segunda-feira, 28 de setembro de 2020


28 DE SETEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Médicos que conhecem o mal, não a cura 

Sei exatamente o que faltou ao Grêmio no jogo de sábado à noite. Sei o que o time teve no Gre-Nal e não teve contra o Atlético Mineiro. Foi o seguinte:

Eu. Eu não escrevi nenhuma crônica criticando o Grêmio e, assim, os jogadores ficaram sem o que ler no vestiário, seus brios não foram titilados, eles não encontraram motivação suficiente para a partida e foram derrotados miseravelmente. Foi 3 a 1, poderia ter sido mais.

É verdade que Paulo Victor falhou em dois dos três gols, é verdade que Matheus Henrique atravessa uma crise técnica pantanosa, que o faz useira e vezeiramente perder a bola na intermediária e patrocinar o contragolpe do adversário, é verdade que Lucas Silva não atingiu o mesmo nível de concentração do clássico, tudo isso é verdade, mas a falência do time foi mais de comportamento coletivo do que das individualidades. O Grêmio, de novo, não incomodou o adversário, deixou o Atlético jogar. No Gre-Nal, o time marcou no campo de ataque, impediu o Inter até de respirar e se assenhorou da partida. Em Minas, o time foi de novo molenga e sem coordenação, todo desconjuntado, como tem sido na maior parte do ano.

Do jeito que o Grêmio está, só mesmo com superação, com dose extra de vontade. Terei de providenciar outras crônicas.

Quanto será que devo cobrar pelo meu trabalho de coach?

Assisti ao jogo do Inter da minha casa, e o Potter, da casa dele. Aos 18 minutos do primeiro tempo, Moisés recebeu a bola livre pelo lado esquerdo e entrou na área com autoridade de conquistador, como se fosse Maomé II devassando as muralhas de Constantinopla. Alguma coisa importante ia acontecer. Aí ele se atrapalhou com as próprias pernas, a bola bateu no pé que não deveria bater e escorreu melancolicamente pela linha de fundo. Fiquei imaginando a cara do Potter ao ver aquele lance, já que ele é um analista severo das atribuições que cabem aos laterais-esquerdos.

Mandei uma mensagem para ele perguntando se havia quebrado algo em casa e, assim que terminei de enviá-la, Moisés recebeu a bola de novo na mesma posição, só que enquadrou o corpo com graça, como se fosse uma Gisele, e cruzou na testa de Thiago Galhardo: gol.

Mandei outra mensagem ao Potter, dizendo que Moisés se redimira, e não é que, enquanto conversávamos, ele não tomou a bola outra vez e mandou um chute torto em direção à avenida, o que me fez temer pela integridade física de um dos velhinhos do Asilo Padre Cacique? O Potter comentou:

"Pronto, ele já voltou ao normal".

Depois do jogo, Coudet deu entrevista comentando não especificamente a respeito de Moisés, mas a propósito da qualidade do grupo do Inter em geral. Segundo ele, não há recursos suficientes para jogar o Campeonato Brasileiro e a Libertadores ao mesmo tempo.

Duas horas depois, a 1.725 quilômetros de distância, Renato fez um comentário parecido, para justificar a derrota do Grêmio: "É o preço de se jogar duas competições".

Quer dizer: ambos os treinadores identificam o problema. Nenhum dos dois apresenta soluções. É como o médico que diagnostica o mal, mas não sabe ministrar a cura. O doente não tem esperança de salvação, mas sabe do que está morrendo. Não sei se é uma compensação.

DAVID COIMBRA

sábado, 26 de setembro de 2020


26 DE SETEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Conviver, o aprendizado

Um dos problemas de conviver, em casa, no trabalho, em qualquer lugar, é a nossa impaciência com o outro.

Porque conosco mesmos em geral somos bem condescendentes: estou cansado, sobrecarregado, o patrão é um tirano, a mulher é uma chata, os filhos uns demônios, meu pai bebia, minha mãe me batia, não tenho sorte na vida... por isso tenho tolerância comigo mesmo.

Acontece que, nestes tempos confusos e às vezes assustadores, o convívio fica quase obrigatório, pois existe uma pandemia, existe uma doença que em alguns casos fica muito grave, existe a necessidade de ficar em casa junto com pessoas que, antes não sabíamos, amávamos muito ou detestávamos.

A habitual correria do cotidiano da maior parte das pessoas, a urgência do tempo, o medo do desemprego, a necessidade de competir e ser eficiente, nossa própria falta de algo que chamo de "filosofia ou sabedoria de vida" (porque não nos permitimos o tempo da reflexão), nos levam a usar a casa não como lar, refúgio, lugar de afetos e parceria, mas lugar de comer, tomar banho, dormir, brincar com o cachorro, passar a mão na cabeça dos filhos, e dar aquele beijo distraído na mulher. Atualmente, eu diria também "no marido", porque mulheres trabalham, correm e competem, se exaurem.

Hoje temos licença de também chegar em casa com pressa, notebook na pasta, horários, compromissos, e o resto que até alguns anos atrás atormentava os homens. Porque a entrada da mulher no universo antes dito masculino trouxe consigo, além de todas as coisas positivas, como dinheiro próprio, autoestima, convívio social e de trabalho, realizações, também essa sobrecarga que muitas vezes não permite refletir, contemplar, curtir o tempo de não fazer nada além de estar com a família, as amigas, os velhos pais, ou consigo mesma - o que é essencial.

Nestes dias meio insanos, com notícias pesadas de todos os lados, e campanhas pró e contra cuidados com o vírus, além de tudo, ficamos confusos, muita contradição, muita ciência boa ou nem tanto, opiniões e sentenças sem tempo para sérios estudos científicos, que em geral levam tempo, ah, o tempo.

Estou há seis meses em casa, desço de vez em quando para a garagem, de máscara, entro no meu carro e vou para nossa casinha de Gramado, onde também fico quieta. Sinto uma enorme falta de conviver com família, netas, netos, amigas, a vidinha simples, e normalzinha, de antes. Mas me cuido porque sei que, além de ser preciso mesmo, sou de alto risco, 82 anos e enfartada. É ruim, é meio sem luz no túnel tão cedo, mas cumpro. Porque gosto de viver, em resumo. E não entro no elevador sem máscara porque também respeito os outros. De vez em quando a gente esquece, ah, a minha máscara. Por sorte, sempre tenho uma na bolsa.

Escrevo esta matéria já repetida porque em tudo há um lado positivo, ou em quase tudo. Nesse convívio forçado, talvez a gente descubra que, afinal, como algumas pessoas têm me dito, o parceiro até que é interessante, a mulher é divertida, os filhos companheiros, e a casa, por mais simples que seja, é o nosso lugar no mundo.

Quem sabe, de uma obrigação penosa, conviver se torne uma arte, ou, melhor ainda, um prazeroso aprendizado.

LYA LUFT

26 DE SETEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

O dilema das redes 

Não sou das mais obcecadas por redes sociais. Se, ao sair de casa, percebo que esqueci o celular, não volto, nem sofro. Aceito apenas amigos no meu perfil no Facebook. Não deixei de ler livros. Não levo o celular para a aula de pilates nem jamais o deixo em cima da mesa de um restaurante. Quase não compartilho o que vejo no perfil dos outros, e quando o faço é algo relacionado à cultura - raramente passo adiante comentários sobre política. Ainda assim, o diagnóstico universal serve pra mim também: fiquei viciada, como qualquer outro usuário. Consulto os meus perfis com frequência para contar quantas curtidas, quem curtiu, o que comentou, essa egotrip vergonhosa que nos estimula e limita ao mesmo tempo. Doping, sem dúvida.

