sábado, 27 de fevereiro de 2016



28 de fevereiro de 2016 | N° 18459 
MARTHA MEDEIROS

Olha eu sozinha aqui de novo

A sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito. Uma falácia essa coisa chamada sucesso

Em 2003, a atriz Nicole Kidman ganhou o Oscar de melhor atriz. Ela subiu ao palco, fez seu agradecimento e em poucos segundos seu talento e elegância estavam sendo comentados em todos os sites. Foi a homenageada mais paparicada da noite. Bateu ponto nas festas pós-cerimônia e, quando tudo acabou, voltou para o hotel, ela e seu troféu que não falava, não fazia um carinho, não dizia eu te amo. Diz ela que naquela noite chorou tudo que tinha pra chorar e que nunca se sentiu tão sozinha. Enquanto isso, o mundo inteiro foi dormir com inveja do glamour da atriz.

Recentemente a cantora Zélia Duncan publicou um texto chamado “Suíte Solidão”, em que ela comenta a respeito de hotéis durante turnês: “Você acaba de ter uma alegria amplamente compartilhada e mergulha num “olha eu sozinha aqui de novo”.

Não sou Nicole, não sou Zélia, mas já vivi situações similares e confirmo: é o suprassumo da contradição. Lembro um dia em que participei de um evento numa cidade do interior do Rio. Fui hospedada no melhor hotel da região: um lugar lúgubre, cheio de corredores mal iluminados e com cheiro de mofo. A porta do meu quarto era de uma madeira encardida e o carpete tinha um aspecto suspeito. A única janela dava para o nada. Me disseram que um motorista viria me buscar às 18h e desejaram bom descanso. Eu tinha cinco horas livres para contracenar com o submundo da minha solidão.

Lá fora chovia a cântaros, pra deixar o cenário mais melancólico e inibir qualquer tentativa de passeio a pé pelas redondezas.

Não fui atrás de club sand- wich, de colega de infortúnio, de coisa nenhuma. Havia levado um livro em estado adiantado de leitura e em meia hora ele foi devorado. Fiquei então a olhar paredes, buscando resposta para uma pergunta simples: e agora? Tomei o segundo banho do dia para ter algo mais a fazer. Deitei. Olhei para o teto. Tudo ao meu redor tinha um tom sépia. As cortinas pesadas. O frigobar vazio. Tentei dormir. Se consegui, nem reparei.

Na hora combinada, fui até o lobby e alguém apareceu para me levar ao local do evento. Chegando lá, havia um auditório com capacidade para cerca de duas mil pessoas sem lugar vago para nem mais um ácaro. Fui recebida como se fosse a atriz protagonista da novela das nove. Cada palavra que eu disse foi similar a do Evangelho. Por uma hora e meia, não havia no universo ninguém mais importante do que eu. Nem Nicole Kidman.

Quando tudo terminou, fui devolvida àquele quarto asfixiante em que dormi feito uma indigente recolhida por caridade, e se fosse um cinco estrelas (quase sempre é), confidencio: a sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito.

Olha eu sozinha aqui de novo. Uma falácia essa coisa chamada sucesso.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016


24 de fevereiro de 2016 | N° 18455 
MARTHA MEDEIROS

Chegue mais perto

Saí do cinema não apenas comovida com o filme A Garota Dinamarquesa, mas com a certeza de que, se chegássemos mais perto uns dos outros, o mundo seria bem menos preconceituoso. Pra quem ainda não sabe do que se trata, é a história real da pintora Lili Elbe, que nasceu Mr. Einar Wegener e foi a primeira pessoa a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo. O filme mostra como Einar, durante seu casamento, descobre-se mulher num corpo de homem e o quanto sua esposa o ajudou nessa difícil transição – isso nos anos 1920. O que para muitos pode soar como bizarrice é na verdade uma história de amor com uma profundidade que raramente se vê.

Você convive com algum transexual? É amigo íntimo de algum deles? É provável que não. Eu também não. No entanto, temos opinião formada sobre eles e sobre todo mundo. Pretensiosamente, achamos que sabemos como pensam e sentem pessoas com quem nunca trocamos nem duas palavras.

Estamos interligados por aparelhos que cabem na palma da mão e a sensação é de onipotência: nunca estivemos tão informados sobre tudo e tão perto de todos. Uma ilusão, claro. Continuamos com o mesmo número de amigos verdadeiros – poucos. E com o mesmo acesso às suas almas – quase nenhum.

Pessoas convivem, mas não se conhecem. Quem você permite que chegue bem perto das suas dores? A quem você dá a senha para que entre e enxergue aquilo que transtorna você?

