quarta-feira, 30 de setembro de 2015



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MARTHA MEDEIROS

PODER E STATUS


Três anos atrás, fui a Brasília receber a Ordem do Mérito Cultural. Eram entre 30 e 40 agraciados de diversas regiões do país. Chegando ao hotel, soube da programação: a entrega da comenda seria na manhã seguinte, no Palácio do Planalto, e à tardinha haveria um coquetel no Palácio da Alvorada. Fomos avisados de que cada um de nós teria um carro com motorista à disposição enquanto estivéssemos na cidade.

O dia amanheceu. Enquanto me arrumava para a cerimônia, fui até a sacada do quarto e vi uma fila de sedans pretos enfileirados na porta do hotel. Desci até o lobby para juntar-me ao grupo. Então, em fila, fomos conduzidos cada um para um carro, e saímos em comitiva, todos ao mesmo tempo, para o mesmo local. Patético, pra dizer o mínimo.

Não estou depreciando a honraria concedida, da qual me orgulho muito, mas óbvio que tinha algo errado ali, como sempre teve.

Na Suécia, deputados moram de segunda a sexta em apartamentos funcionais de 40m2 com lavanderia comunitária. Não têm empregados. Seus gabinetes de trabalho possuem 18m2, sem secretária, assessor ou carro com motorista. O dinheiro do contribuinte não é usado para privilégios de qualquer espécie. Além do bom uso do dinheiro público, essa postura é um seletor natural: quem quer mordomia, que bata em outra vizinhança. Entra para a política apenas aquele que deseja servir ao país, e não ser servido por ele.

O papa Francisco, dias atrás, circulou por Washington a bordo de um automóvel compacto e popular, um gesto simples que ajudou a redefinir o que é poder. Todos nós merecemos eficiência e conforto. Buscar mais que isso não é crime, mas é uma necessidade supérflua. Moramos em apartamentos mais espaçosos do que de fato precisamos, contratamos funcionários para fazer o que poderíamos fazer nós mesmos e dirigimos veículos cuja potência a lei nem permite testar (qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em cinco segundos, a não ser que estejamos fugindo da polícia?).

Em nossa sociedade, a aparência reina. O bairro em que você mora, a marca do seu jeans, o hotel em que você se hospeda: além do benefício real (a qualidade) há o benefício agregado – o status. Tudo bem. Só que status e poder não são a mesma coisa.

Status é ranking. Costuma ser valorizado por quem verticaliza as relações. Não vejo problema em se proporcionar coisas belas, saborosas, requintadas. Se são pagas com o próprio suor, é um direito adquirido, mas não confere poder algum, apenas bem-estar privado.

O poder é horizontal. Poderoso é aquele que distribui, compartilha, multiplica. Que produz ideias, arte, soluções, e as torna úteis e benéficas para os outros. Que não passa a vida tentando preencher o próprio vazio.

Não precisamos que nossas coisas falem por nós, a não ser que nossos atos já não digam nada.

sábado, 26 de setembro de 2015



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
CARPINEJAR

A alegria veste a tristeza


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. 

Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
MARTHA MEDEIROS

A tarde é a nova noite

Qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme: todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa

Estava folheando uma revista quando vi uma pequena nota sobre a inauguração de um bar em São Paulo que tem seu ápice de frequência durante o almoço e nas horas seguintes. O título da nota era: A tarde é a nova noite. Juntei as palmas das mãos, fechei os olhos e agradeci as preces atendidas.

O proprietário do bar, instalado na cobertura de um prédio, alega que a noite de São Paulo ficou tão grande que começou a ocupar o dia também. Porto Alegre não tem uma noite assim tão grande e, na minha modesta opinião, não precisa esperar para ter, pode adotar essa moda agora mesmo e ser moderna hoje, já, imediatamente. A tarde é a nova noite. Meu mantra.

