quarta-feira, 28 de novembro de 2012




28 de novembro de 2012 | N° 17267 
MARTHA MEDEIROS

Pulsantes

Assisti à peça Vermelho, encenada pelo extraordinário Antonio Fagundes e por seu filho Bruno, que conta uma parte da vida do pintor Mark Rothko, expoente do expressionismo abstrato nos anos 50 e 60. O texto é tão bom, que saí do teatro com a cabeça fervendo.

Vontade de escrever sobre o dilema entre o que é artístico e o que é comercial, sobre as diferentes maneiras de vermos a mesma coisa, sobre a função da arte abstrata (que nunca me comoveu, mas à qual a partir da peça passei a dar outro valor) e sobre a desproteção das obras quando expostas (Mark Rothko era hiperexigente quanto à luz das galerias, assim como quanto à distância que o visitante deveria ficar da tela, e por quanto tempo esse visitante deveria observá-la até ser atingido emocionalmente... enfim, um chato, esse Rothko, mas fascinava).

No entanto, como não sou conhecedora de pintura, resolvi destacar aqui um outro aspecto da montagem, que diz respeito não só a artistas plásticos, mas a todos os que lidam com criação. Pensando bem, até com os que não lidam.

Muitos entre nós ainda acreditam que trabalho e prazer são duas coisas distintas que não se misturam. O dia, em tese, é dividido em três terços: oito horas trabalhando, oito horas aproveitando a vida (até parece: e as filas? e o trânsito?) e oito horas dormindo. Cada coisa no seu devido lugar. Apenas os artistas teriam a liberdade de subverter essa ordem.

Pois o mundo mudou. O trabalho está deixando de ser aquela atividade burocrática e rígida cuja finalidade era ganhar dinheiro e nada mais. Queremos extrair prazer do nosso ofício, seja ele técnico, artístico, formal, informal. O conceito de estabilidade perdeu força, as hierarquias já não impressionam.

A meta, hoje, é aproveitar as novas tecnologias e as oportunidades que elas oferecem. Atuar de forma mais flexível, autônoma e motivada. Trocar o “chegar lá” pelo “ser feliz agora”. Ou seja, amar o trabalho do mesmo jeito que se ama ir ao cinema, pegar uma praia e sair com os amigos.

Rothko respirava trabalho, e considerava que estava igualmente trabalhando quando lia Dostoievski, quando filosofava, quando caminhava pelas ruas, quando amava, quando dormia, quando conversava. Defendia a vida como matéria-prima da inspiração, sem regrar-se pelo horário comercial. Não se dava folga – ou folgava o tempo inteiro, depende do ponto de vista. Quando não estava pintando, estava alimentando sua sensibilidade, sem a qual nenhuma pintura existiria.

Nos anos 50, só mesmo um artista poderia viver essa fusão na prática. Depois que cruzamos o ano 2000, porém, é uma tendência que só cresce, em todas as áreas profissionais, nas que existem e, principalmente, nas que estão sendo inventadas.

Como pintor, Mark Rothko valeu-se de uma vasta cartela de cores, mas expressou-se magistralmente em vermelho – na verdade, ele viveu em vermelho. Paixão, sangue, vinho, pimenta, calor, sedução. Ele sabia que essa era a cor que pulsava. E segue moderno, pois, como ele, são os pulsantes que estão fazendo a diferença.

sábado, 24 de novembro de 2012



25 de novembro de 2012 | N° 17264
MARTHA MEDEIROS

As incríveis Hulk

Lamento ser portadora de más notícias, mas o tempo faz você alargar. Apenas isso

Você nunca pensou em fazer cirurgia nos seios, nem para aumentá-los, nem para reduzi-los, pois está satisfeita com eles do jeito que são e não sente necessidade de transformar nada, ainda mais que já atingiu meio século de existência.

Mas uma transformação aconteceu à sua revelia. Eles aumentaram um pouquinho de tamanho. Você não está grávida, naturalmente. Aconteceu. E, pensando bem, ficaram mais bonitos. E mais pesados, um perigo, você sabe por quê. Mas a vida segue.

Um dia você está no trabalho e sente um desconforto. Não entende bem a razão. Quando chega em casa, sente a compulsão de tirar o sutiã. Anda pela casa com tudo solto, seu marido acha que você está tendo uma recaída hippie, mas deixe ele pensar o que quiser. Consigo mesma, você dialoga: será que andei comprando um número menor do que costumo usar?

Passam as semanas e de novo a sensação de aperto. Não consegue mais atravessar o dia inteiro de sutiã, mesmo usando alguns muito confortáveis. Secretamente, você começa a usar os seus sutiãs mais velhos, aqueles que já estão meio folgados. Só quando há a promessa de uma noite de amor é que troca por um belo sutiã de renda bem justo, e na hora em que ele é aberto pelo felizardo com quem divide os lençóis, você solta um gemido de prazer antes da hora.

Hum. Tem alguma coisa estranha aí.