O combinado é ninguém chegar muito perto de ninguém para não correr o risco de se envolver. Não queremos nos envolver, só queremos dar palpite.

Então vem um filme e mostra como funciona a história por dentro. De uma forma sensível e delicada, expõe toda a complexidade de uma existência, todo o árduo processo de se transformar em quem se é. 

Vale para um homem que se sente mulher, mas valeria também para um negro que luta para ter sua raça respeitada, um jovem que é dependente de drogas, uma moça casada que não deseja ter filhos, um deficiente visual que se descobre apaixonado, um idoso com pouco tempo de vida, um pai de família que foi demitido, um jovem idealista que sonha entrar para a política, uma atriz que tem sua intimidade exposta pela imprensa – se soubéssemos pra valer o que cada um desses desconhecidos sente na pele, como as reações externas os atingem, o esforço que fazem para defender o direito de ser quem são, o quanto agonizam diante das próprias fragilidades, não seríamos mais tolerantes?

Bastaria reduzir um pouquinho o tempo gasto nas redes sociais e ir mais ao cinema, ler livros, assistir a uma peça. É pra isso que serve a arte. Para nos tirar da superfície e dar um zoom no subterrâneo da emoção alheia, lá onde tudo se explica.

domingo, 21 de fevereiro de 2016



21 de fevereiro de 2016 | N° 18452 
MARTHA MEDEIROS

Céu e inferno


Não é um espaço repleto de nuvens brancas com anjinhos tocando harpa, e também não é uma gruta tomada por labaredas com um diabo segurando um tridente a fim de te espetar.

Céu e inferno são, ambos, lugares terrenos, com endereço, código postal e localizáveis pelo GPS.

Minha ideia de céu: uma praia vazia, mar cristalino, muita natureza, um dia de sol.

Minha ideia de inferno: uma piscina coletiva com alto-falantes tocando música como se fosse uma quadra da comunidade. Céu: um quarto em penumbra, uma cama com lençóis limpos, ar-condicionado suave, o amor da sua vida ao lado.

Inferno: um quarto abafado, lençóis amarfanhados há três semanas, mosquitos e o amor da sua vida de mau humor. Céu: estrada bem pavimentada e bem sinalizada, paisagem espetacular. Destino: férias.

Inferno: viajar na estrada ao lado de um motorista que ultrapassa em faixa amarela contínua, corre demais e gruda, presunçosamente, na traseira do carro em frente. Ou: motorista tão cauteloso que te exaspera. Dirige a 50km/h, não ultrapassa ninguém (espera o caminhão sair da estrada por conta própria, mesmo que isso demore uma vida) e coloca o pé no freio a cada 15 segundos, por nada.

Céu: cinema com lotação pela metade, filme formidável, ninguém comendo, bebendo ou fuçando no celular.

Inferno: cinema hiperlotado, filme arrastado e uma criatura atrás de você violentando um saco de balas e sugando ruidosamente pelo canudo a última gota do refri, além de rir em cenas que não tem a menor graça.

Céu: muitas vagas no estacionamento. Inferno: nenhuma, e você está atrasado.

Céu: chove, está friozinho, você acendeu a lareira, tem um livro incrível em mãos, escuta um disco do Sthephany Grapelli, o vinho tinto e os queijos estão sob a mesa de centro, e seu namorado está por chegar com os beijos.

Inferno: venta, você acaba de chegar de um aniversário de criança, a tevê passa um programa com tradução simultânea, o interfone toca e é o porteiro chamando para a reunião de condomínio em que elegerão o novo síndico: parabéns, sua vez chegou.

Céu: conversa inteligente e divertida com os amigos. Não se fala em política. Inferno: festival de abobrinhas e infantilidades. Não se fala em política. Céu: dinheiro extra, inesperado. Inferno: despesa extra, inesperada.

Céu: seu voo sairá no horário e, ao entrar na aeronave, o assento ao lado está vazio. Ao desembarcar, sua bagagem é a primeira a aparecer na esteira.

Inferno: atraso de voo, fila imensa no banheiro do aeroporto, preço exorbitante do cafezinho. Depois de um tempão esperando para embarcar, você se acomoda no seu assento e ao lado tem alguém querendo conversar – adeus, cochilada.

Céu: quem está querendo conversar é o Wagner Moura.

sábado, 20 de fevereiro de 2016



20 de fevereiro de 2016 | N° 18451
JJ CAMARGO | J.J. CAMARGO

O LONGO CAMINHO DA CIVILIDADE


Não tem jeito, a construção de uma sociedade civilizada é um processo longo, demorado e, às vezes, francamente exasperante.