Nos últimos meses, fui a uma festa de casamento de dia, a um show de comemoração de um site de dia e a um lançamento de uma revista numa casa noturna – de dia. Chamei de casa noturna por hábito: qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme. Todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa. Chego a me emocionar com tamanha civilidade.

A tarde é a nova noite. E não precisa ser de tardezinha. Pode ser início da tarde, meio da tarde, pode ser tarde só no nome, pois que cedo.

A vida acontecendo à luz do dia. Consequência saudável de um mundo evoluído, em que as pessoas, por trabalharem online, podem ser produtivas a qualquer hora, em qualquer lugar, sem necessidade de cumprirem expediente rígido e formal, liberando-se, assim, das quatro paredes do ambiente corporativo. Sei que isso ainda é para poucos, que a maioria das pessoas possui empregos inflexíveis, mas não custa sonhar que o padrão de poucos se tornará em breve o padrão de todos, que as pessoas possam trabalhar em horários alternativos e ter disponibilidade para encontrar sua turma para celebrar, gargalhar e prestigiar os espaços de lazer da cidade ainda sob céu claro.

Se isso for utópico demais, que esses encontros com luz natural aconteçam então nos fins de semana apenas, aos sábados e domingos, mas sempre aproveitando o dia (carpe diem!) de dia mesmo.

Estou advogando em causa própria, claro. Assumidamente uma cinderela urbana, é com muito custo que atravesso os ponteiros da meia-noite sem virar abóbora. Logo, prezo tudo que é solar. Entendo que o dia se presta para os esportes, os parques, os sucos, mas acredito que também podemos ter festas e baladas à tarde, sem prejuízo àquelas que não resistem a um paetê – há muito tempo que o brilho virou item fashion ao ar livre também.

A tarde é a nova noite. Eis aí uma tendência original, descolada e livre de ressaca na manhã seguinte. Que a moda pegue – e não largue.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015



23 de setembro de 2015 | N° 18303 
MARTHA MEDEIROS

Amor bandido

Não encontro vocabulário que alcance a dimensão do que sinto. Tenho lido os jornais e também comentários diversos no Face, de todas as correntes. Nunca soube de tanto e nunca tive tantas dúvidas, o que me conforta: dúvida é esperança. Mas esperança de quê?

O único talento dos nossos políticos é o de transferir o poder entre si e o de se lixar para o bem público, que deveria ser o objetivo único. Nossos representantes, eleitos por nós, são tão miseráveis, que preenchem o próprio vazio com cargos. Até uma manchete divulgando que o cara está preso pode satisfazê-lo – antes isso do que o anonimato. Prisão domiciliar está sendo comemorada como uma Mega Sena. Indecentes, quase todos. Dou desconto para um Pedro Simon e outro.

Penso muito na Dilma, no ser humano por trás da presidente, em como deve ser o momento em que ela vai pra cama à noite. Imagino que pense antes de dormir: maldita hora em que venci a eleição, poderia estar hoje em posição privilegiada, apontando o dedo em vez de tê-los apontados pra mim. E Aécio, da mesma forma, antes de dormir deve agradecer a sorte de ter perdido. Logo eles trocarão de lugar e assumirão o discurso um do outro, e a pantomima seguirá. Não foi sempre assim?

Depois de Dilma, virá outro inconsequente. Alternância de partido muda quase nada. O que mudaria alguma coisa seria uma mentalidade incorruptível, estímulo à criatividade e total desapego ao poder. Mujica ainda foi o que de mais novo surgiu por aí, ao mostrar que nem todo governante se envaidece com a própria influência. 

O Brasil bem que tentou, deu seu voto de confiança a Lula anos atrás, e algumas coisas foram melhoradas, mas ela estava no caminho, a casca de banana em que tantos derrapam: a ganância. E lá se foi a ética pro espaço, permitindo a continuidade da velha troca de favores que não se interessa por projetos que beneficiem o povo a médio e longo prazos. Mantêm-se os projetos de interesse imediato, sem visão de futuro, que só sustentam o ego de alguns. O ego, sempre ele.