Você descobre o que é no dia em que recebe de presente uma camiseta de manga comprida. Tamanho médio, não tem erro, você usa o tamanho médio desde os 15 anos. Você a veste e está tudo ok, ela escorrega pelo tórax, e tem o cumprimento ideal. Se você for como eu, vai sair com o presente já no mesmo dia em que o recebeu.

Sou do tipo que compra uma roupa numa loja e saio usando, não espero ocasiões especiais. Então, você usa a camiseta que ganhou no mesmo dia também, até que, durante o encontro com as amigas à tardinha, sente uma compressão no bíceps, igualzinho a quando seu marido a agarra enciumado para levá-la embora da festa.

Na hora de erguer o braço para fazer um brinde, tem a impressão que a camiseta rasgará na altura da axila. Quando chega em casa, mal consegue despi-la, parece uma roupa de neoprene, você se sente um surfista que acaba de sair do mar. Ao conseguir, depois de 10 minutos, se desfazer da camiseta, seus braços quase falam e agradecem: obrigada por nos devolver a circulação do sangue.

Calma. Pense. Você não está mais gorda. Alguém pode explicar?

Lamento ser portadora de más notícias, mas você alargou, apenas isso. Segue linda, mas seus braços não são mais aqueles dois gravetos de antigamente e suas costas não fazem mais os marmanjos suspirarem cada vez que usa frente única. Os ombros pontiagudos, outrora tão elegantes, deram uma arredondada.

Enfim, o tempo fez um preenchimento por conta própria no que antes era naturalmente delgado. Nada grave. Não tome nenhuma providência, pois isso não se resolve com dieta nem cirurgia. É o efeito colateral de continuar viva e saudável – não queria ter morrido esquelética aos 40, queria? Aumente a numeração do sutiã e siga vivendo como se nada estivesse acontecendo.

E, por cautela, reforce todas as costuras.


24 de novembro de 2012 | N° 17263
NILSON SOUZA

Estradas não matam

Sei que é uma linguagem figurada, mas fico indignado cada vez que leio ou ouço que uma determinada rodovia causou a morte de não sei quantas pessoas. Ao culpar a estrada, estamos invariavelmente protegendo motoristas irresponsáveis que colocam em risco suas vidas e as de terceiros.

O que mata – todos sabemos disso, mas às vezes fingimos não saber – é o excesso de velocidade, é a ultrapassagem indevida, é a direção perigosa associada à ingestão de álcool. A estrada, coitada, apenas acolhe passivamente os arrojados e os prudentes, oferecendo-lhes a democrática oportunidade de ir e vir. Como já disse um filósofo anterior ao automóvel, cada caminho leva a um destino, mas quem escolhe é o caminhante.

Quem escolhe a pressa, porém, acha que tudo e todos têm que sair da sua frente. Se bem me lembro, já teve até autoridade propondo o corte de árvores na beira de rodovias, como forma de prevenir choques fatais. A tese parece, mas não chega a ser, absurda: motoristas sonolentos e imperitos passariam a ter uma área de escape maior para se recuperar da barbeiragem.

Além disso, um choque contra um barranco ou um banho no lago tendem a ser menos letais do que uma batida abrupta contra um obstáculo fixo. Então, se for para salvar uma vida, mesmo a de quem a coloca em risco desnecessariamente, até não me importo que cortem árvores e removam postes.

Só não dá para remover, e nem mesmo para avisar com antecedência, outros motoristas que trafegam nas mesmas estradas dos apressadinhos. Estes, ainda que sejam cautelosos e bons condutores, podem ser abalroados, feridos e mortos, como quase sempre acontece quando alguém sai da linha. Quando isso ocorre, não podemos deixar de pensar, até com certa crueldade, que talvez fosse melhor ter deixado o poste ou a árvore no seu lugar.

Pois o problema do trânsito é exatamente esse: os infratores raramente pagam sozinhos por seus delitos. Tem sempre mais gente na estrada. Aliás, tem cada vez mais gente na estrada, mais veículos, mais motoristas, mais irresponsáveis. Tal é a superlotação da malha rodoviária, que um amigo meu atribui o morticínio do trânsito a uma espécie de seleção natural da espécie Homo automobilus, que há muito substituiu a dos sapiens.

Se há um lugar em que o ser humano deixa de lado toda sabedoria acumulada desde sempre é exatamente na direção de um carro. Aquele emblemático desenho animado do Pateta, que se transforma de pacato cidadão em fera no volante, não passa apenas nas escolas de condutores. Passa-se, isto sim, na vida real, todos os dias. O automóvel dá poder de fogo ao indivíduo ao mesmo tempo em que lhe subtrai o raciocínio.

As árvores, os postes e os outros que saiam da frente. Em caso de acidente, culpa da estrada. Dá para aceitar isso?

RUTH DE AQUINO

Pelo fim dos salários extras dos senadores

Excelentíssimos senadores. Tomem vergonha e paguem o imposto devido à Receita Federal sobre o 14º e o 15º salários que os senhores vêm recebendo à custa de um tratamento imoral desta nossa República, onde uns são mais iguais do que outros. Não passem sua dívida para os contribuintes. Nós só temos direito, quando muito, ao 13º salário.