Meu primeiro contato com o mundo do lado de lá foi bem constrangedor. Tinha recém chegado a Rochester, uma cidadezinha do meio-oeste americano, para uma pós-graduação na famosa Clínica Mayo, e atravessei uma ruazinha quase deserta, em diagonal, ignorando a faixa de segurança. Quando alcancei a calçada oposta, um guarda me recepcionou como a um ET e explicou que esse comportamento era inaceitável. Uma velhinha que se aproximava ouviu a admoestação e fez a cara universal de bem feito.

No Brasil de hoje, algumas cidades, mais do que outras, adotam condutas de civilidade que se transformam em marcas registradas e são exercitadas com determinação e um certo orgulho por seus cidadãos, constrangendo os violadores. Experimente, por exemplo, jogar um papel na rua em Curitiba, e você vai ser tratado como um suspeito de pedofilia numa reunião de pais e mestres.

O certo é que, nesses lugares, por um processo educativo continuado, o comportamento se modifica gradualmente e todos passam a colaborar, no mínimo para evitar o vexame.

Na média, entretanto, seguimos desconsiderando normas elementares de convívio e, na maioria das grandes cidades brasileiras, ninguém respeita regras de trânsito. A principal razão para alguém não atravessar as ruas por entre os carros em movimento, provavelmente, é o medo de ser atropelado por algum motoqueiro apressado.

Se alguém quiser avaliar o nosso verdadeiro nível de civilidade, passe uns dias num grande balneário. Com cuidado, porque depois das férias você precisa voltar ao trabalho para seguir pagando os impostos.

Como nas férias as pessoas se sentem assumidamente mais liberadas, esse é o momento e o local para se descobrir o quão civilizados, de fato, somos. O cartão de visita são as camionetes enormes, ruidosas e cafonas, visivelmente adaptadas a um esporte muito radical: a caçada a esses pedestres desentendidos que pretendem ignorar que as ruas têm dono.

E o ruído estridente dos supermotores representam uma primitiva demarcação de território entre a tribo dos poderosos donos da rua e os tímidos que tentam atravessá-la com a instabilidade de chinelos de dedo.

Sentado à beira-mar, deliciado com um milho verde, não consegui ignorar o ruído das motos, aceleradas no limite sempre que o garotão vislumbrava uma menina bonita. Mas será que não existe uma maneira mais civilizada de atrair a fêmea, considerando o quanto é pequena a probabilidade de que ela, além de linda, seja surda? E qual é o objetivo de intimidar os pedestres que eventualmente dão um passo na rua porque a calçada está superlotada? Que necessidade mais estúpida de afirmação. Soube que quando se aproximam as férias, as prefeituras mandam repintar as faixas de segurança.

E para que servem? Aparentemente só para registrar com precisão o local onde os distraídos serão atropelados!

Percebam que, se esse comportamento extravasa na praia, onde todos estão teoricamente dando um repouso aos seus tacapes, fica fácil entender a agressividade da vida urbana, quando todos, resolvidos ou não, voltam à pressa, à competição, e ao neurotizante tempo perdido nos engarrafamentos. Das ruas e da vida.


RUTH DE AQUINO
12/02/2016 - 22h14 - Atualizado 12/02/2016 22h14

De volta para o futuro do Brasil

Estamos cercados por mosquitos e sanguessugas, mas os governantes se recusam a assumir a culpa e o ônus

Se alguém ainda duvidava da existência dos buracos negros, a semana passada tratou de sepultar crendices. Não falo do Universo nem de Einstein. Mas de nosso ontem, hoje e amanhã no Brasil. Falo das ondas gravitacionais que foram ignoradas pelo PT de Lula e Dilma com irresponsabilidade, descaso e incompetência, jogando a economia e a saúde nessa cratera negra da qual será difícil emergir.

Não foi por falta de alerta. A gastança de Brasília aumentou em ano eleitoral, as mentiras foram ditas sem pudor, as negociatas, os tríplex, os sítios, as propinas continuaram a correr soltas mesmo sob investigação. Estamos cercados por mosquitos e sanguessugas, mas o governo federal, os governadores estaduais, os prefeitos e o Congresso se recusam a assumir a emergência, a culpa e o ônus. Apelam a nós – aos impostos pagos por nós e aos pratos de vasos de planta no quintal de nossa casa.

Pode demorar 100 anos, bilhões de anos. Uma hora o marketing, a desonestidade e o obscurantismo são desmascarados e a realidade vem à tona, seja por estudos de físicos e astrônomos, seja pelos fatos crus do dia a dia. Não adianta se fazer de vítima, Lula, não adianta adiar decisões de cortes na sua máquina, Dilma. 