É disso que trata o documentário The Social Dilemma, da Netflix, que mistura um pouco de dramaturgia com impressionantes depoimentos de ex-diretores de Google, Facebook, Twitter, Instagram e demais empresas que lidam com inteligência artificial. Enquanto assistia, me dei conta de que meu coração disparava, parecia que estava diante de um filme de terror.

Quando a gente era criança, nossas mães nos proibiam de aceitar balas de estranhos: vá que dentro houvesse alguma substância tóxica. Dessa maneira, evitavam que nos tornássemos vítimas de traficantes imaginários. Mas foi questão de tempo até que outro tipo de intoxicação nos contaminasse. Somos a última geração a vivenciar a era analógica antes de entrar na era digital. As crianças de hoje não tiveram a mesma sorte, se lambuzam com tecnologia desde cedo, e quem vai tirar o doce da mão delas? Tente.

Não desgrudamos das redes por medo de perder alguma coisa, seja um convite, uma cantada, uma fofoca, um elogio, como se não pudéssemos ser alcançados de outra forma e dependêssemos de gigas para existir. O problema é que a perda já se deu - não dentro das redes, mas fora. Conversas presenciais, observação do entorno, contato visual com outras pessoas, ouvido atento para os ruídos externos, tempo para leitura e introspeção, capacidade de chegar a conclusões por raciocínio lógico, e não por indução. Perdemos a paz. Somos fisgados e manipulados de manhã, à tarde e à noite, freneticamente. Vídeos, fotos, memes, propaganda, todas essas postagens "casuais" são programadas para atender a corporações que comandam o mundo através de nossas clicadas. Não sou eu que estou dizendo. São os especialistas que criaram o bicho e desistiram dele ao ver que o monstro estava fora de controle.

Alarmismo ou não, assista ao documentário, você não ficará tão aterrorizado a ponto de jogar seu celular no lixo depois dos créditos finais. Mas já será uma grande coisa se aprender a diminuir a ansiedade e mostrar quem é que manda.

MARTHA MEDEIROS

26 DE SETEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Aos olhos de Ana 

A cineasta Ana Luíza Azevedo passou longos anos desenvolvendo o projeto do filme Aos Olhos de Ernesto - que fala, em sua essência, sobre envelhecer. "É um assunto que me encanta pelos desafios, pelas escolhas difíceis, pelas limitações impostas e pela possibilidade de, mesmo com tudo isso, viver."

O filme conta a história de Ernesto, um velho uruguaio solitário, fotógrafo que quase não enxerga mais. O que tira dele as imagens, os livros e a correspondência que troca com um ex-amor que permaneceu no Uruguai. "Eu tenho uma relação com a velhice muito positiva", diz Ana. "Meu pai está com 94 anos, minha mãe com 89, e eles são pessoas que seguem fazendo projetos de vida. Independentemente das tuas limitações, tu precisas ter projetos. É muito triste deixar de ter vontade. E, às vezes, não precisa chegar na velhice para desistir da vida."

A essas questões, dramaticamente muito ricas, Ana juntou a ideia de um estrangeiro vivendo longe de sua terra. "O psicanalista Contardo Calligaris, italiano, disse que, uma vez estrangeiro, sempre estrangeiro. Mesmo que tu adotes outro país, ele não é o teu. E, se tu voltas para o teu país, também não pertences mais àquele lugar. Então esse é um sentimento que eu quis trabalhar no meu personagem, um uruguaio que está aqui, tão perto, como tantos outros uruguaios e argentinos que vieram para o Brasil em decorrência da diáspora provocada pelas ditaduras militares, e que ficaram. Eu quis trazer isso para o personagem, e também trabalhar a cultura uruguaia, que é tão próxima de nós, tem tanta coisa em comum, e é tão pouco vista no cinema brasileiro."

O ator que interpreta Ernesto foi, desde sempre, a primeira e única opção de Ana Azevedo. Jorge Bolani, o maior ator uruguaio, já havia encantado a diretora no teatro e em filmes como Whisky. "Mandei o argumento e fomos a Montevidéu, eu e a (produtora) Nora Goulart, conversar com o Bolani. Ele não tem nada a ver com o Ernesto, mas entendeu perfeitamente o que eu queria. Era como se o personagem estivesse ali, na minha frente." A admiração pelo escritor uruguaio Mario Benedetti foi outro ponto de contato entre os dois. "Bolani tinha montado no teatro A Trégua, do Benedetti, e quando leu uma referência ao livro no roteiro, imediatamente já gostou."

Aos Olhos de Ernesto mostra a cumplicidade entre dois abandonados, o senhor de mais de setenta e uma garota de pouco mais de vinte. "Eu sempre pensei na Gabriela Poester, que é uma excelente atriz, para fazer o papel da Bia. O entrosamento entre o Bolani e ela foi perfeito. Eles são extremamente generosos e curiosos. O Bolani tem uma larga estrada de trabalho e de vida, mas em nenhum momento demonstra qualquer pretensão. Ele parece estar sempre aprendendo, jogando com o parceiro, para o parceiro, o que é muito bonito - e nem sempre é comum no trabalho do ator."

Produzido pela Casa de Cinema, com roteiro de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado e colaboração de Vicente Moreno e Miguel da Costa Franco, Aos Olhos de Ernesto estava pronto para ser lançado quando veio a pandemia. "Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar, e pior, sem uma política sanitária no Brasil." Sem políticas públicas em geral, como se vê em praticamente todos os setores. "A gente está vivendo a destruição das universidades, da educação, da ciência, do meio ambiente, da cultura. É tão absurdo que se fica sem reação. Há quanto tempo nós estamos nisso e ainda somos surpreendidos a cada dia com o que acontece?"

Ana cita o caso da dentista que vai dirigir o Centro Técnico do Audiovisual, que já foi um importante instrumento para a viabilização do cinema brasileiro. Sem falar na Cinemateca Brasileira, aquela que foi prometida como prêmio de consolação para a ex-secretária Regina Duarte, hoje fechada, sem direção, sem funcionários. "Nós corremos um sério risco da memória do cinema brasileiro, do audiovisual brasileiro, se perder."

"Dói ver políticas de incentivo que levaram décadas para serem implantadas desaparecendo assim. Destruir é muito rápido. É como passar na frente de uma casa, imaginar quanto tempo ela demorou para estar ali, com toda uma história, com os seus significados, e saber que em um dia é possível botar tudo abaixo. É isso que está acontecendo com a política cultural brasileira. Só que a nossa cultura é muito mais forte que qualquer governo, e vai sobreviver."

Para assistir a um filme que não termina quando o FIM aparece na tela, é só entrar nas plataformas Now, Vivo Play e Oi Play. Para sorte do público, Aos Olhos de Ernesto entrou em cartaz no streaming - e, desde 18 de julho, também está em exibição em várias salas no Japão. O que, por enquanto, está mais longe que o Japão para nós.

Apague as luzes e boa sessão.

CLAUDIA TAJES



26 DE SETEMBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O CONTROLE 

Revolucionários antigos, do século 19 e início do 20, acreditavam na tomada do poder pela força, com uso explícito de violência. Teóricos como Marx e homens de ação como Lênin pensaram assim. Depois da Grande Guerra, houve mudança na concepção. Sim, o espírito de Lênin ainda podia inspirar movimentos armados como o chinês, porém, um sardo concebeu uma virada. Antônio Gramsci (1891-1937) desenvolveu o conceito de hegemonia cultural.

O controle de um grupo sobre outro raramente ocorria apenas por coerção e violência. Era necessário um consenso de quem era dominado. Só existiria uma hegemonia se ela pudesse lançar mão de recursos culturais que legitimassem o poder. Sim, no marxismo clássico existe a noção de ideologia como aquilo que vela a dominação. Gramsci aprofunda o tema. Intelectuais comprometidos com um ideal revolucionário deveriam fazer, em parte, o que já era feito na sociedade tradicional. 