Não acreditem nos aduladores que os chamam de “homens incomuns”. Os senhores deveriam se orgulhar de ser comuns, no cumprimento às leis. Deveriam recusar mordomias incompatíveis com o serviço público. Os senhores nos representam na Câmara Alta? Deem então o exemplo – a seus filhos e à nação. Não se finjam de tolos, porque tolos não são. E não se esqueçam das multas e dos juros. Comemorem o fato de que a Receita só pode cobrar atrasados dos últimos cinco anos. Cuidado com o nome sujo na praça.

Em agosto, o Leão deu um prazo de 20 dias para Suas Excelências enviarem cópias de contracheques e comprovantes de rendimentos anuais. Foi um deus nos acuda. A cada ano, em valores atuais, um senador ganha R$ 53.400 extras, de 14º e 15º salários. Essa benesse foi criada em 1946.

Os senadores nunca recolheram imposto sobre isso. Agora, pressionados pela Receita e sob ameaça de uma investigação do Tribunal de Contas da União, cada senador terá de devolver aos cofres aproximadamente R$ 65 mil, fora juros e multas, relativos aos últimos cinco anos. Convenhamos: é muito pouco. Pouco para eles, bem entendido. Se imaginarmos que o mandato de cada senador custa R$ 33,1 milhões por ano ao país, segundo o site Transparência Brasil.

Eles ficaram revoltados. Embora sejam cultos e informados, os senadores pensavam que o 14º e o 15º salários eram só uma ajuda de custo, isenta de impostos. Incrível. Esses extras apenas se somariam a verbas que ajudam os senadores a sobreviver com estilo. Por fora do subsídio mensal, eles têm moradia paga, refeição paga, passagem aérea paga, telefone pago, combustível pago, assessor pago. Alguns têm até amante paga.

Na terça-feira passada, o Senado decidiu custear a dívida dos senadores. Com dinheiro público. Isso quer dizer que você e eu daremos uma mão aos parlamentares. Pagaremos os impostos devidos por eles. Além dos nossos, claro. Natural, num país em que a carga tributária é baixinha... Os senadores dispostos a pagar a dívida do próprio bolso deveriam comunicar à Casa sua intenção até o fim da sexta-feira, quando esta coluna era escrita. Seria útil divulgar a lista.

Você e eu ajudaremos a pagar os impostos devidos pelos parlamentares – além dos nossos, é claro

Sabemos da importância de um Legislativo forte numa democracia. Saudamos a independência entre os Poderes. Mas, por favor, senadores, mirem-se no Judiciário de Joaquim Barbosa. Ao tomar posse, Joaquim disse que o juiz deve guardar distância das “múltiplas e nocivas influências” – entre elas as políticas – para se manter independente.

Pediu que o juiz escute o “anseio” da sociedade e não se isole “numa torre de marfim”. Reconheceu o “deficit de Justiça” no Brasil, lamentou que nem todos os brasileiros sejam tratados “com igual consideração”.

Defendeu um Judiciário “sem firulas, sem floreios, sem rapapés”.

Traduzindo a fala de Joaquim para nossos 81 senadores. Mantenham sua independência sem relações espúrias com lobistas, laranjas, bicheiros e empresários. Ouçam a sociedade e não se isolem. Os eleitores estão cansados de maracutaias, de espírito corporativista e da ressurreição de fantasmas como Renan Calheiros.

Votem com a consciência, e não com a conveniência. Abram mão de privilégios de casta. Sem firulas, sem floreios, sem rapapés, ataquem o nepotismo e a corrupção na Casa. E paguem seus impostos, porque isso é o mínimo que se exige dos contribuintes.

Aproveito o imbróglio para lançar uma campanha mais radical – pelo fim dos 15 salários dos senadores. Não há justificativa, excelentíssimos. É por isso que, às vésperas do recesso de fim de ano, fica todo mundo rindo e fofocando. Já pensou tirar férias assim?

Existe um projeto que restringe os salários extras ao primeiro e ao último ano de mandato. Mas ninguém quer saber de votar – o texto deve estar nas gavetas empoeiradas dos porões do Congresso. Mesmo se fosse aprovado, continuaria sendo uma prática imoral.

Por que quem é pago por nós ganha dois salários a mais ao ano?

Presidente Dilma, com todo o respeito, não pegou bem seu rosto emburrado de tédio na posse de Joaquim Barbosa como presidente do STF. A senhora fez um gesto carinhoso e gentil, ao ajeitar a capa do ministro. Mas trancou a boca e o olhar, mostrou-se alheia ao clima nacional de alegria e comemoração.

Poderia ter ignorado as orientações e mostrado personalidade. Poderia ter-se colocado acima dos erros e das paixões. A senhora fica mais bonita quando sorri.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012



21 de novembro de 2012 | N° 17260
MARTHA MEDEIROS

Casas

Era cedo da manhã e eu estava na sacada do meu apartamento lendo o jornal e pegando um pouco de sol. Foi quando a escavadeira começou o seu serviço. Com um barulho irritante, foi demolindo uma casa onde vivia uma velhinha miúda e briguenta. Não raro eu a via em plena calçada, de roupão, discutindo com algum vizinho. O que será que aconteceu a ela? Espero que esteja bem, mas sua casa morreu de morte matada.