Aí estão os números da falência na Educação e as filas do desespero nos hospitais, os relatos lancinantes de pais desempregados e de mães atingidas pelo vírus zika. Tudo por falta de compromisso com o essencial. Agora os ministros de Dilma viajarão pelo país para fazer campanha contra o mosquito Aedes aegypti. Parece roteiro de filme B. É muita cara de pau. Economizem as passagens aéreas!

Acabou o recesso que nem deveria ter sido. Acabou o Carnaval. O PT comemorou tristemente, na Quarta-Feira de Cinzas, 36 anos de vida. E mesmo sob os holofotes do mundo, em ano de Olimpíadas, no meio de uma epidemia, o governo ainda não sabe onde vai cortar no Orçamento para chegar a sua fictícia meta fiscal de 2016. Adiou a decisão para março. Dilma decidiu editar um decreto provisório num país provisório, para fingir que cumprirá a meta de superavit fiscal primário de 0,5% do PIB.

Enquanto isso, a presidente pensará com sua equipe –porque em janeiro todo mundo parou de pensar – em como apertar as contas públicas. Para pagar os juros da dívida, o certo seria cortar R$ 60 bilhões do Orçamento, mas o governo diz que não poderá cortar nem R$ 20 bilhões.

“Acho que não tem mais gordura para cortar. Vai ter de cortar membro. É amputação, não é lipoaspiração”, afirmou o senador peemedebista Romero Jucá, depois de encontrar o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa.

Não há vacina contra a má gestão. Pode fazer o convênio que quiser com a universidade mais conceituada do mundo – não dará certo. Porque o pecado está na origem. Sem responsabilidade fiscal, um governo comete crime ao maquiar, nesse nível, números e promessas para se eleger. Nem vou falar do roubo continuado, em dinheiro em espécie e em transferências bancárias, de nossa maior estatal. A Petrobras acaba de ficar famosa como o segundo maior caso de corrupção no mundo, em votação promovida pela Transparência Internacional.

Economia doente, Saúde enferma. O Ministério da Saúde sabia que, só no ano passado, 1,6 milhão de brasileiros tinham contraído dengue. E adiou qualquer medida mais séria. Provavelmente porque o Brasil sempre achou ser o país do futuro, o país do milagre, do Deus brasileiro, da criatividade e alegria do povo, o país do Carnaval, do samba e das mulheres bonitas. O país da “meta flexível”, complacente e malandro. Será que Dilma está “estarrecida” com o rombo?

Milhões de inocentes úteis, que hoje andam a pé para o trabalho para economizar no ônibus, que pagam uma taxa de juros no cartão de crédito de até 411% ao ano, que veem a luz de casa cortada por inadimplência, que fecham suas empresas falidas, que perdem seus empregos, acabam de ser convocados por ministros petistas para canonizar Lula e livrar o pai dos oprimidos dos “golpes baixos” da mídia, das elites e da Justiça. “Nunca antes um ex-presidente foi tão caluniado, difamado e injuriado”, escreveu Rui Falcão, o presidente do PT. O slogan “Somos todos Lula”, proposto por militantes, só pode ser brincadeira de mau gosto.

Nos Estados Unidos, após detectar as ondas gravitacionais com seus equipamentos de última geração, os cientistas comemoraram: “Poderemos ver coisas que nunca vimos antes!”. Segundo alguns físicos otimistas, daqui a um século talvez possamos viajar no tempo, como no filme De volta para o futuro. No Brasil flexível, onde tudo é relativo, também estamos vendo coisas que nunca vimos antes. Talvez seja melhor não esperar 100 anos para rever decisões do passado e mudar presente e futuro.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016



17 de fevereiro de 2016 | N° 18448 
MARTHA MEDEIROS

Quando Deus esquece os óculos


Ele vê tudo. Era no que eu acreditava quando criança. Ficava muito impressionada com esse poder que nenhum super-herói tinha, e até me sentia meio inibida ao entrar no banho. Aí cresci e descobri que Deus, mesmo sendo onipotente e onipresente, dá suas escorregadelas – mínimas, mas dá. Sendo um ancião (nunca se falou em Deus como sendo um jovem), certamente precisa de óculos. E os esquece em algum lugar, como todos nós. Totalmente compreensível.

Quando são entregues coletes salva-vidas forrados de papel para refugiados que se lançam ao mar, quando médicos faltam aos plantões onde centenas de doentes fazem fila para ser atendidos, quando políticos dos mais diversos partidos compactuam com safadezas em proveito próprio, quando ônibus são depredados a título de manifestação, quando moradores da cidade são assaltados e baleados a qualquer hora do dia, Deus não está vendo nada – está procurando seus óculos, que não sabe onde largou.