Infelizmente, ame-o ou deixe-o continua sendo o slogan perfeito pra nós, ainda que representativo de uma época nefasta. Como escolher? Nasci neste país que nunca atendeu a meus ideais, e não consigo deixá-lo e também não consigo amá-lo. Amar o Brasil é amor bandido, é ficar ao lado de quem provoca muita dor e só satisfaz minimamente. Seu lado bom (arte, natureza e o que mais mesmo?) alimenta o comodismo.

Então fico, ainda que a sensação seja a de estar num bote inflável, à deriva, sem saber para onde estou indo: que brasileiro, a esta altura, não possui alma de refugiado? Na beira da praia, em vez do corpo imóvel de um menino, vemos meninos fazendo arrastões: é diferente? É, mas nem tanto. Não existe situação vantajosa em meio a desgovernos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015




22 de setembro de 2015 | N° 18302 
CARPINEJAR

Como uma nota de três reais


Elogio, quando sempre, vira bajulação. Ternura, quando excedida, vira cinismo. Concordância, quando constante, vira sarcasmo. Aceitação, quando submissa, é indiferença.

Amizade é medida (já o amor é perder a medida). Percebo quem é falso pela ânsia de agradar a qualquer custo. É um torturador pelo afago. Alegria se transforma em histeria; a espontaneidade, em afetação.

Não é um contato natural, mas uma negociação: a impressão é de que o outro, que não para de me reverenciar, está vendendo algo que não sei, algo que não estou vendo. É muita simpatia para nada. É muita camaradagem gratuita. É esnobar com uma nota de R$ 3.

Mantenho um pé atrás com quem é abusivamente açucarado. Evito quem é dado ao léu, antes mesmo de estabelecer intimidade. Gritinhos no “oi” apressam o meu adeus. Diminutivos esgotam a minha paciência. Quem se aproxima querido demais falará mal de mim pelas costas. A traição está insinuada na atração artificial.

Não tenho dúvida. Acúmulo de gentileza é véspera de maldade, de oportunismo, próprio daquele que pretende enganar. Desconfio de quem chega com mimimi, só exaltando as minhas virtudes, concordando com os meus comentários. É característica de personalidade maquiavélica, porque me faz relaxar, confessar as dificuldades e abrir a guarda para tirar vantagem.

Não levo a sério quem carrega nos adjetivos, superfatura nas exclamações, endeusa nos cumprimentos. Amigo que se gosta vive se provocando. O que adula é um inimigo disfarçado.

Hipocrisia vem do exagero do perfume. O tipo busca dissimular a carência de banho com borrifadas, procura abafar a maldade e a inveja com o comportamento contrário. Temo mais a chuva de confetes do que os relâmpagos e dilúvios.

A afetação me põe ressabiado. Não aturo a fala dublada – a impressão é de que falta a opção do áudio original. Parece que a voz vem de um ventríloquo. Parece uma tia chata interpretando as vontades de um bebê.

A pessoa se comunica miando, ganindo, arrastando as vogais. Força empatia, ri sem nenhuma piada, é solene sem necessidade. Gente falsa é o mesmo que conversar com alguém fingindo o orgasmo em todo momento. Não tem como acreditar que algum dia será para valer.

Autenticidade implica alternância e até um certo mau-humor. Prefiro o ferrão ao mel.

sábado, 19 de setembro de 2015



20 de setembro de 2015 | N° 18300
MARTHA MEDEIROS

Escuta

Amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam


Eu estava diante de um cenário deslumbrante que poucas vezes vi igual. O lugar chama-se Tonnara di Scopello, uma baía minúscula no norte da Sicília, na Itália. A beleza era de deixar qualquer um sem palavras, mas ao meu lado estava uma mulher que tinha palavras de sobra e provavelmente já estivera naquele recanto uma centena de vezes a ponto de não se deixar embasbacar pela vista. A única coisa que ela queria precisava! era falar. Quando cheguei, ela já estava ao telefone. Quando fui embora, ela ainda não havia desligado. Parecia longe de ter esgotado o assunto.