No fim daquele mesmo dia, havia tudo sido posto abaixo. Pilares, paredes, telhado. Do ponto de vista de onde eu estava, a casa me pareceu pequena, uma miniatura insignificante. Mas nunca será insignificante um lugar onde foram criados filhos, onde refeições em família aconteceram, onde Natais foram celebrados, onde amigos foram recebidos e onde houve um jardim. Casas possuem algo de sagrado.

Nunca morei em casa, sempre em apartamentos que serviram de cenário para a história de vida que construí. O da Rua Fabrício Pillar, onde passei a infância, o da Dom Pedro II, onde vivi a adolescência, o da Lavras, onde morei sozinha, o da Mariz e Barros, onde escrevi meus poemas e tive minhas filhas, o da João Obino, onde as criei e comecei a escrever crônicas, e este onde vivo agora, num andar alto em que posso observar boa parte da cidade e o estrago que algumas escavadeiras fazem em volta.

Tenho ótimas lembranças dos meus ex-apartamentos, mas, se os edifícios em que se localizam fossem demolidos, a nostalgia seria repartida entre muitos, não me sentiria atingida de forma especial. Casa tem um status diferente. Cada casa é única. Traz o DNA da família. Não é produto de classificados.

Não moro em casa porque sou prática, gosto de bater a porta e não me preocupar com questões de segurança, além de fazer questão de vista panorâmica. Mas não deixo de admirar as casas de rua, casas passadas de pais para filhos, casas teimosas que se mantêm de pé a despeito das escavadeiras. Toda casa é uma sobrevivente, deveria exibir na porta uma medalha pela resistência.

Esse preâmbulo todo é pra falar do novo livro da Cintia Moscovich, Essa Coisa Brilhante que é a Chuva, onde ela reúne contos primorosos, com um humor muito peculiar e uma humanidade que nos nocauteia. O mais longo, que encerra o livro, narra a história de uma casa e de uma família.

“Uma forma de herança”, chama-se, e comove profundamente, pois traz à tona o que está mais que evidenciado: as escavadeiras andam passando por cima das nossas eternidades. Hoje não preservamos as matrizes da nossa história, viramos cidadãos dispersados, cada um sob seu teto. A solidão, quem diria, também pode ser um subproduto da especulação imobiliária.

A Feira acabou, mas os livros seguem no mercado. Anote: Essa Coisa Brilhante que é a Chuva, de Cintia Moscovich. Se você acha o título longo e difícil de guardar, decore ao menos uma palavra: brilhante. 

sábado, 17 de novembro de 2012



17 de novembro de 2012 | N° 17256
NILSON SOUZA

Deus e Marianne

Confesso que nunca tinha observado com atenção uma cédula do nosso atual dinheiro para perceber que Deus está lá. Agora que querem expulsá-lo, porém, tive o cuidado de olhar com lupa os trocados que carrego no bolso, para me certificar de que a Casa da Moeda não se esqueceu de imprimir a legenda de fé que acompanha a efígie simbólica da República – aquela enigmática senhora francesa de olhar cego e expressão de absoluto enfaro.

Se pudéssemos ler o pensamento da nossa Marianne – esse é o seu nome original –, provavelmente veríamos algo como “o que é que estou fazendo aqui outra vez?”. Ela tem sido chamada sistematicamente para chancelar as nossas turbulências monetárias: apareceu na cédula de 1 cruzeiro na década de 70, voltou como 200 cruzados novos no final dos anos 80, retornou nos 5 mil cruzeiros de Collor em 90 e reassumiu a titularidade na era do real, em todas as notas, a partir de 1994.

De vez em quando, é despejada para dar lugar a vultos da nossa história, políticos, escritores, artistas e até figuras regionais indefinidas. Já tivemos, por exemplo, um gauchão de bigode estampando a nota de 5 mil cruzeiros reais, de curta circulação. Pois bem, e Deus, o que está fazendo lá? Cópia, evidentemente. Os americanos lascaram “em Deus nós confiamos” no seu dólar, e nós, como bons súditos, tínhamos que fazer algo parecido. Saiu “Deus seja louvado”, que alguns irreverentes gostariam de ver corrigido para “Deus nos acuda”.

Seja como for, a expressão parece estar com os dias contados. A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, de São Paulo, ingressou com uma medida judicial exigindo que o Banco Central elimine a citação religiosa, sob o argumento de que o Brasil é um Estado laico. Vem aí outra polêmica nacional, como a que resultou na retirada dos crucifixos das repartições públicas.

Deus, como Marianne, certamente não será consultado. Se o fosse, aposto que não faria a mínima questão de assinar um papel que simboliza a ganância e a vilania, que compra consciências e motiva os mais hediondos crimes. Mas seu santo nome está lá, no que parece ser um evidente caso de falsidade ideológica e uma inquestionável afronta ao segundo mandamento de sua lei.

