o térreo? Isso não existe mais, agora é Apartamento Garden. E quando os atributos são em português é necessário um tradutor de eufemismos. Encontrei em um anúncio o “sistema de segurança perimetral eletrônica” e pensei logo em robôs circulando, mas era só uma cerca elétrica. Já achei no catálogo de um imóvel a promessa de um wireless totalmente sem fios. Imagine, deve ser fantástico!

Houve quem quisesse proibir anúncios e impressos com palavras estrangeiras, o que acho que cai no outro extremo. Às vezes, é mesmo necessário e não há mal algum em usar uma palavra estrangeira quando não encontramos similar, ou de mesma precisão, no léxico pátrio. A questão é outra, aqui o uso e abuso de estrangeirismos serve para dar valor a um produto que se tivesse toda essa bola não precisaria desse truque.

Enquanto criticamos os Maiquisons, as Dienifers e Sheyslenes que nascem no subúrbio, moramos em prédios com nomes que também são uma versão brega de usar outro idioma para tentar nos autoenobrecer. Quanto menos sobrenome alguém acha que possui, mais supõe que o nome do filho precise se impor como ímpar. Nos imóveis vale o mesmo raciocínio: para esconder nossa jequice, os batizamos com termos em outra língua.


Meu receio é que, se continuarem a construir edifícios com esses nomes, com tantos acessórios e supostas possibilidades, talvez queiram trocar o nome da nossa cidade para Happy Harbor. Menos mal, já que a outra possibilidade seria Gay Harbor, evocando algo que ainda deixa muita gente, chique ou brega, melindrada.