Italianos falam muito, reza a lenda. Mas ela abusava do estereótipo. Não parou de falar nem quando uma menininha de uns quatro anos, que imaginei ser sua filha, veio solicitar sua atenção. Ela passou a mão na cabecinha da criança, enxotando-a com suavidade, e com a outra continuava segurando o celular junto ao ouvido. 

Em pé, de biquíni, caminhava dois passos para frente e voltava os mesmos dois passos, ininterruptamente. E falava. E falava. Meu conhecimento do idioma é limitado, mas suficiente para perceber que ela não estava ditando um discurso e tampouco estava apresentando a defesa da sua tese de mestrado. Ela estava simplesmente conversando sobre a vida, contando casos, isso que a gente faz em mesa de bar.

Por um instante, supus que no outro lado da linha haveria um excelente ouvinte. Mas não me surpreenderia se fosse outra pessoa que também não parasse de falar. Porque nesse ponto chegamos: escutar, hoje em dia, é o de menos. A parte desimportante da convivência.

Aprecio a concisão, logo, fico meio impressionada com quem dá voltas sobre o mesmo tema, com quem reproduz diálogos inteiros (“Então ela disse isso, e ele respondeu aquilo, e ela retrucou assim, e ele então falou que...”), com quem entra em detalhes desnecessários a fim de espichar a conversa, com quem não finaliza o pensamento, e sim emenda um no outro até que se perde: “Onde é que eu estava mesmo?”.

Estava encantado com o som da própria voz. Encantado por ainda existir comunicação verbal nesse mundo de tantas abreviações digitais. Encantado por ser o narrador, o protagonista da cena. Quem não? Somos todos meio italianos, principalmente em mesas de bar, onde todos falam, ninguém escuta ninguém e voltam todos para casa embriagados de afeto e amizade.

Mas escute: se alguém ainda silencia e presta atenção no que você diz (não vale o analista), leve em conta o romantismo dessa atitude, a declaração muda que está sendo oferecida carinhosamente a você. Como diz um amigo meu, amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam.

Do outro lado da linha daquela mulher siciliana talvez houvesse um homem apaixonado. Prefiro essa ilusão do que imaginar que era outra matraca que também não escutava nada.

mar­thamedeiros@terra.com.br


20 de setembro de 2015 | N° 18300 
CARPINEJAR

Perdi 1 milhão de reais

Não festejei o meu primeiro milhão porque fumei o meu primeiro milhão.


Eu me dei conta de que se juntasse as minhas baforadas com as tragadas do cantor Renato Godá, amigo de vício e de faixa etária, já teríamos posto fora R$ 1 milhão. Nesta brincadeira existencialista e maldita, torramos um patrimônio difícil de obter. Participamos de um Big Brother às avessas: em vez de ganhar, gastamos a recompensa máxima do reality show.

Cada um fumou duas carteiras por dia durante 26 anos, o que resultaria em R$ 284.700. Se esse valor tivesse sido investido há três décadas em uma aplicação que rendesse 1% ao mês, sem considerar inflação e troca de moeda, o montante atualizado com juros seria de R$ 1.170.117.

Foram quarenta cigarros do amanhecer até o anoitecer desde os 17 anos. Apaguei no cinzeiro mais de 380 mil filtros. Encheria uma piscina olímpica com as minhas bitucas.

O resultado é assustador. Nenhuma morte seria tão cara. Fui um perdulário invisível. Não percebi o investimento porque identificava como um mero troco. Quem adquire cigarro não anota sua compra, e tampouco registra como gasto. Só que empenhei uma parcela fixa diária e interminável de quinze reais. Somadas ao longo de minha história, formam uma bagatela que paralisa os mais incrédulos, digna de prêmio dividido da Mega Sena.