Marianne também é um nome santo e emblemático, conjugação de Maria com Anne, representação da República e do povo na França revolucionária. Sua imagem de pedra não evoca fé, mas valores humanos que, se fossem observados, dispensariam o uso indevido da proteção divina: liberdade, igualdade e fraternidade.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012



14 de novembro de 2012 | N° 17253
MARTHA MEDEIROS

Brasília e as distâncias

Estive em Brasília na semana passada para um evento que me encheu de orgulho. Fui receber a medalha da Ordem do Mérito Cultural, entregue pelas mãos da presidente Dilma Rousseff em cerimônia realizada no Palácio do Planalto.

Aproveito para cumprimentar os outros dois premiados do Sul nessa festa que teve como principal homenageado Luiz Gonzaga: a professora e doutora em Educação Cleodes Ribeiro, que reside em Caxias, e a Fundarte, de Montenegro. Compartilhamos esse momento ao lado de Marieta Severo, Regina Casé, os irmãos Campana, Elba Ramalho, além de ilustres póstumos como Plínio Marcos, Mazzaropi, Jorge Amado, Herivelto Martins e outros nomes de igual estatura.

Éramos 40 representantes da cultura brasileira, entre pessoas físicas e jurídicas, vivas e falecidas, e, se me permitem a piada, em trânsito: Orlando Orfei, aos 90 anos, compareceu frágil em sua cadeira de rodas, comovendo a todos que tiveram infância.

Mas, afora essa introdução cabotina, quero falar sobre Brasília. Foi a sexta vez em que lá estive, e não consigo mudar minha impressão: não é uma cidade, e sim uma instalação a céu aberto com obras do magnífico Oscar Niemeyer. Não há como não ficar impactado com seu trabalho grandioso e atemporal. De resto, a Capital Federal é uma abstração.

Brasília é plana – e fruto de um plano, imagino: impor distância entre o governo e o povo. A localização parece estratégica no bom sentido (no centro do país, o que, em tese, promoveria uma aproximação democrática com todos os Estados), mas na prática Brasília está ilhada em meio ao cerrado, observando os brasileiros de binóculos.

Nada convida à aproximação. Imensos terrenos separam os prédios. A cidade é dividida em setores que não se comunicam com facilidade. Caminhar em Brasília é um desconsolo, uma travessia solitária em meio à geometria fria e monocromática das ruas.

A cerimônia de premiação se deu pela manhã, e no início da noite fomos convidados para um coquetel no Palácio da Alvorada, onde a presidente, junto a alguns ministros, recebeu-nos como uma dona de casa recebe: com alegria, afeto, descontração.

Havia quadros, tapetes, cortinas, um lindo jardim com piscina e a presença de Chambinho do Acordeon (protagonista do filme Gonzaga, de Pai Para Filho), que tocou xote, baião e promoveu um arrasta-pé no meio da sala. Dançamos, cantamos. Havia calor humano ali. Havia gente ali. Foi a única ocasião em que me senti numa cidade comum.

Vi quando alguém cumprimentou a presidente pela sua casa e ela respondeu: “Não é minha, e sim de todos os brasileiros”. Meu primeiro pensamento: “Hum, da próxima vez vou trazer meu biquíni”. O segundo: “Brasília inteira deveria ser a casa de todos os brasileiros”. O Rio é. Salvador é. Qualquer outra cidade do Brasil é.

Uma casa é onde seus moradores interagem, onde todos são vistos, onde a proximidade desmascara as mentiras e impõe a verdade. Uma casa é onde acontecem nossos dramas, comédias, rebeliões, discussões, abraços. É onde a vida germina e cresce. A capital de um país deveria estimular exatamente isso que Brasília dificulta: a convivência.

sábado, 10 de novembro de 2012



11 de novembro de 2012 | N° 17250
MARTHA MEDEIROS

Falar em público

Uma amiga me pede socorro: foi convocada a falar por 20 minutos num evento profissional, ela que nunca palestrou ou participou de qualquer debate com plateia. Está assustada e me pede uns truques para combater o nervosismo. Sei que há cursos de oratória para ajudar as pessoas a relaxarem nessas situações, mas não há tempo hábil para tomar aulas. O evento é pra já a essa altura, já foi, inclusive.

O que se diz a uma amiga nessa hora? Procure ter segurança sobre o conteúdo da sua fala, não se preocupe com o que os outros estão pensando (eles também não estariam à vontade no seu lugar) e, principalmente, tenha consciência de que uma palestra é só uma palestra, não serão por esses 20 minutos que você será avaliada no Juízo Final.

Mas é fácil falar. Melhor dizendo: não é fácil falar, não em frente a outras pessoas. Depois de anos de prática, hoje em dia já não me estresso, mas, no início, madrecita, era um castigo. A boca secava num grau que me impedia de articular as palavras com desenvoltura.

No meio da conversa, eu ficava em pânico com a possibilidade de perder o fio da meada, e acabava perdendo, claro. Tinha pavor de estar sendo analisada pelo que estava dizendo, e mais ainda pelo que não era o assunto em pauta: minha excessiva gesticulação, por exemplo.