O controle da universidade, da imprensa, do debate com o público ocorreria com o objetivo de atingir hegemonia cultural e que esta levaria a uma transformação do capitalismo para o socialismo. Influenciados por ideias similares, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer escreveram sobre "Indústria Cultural" e afirmaram: "A produção capitalista os mantém tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido. Assim como os dominados sempre levaram mais a sério do que os dominadores a moral que deles recebiam, hoje em dia as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles".

Para ser simples, reduzi coisas complexas a descrições gerais. Gramsci deu um papel ao intelectual "orgânico" maior do que Marx imaginara. Preso pelo fascismo italiano e escrevendo seus Cadernos do Cárcere, ele pensou e desenvolveu uma estratégia de tomar o poder.

Nos últimos anos, desenvolveu-se uma quase acusação conservadora contra todos os intelectuais de esquerda: gramscianos. Toda pessoa que escrevesse contra o ponto de vista conservador seria um adepto da estratégia de hegemonia cultural. Como acontece com a obra de Nietzsche e de Freud, há mais gente falando sobre o italiano do que lendo seus textos.

O mundo do século 21 é o das redes sociais. Controlar a opinião pública já era importante na Roma Republicana. Hoje, é central em qualquer projeto político. Assim, o pensamento gramsciano foi e é seguido por muitos ativistas culturais de esquerda. O curioso e que já indiquei em crônicas anteriores é que despontam os "gramscianos de direita". São também, em certo sentido, "intelectuais orgânicos" no sentido de se sentirem incumbidos de uma missão, como seus adversários. A consciência da ação revolucionária implica, para gramscianos destros e sinistros, a ideia de que é mais importante controlar um diretório acadêmico ou um jornal do que armas no sentido literal. 

Todo "gabinete de ódio" é uma estratégia na luta pela opinião pública e pela militância de frases, destruição de reputações, deformação de ideias, etc. Está fora de moda fazer greves como os caminhoneiros no Chile contra o presidente Allende ou os metalúrgicos de SP contra a ditadura militar. Sim, querida leitora e estimado leitor: há greves e lockouts de direita. Porém, piquetes em porta de fábrica parecem antigos. Ainda que odiando o nome e o conteúdo, grande parte do sucesso da direita atual veio de uma estratégia gramsciana. Curiosamente, alguns retrocessos de táticas da esquerda no Brasil também nascem de diminuição da influência de... Gramsci.

Vamos ver um pouco de passado recente. A crítica ao regime militar fez surgir o livro Brasil: Nunca Mais, um chocante relato de torturas a partir de inquéritos militares. O livro tinha capa vermelha. Com o mesmo tipo gráfico só que com capa verde e amarela, surgiu o texto Brasil Sempre, de Marco Pollo Giordani.

Era uma resposta conservadora reafirmando os riscos da esquerda e o caráter "libertador" do movimento de 1964. Logo após a ditadura civil-militar, de 1985 até 1988, a opinião pública estava mais para Brasil: Nunca Mais do que seu oposto. Do ponto de vista gramsciano, a defesa de 1964 estava limitada a círculos pequenos.

A luta era mundial. Terminada a Guerra Fria na Europa, pesquisadores franceses organizaram O Livro Negro do Comunismo (1997). O objetivo era levantar o número de mortos dos movimentos ligados ao socialismo e ao comunismo. O livro fez sucesso entre conservadores, especialmente em países que tinham saído do controle soviético nos anos anteriores. Voltamos a Gramsci. A esquerda reagiu ao livro-denúncia com... outro livro negro: o do capitalismo. A obra analisava os interesses de nações capitalistas e da ação de interesses financeiros nas mortes e na fome do mundo.

Curioso que os dois livros descrevem (em textos de qualidade não uniforme) fatos reais de massacres feitos por capitalistas e comunistas. Alguns capítulos são bem documentados e plausíveis. Porém, em vez de lamentar a morte e violência em si feita por interesses de partidos, Estados ou empresas, ambos fazem crer que o problema é a ideologia. Penso na violência extrema de Mao fazendo campos de concentração de fazer corar um nazista. Penso na violência extrema dos EUA ao jogar napalm sobre uma aldeia ou no massacre de My Lai, em 1968. Os soldados norte-americanos que mataram 182 mulheres (17 delas grávidas) e 173 crianças de forma cruel não são, para mim, assassinos capitalistas; são assassinos apenas. Muitos militantes de esquerda fizeram a denúncia justa e merecida contra o caráter hediondo dos episódios do Vietnã. Era um crime!

Curiosamente, algumas centenas de quilômetros para o norte ocorria a Revolução Cultural Chinesa, com milhões de mortos, algo não denunciado pela maioria dos mesmos militantes. O que está em jogo para os gramscianos de esquerda e de direita não é a vida humana, porém o controle da opinião pública.

Se o meu lado mata e tortura, é algo "justificável". Se o outro lado mata e tortura, é uma monstruosidade. Pior, quando os dois lados são notórios assassinos, tratam apenas de discutir quem matou mais. Esse é o argumento par excellence da imbecilidade.

Morreram 10 milhões de chineses na Segunda Guerra. Isso não quer dizer que os capitalistas japoneses são benignos e os stalinistas de esquerda que mataram o dobro durante o regime bolchevique sejam os malvados de verdade. Ambos são assassinos. Entre 1904 e 1908, pelo menos 80 mil negros (etnias herero e nama) da atual Namíbia foram assassinados por alemães. Os criminosos do Segundo Reich seriam mais benignos do que os do Terceiro Reich? Imagine um negro do Congo Belga do século 19, tendo suas mãos amputadas e ouvindo do seu carrasco belga, capitalista e católico: "Vou cortar suas mãos, mas fique feliz, os comunistas farão coisas piores no futuro".

Seria um consolo fraco. Para cada vítima importa apenas o que seus assassinos e torturadores fazem naquele instante. O terror assírio na Antiguidade não é bom argumento para alguém sendo executado no "paredón" da ditadura de Fidel Castro. É preciso ter esperança e raramente ela está nos radicais.

LEANDRO KARNAL

26 DE SETEMBRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

CUPIDEZ

 Será que nesta palavra o Cupido tem vez? Tem sim, o filhote de Vênus que faz corpos e mentes se moverem possuídos pelo desejo; seu nome é irmão da palavra latina cupido, desejo ou inveja, e de cupiditas, em forma mais violenta, ambição ou cobiça. Nossa palavra cupidez carrega estes significados e também algo da cultura herdada da Roma antiga, cujas elites, desde o final da República, foram profundamente influenciadas pelo epicurismo e pelo estoicismo. Vista por estas filosofias éticas de origem grega, a cupidez afasta-se do amor e aparece como o cacoete que submete aos homens escravos das ambições.

Para a filosofia de Epicuro (341-270 a.C.) e para os estoicos, a felicidade era alcançada pelo controle das paixões que perturbam a serenidade do espírito. Contra os sofrimentos provocados pelos desejos e pelos acidentes da vida, celebravam o ideal de ataraxia - a impassibilidade, distanciamento e controle dos impulsos pela prudência e pela temperança. Em Roma, a principal voz desta ética foi Tito Lucrécio Caro (c. 99-55 a.C.), poeta e filósofo contemporâneo de Cícero (106-43 a.C.) e Júlio César (99-44 a.C.), autor do poema filosófico De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), em que expõe o atomismo como ciência capaz de dissipar os temores das superstições e, assim, abrir caminho para a felicidade. Lucrécio via com cautela as ambições políticas, e alude à "cega cupidez de honras" (honorem caeca cupido, 3, 59), frase que reverbera Cícero, que fala da "cupidez, cega senhora da alma" (caeca dominatrix animi cupiditas, Inv., 1, 2). Estavam atentos, ambos, para um dos grandes males que degradam a história, a desmedida ambição de homens de escassa moralidade.