Quando pessoas com ossos fraturados esperam anos para conseguir uma consulta na rede pública (se tiverem a sorte de não morrer antes), quando trabalhadores têm seus pertences arrancados pelas mãos de pequenos delinquentes, quando pequenos delinquentes não recebem nenhum tipo de educação e afeto de suas famílias (se tiverem a sorte de ter uma família), quando empresas fazem um trabalho porco para faturar mais, sem se preocuparem com as consequências (estradas esburacadas, pontes que caem, barragens que rompem), quando a ausência de higiene urbana facilita a proliferação de um mosquito indesejável, o que Deus pensa disso tudo? Nada, coitado. Nem viu a confusão. Está ocupado procurando os óculos na cozinha. Só podem estar ali.

E se ele não enxerga o macrocosmo, como enxergará o micro, esses borrões que somos você e eu, cada um em sua casa, com problemas que, se comparados com os da humanidade, nem mereceriam esse nome? Amores que não estão dando certo, a dor no ombro, a artrite, o cabelo que não para de cair, a dificuldade em emagrecer, o vício no cigarro, amigos que se transformam em ogros nas redes sociais, a festa de 15 anos que não deu pra pagar, o emprego que escapou das mãos, o medo da solidão, o pavor de envelhecer, as dívidas em dólar, a depressão bloqueando o entusiasmo. E esse Deus distraído que não encontra seus óculos em local algum.

O preconceito que cada um sofre por causa de sua raça, de sua sexualidade, de sua deficiência, de sua religião. Aliás, você é religioso e tem certeza de que Deus enxerga muito bem, que está vendo tudo, inclusive está de olho numa colunista desaforada que anda duvidando que Ele esteja com os óculos bem na ponta do nariz.

Pode ser, mas vai dizer: não parece que Deus perdeu os seus?

sábado, 13 de fevereiro de 2016



14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
MARTHA MEDEIROS

Almas gêmeas

Onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto

Anda difícil colocar a mão no fogo pelo amor eterno entre dois seres, então elejo aqui um casal que, este sim, raramente se separa, e quando separa, reata. Falo do Sr. Entusiasmo e do Sr. Pânico. Masculino com masculino, alguém ainda se constrange com isso?

Então avante: onde você enxergar o Entusiasmo, pode ter certeza de que o Pânico estará por perto. E quando enxergar o Pânico, saiba que o Entusiasmo estará à espreita. Um não circula sem o outro.

Vamos andar de balão? Vamos montar um cavalo selvagem? Vamos fazer um rali noturno? 

Tudo o que puder ser designado como radical leva o casal junto, entrelaçado.

E já que estamos falando em casal, pense em vocês dois. Sim, você e aquela criatura que era a última pessoa do mundo para quem você olharia duas vezes, mas olhou e quase enlouqueceu de entusiasmo pelo mundo novo que se descortinava e de pânico pelo buraco que se abria. A criatura era tudo o que você sonhava e nada do que você queria, como foi possível isso acontecer ao mesmo tempo?

Entusiasmo e Pânico.

Você está se formando? Parabéns. Compartilho a alegria por ter finalizado uma etapa importante da vida, é uma conquista memorável, hoje você e seus colegas são bacharéis, orgulhos de seus pais, hora de comemorar e de roer as unhas: haverá emprego para todos? E se a vida prática não corresponder às ilusões teóricas? Ao menos a cela especial está garantida, mas a piada é tão velha que nem o Entusiasmo e o Pânico veem mais graça nela.

Se o trabalho puder esperar, um intercâmbio revela-se uma boa ideia. Responda: não parece entusiasmante viver em outro país, morar na casa de uma família estrangeira e dar expediente na cozinha de um restaurante coreano a título de experiência? Não, responde o Pânico em seu quarto escuro às três da madrugada, com os olhos arregalados mirando o teto. Sim, responde o Entusiasmo às nove da manhã, ajudando você a preparar as malas.

Será que esses dois não se desgrudam nunca? Você se divorciou. Está livre, leve, solto e mal-intencionado: bem-vinda solidão depois de anos amarrado. O Entusiasmo brinda com os amigos no bar, enquanto o Pânico chora escondido.

Seu primeiro livro foi concluído, agora todos finalmente saberão o que se passa em seu íntimo, o talento que você tem, o talento que você não tem, a pretensão que lhe sobra, a genialidade que escondia: o que irá prevalecer?

Sem colocar o livro na rua, nunca saberá. Distribuindo-o, saberá. Duas hipóteses igualmente tentadoras e apavorantes. Prometem ser fiéis na alegria e na tristeza? Escândalo e Pânico respondem juntos que sim e trocam alianças. Só a morte os separa, só a morte, que é quando o Entusiasmo some e deixa o Pânico na mão.