Sempre falei rápido, e nessas ocasiões, aí é que virava uma metralhadora: tinha pressa em acabar logo com aquilo. E havia a tosse. Assim como as pessoas sentem compulsão de tossir durante peças de teatro, eu, lá pelas tantas, começava a sentir a garganta arranhar e a expectoração tinha início.

Na maioria das vezes, eram pigarros inocentes, mas teve uma vez em que estava dando uma entrevista, não lembro se para o Lauro Quadros ou para a Tânia Carvalho, e tivemos que encerrá-la por absoluta incapacidade de eu seguir adiante. Vexame, vexame.

Algumas pessoas se sentem mais seguras se há algum conhecido no recinto: a esposa, o marido, um colega. Eu, ao contrário, me sinto mais tranquila – ou menos aflita – diante de estranhos.

Sempre me apavorou a ideia de decepcionar meus afetos mais íntimos. Logo, pode-se imaginar o meu estado de nervos quando, em 1999, recebi uma homenagem da Câmara dos Vereadores e na plateia se encontrava pai, mãe, irmão, cunhada, madrinha, tias e todas as melhores amigas: a máfia reunida. Na hora de agradecer os discursos feitos em plenário, falei por cronometrados dois minutos, nem um segundo a mais – e entre gaguejos. Vexame, vexame, vexame.

Não era timidez, e sim imaturidade. Não tolerava a ideia de errar, o que é uma autoexigência absurda. Ora, erramos. Trememos. Dizemos bobagens. Não somos doutores em nada, e sim pessoas esforçadas, o que já é um valor.

Se alguém tem interesse no que temos a dizer, isso, por si só, já deveria tranquilizar: estamos apenas atendendo a um gentil convite para dividirmos nossa opinião e nosso conhecimento com os outros. Palco, púlpito e microfone são intimidantes, mas não passam de instrumentos para facilitar a comunicação. O segredo, que nem é segredo, é procurar se divertir e não levar esses poucos minutos de visibilidade tão a sério.

Minha amiga acabou se saindo muito bem. Já esqueceu o sofrimento e está pronta para outra. Sabia. Depois que os fantasmas são exorcizados, a vida destrava. 


10 de novembro de 2012 | N° 17249
CLÁUDIA LAITANO

Morangos que não mofam

A moedinha número 1 da minha coleção de livros é uma edição barata e já amarelada de Morangos Mofados. Caio Fernando Abreu foi uma paixão avassaladora da minha adolescência, e esse pequeno volume de contos que ele lançou em 1982 foi o primeiro livro que eu comprei – e também o primeiro que alguém autografou para mim: “Prá Cláudia, por exemplo, 1 Beijo, Caio Fernando Abreu, 82”.

Eu com 16 anos, meu autor favorito com 34, um encontro, um olhar de cumplicidade (“ninguém te entende como eu...”), uma assinatura, uma lembrança guardada para sempre... Bom, mais ou menos.

O problema é que eu não tenho a mais remota recordação desse encontro. Onde eu pedi esse autógrafo? Quando? Estava sozinha? Disse alguma coisa terrivelmente adolescente sobre como o livro tinha mudado a minha vida ou congelei envergonhada? Que impressão eu tive do autor diante de sua versão não impressa? Zero. Zip. Nada. Não tem registro.

Há um enorme descompasso entre a memória clara e bem definida da forte impressão causada pela leitura dos livros de Caio naquela época e a eliminação sumária da lembrança do nosso primeiro e único encontro. Sou dessas pessoas que guardam melhor sensações e sentimentos fortes do que fatos e cronologias, mas gosto de pensar que nesse episódio específico meu inconsciente decidiu por conta própria que, entre o autor e a obra, ficaria com a segunda.

A experiência de ficar perto do escritor, falar com ele talvez, tornou-se menos importante do que os seus livros e teria se perdido completamente não fosse essa assinatura que está aqui na minha frente agora enquanto escrevo – exatamente 30 anos depois daquele momento que eu esqueci de lembrar para sempre.

Algumas pessoas tatuam a assinatura dos ídolos na própria pele, o que é uma forma radical de literalmente incorporar uma experiência estética marcante. Outras já nem mais pedem autógrafo, preferindo apenas a fotografia, um registro para ser compartilhado e que, de certa forma, é um laço permanente, nem que seja pelo nanossegundo do clique de um celular.

(Nos últimos dias, participei de três sessões de autógrafos, em três cidades diferentes, e não seria exagero dizer que mais tirei fotos do que distribuí autógrafos – ou que pelo menos deu empate técnico. )

É sempre uma experiência muito intensa essa de duas pessoas que não se conhecem e que tentam, em poucos minutos ou segundos, recriar uma comunicação que até ali existia apenas na intimidade silenciosa da leitura. A assinatura, em geral, é apenas um pretexto, de quem escreve e de quem lê, para transportar uma ligação abstrata e “pura” para o universo concreto do toque, do olhar, da troca de impressões mútuas – ainda que superficiais e incompletas.