Há nisso um paradoxo, pois o desejo e a ambição são também necessários e causa de prazeres, de nossa perpetuação como espécie e do desenvolvimento que nos levou a compor sinfonias e ir à Lua; trata-se, porém, de compreender sua razão e medida, antes que se tornem pulsões deseducadas, sem parâmetros. É assim que a ambição aparece na ideologia do empreendedorismo, como virtude soberana, do mesmo modo que a cupidez anima os insensatos em sua cega busca de riquezas e honras. Quem paga por isso é o mundo e a sociedade e, no tempo e formas devidas, os próprios cúpidos sujeitos.

É para saciar a cega ambição de bens e honras que homens sem qualidades lutam pelo poder, na academia ou na política, por todos os meios, da demagogia à corrupção, tramoias e golpes. Com esta penúria moral, nada têm a oferecer, especialmente quando abrem mão da legitimidade e do saber cooperativo propiciados pela democracia; é apenas nesta que um Eros eficiente pode agregar e realizar ambições pelo bem comum. A cegueira revela-se ainda na dificuldade desses sujeitos em compreender sua improdutiva estupidez, e suporem que logo será esquecida a gravidade trágica dos atos em que sucumbem um homem e valores nobres da sociedade.

Conquanto vendado e disparando setas errantes, o Cupido tem certamente dons mais doces a nos oferecer, o prêmio para quem sabe reconhecer quais são os gratos desejos que podem nos unir.

FRANCISCO MARSHALL

26 DE SETEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA

PRECISAMOS CRIAR REGRAS BÁSICAS DE TRÂNSITO NAS REDES SOCIAIS

DEBORA SPAR, ESCRITORA, 57 ANOS

Professora de Administração da Harvard Business School, é uma das maiores especialistas norte-americanas em questões de gênero, feminismo e do impacto da tecnologia nos relacionamentos sociais. Foi CEO do Lincoln Center for the Performing Arts, em Nova York, de 2017 a 2018.

Frequentadora assídua dos populares talk shows da TV norte-americana e das páginas mais respeitadas do jornal The New York Times, a escritora Debora Spar equilibra a linguagem acessível a um público sedento por conselhos sobre como criar filhos conectados 24 horas às telas dos smartphones com o debate profundo com seus pares, acadêmicos de Harvard, preocupados com o impacto da tecnologia na sociedade e na evolução do ser humano. Seus livros O Negócio dos Bebês - Como o Dinheiro, a Ciência e a Política Comandam o Comércio da Concepção e Wonder Woman - Sex, Power, and the Quest for Perfection são best-sellers. 

No primeiro, ela pesquisou o surgimento de um grande mercado da fertilidade in vitro. No segundo, debruçou-se sobre as exigências impostas às mulheres no século 21, na vida pessoal e profissional. No mais recente, Work, Mate, Marry, Love - How Machines Shape Out Human Destinity, a escritora enfoca questões de gênero e tecnologia, e a interação entre as mudanças tecnológicas e estruturas sociais. Crítica das redes sociais, Debora comenta, nesta entrevista, como a pandemia nos forçou a uma reflexão necessária e urgente sobre nossas relações com as plataformas digitais.

Em episódios históricos como a Primavera Árabe, as redes sociais desempenharam um papel importante e passaram a ser vistas como canais que possibilitaram a libertação de regimes ditatoriais no Oriente Médio. No entanto, escândalos como Cambridge Analytica e, mais recentemente, a disseminação de discursos de ódio e notícias falsas nas redes sociais mostraram o quão nocivas essas mesmas mídias podem ser. Descobrimos o outro lado da rede social?

Absolutamente. E a tragédia é que não previmos isso, nem fizemos nada para impedi-lo. Já em meados da década de 1990, muitas pessoas, eu entre elas, alertavam que uma internet sem regras quase certamente geraria o caos. Em particular, não ter nenhuma orientação para coisas cruciais como privacidade e direitos de propriedade significava que empresas iniciantes seriam capazes de acumular uma enorme quantidade de poder e de controlar a comunicação entre indivíduos em todo o mundo. Estamos vendo isso agora e, infelizmente, será muito difícil colocar esse gênio em particular de volta na garrafa.

Nas redes sociais falta clareza sobre o que é notícia, o que é opinião ou notícia falsa?

Sim. Como as redes sociais são tratadas nos Estados Unidos e em outros lugares como plataformas em vez de veículos de comunicação, elas não têm responsabilidade legal de filtrar ou selecionar o material que é postado. Portanto, há uma total falta de clareza, e de fato uma falta de clareza explícita, sobre o que constitui notícia versus opinião. As formas mais antigas de mídia, como os jornais, precisam diferenciar o que é notícia e o que é opinião. Mas como essas distinções não se aplicam ao ciberespaço, empresas como o Facebook não têm obrigação legal (na maioria dos países) de censurar até mesmo os exemplos mais flagrantes de notícias falsas.

Diante da falta de responsabilidade por parte do Facebook, Google e outras grandes empresas de tecnologia sobre o conteúdo que publicam, Estados Unidos e Europa têm buscado regulamentar a operação das plataformas. Este é o caminho?

Acredito que a regulamentação é a única resposta. Deixadas à própria sorte, as empresas privadas nunca estarão em posição de se autorregulamentar de forma a atender melhor os interesses da sociedade. As formas precisas de regulamentação podem e irão variar entre os países, mas mesmo diretrizes básicas ajudarão a fornecer formas mais claras e, em última análise, mais seguras de se fazer negócios. Pense em uma analogia com os automóveis: uma vez que eles se tornaram predominantes, os governos precisaram intervir para estabelecer "regras de trânsito", questões como limites de velocidade e sinais de pare, que permitiram a todos dirigir com mais segurança.

Na política, observamos o uso de robôs para campanhas de difamação. Como tornar esse ambiente menos tóxico sem abrir mão da tecnologia?

Mais uma vez, é aqui que precisamos desenvolver "regras básicas". Por exemplo, não precisamos banir as redes sociais nem mesmo proibir anúncios políticos nas redes sociais. Poderíamos apenas ter regras que exigissem que os anunciantes políticos fossem identificados como tal. Se um anúncio está sendo colocado por um bot estrangeiro, ele deve informar isso.

Alexa, Siri... Essas assistentes de voz muitas vezes são criticadas por perpetuar visões sexistas, machistas, racistas. Qual é o papel das plataformas diante dessas manifestações sociais?

Pessoalmente, não acredito que Alexa ou Siri sejam projetados para perpetuar o sexismo, o racismo ou qualquer outra coisa. São inovações tecnológicas destinadas a aumentar os lucros das empresas que as empregam, e isso pode ter consequências indesejáveis, infelizes. Assim que começarmos a ter uma noção maior de quais podem ser essas consequências (por exemplo, treinar nossos ouvidos para associar as vozes das mulheres com ajuda ou inteligência com certos sotaques), podemos e devemos projetar conscientemente essas tecnologias para serem mais neutras em termos de valor.

A senhora costuma afirmar que as as mudanças tecnológicas não estão restritas apenas às salas de reuniões e nas empresas. Elas também impulsionam nossos relacionamentos pessoais. Em algum momento, nos esquecemos disso? Acabamos olhando excessivamente para o impacto da tecnologia nos negócios e agora estamos pagando o preço por isso?