14 de fevereiro de 2016 | N° 18445 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Alegria de Carnaval

Para um sujeito de classe média branca como eu, é uma alegria ver o modo como é possível hoje brincar o carnaval na rua, mesmo numa cidade como Porto Alegre, que apesar do adjetivo que lhe enfeita o nome é uma cidade sisuda, melancólica, de vez em quando depressiva mesmo. Ao ver o modo como os blocos agora se ajuntam e se divertem (eu não os frequento, logo não tenho deles nem mesmo queixas a fazer, como ocorre com gente de bem com a vida mas justificadamente aborrecida com os excessos de ocupação de rua com barulho, na Cidade Baixa), não posso evitar a lembrança contrastiva do que ocorria nos anos da minha juventude, os 70.

Bem, não se trata de uma experiência que possa servir de modelo a quem quer que seja, naturalmente, mas representa uma modesta parte do passado da cidade, tenho certeza. Ocorre que havia basicamente duas modalidades de carnaval naquele momento: ou os clubes, para a classe média (dominantemente branca), ou o desfile em escolas, para as camadas populares (dominantemente negras). 

Naquele momento, já quase não aconteciam mais os carnavais comunitários, de bairro, relativamente espontâneos – que, lembro bem, cheguei em vão a caçar numas madrugadas, com amigos que compartilhavam o gosto pela festa, ali pela Santana, no IAPI, mas, oh a falta da internet daquele tempo, não havia informação clara de data nem de horário, e o máximo que encontramos, alguma vez, foi um resto de festa numa arquibancada pequena, já com cara de aguarde o ano que vem.

“É hoje só, amanhã não tem mais”, aliás, era um dos bordões antigos para animar a festa, para convocar o folião a mandar brasa – acabo de misturar gírias fenecidas e desparelhas, de origem diversa e até incompatível, “folião” sendo um termo carnavalesco remoto, “mandar brasa” sendo um termo mais chulo e próximo do rock, como aquele “É uma brasa, mora?” do Roberto Carlos jovem e ainda não careta.

Tive a chance histórica de me divertir muito nos bailes de clube. O meu, a Sogipa, tinha duas noites de grande movimento, o sábado e a segunda, e nós, os que tocávamos no bloco do clube, o “Em cima da hora”, aproveitávamos outras quatro noites, além das nossas – uma prévia, no Teresópolis, na sexta-feira, mais as outras duas noites do tríduo momesco (tríduo de quatro noites, não tenho responsabilidade por essa incongruência aritmética), o domingo e a terça, e mais o baile de Enterro dos Ossos, no sábado seguinte. 

O circuito abrangia, além da Sogipa, o União, o Petrópole, o Clube do Comércio, o Leopoldina Juvenil, o já citado Teresópolis e o Israelita, com acréscimo eventual de outros clubes de bairro. Era baile pra não se queixar.

No Petrópole havia mesmo um concorrido concurso de blocos de clubes. Todo baile era sempre animado por um conjunto (uma banda, como se diz hoje em dia), e no auge desse processo setentista os grandes conjuntos de baile e de pop/rock se transmutavam em conjuntos de carnaval. O baile parava e entrava o bloco concorrente. Um ano, talvez 1976, vencemos o concurso – e eu gostaria de rever aquele troféu, se ainda existir.

A propósito: onde foram parar aquelas agrupações talentosas como o Impacto, o Je Reviens, o Boogaloo, o Alma e Sangue, o Desenvolvymento, com ípsilon? Sempre me ocorre um ensaio, talvez um capítulo de minhas possíveis memórias, acerca deste tema, para mim altamente significativo: naquele tempo, o paradigma era tocar bem, de modo o mais possível fiel, o mesmo arranjo e a mesma instrumentação, com o mesmo timbre e o mesmo arranjo de vozes, a exata versão do conjunto ou do cantor original, fosse ele o Deep Purple ou o Raul Seixas, Carole King ou Rolling Stones. Ninguém ousava cantar músicas de sua autoria, com uma exceção, o Desenvolvymento, em que a band-leader, Ana Maria Masotti, era compositora.

Na geração seguinte, inverteu-se o paradigma, e todos passaram a ser protagonistas com sua própria voz, sua visão das coisas, sua tábua de valores e, talvez mais importante de tudo, sua linguagem. Não em bailes, que acabaram naquele formato. Porto Alegre só começou a falar porto-alegrês na canção na virada para os anos 80, com o Nelson Coelho de Castro, o Nei, o Bebeto Alves, e olhe lá.