Com tudo o que fumamos, poderíamos abrir uma grande empresa com forte capital de giro. Ou comprar à vista uma cobertura de 300 m2 no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Ou levar cinco carros Santa Fé zero quilômetro para as nossas garagens. Acabaríamos ricos, com uma poupança redentora, não precisaríamos nos preocupar com a crise e muito menos em trabalhar duro todo o mês. Mas cedemos a nossa fortuna imaginária e os nossos pulmões reais para a indústria tabagista.

Não transformamos o nosso suor em sorte, em previdência, em títulos de capitalização, em economias para a universidade dos filhos, ele simplesmente virou fumaça.

Qualquer um é considerado maluco ao queimar dinheiro. Eu e o meu comparsa músico queimamos 1 milhão de reais com a boca.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015


16 de setembro de 2015 | N° 18296 
MARTHA MEDEIROS

Rock at home


Onde você está agora? No quarto, no escritório, no ônibus? Aliás, que horas são agora? É de manhã, é de tarde, você está entediado, aborrecido, feliz da vida?

Difícil estar feliz da vida diante da situação desalentadora do país e do nosso Estado, mas há que se buscar pequenos prazeres para seguir adiante, e é o que estou fazendo. Neste exato instante (você já pensou sobre a distância que separa o momento em que escrevo e o momento em que você me lê?) estou tomando um cálice de vinho (é noite!) e escuto o novo CD de uma banda que me reconecta com o espírito que eu tinha aos 16 anos e que permanecerá comigo pra lá dos 90 – velhinhas também escutam rock.

O disco: 1 Hopeful Rd, da banda californiana Vintage Trouble, que surgiu em 2010 resgatando um rhythm’n’blues que anda meio esquecido nesta era de música eletrônica, bate-estaca, tum-tum-tum. Já falei dessa banda em sites, blogs, postagens no Face, agora falo no jornal porque sei que roqueiros clássicos sobrevivem por aí, feito dinossauros que se negam a entrar em extinção.

A primeira faixa do disco é vigorosa demais pro meu gosto, mas da segunda faixa em diante é um passeio na estrada. Não sou colunista de música, especialista em nada, então escute por sua conta e risco, mas algo me diz que você irá gostar de pegar essa carona comigo.

Por enquanto, a banda ainda toca em bares mundo afora, em pubs, espaços pequenos (eu assisti ao Barão Vermelho pela primeira vez numa boate que me permitia estar a cinco metros de Cazuza, no mesmo plano, sem distância entre palco e plateia), mas Vintage Trouble já está abrindo shows para o The Who e o AC/DC. Não tenho dúvida de que em breve brilhará sozinha em grandes palcos. Se ela estivesse no Rock in Rio, que começa na próxima sexta-feira, eu marcaria presença na fila do gargarejo, extasiada.

Ao mesmo tempo que divulgo e enalteço a banda, sei que posso estar dando um tiro no pé e eles nunca passarem de azarões, virarem aqueles que quase chegaram lá, quase estouraram, quase lançaram hits. Mas precisamos mesmo de ídolos que chegaram lá? Não basta chegarem a nós?

Ainda estou aqui. Ainda tomando um vinho. Se você está trabalhando e é de dia, me compreenda e relativize, a noite logo chegará pra você, eu ainda estou no ontem – e o rock, neste minuto, toma conta do recinto.

Às vésperas de mais uma edição do maior festival do gênero, me rendo à nostalgia. Estive no primeiro Rock in Rio, em 1985, e continuo até hoje fiel a esse som que perdeu o seu caráter transgressor, mas que ainda exerce sobre mim um efeito que o jazz, a bossa e o samba, por mais sensacionais que sejam, não atingem. O efeito de me fazer sentir viva, a despeito das notícias da primeira página. Tim-tim.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015



09 de setembro de 2015 | N° 18289 
MARTHA MEDEIROS

Que horas ela volta? 