Em geral, acho que esquecemos as maneiras complexas pelas quais a mudança tecnológica afeta nossos relacionamentos pessoais e estruturas familiares. É por isso que escrevi este livro (Work, Mate, Marry, Love - How Machines Shape Our Human Destinity), para examinar esses links. Mas eu não concordaria necessariamente que estamos pagando o preço. Acho que é mais, que precisamos olhar para esses links, focar neles e, em seguida, decidir como queremos agir sobre as escolhas pessoais que agora enfrentamos como resultado da mudança tecnológica.

A senhora costuma escrever que as diferentes tecnologias (arado, carro, avião) causaram mudanças comportamentais. Mas agora parece que todos os nossos relacionamentos são alterados por máquinas, o que é um pouco assustador. Ao entrarmos em uma era de inteligência artificial e robôs, como nossos sentimentos e desejos mais profundos irão evoluir?

Bem, ainda não sabemos totalmente. Mas minha previsão é de que nossos sentimentos mais profundos permanecerão em grande parte inalterados: como espécie, parecemos programados para ansiar pelo amor e pela conexão. O que vai mudar é como esses desejos se manifestam. Acredito que formaremos ligações emocionais com seres robóticos. De certa forma, já temos: pense em como todos nós já dependemos de nossos smartphones, por exemplo. Pense em como já nos comunicamos com nossos entes queridos por meio de canais mediados por computador, como o Zoom. Pense, de forma mais mundana, em quantos de nós temos profundas conexões emocionais com nossos animais de estimação. Não estou dizendo que substituiremos nossos amores humanos por amores mecânicos. Mas iremos interagir cada vez mais emocionalmente com as máquinas inteligentes que criamos juntos.

no livro Work, Mate, Marry, Love - How Machines Shape Our Human Destinity, a senhora afirma que, no passado, os modos de produção predominantes produziram um mundo dominado por famílias heterossexuais, em sua maioria monogâmicas, com dois pais. "No futuro, porém, é quase certo que esses padrões serão remodelados, criando normas inteiramente novas para o sexo e o romance, e para a construção de famílias e a criação dos filhos. Evitando a euforia tecnológica e o alarmismo". A senhora oferece visão ousada e inclusiva de como nossas vidas podem ser mudadas para melhor. Parece otimista com relação à tecnologia.

Estranhamente, sim. Acho que a história da tecnologia nos oferece duas lições abrangentes: primeiro, que não podemos reverter a história. Uma vez que criamos nossas máquinas, nós as usamos. Em segundo lugar, depois de um período inicial de euforia, caos e medo e depois de aprendermos a colocar as proteções apropriadas no lugar, aprenderemos a conviver com as máquinas que criamos. Acredito que a tecnologia continuará permitindo que as pessoas se apaixonem e formem famílias de maneiras novas e sem precedentes. Para ser claro, precisamos ter certeza de que essas tecnologias são usadas com segurança, que, por exemplo, protegemos a saúde das mulheres submetidas à fertilização in vitro ou garantimos os direitos daquelas que servem de mães de aluguel para outras pessoas. Precisamos, como eu disse antes, estabelecer regras básicas de trânsito e nos concentrarmos em garantir que as novas tecnologias não aprofundem as desigualdades que já assolam nossas sociedades. Mas, presumindo que façamos isso, me sinto otimista sobre a capacidade de nossa espécie de viver de forma mais justa e inclusiva no futuro.

a senhora disse que a invenção do arado levou ao início da monogamia e do casamento. No século 20, máquinas de lavar, automóveis e anticoncepcionais ajudaram na emancipação das mulheres do "culto da domesticidade". Como a senhora avalia o feminismo hoje, 50 anos depois do início do movimento?

É uma questão complicada. A boa notícia é que as mulheres avançaram muito desde o advento do feminismo. Temos muito mais mulheres em posições de poder e várias gerações de mulheres que conseguiram combinar uma vida gratificante no trabalho com uma vida gratificante em casa. A má notícia, porém, é que as mulheres ainda estão muito sub-representadas nessas posições de poder e ainda lutam para conciliar as demandas conflitantes do local de trabalho e do lar. Elas ainda precisam lidar com o abuso e o assédio sexual e têm mais probabilidade do que os homens de viverem na pobreza.

A senhora geralmente pensa sobre o que acontecerá com o amor, o sexo e o romance à medida que nossos relacionamentos migram do mundo real para o virtual. O que acontecerá com nossas noções mais básicas de humanidade à medida em que enredarmos nossas vidas e emoções com as máquinas que criamos. Conversei recentemente com o historiador norte-americano Timothy Snyder e ele disse que a internet nos fez esquecer nossas habilidades humanas. A pandemia mostrou como somos vulneráveis como seres humanos?

A pandemia definitivamente nos lembrou de nossa fragilidade humana, bem como de nossa necessidade de permanecer conectado com aqueles que amamos. Ao mesmo tempo, porém, também nos lembrou de como já nos tornamos dependentes de nossos computadores e de nossas conexões com a internet. E para o bem e para o mal, nos obrigou a nos tornarmos radicalmente mais dependentes dessas tecnologias.

Frequentemente, ficamos preocupados com as desvantagens da tecnologia, como crianças passando muito tempo nas telas, fazendo com que os pais se sintam culpados. Como equilibrar a necessidade de algum controle, mas sem afastar os filhos da conexão com a tecnologia?

Em primeiro lugar, para as pessoas que cuidam de crianças durante essa pandemia, a culpa não é uma coisa boa. Ser pai é difícil em qualquer circunstância. É extremamente difícil agora. Portanto, os pais precisam abolir o fardo adicional da culpa. Em segundo lugar, as telas em si não são más. E os pais terão um controle limitado sobre o que seus filhos assistem e fazem online. O mais importante é ajudar as crianças a se envolverem com conteúdo que as ajudará a aprender e ter sucesso. Usar o Zoom para se comunicar com a família e amigos é quase sempre uma coisa boa. Assim como descobrir novos hobbies ou aprender novas habilidades. Em tempos de pandemia, prefiro muito mais que um filho se conecte a outras pessoas online do que se isole. É apenas uma luta, e presumivelmente sempre será uma luta, para manter as crianças longe do conteúdo ou de pessoas que poderiam prejudicá-las.

RODRIGO LOPES


26 DE SETEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

SETEMBRO AMARELO 

Transtornos psiquiátricos serão as sequelas mais prevalentes da pandemia. Embora o vírus possa provocar complicações tardias pulmonares, cardíacas, vasculares, renais, musculares e cerebrais, entre outras, o impacto na saúde mental será mais devastador, justamente por afetar uma área já problemática antes da pandemia.

Anos atrás, a Organização Mundial da Saúde (OMS) previu que depressão se tornaria a principal causa de absenteísmo nas empresas, a partir da década de 2020. Os trabalhadores faltariam mais por crises depressivas do que por dores na coluna, gripes e resfriados. No mercado financeiro de São Paulo, a previsão se confirmou antes de 2020. Nos acessos ao nosso portal de saúde, os termos mais pesquisados no canal do YouTube são "depressão", "ansiedade" e "síndrome do pânico".

Dada a grande variedade de temas médicos ali reunidos, é surpreendente a preferência por esses três. Além dos acessos, os conteúdos de saúde mental estão sempre no topo da lista de maior engajamento, curtições, comentários e tempo de leitura. Apresentado pelo jornalista Luiz Fujita, o Entrementes, nosso podcast sobre saúde mental, tem em média 6 mil downloads por episódio. Curiosamente, mais da metade do público tem entre 23 e 34 anos.