Todos esses detalhes se perdem com o tempo. Vão-se os sorrisos, os olhares, os abraços afetuosos, as declarações de devoção profunda e eterna. Ficam a assinatura, uma saudação cordial, e agora talvez uma foto no Facebook também. Mas tudo isso é quase nada comparado com aquele momento único em que o leitor encontrou-se – a sós e em silêncio – com a melhor versão possível de um escritor: o livro que ele escreveu.

terça-feira, 6 de novembro de 2012



06 de novembro de 2012 | N° 17245
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Modernistas vencedores

Se o prezado leitor me acompanha de outras jornadas, deve já estar aborrecido de tanto me ouvir reclamar do que me parece ser uma supervalorização do modernismo paulista. E de fato acho isso, há muito tempo: por motivos perfeitamente conhecidos e narráveis, mas extensos demais para um texto como este aqui, a ideologia modernista expressa na famosa Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, veio a ganhar ares de verdade absoluta, com o tempo.

O tempo que se chama criação da USP e a subsequente revisão da história da literatura e da cultura brasileiras, que fez o serviço de colocar no relato desse processo, como centro absoluto, como revelação de sentido, a ação dos ditos modernistas, em particular Mário de Andrade (Oswald continua a ser visto como desviante).

Já escrevi muito sobre isso, e continuo nessa bronca, sempre dizendo que liminarmente não tenho nada contra paulistas ou a favor de cariocas, gente tão boa ou tão ruim quanto qualquer outra. Meu tema é uma discussão sobre como vemos, sentimos, vivemos nosso passado e, por isso mesmo, como lidamos com nosso presente e nosso futuro. Nosso de quem, o senhor quer saber? Nosso de brasileiros, ou de usuários do português falado no Brasil.

Esses dias fui finalmente ler um pensador francês que, nada tendo a ver com os paulistas, me ajudou a entender um pouco mais a coisa. O livro é Jamais Fomos Modernos, e seu autor é Bruno Latour (editora 34), saído pela primeira vez no distante ano de 1991, que eu desconhecia.

Diz ele que sempre que usamos palavras como moderno, modernização, modernidade e, acrescento eu, modernismo, duas coisas acontecem no espírito: primeiro, fica definido, por contraste com o moderno, um passado arcaico e estável; segundo, tais termos implicam a noção de haver vencedores (naturalmente os modernos) e perdedores (os demais).

É bem isso, caro Latour! E é bem contra isso que me insurjo (exclamo de novo)! A entronização do modernismo como verdade, como critério supremo de avaliação, criou um passado arcaico e estável, um passado que parece não comportar movimento, portanto não merecer reavaliação; e criou vencedores, os modernistas, erguidos sobre os cadáveres dos perdedores, os demais. Quando eu penso que desse passado estável, desse grupo de perdedores, está Machado de Assis, nem sei bem o que fazer.


06 de novembro de 2012 | N° 17245
FABRÍCIO CARPINEJAR

O que separou a família brasileira

Eu sei o que desuniu a família brasileira.

O momento em que ela abandonou o tradicional almoço em casa e procurou a rapidez do restaurante a quilo.

Quando ela se desinteressou por completo da residência. Quando trocou a diarista pela faxineira duas vezes por semana.

Quando começou a comprar comida congelada e economizar com os talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria do final da tarde.

Quando as saídas ao supermercado tornaram-se frequentes. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente.

Quando a vassoura sumiu de trás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.

Quando ter uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai não mais visitou sua oficina de marcenaria na garagem.

Quando a tabuleta de bem-vindo acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da porta.

Quando a mãe adiou o jardim. Quando a vista de fora superou o carinho da decoração.

Eu sei eu sei eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que a gente parou de vestir o botijão de gás.

Aquele ato mudou a mentalidade da classe média.

Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência e ordem doméstica. Mostrava uma preocupação com o olhar das visitas. Um carinho com os coadjuvantes da rotina. Um capricho com as gavetas e despensas e forros e fundos e cantos e quinas.

Não se podia deixar o gás daquele jeito sujo e engraxado no coração de azulejos da cozinha. Correspondia a um ultraje, a falta de educação, a ausência de asseio.

Ele precisava estar agasalhado. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, os carros na garagem.

Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, o fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se pensava em trocar, não se guardava o certificado de garantia, absolutamente dispensável.

Minha mãe não largava os pedais da Singer nos finais da tarde, elaborava tampas coloridas para as compotas de doces ou revestimentos para penduricalhos.

É óbvio que costurava, mensalmente, uma saia de renda para o gás, aproveitando sobras dos tecidos da cortina.

Eu achava que o botijão fosse uma irmã.

Meu irmão caçula já considerava um menino e chamava sua roupa de poncho.

– Mas é floreado! – eu dizia. – Não existe poncho floreado.

Vestir o botijão revelava o quanto nos importávamos com o desnecessário.

O quanto tínhamos tempo livre para amar.

Tempo livre para amar a família.

Tempo livre.


sábado, 3 de novembro de 2012



04 de novembro de 2012 | N° 17243
MARTHA MEDEIROS

A melhor versão de nós mesmos

Alguns relacionamentos são produtivos e felizes. Outros são limitantes e inférteis. Infelizmente, há de ambos os tipos, e de outros que nem cabe aqui exemplificar. O cardápio é farto. Mas o que será que identifica um amor como saudável e outro como doentio? Em tese, todos os amores deveriam ser benéficos, simplesmente por serem amores.