(Sim, o Liverpool tinha ousadia e autoria, mas nos 70 era quase uma lenda, não mais uma realidade ativa, como foi quando eu os vi, numa sessão matinal – sim, 10 da manhã, creio – no fenecido cine Rosário. Nada da tranquilidade desses libertos anos 2000, do Carlinhos Carneiro ao cantar, despreocupadamente, “Se tu quiser que eu te leve eu aprendo a dirigir”, coisa impensável para aquele escuro tempo.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016



10 de fevereiro de 2016 | N° 18441 
MARTHA MEDEIROS

Para pensar

A ONU propôs que os países latino-americanos flexibilizem suas leis sobre aborto, a fim de que mulheres grávidas com ameaça de infecção pelo zika vírus possam interromper a gestação. O Brasil nem considera a ideia, mas não se pode perder a oportunidade de voltar a debater o assunto de forma mais ampla e sem sentimentalismo – uma das razões do nosso atraso.

Vou direto às questões recorrentes.

Como tens coragem de defender o assassinato de uma criança?

Não é uma criança e não é assassinato: trata-se de interromper a formação de um embrião, a fim de respeitar os motivos de quem chegou antes, a gestante. Numa hipótese absurda, quem usa a palavra assassinato para aborto poderia usá-la também em relação à doação de órgãos. Não se estaria matando antecipadamente o doador? Afinal, também há um coração batendo, se é esse o critério. Simplista, não? (Sou doadora, que fique claro.)

Quem é contra a legalização do aborto está protegendo os direitos humanos?

Ao contrário. A lei serve apenas para punir as mulheres. Nenhuma delas levará adiante uma gestação indesejada só porque o governo, que nem a conhece, quer que ela tenha um filho. Ela abortará de qualquer jeito, como provam as estatísticas. Se tiver dinheiro, o fará em boas condições. Se for pobre, poderá adoecer, ficar infértil ou mesmo vir a óbito. Por que a vida delas valeria menos do que a de um embrião?

É preciso repressão do Estado, pois quem engravida sem querer não teve acesso a informação e prevenção.

Gravidez é fruto do desejo e do sexo. Duas coisas que não primam pela racionalidade. Mulheres inteligentes e bem-informadas também ficam grávidas sem querer. O paternalismo não procede.

Em vez de abortar, por que a mulher não doa o recém-nascido para adoção?

Seria perfeito, num mundo ideal. As que conseguem, merecem admiração. Só que a mulher que interrompe a gestação está, na verdade, rejeitando a criação de um vínculo. Se levar a gestação ao término, o vínculo acontecerá, não importa a decisão que ela tomar depois. É um assunto profundo e difícil, pois transcende a lógica. O que se está interrompendo é a formação de um amor. Duro? Duríssimo, mas a vida não é um conto de fadas.

O que você acharia se sua mãe tivesse abortado você?

O mundo não perderia nada. Ninguém dá falta do que nunca existiu. Você chora por alguém que poderia ter sido o inventor de algo chamado, sei lá, infragiro? Você lamenta o não nascimento daquela que viria a ser a melhor amiga da sua filha?

Olhe para os lados. O planeta está em crise. Dediquemos nosso afeto e solidariedade aos bilhões que chegaram até aqui e que estão precisando muito uns dos outros.

sábado, 6 de fevereiro de 2016



07 de fevereiro de 2016 | N° 18438 
MARTHA MEDEIROS

As enjambradas


Sempre destoei em festas, e no Carnaval infantil não era diferente

Ela era uma menina do interior e nunca tinha ido a um baile de carnaval nem sabia direito o que era. Até que chegou o dia. Colocaram nela um vestidinho colorido, um adereço qualquer na cabeça, deixaram que ela se maquiasse um pouquinho e a levaram ao baile, não sem antes passar na casa das primas, que iriam juntas. 

Ao chegar lá, a menina deparou com duas rumbeiras trajadas com vestidos longos, muitos babados, brilhos, turbante, pedrarias. As primas pareciam que iriam a uma festa de gala, enquanto a menina estava apenas enfeitadinha para pular e dançar o que aconteceu com algum muxoxo, visto que todos os foliões também estavam neste nível Clovis Bornay de luxo, ao menos aos olhos dela, a enjambrada.

Sei bem o que ela sentiu. Quando criança, eu também era a enjambrada nas comemorações de São João do colégio. Enfiava um chapeuzinho de palha e bora ser feliz, mas como? As meninas iam todas vestidas de prenda e com tranças que caíam pela cintura (acho que já existia aplique naquela época). Enquanto isso, eu era a própria caipira, de fato.