Neste mês, acontece o Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio organizada pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria, com o objetivo de chamar a atenção para esse grave e ignorado problema de saúde pública. Suicídios estão longe de ser provocados apenas por dilemas existenciais e filosóficos insolúveis, como ainda há quem pense. A OMS estima que eles sejam responsáveis por 800 mil mortes anuais, no mundo, 80% das quais em países de média e baixa renda. Levantamento ainda incompleto calcula que no ano passado foram mais de 13 mil em nosso país. Um relatório da OMS que analisou os dados internacionais no período de 2000 a 2012, mostrou que a prevalência mundial, caiu em média 26%, enquanto no Brasil aumentou 10,4%.

Embora seja mais frequente entre os mais velhos, aparece como a segunda causa de óbito na população feminina de 15 a 29 anos, e a terceira na masculina. Em cada 10 casos, seis acontecem com jovens negros. Cada suicídio provoca repercussões mentais negativas (culpa, raiva, depressão etc.) em seis pessoas, em média. Da mesma forma, se estiverem corretos os levantamentos que apontam 15 a 20 tentativas prévias para cada suicídio levado a cabo, chegaríamos à conclusão de que esses episódios foram vividos mais de 200 mil vezes, pelos que se suicidaram e por seus familiares.

Estudo realizado pela Unifesp atribuiu a prevalência elevada entre os jovens a três causas principais: popularização da internet (bullying cibernético e compartilhamento de comportamentos disfuncionais, como a anorexia nervosa), mudanças sociais e falta de políticas públicas para abordagem de problemas psiquiátricos. Um estudo avaliou relação entre o número de horas gastas na internet e a frequência de autoflagelação (cortes nos braços e outras) em adolescentes. Meninas e meninos que passavam mais de nove horas diárias na internet tinham duas vezes mais risco de se cortar do que aqueles que ficavam duas horas ou menos.

A Associação Brasileira de Psiquiatria calcula que 20% a 30% das pessoas apresentarão um transtorno psiquiátrico, no decorrer da vida. Como cerca de 90% dos suicídios estão relacionados a distúrbios mentais - principalmente depressão, bipolaridade e esquizofrenia -, nada leva a crer que a prevalência entre nós diminuirá, caso as condições sociais se mantenham as mesmas e não superarmos as dificuldades do SUS para dar atenção a esse contingente.

Infelizmente, essa é uma das fragilidades do nosso sistema único. Apesar de termos criado uma rede de centros de atendimento multidisciplinar (CAPS) para casos de transtornos mentais graves, eles não existem em todas as cidades e não têm estrutura para oferecer psicoterapia e atenção psiquiátrica para pacientes com depressão, transtorno bipolar, ansiedade generalizada e outros distúrbios nas fases iniciais da evolução, quando os resultados do tratamento são melhores.

Distanciamento social, insegurança financeira, desemprego, medo de adoecer e luto causarão transtornos mentais que permanecerão entre nós por muito tempo.

DRAUZIO VARELLA

26 DE SETEMBRO DE 2020
MONJA COEN

QUANDO UM LÍDER VIRA CHEFE 

Havia um líder. E havia os liderados. Era bom haver um líder. Todos podiam ficar tranquilos, afinal, o líder tomaria decisões e ações. 

Anos se passaram. O líder, cada vez mais chefe do que líder, foi ganhando terreno. Decidia tudo. Já não solicitava opiniões. Apenas comunicava suas ações. Os antigos liderados, que agora eram calados pelos gritos do antigo líder, se encolhiam.

As reuniões eram simbólicas. Qualquer um que ousasse ter pensamento, gesto, atitude contrária às decisões do chefe era deixados de lado ou expulso, afastado. Havia medo, por um lado. Havia os que o seguiam e adoravam.

O chefe se tornou emocionalmente descontrolado. Gritava, chorava e saia das reuniões batendo os tamancos se alguém ousasse ter qualquer opinião.

Até o dia em que falhou publicamente. Houve erros e falhas anteriores, mas tudo encoberto por seus pares. Afinal, era um homem bom, trabalhador, honesto e tudo fazia para deixar uma herança sagrada ao futuro.

Falhou, mas não reconheceu. O conselho dos anciãos resolveu dar um basta. Havia tanto desconforto. Tantas pessoas silenciadas querendo se manifestar. Tanto medo, por nada.

Seria necessário enfrentar a fera. Que, afinal, era um querido de todos. Carismático, amado, trabalhador incansável. Haveria de entender a conversa amigável.

Nada feito.

Atrás das portas e janelas, ouviu um deles comentando, enquanto esperavam sua chegada, que seria melhor ajuda-lo a aprender o autocontrole. Quais seriam as medidas adequadas?

Iriam conversar. Quem sabe voltasse a ser um líder, por todos amado? Furioso só de pensar que não concordavam com ele, entrou na sala e gritou: - Vou-me embora. Não houve encontro. Foi grande a confusão. Bem, se assim ele decidiu, foi acatado.

Mas não era bem essa a expectativa do ex-líder, ex-chefe. Talvez esperasse que de novo se rendessem e continuassem a se submeter às suas ações, decisões. Era mais fácil. Sem preocupações. Ele, apenas ele, se preocuparia com tudo. Aos outros caberia apenas concordar.

A pandemia chegou. Tudo mudou. Quem estava longe ficou perto, virtual. Quem estava perto ficou longe, virtual. Sem chefe, tiveram que pensar, conversar, decidir.

Democracia participativa significa o poder do povo, não da chefia. Participar não é só votar, embora o voto seja importante até demais. Participar é dar palpite, sempre que quiser, é ouvir e ser ouvido, ter liberdade para falar e se manifestar. Ser acolhido, compreendido, incluído, decidir junto.

Quando um líder vira chefe, só quer mandar. Deixa de ouvir e perde a capacidade de liderar.

Quem ficou muito calado pouco a pouco reaprende a falar. Gagueja, treme, mas começa a murmurar.

Se o povo se empodera, não há chefe que seja fera. Ou se transforma em líder, capaz de unir, ouvir, acolher, acatar, reger uma orquestra harmoniosa, com música de fazer chover onde há incêndios, capaz de encontrar curas para doenças, equidade e respeito às diferenças, menos mortes, menos crimes, mais amor e menos dor; ou desiste e procura se autorregenerar.

Como restaurar a tessitura social quando rompida? Como ajuntar os rejuntes das esquinas da trama sagrada da vida?

Mãos em prece

MONJA COEN

26 DE SETEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

O MURO DO FIM DA VIDA 

Em pelo menos 90% das vezes, variando conforme a especialidade, o convívio médico/paciente envolve expectativa de retorno à vida normal, e o melhor médico, qualificado como um técnico de excelência, é o parceiro adequado para ajudá-lo nas opções de tratamento e na seleção das escolhas diante das encruzilhadas. Ou seja, nesta condição, o enfoque é convenientemente otimista.

A proximidade do fim inutiliza este discurso, e o paciente, que sempre sabe quando está morrendo, repudia as promessas mentirosas. E muitas abordagens de doentes terminais morrem antes da morte, na primeira frase vazia. Por consequência, na hora de maior carência afetiva, o paciente se percebe emocionalmente abandonado, e médico que não teve a sensibilidade de perceber a diferença se sente desconfortável. Reconhecido como inútil, se afasta.

Esse momento mágico da relação médico/paciente precisa ser construído e respeitado, com a percepção de que, tendo chegado ao muro do fim da vida, não tem mais encruzilhadas, e com este paciente só se pode falar do muro para trás. Como o tempo encurtou, só interessam as ofertas que qualifiquem a despedida. E neste transe, nada é mais importante do que o perdão, porque quase todas as pendências emocionais do fim da vida estão atreladas a ofensas bobas, picuinhas ridículas, amores omitidos e afetos negligenciados. Priorizar o controle do sofrimento físico e se oferecer para intermediar o resgate das relações amorosas dispersadas pelo caminho colocam o médico, emocionalmente bem resolvido para este desafio, num nível superior desta maravilhosa profissão.