Mas não são. E uma pista para descobrir em qual situação a gente se encontra é se perguntar que espécie de mulher e que espécie de homem a sua relação desperta em você. Qual a versão que prevalece?

A pessoa mais bacana do mundo também tem um lado perverso. E a pessoa mais arrogante pode ter dentro de si um meigo. Escolhemos uma versão oficial para consumo externo, mas os nossos eus secretos também existem e só estão esperando uma provocação para se apresentarem publicamente. A questão é perceber se a pessoa com quem você convive ajuda você a revelar o seu melhor ou o seu pior.

Você convive com uma mulher tão ciumenta que manipula para encarcerar você em casa, longe do contato com amigos e familiares, transformando você num bicho do mato? Ou você descobriu através da sua esposa que as pessoas não mordem e que uma boa rede de relacionamentos alavanca a vida?

Você convive com um homem que a tira do sério e faz você virar a barraqueira que nunca foi? Ou convive com alguém de bem com a vida, fazendo com que você relaxe e seja a melhor parceira para programas divertidos?

Seu marido é tão indecente nas transações financeiras que força você a ser conivente com falcatruas?

Sua esposa é tão grosseira com os outros que você acaba pagando micos pelo simples fato de estar ao lado dela?

Seu noivo é tão calado e misterioso que transforma você numa desconfiada neurótica, do tipo que não para de xeretar o celular e fazer perguntas indiscretas?

Sua namorada é tão exibida e espalhafatosa que faz você agir como um censor, logo você que sempre foi partidário do “cada um vive como quer”?

Que reações imprevistas seu amor desperta em você? Se somos pessoas do bem, queremos estar com alguém que não desvirtue isso, ao contrário, que possibilite que nossas qualidades fiquem ainda mais evidentes. Um amor deve servir de trampolim para nossos saltos ornamentais, não para provocar escorregões e vexames.

O amor danoso é aquele que, mesmo sendo verdadeiro, transforma você em alguém desprezível a seus próprios olhos. Se a relação em que você se encontra não faz você gostar de si mesmo, desperta sua mesquinhez, rabugice, desconfiança e demais perfis vexatórios, alguma coisa está errada. O amor que nos serve e nos faz evoluir é aquele que traz à tona a nossa melhor versão.


03 de novembro de 2012 | N° 17242
NILSON SOUZA

Furacão de mentiras

Mal os primeiros ventos do furacão Sandy chegaram à costa norte-americana e a internet já começou a ser inundada por imagens fabricadas pela imaginação dos internautas para conquistar as atenções do mundo a partir do episódio climático. Assim, ganharam evidência fotos tão belas quanto inverossímeis, como a de tubarões nadando nas ruas de Nova York ou a da estátua da Liberdade ameaçada por nuvens apocalípticas.

Tudo falso. Isso que a tormenta era real, causou mortes, transtornos e estragos consideráveis na infraestrutura das principais cidades da Costa Leste. E as imagens verdadeiras da tragédia eram suficientemente impressionantes, ninguém precisava inventar nada para conquistar audiência.

Sei que tem gente que se diverte fazendo montagens de tudo para colocar nas redes sociais e provocar os amigos. De vez em quando, também acho graça de alguma sacada bem-humorada. Mas não entendo a fraude. Como alguém pode manipular uma imagem e repassá-la como se fosse verdadeira? Até se compreende que estelionatários cometam tais atos para levar vantagem ou mesmo que marqueteiros políticos tentem convencer os eleitores com engodos.

São atitudes reprováveis, mas compreensíveis. O que não dá para entender é a fraude pelo simples prazer de enganar. Tudo bem, já ouvi falar em mitômanos, pessoas com tendência mórbida à mentira. A internet certamente potencializa o poder de gente assim. Mas o fraudador sequer saboreia o efeito de sua fraude, a não ser quando algum veículo de comunicação cai na armadilha.

Por isso o jornalismo é, cada vez mais, o exercício do ceticismo. Companheiros de ofício, atenção redobrada! Não acredite em tudo o que você vê. Não acredite em tudo o que você ouve. Desconfie sempre. E não sou eu quem está dizendo isso, é o reconhecido jornalista Bill Kovach, do New York Times, coautor do célebre Elementos do Jornalismo.

Em recente entrevista divulgada pela imprensa brasileira, ele afirmou: “Se você é um jovem jornalista ou pretende ingressar na profissão, deixo duas dicas: seja curioso e cético. É preciso fazer perguntas constantemente. E toda vez que alguém te contar algo, pense: como essa pessoa sabe isso? Ela consegue me mostrar de onde veio a informação? Será que trabalha para alguém que paga a ela para espalhar essa informação? É preciso continuamente documentar o que se vê e se ouve, não acreditar em qualquer coisa”.

Temos que incluir neste rol de desconfianças as imagens divulgadas pela internet. Os falsificadores são habilidosos, fazem montagens verdadeiramente convincentes, constroem cenários virtuais que parecem mesmo tirados da realidade. E se escondem no anonimato da rede.