Sempre destoei em festas, e no Carnaval infantil não era diferente. Quase em todos os bailes fui fantasiada de índia (physique du rôle) e não duvido que achassem que eu era mesmo da tribo dos caingangues, pois enquanto usava um pano cru, fazia umas pinturas no rosto e colocava uma pena na cabeça, as outras índias vestiam trajes 100% camurça e tinha índia até de cetim. Eu era como aquela menininha do interior a quem bastava o espírito da diversão para fazer a festa funcionar, até descobrir que a vida em sociedade não é bem assim. Aliás, comentei? Aquela menina do primeiro parágrafo era minha mãe.

E como cultura familiar é um troço poderoso, aconteceu de eu ter duas filhas que quando crianças também iam a festas à fantasia e adivinhe: por mais que eu tenha tentado romper o ciclo das enjambradas e as ajudasse a se transformar nas odaliscas e fadinhas mais lindas do universo, não adiantava: sempre havia as famigeradas “rumbeiras” soltando purpurina pelos ouvidos e ofuscando o resto da criançada com uma quantidade cavalar de paetês.

Até hoje, não me sinto eu mesma quando me arrumo para uma grande festa (em que toda mulher se “fantasia”, de certa forma). Sempre me acho mais bonita de jeans do que a bordo de um modelito Jessica Rabbit. Antes de sair de casa para uma cerimônia de casamento, uma entrega de prêmio ou qualquer coisa que exija um visual causador, me olho no espelho e penso: valeu a tentativa, garota. Só que a imagem não me reflete. 

Sou boa no quesito adequação, ou seja, sigo corretamente o dress code de cada evento, mas obediência, apenas, não adianta. Está no sangue a alma de menina enjambrada. Só a simplicidade traduz perfeitamente o que me vai por baixo da pele.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016



03 de fevereiro de 2016 | N° 18434 
MARTHA MEDEIROS

Sentimentalismo


Li um texto divertido sobre as praias gaúchas (ah, sempre elas, as vítimas clássicas de todo verão). O autor, Giovani Groff, descreve Hermenegildo, depois Cassino, até chegar a Quintão, Magistério, Pinhal, Cidreira, Mariluz, Tramandaí, Xangri-lá, Capão, Arroio do Sal e Torres – e mais o que existe no caminho entre elas. Claro que é uma pegação de pé danada, e mesmo quem já foi feliz nas areias do litoral gaúcho, como eu, deixa o sentimentalismo de lado e dá boas gargalhadas.

Só que resolvi ler também os comentários sobre o texto, e aí confirmei: essa história de deixar o sentimentalismo de lado não é uma de nossas qualidades – aliás, nem é considerada uma qualidade.

Houve quem, contrariado com o texto, enaltecesse nossa região serrana – que nada tinha a ver com o assunto. Teve quem aproveitou a oportunidade para esculhambar Santa Catarina por estar com algumas praias poluídas – o que também não vinha ao caso. Era só um texto engraçado, mas os advogados de defesa do Rio Grande não saem de férias, estão sempre de plantão.

Este pequeno e desimportante episódio da série “não falem mal das nossas praias” me fez pensar que o sentimentalismo barato não é exclusividade nossa. O Brasil inteiro é assim.

Não sou nenhum bloco de gelo e acho que, enquanto nos emocionarmos, há salvação. Mas a afetação excessiva geralmente desvia a criatura do foco. Um exemplo antigo, mas ilustrativo: a Seleção Brasileira na última Copa. Aquela choradeira dos jogadores. O hino cantado como se o time estivesse diante de um pelotão de fuzilamento. As camisetas e bandeiras homenageando Neymar, como se ele tivesse sido vítima do Estado Islâmico. Isso não é ser emocional. É piegas. Um pouquinho menos de passionalidade e a gente teria perdido por 3 x 1, bem mais razoável.

Os alemães são secos? Os ingleses são frios? Os franceses são antipáticos? Estereotipando, é verdade, assim como é verdade que os brasileiros são alegres e afetivos, um atributo louvável. Mas os alemães também se apaixonam, os ingleses se comovem e os franceses são gentis, então seria natural que os brasileiros também fossem sérios e racionais, não?

Não. É nesta busca de equilíbrio que a gente peca. Temos pavor de deixar o sentimento de lado em prol de um raciocínio lógico. É como se, ao abrir mão do nosso perfil emotivo, perdêssemos a identidade. Queremos fazer amigos em cada bar, queremos ser amados, queremos contagiar com nossa faceirice e simploriedade. A ideia é encantar e seduzir através do nosso gigantesco coração. Só que, calorosos desse jeito, a autocrítica, que nasce do intelecto, desaparece. Sem autocrítica, como amadurecer?

Um Brasil um pouquinho mais cerebral e seríamos outro país.