Em todas as relações, estamos sempre perseguindo interlocutores capazes de ouvir o que precisamos dizer e retribuir com palavras que movam com reciprocidade os nossos sentimentos, muito especialmente quando estamos solitários e assustados.

Um dia desses, resolvi chamar a atenção dos estudantes para a importância dos cuidados paliativos, considerando que mais de um milhão dos brasileiros que morrerão neste ano terão uma morte anunciada e precisarão de quem os proteja da solidão. A reação dos jovens foi de horror com a ideia de cuidar de pessoas que não têm salvação. Recomendei que lessem urgentemente A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, que elabora com genialidade o desterro do sofrimento solitário e a descoberta gratificante de Guérassin, um campesino escalado para cuidar do patrão quando ele já não tinha condições mínimas de autonomia, e que se revelou o parceiro mais confiável, capaz de ser sincero em assuntos que os médicos e a família só faziam mentir. Tolstoi descreveu como ninguém a extrema solidão de quem, estando às portas da morte, tem de suportar as promessas falsas de quem não entende que o fim da vida é o território da verdade definitiva porque derradeira.

O Evandro, um amigo de longa data, tinha sido submetido a um transplante de fígado e desenvolveu um câncer de pulmão, claramente inoperável na primeira avaliação. Fui visitá-lo no hospital e o encontrei rodeado de familiares que contavam histórias divertidas do veraneio passado. A alegria do grupo pelo aparente o fim da pandemia, e o entusiasmo pelas próximas férias, contrastava de tal maneira com a situação dele, que das duas, uma: ou não percebiam o quanto ele estava doente, ou a ausência do Evandro não faria falta nas futuras noitadas no Conrad. Quando ficamos a sós, ele perguntou: "Eu estou morrendo, não estou?". E então retribui: "Se você quer falar sobre isso, estou aqui para te ajudar!". Pela firmeza com que segurou minha mão, senti o significado pleno de se oferecer disponível em qualquer dia futuro. Até que não houvesse mais nenhum.

J.J. CAMARGO

26 DE SETEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

A decepção de "O Dilema das Redes"

Instado por dezenas de recomendações entusiasmadas ("Tu tens que ver! Tu tens que ver!"), assisti a O Dilema das Redes.

Fiquei decepcionado com o tom conspiratório do filme. E com sua aparente ingenuidade: alguém não sabia que as redes sociais se esforçam para conquistar o maior pedaço da atenção de seus usuários? Alguém não sabia que elas vivem disso?

O que as redes sociais fazem com bom sucesso sempre foi o sonho de todos os empresários, de todos os comerciantes, de todos os políticos, de todos os pregadores: elas ganharam a fidelidade do seu público. Que empresário não gostaria de ver o seu produto transformado numa espécie de febre de consumo interplanetário? Que líder não gostaria de guiar manadas de povo como se fossem rebanho?

No meio do filme, há uma cena teatralizada: uma mãe chega à conclusão de que o uso dos celulares está prejudicando a convivência da família e toma uma medida drástica. Durante as refeições, ela tranca os celulares de todos em um pote de vidro que tem uma tampa controlada por cronômetro: a tampa só se abre depois que é transcorrido determinado tempo. Já no começo do jantar, uma das filhas se impacienta com a restrição, apanha um martelo e quebra o vidro do pote para retomar o celular. Com ele nas mãos, marcha para o quarto, em silêncio.

É evidente que o filme pretende demonstrar, com isso, o nível de dependência da menina. Na verdade, mostrou o nível de educação que seus pais lhe dão. Meu filho estava assistindo ao filme comigo e, ao ver a cena, virou-se para mim, riu e perguntou:

"O que tu farias, se eu fizesse isso, hein, papai?".

Sorri de volta e nem precisei responder. Era uma pergunta retórica. Ele sabe o que eu faria.Aí é que está: o fato de as pessoas se viciarem nas redes sociais demonstra menos a força das redes sociais e mais a fraqueza das pessoas. O homem gosta de ser manipulado, gosta de ser mandado, gosta de ter um guia. Isso lhe dá uma agradável sensação de pertencimento. Ele é membro de uma comunidade, ele tem em quem se apoiar.

Pensar por si mesmo, tirar suas próprias conclusões, analisar os fatos de forma isenta, sem dogmas e sem crenças, é algo muito, muito solitário.

"Livre pensar é só pensar", brincava Millôr Fernandes, fazendo um jogo de palavras com a figura do livre-pensador. Exatamente: o livre-pensador pensa, os outros seguem os instintos de rebanho do animal humano. Mas, precisamente por ser livre, o livre-pensador é só. O pressuposto da liberdade é a solidão. Quanto maior liberdade o homem tem, mais sozinho ele está. Por isso, as pessoas se deixam conduzir. Por isso, elas querem ser cativas. Por isso, elas querem seguir um líder, uma ideologia, um partido, uma fé, uma causa. Por isso elas se deixam viciar e hipnotizar.

Fora das redes sociais, há livre pensar. Há liberdade. Mas também há solidão.

DAVID COIMBRA


26 DE SETEMBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

O MENDAZ

O mendaz não tem limites pois é alguém incomum. Às vezes, é tão inventivo que chega a cativar, pois vê coisas e situações que não existem, como se feiticeiro fosse.

Na pobreza atual do nosso idioma, talvez não se saiba que "mendaz" é soma de mentiroso e megalômano que inventa realidades e ignora o verdadeiro. Existem mentirosos a granel, cuja mentira até diverte.

Mas há ambientes em que a mentira agride. Um presidente da República, por exemplo, não pode ser mendaz ao falar ao mundo na Assembleia Geral da ONU nem inventar situações para tentar "justificar" o injustificável, como fez Jair Bolsonaro, dias atrás.

A mendacidade atingiu o absurdo. O presidente disse que a imprensa politizou a tragédia do novo coronavírus e, numa tolice infantil, defendeu perante o mundo usar cloroquina contra a pandemia. Culpou "os caboclos e os índios" pelos incêndios que devastam a Amazônia e o Pantanal, e foi adiante no absurdo. Seu governo - disse ele - é vítima de uma "campanha de perseguição" que busca desprestigiar a imagem do Brasil com inverdades sobre as queimadas.

Ao fantasioso, só importa a "imagem". A realidade não conta. Se o presidente dissesse a verdade, confessaria o desastre que seu governo propicia ao meio ambiente. Mas isto é algo fora do estilo (ou manias) de quem fantasia um mundo fora do mundo. A ONU busca o entendimento e, assim, exige a verdade em busca da paz. Do contrário, seria fazer dela uma reunião de inimigos, pois só se engana ao inimigo em guerra.

Quando não nega a realidade, o mendaz se faz de esquecido. Nosso presidente diz, sempre, que no Brasil não houve ditadura e que a ditadura implantada em 1964 não perseguiu nem torturou ninguém.

Agora, porém, em São Paulo, a Volkswagen concordou em indenizar mais de uma centena de trabalhadores da empresa perseguidos, presos ou torturados durante a ditadura. No total, a VW pagará ao Ministério Público Federal e Estadual R$ 36,3 milhões, dos quais R$ 2 milhões serão destinados a investigar outras empresas (entre elas a Folha de S.Paulo) que apoiaram a repressão, e outros R$ 2,5 milhões para identificar as ossadas de presos políticos mortos na tortura e sepultados em valas comuns no cemitério paulista de Perus, como "indigentes".