Em junho passado, o ator e colunista da Folha de S. Paulo Gregório Duvivier publicou um texto chamado “Nos países em que você lava a própria privada, ninguém mata por uma bicicleta”. Muitos elogiaram, compartilharam, mas uma coluna de jornal não é suficiente para mudar a cabeça de um país. Se o texto dele foi um importante tijolinho, no cinema temos um tijolaço que também pode ajudar a construir uma nova mentalidade nacional. Trata-se do excelente Que Horas ela Volta?, da diretora Ana Muylaert, com a extraordinária Regina Casé.


O filme conta a história de uma empregada nordestina que trabalha e mora na casa de uma família do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Ela praticamente criou o filho dos patrões, enquanto que não vê a própria filha há anos, desde que a deixou em sua terra para tentar a vida no Sudeste. Até que um dia a jovem chega a São Paulo para prestar vestibular e viver com a mãe.



Nem um pouco submissa, ciente de seus direitos de cidadã, a garota revoluciona o cotidiano familiar regido pelo tradicional “cada um que conheça o seu lugar”. Ela realmente conhece o dela, só que não é o mesmo de sua mãe, que está habituada a diminuir-se e resignar-se, e que se horroriza com a “insolência” da filha. 

 Em duas horas de projeção, está tudo ali: a invisibilidade do proletariado (a empregada serve os canapés numa festa em que nenhum convidado olha para seu rosto), a gentileza que procura atenuar a culpa pela diferença de classes (a patroa compra um colchão melhorzinho para a garota que dormirá no quarto da mãe, assegurando assim que ela não ultrapassará as fronteiras da ala íntima da casa), tudo embalado na boa intenção que mascara a perversidade da desigualdade. Segundo a própria diretora, o filme trata sobre “as regras sociais invisíveis que nos regem, muitas vezes, sem nossa própria consciência”.

Essas regras invisíveis são desvendadas no filme com tanta veracidade, tanta familiaridade, que se tornam perturbadoras. A certa altura, a personagem de Regina Casé tenta explicar para a filha que ela não pode aceitar os agrados dos patrões, pois eles oferecem sorvete e convidam para sentar na sala apenas por educação. “Eles têm certeza de que diremos não”. Até que a classe emergente começa a dizer sim, a reconhecer o verdadeiro lugar a que pertence, e a pirâmide desestrutura-se.

A que Horas ela Volta? sintetiza o momento atual do Brasil, evidencia as razões dessa guerra de nervos partidária, expõe o estresse gerado quando uma teoria demagógica se aproxima da prática, revela o indisfarçado incômodo de assistir à ascensão intelectual e econômica de quem, até então, existia apenas para nos servir. Enfim, escancara o susto gerado pela perspectiva de que todos terão que lavar sua própria privada um dia.

sábado, 5 de setembro de 2015


06 de setembro de 2015 | N° 18286 
CARPINEJAR

Ele morreu me dando a mão


Sou um mensageiro, um carteiro à paisana. Desde pequeno, sinto que psicografo os vivos para os vivos. Mas não imaginava que pudesse estar envolvido seriamente num outro casamento.

Descobri que o aposentado Luiz Fernando, 60 anos, conhecido como Beliche pela família, morreu segurando o recorte de minha crônica “O amor depois do divórcio”.

Ele dormiu numa quinta-feira, em 4 de abril de 2013, e não acordou mais, devido a uma parada cardíaca.

Durante um mês, não tirou o texto publicado em Zero Hora (17/3/2013) dos seus bolsos. Transportava da calça ao casaco. Virou sua segunda identidade: amassada, dobrada, com a tinta curtida do braile da releitura.