Outros R$ 16,8 milhões indenizarão os trabalhadores demitidos e presos como "subversivos".

A decisão é histórica. Na cúpula da matriz alemã da Volkswagen, o diretor jurídico Hiltrud Werner lembrou que pela primeira vez a empresa "reconhece violações de direitos fora do nazismo, num capítulo negativo da história do Brasil".

Já não há espaço para a fantasia.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


26 DE SETEMBRO DE 2020
ARTIGOS

SUICÍDIO E ESPIRITUALIDADE

Para uma aproximação séria e competente às questões acerca da conduta contemporânea autodestrutiva, concentradas no fenômeno do suicídio, faz-se necessário um amplo enfoque interdisciplinar, sem o qual toda análise ou discurso sobre o problema se revelará deficitário e ingênuo. Nessa abordagem ampla, há um lugar de destaque para a fé e a espiritualidade. A espiritualidade é um eficaz recurso no processo de ressignificação de uma vida que perdeu o sentido e tende ao risco suicida.

O ser humano é um ser aberto ao infinito; deseja sempre ir além, sente radical necessidade de transcender este mundo que passa. Esse "senso espiritual" pode ser um dos principais motivos que possibilitam à pessoa superar situações determinantes de crise, sofrimento, angústia, depressão e desespero.

Para prevenir, é preciso "cuidar". No caso específico do comportamento suicida, é necessário cuidar da dor, isto é, recompor uma visão integral da pessoa, que a prepare para enfrentar e administrar situações inevitáveis de sofrimento.

A espiritualidade não pode negar a dor, a perda e a frustração. Mas pode ajudar a revisar os conceitos impostos pela sociedade sobre essas condições, que são inerentes à vida humana. Para isso, é necessário libertar-se do mito da atual sociedade, quando apregoa que só vale a pena viver se há garantias de ter, poder e aparecer. Nega-se toda dor e espera-se o máximo de um prazer duradouro. As provações da vida, contudo, possibilitam a purificação de ilusões sobre a existência. Elas podem mostrar o que realmente tem valor na vida; de forma extremamente eficaz, elas ajudam a discernir o que é secundário e o que é essencial.

Somente a esperança no futuro pode devolver o sentido perdido, talvez, num presente de extremo sofrimento. A fé abre as portas do tempo presente ao futuro, à vida que há de vir. Na vida, tudo passa, até mesmo a dor e o desespero. Também a presunção e a frustração têm vida curta. Enquanto se tem vida, há esperança!

LEOMAR BRUSTOLIN

26 DE SETEMBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

EQUILÍBRIO E FOCO NO ELEITOR

 A exemplo do que faz a cada ano eleitoral, o Grupo RBS torna públicas suas orientações e normas editoriais, visando apresentar de forma transparente para eleitores, candidatos e partidos os conceitos que norteiam a cobertura de veículos e profissionais. A intenção do conjunto de ações não é o engessamento de opiniões ou de abordagens - ao contrário, a RBS defende e pratica a pluralidade. O objetivo do ideário é explicar ao público uma série de conceitos específicos para as eleições, que se somam às normas já consubstanciadas no Guia de Ética e Autorregulação Jornalística a que os profissionais da RBS aderem quando se juntam à empresa.

Como em todas as eleições, o Grupo RBS reafirma que não tem candidatos ou preferências partidárias. Mais do que apresentar uma mera disputa entre nomes e siglas, o foco principal da cobertura eleitoral é, com independência, equilíbrio e apartidarismo, colaborar para que o eleitor faça suas escolhas da melhor forma possível, fortalecendo a cidadania, a democracia e o desenvolvimento das comunidades.

Alinhado ao propósito da RBS de fazer jornalismo e entretenimento que conectem os gaúchos e contribuam para uma vida melhor, a cobertura dá prioridade ao chamado jornalismo de soluções. Por meio dessa abordagem, levantam-se problemas e desafios, mas também apresentam-se possíveis caminhos para equacioná-los e as possibilidades reais de serem colocados em prática, além de se discutirem os resultados esperados. Outro eixo de cobertura são a apresentação de biografias de candidatos e as comparações de propostas e programas pela perspectiva do eleitor. Desta forma, os veículos da RBS buscam atender à expectativa do público ao procurar saber de candidatos não apenas o que pretendem fazer, se eleitos, mas sobretudo como planejam transformar seus planos em realidade. Confrontar promessas com sua exequibilidade é parte da tarefa jornalística responsável que move os veículos da RBS.

Especialmente em razão dos grandes impactos produzidos pela pandemia de covid-19, a cobertura se concentra em apresentar perspectivas para o futuro e em discutir temas da chamada vida real, ou seja, questões prementes e concretas como saúde, educação, segurança, economia, emprego e renda, relegando ao plano secundário ataques, ameaças, ofensas e acusações entre candidatos, que em nada contribuem para o esclarecimento do eleitor.

Com essa linha em mente, os veículos adotam também os seguintes conceitos e normas durante o período eleitoral:

- As redes sociais fazem parte do processo eleitoral e devem ser compreendidas como um espaço público de debate, sobretudo em uma campanha como a deste ano, quando há uma série de restrições para atividades políticas de forma presencial. As redes são também importantes ferramentas de trabalho para o jornalismo, por ampliar o alcance da mensagem jornalística, pela identificação de tendências e pelas janelas de interação com o público.

- Apesar dessas características positivas, parte considerável dos conteú- dos das redes pode ser classificada como ativismo a serviço de causas e interesses partidários, obrigando a cautelas adicionais no seu tratamento. As redes e grupos de mensagens são territórios propícios à disseminação de desinformações e agressões que não raro distorcem o processo democrático de escolha pelo voto. Cabe ao jornalismo promover a devida apuração sobre conteúdos que circulam em redes. Para isso, os veículos do Grupo RBS recorrem a fontes, estatísticas e informações de alta confiabilidade, e promovem repetidas verificações, para que delas eventualmente se extraiam matérias jornalísticas de interesse coletivo e público.

- Em um cenário eleitoral permeado pela difusão proposital de desinformações e de extratos de falas retiradas de contexto, cabe ao jornalismo profissional, com técnica, independência e equilíbrio, unir esforços para estabelecer a verdade dos fatos e colaborar para que a informação correta prevaleça no processo de escolha pelo eleitor.

- A fim de ressaltar sua isenção, a RBS não promove pesquisas eleitorais próprias e divulga apenas aquelas devidamente registradas na Justiça Eleitoral e realizadas por institutos com reconhecida tradição e credibilidade. As pesquisas são parte natural do ecossistema eleitoral por retratarem um momento da campanha, mas a RBS as considera um elemento acessório da cobertura, uma vez que o foco é nos programas e biografias de candidatos, com a respectiva verificação das soluções propostas. Da mesma forma, a RBS não divulga enquetes e sondagens nem pesquisas com conotação eleitoral contratadas por partidos, candidatos ou governos, por virem à tona com objetivos políticos predefinidos.

- A cobertura dos veículos da RBS se guia pelo interesse jornalístico, conforme a evolução das candidaturas e o desenrolar da campanha. As candidaturas de baixa representatividade, respeitada naturalmente a legislação eleitoral específica, têm, portanto, cobertura de acordo com sua dimensão.

- A RBS considera incompatível a atividade de profissional da comunicação com a política partidária. Assim, devem se afastar de suas atividades os profissionais que porventura aceitem convites para disputar um cargo político ou que participem da propaganda eleitoral.

Com estes conceitos e sua cobertura, a RBS espera, mais uma vez, poder contribuir para que as eleições representem não só um momento marcante e positivo da democracia mas que, ao fim do processo, a sociedade possa também identificar e superar seus desafios.