Não largava a proximidade com aquelas palavras, que se transformaram em seu pingente de São Jorge, seu escapulário de papel, cortado bruscamente com as próprias mãos da revista Donna.

Entregaria a crônica para sua ex-mulher Ana Maria. Estavam separados havia cinco meses, depois de 15 anos dividindo a mesma casa.

Angustiado com o fim da relação, porém esperançoso de que isso não significava o fim do amor, naquela confusão de não prever o que virá e buscando corrigir os seus erros.

Ele decidira não continuar distante da paixão de sua vida, apesar das brigas e dos desentendimentos, só que faleceu a uma semana da audiência de divórcio.

Luiz Fernando acalentava o sonho de ler a crônica em voz alta na sessão do Juizado. Planejara uma reaproximação maiúscula, contundente, definitiva. Seria sua forma de pedir desculpas e assinalar o quanto aprendera com a distância e o sofrimento.

Vinha decorando o meu texto, memorizando letra por letra, vírgula por vírgula, sendo dono da reflexão mais do que eu já fora um dia:

“Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito. Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto. Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas. Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento”.

Fui sua última carta, fui sua confissão, fui seu testamento, fui sua boca murmurando beijos, fui seu braço formigando abraços, fui o seu derradeiro aceno.

Ele nunca declamou a crônica para sua ex-esposa, nunca expressou o quanto amargava a ausência de sua companheira, nunca admitiu a saudade feroz e inimiga que consumia a sua paciência.

O que ele não desconfiava é que Ana Maria também queria se reconciliar.




06 de setembro de 2015 | N° 18286 
MARTHA MEDEIROS

Homens e mulheres: por que isso nunca vai dar certo


Amada, não se apavore com esta mensagem, apenas preste atenção. Sofri um acidente. Silvia me trouxe para o hospital. Vou entrar em cirurgia daqui a pouco, os médicos estão apenas esperando o resultado de alguns exames. Fui atropelado por uma moto. Sofri alguns cortes profundos nas costas e meu joelho está destroçado. Dói muito, mas estou tentando ser forte. O sangramento já foi contido. Por favor, venha assim que puder, estou no setor de emergência do Hospital Nossa Senhora da Purificação, entrada pelos fundos. 


O atropelador fugiu, mas duas testemunhas se apresentaram para prestar depoimento. Há uma capela aqui, reze pelo seu marido. Traga a carteirinha do convênio. O celular está comigo, como você pode perceber. Avise o pessoal do escritório. Não demore. Amo você.”

“Quem é Silvia?”

Querido Ricardo, não adianta falar pessoalmente porque você não me escuta, então resolvi mandar essa mensagem pelo Face, onde fico mais à vontade para me abrir. Depois do que aconteceu na terça-feira, eu refleti muito e concluí que você não está levando em consideração tudo o que faço para salvar nosso namoro: me dedico à sua família, à sua casa, aos seus amigos, isso sem me descuidar um minuto da nossa relação. 

Sempre fui solícita aos problemas de todos, enquanto que você não presta atenção em nada relacionado a mim, sempre focado na sua cerveja, no seu time e nas necessidades imediatas do seu dia a dia, nunca atento ao que realmente interessa e sem perceber como me deixa sobrecarregada. Custa você ser mais participativo? 

Claro que custa, você só tem olhos para o próprio umbigo. Provavelmente se considera um eleito que nada precisa fazer a não ser existir, e os outros que se encarreguem dos problemas. Cansei, Ricardo. Essa mensagem é para dizer que estou indo embora. Terminamos aqui. Vou em busca de alguém que divida comigo as preocupações e os prazeres, que queira investir em mim, em um futuro partilhado, que deseje filhos e um teto em comum. Você só me enrola e já percebi que jamais irá dizer o que desejo escutar. Estou destruída, mas vou me reerguer. Nem perca seu tempo me procurando, não mudarei de ideia, não importa o que você diga.”

“O que aconteceu na terça-feira?”