sábado, 23 de fevereiro de 2019



23 DE FEVEREIRO DE 2019
SINGULAR

Uma questão de valor

NA SEGUNDA REPORTAGEM DA SÉRIE RS QUE INSPIRA, QUE OCUPA O ESPAÇO DA SEÇÃO SINGULAR, CONHEÇA A HISTÓRIA DE UM PROJETO, LIDERADO POR UMA PROFESSORA UNIVERSITÁRIA, QUE JÁ ARRECADOU R$ 150 MIL PARA A CAUSA ANIMAL APENAS RECOLHENDO TAMPINHAS USADAS DE GARRAFAS PET

Espalhadas pela casa da engenheira química e professora universitária Rejane Rech, 56 anos, as dezenas de estátuas de diferentes tamanhos de São Francisco de Assis recebidas de presente sinalizam a paixão dela pela causa animal. Há três anos, Rejane se dedica ao Engenharia Solidária, um projeto que recicla e revende tampas plásticas para comprar ração com o dinheiro arrecadado. O alimento é repassado a duas ONGs e a 25 protetores independentes, responsáveis por cuidar de mais de 300 animais vítimas de maus tratos em Caxias do Sul, na serra gaúcha.

Criado em agosto de 2015 dentro do curso de Engenharia de Produção da Universidade de Caxias do Sul (UCS), por sugestão de uma aluna, o projeto pretendia ajudar, inicialmente, a ONG Proteção Animal Caxias (PAC), uma das mais antigas entidades em funcionamento no município. Porém, o primeiro mês de arrecadação foi desanimador: rendeu apenas R$ 16. Rejane diz que sentiu "vergonha" ao prestar contas aos primeiros amigos engajados na causa. Apesar da frustração, no entanto, não desistiu. Dois meses depois, com as primeiras postagens de mobilização nas redes sociais, chegou a R$ 232.

Mas a visibilidade definitiva veio quando o Engenharia Solidária estava prestes a completar um ano de funcionamento. Sem sede própria, o projeto ganhou da UCS três salas de 10 metros quadrados cada para abrigar o material da reciclagem. Na mesma época, o Sindicato das Indústrias de Material Plástico, em parceria com a prefeitura de Caxias, realizou uma gincana nas escolas para arrecadar tampinhas e repassá-las à entidade. 

O sindicato ainda doou ao projeto 70 coletores de tampas, recipientes demarcados para reunir os objetos, que foram distribuídos no comércio local. A ação mobilizou a cidade. Outras 300 caixas foram entregues pela JP Embalagens e espalhadas por vários bairros. A empresa, até hoje, cede coletores, feitos de papelão. Desde então, a arrecadação, assim como o número de voluntários do Engenharia Solidária, só aumentaram.

- As doações cresceram e pudemos ampliar nossa rede de ajuda. Passamos a fornecer aos cuidadores independentes, aquelas pessoas que recolhem e mantêm muitos animais em casa. Na maioria das vezes, são pessoas humildes, que amam os animais mas que não têm apoio para poder alimentá-los adequadamente - explica Rejane.

Por mês, o Engenharia Solidária costuma arrecadar cerca de R$ 6 mil. O dinheiro é repartido entre as entidades e ajuda a alimentar os cães recolhidos.

Vítima dos próprios donos, Cabrita, uma cadela de pelos brancos com cerca de 12 anos, foi uma das que ganharam a ração enviada pelo grupo. Cabrita não consegue manter a língua dentro da boca desde que perdeu parte dos dentes e do maxilar devido aos maus tratos. Resgatada em janeiro de 2018, ela ficou em um local provisório na PAC. Quatro meses depois, ganhou um novo lar e quatro irmãos - todos cães considerados inadotáveis por terem algum problema de saúde. Hoje, ela tem espaço para brincar, uma almofada aconchegante só para ela e o carinho da nova dona - a própria mentora do Engenharia Solidária.

Para Rejane, o que cativa as pessoas é a possibilidade de ajudar. Muitos, ela percebe, têm o desejo de contribuir com a causa, mas não têm condições financeiras ou tempo disponível. Nesses casos, separar as tampas plásticas os faz se sentirem úteis. Orgulhosa, reforça que a mobilização atinge todas as classes sociais. Um exemplo são as mensagens enviadas por ex-alunos, hoje empresários bem-sucedidos, quando avisam terem recolhido as tampas inclusive durante viagens de negócios.

- Quando começamos a arrecadar tampinhas, percebemos o lixo que nós produzimos. Hoje, já passamos das 80 toneladas retiradas do meio ambiente diretamente para a reciclagem. Isso rendeu, da metade de 2015 até agora, R$ 150 mil para o projeto - destaca.

Professora há três décadas na UCS, Rejane trabalha em uma sala em frente às três peças nas quais são separadas as tampas. Da janela, controla a entrada e a saída dos voluntários. Para flexibilizar os horários, cada um recebe as próprias chaves. Há quem frequente o local duas horas por semana. E há os assíduos, que passam por lá todas as tardes. Os novos recebem um treinamento sobre triagem antes do primeiro dia de trabalho. Por ser um ambiente estreito, apenas três pessoas podem trabalhar juntas por vez no mesmo espaço. Cada tampa é lavada e tem o plástico interno retirado. Quando um saco é completado, passa pela pesagem e conferência e recebe uma identificação.

O material é levado para uma sala seguinte, onde ficam as tampas limpas. De lá, segue para a terceira sala, a de expedição. A Estação da Ração, loja parceira do projeto, atua voluntariamente para levar o material ao destino final.

O grupo ainda enfrenta o desafio de conscientizar as pessoas sobre as doações. É comum o Engenharia Solidária receber sacos com lacres, outros tipos de materiais e até itens que não deveriam ser descartados, como um anel de ouro localizado por Rejane no início de janeiro. A dona apareceu depois de uma divulgação na rede social do projeto.

A professora valoriza o trabalho sem remuneração da equipe. Junto aos outros voluntários, ajuda a carregar sacos e a separar material, mesmo em dias de calor ou frio intenso - as salas são feitas de blocos de concreto, intensificando a temperatura de acordo com a estação. Há tarefas bem definidas: além dos responsáveis pela limpeza e pela separação, há quem faça as buscas nos mais de 300 pontos de coleta (atividade que a professora também realiza), quem contata e recruta os novos voluntários e quem fica responsável pela divulgação.

Se não está envolvida com a reciclagem ou com a universidade, Rejane dedica tempo aos três cães apadrinhados em lares temporários e aos cinco adotados nas entidades para as quais destina a ração comprada. Além de Cabrita, Rejane tem em casa Joaquim, um vira-latas de seis anos que tem medo de crianças devido aos maus tratos sofridos, Valente, que perdeu a pata traseira direita, Fumaça, resgatada depois de ficar dias presa a uma corrente curta e sem comida, e Flor, atropelada ainda filhote ao ser abandonada na estrada pelo ex-dono.

- Tenho consciência de que o Engenharia Solidária não resolverá o problema como um todo. As políticas públicas, como as proibições da venda de animais em pet shops e da criação comercial de animais, é que resolverão. Mas faço a minha parte para um mundo melhor - sintetiza.

Mãe de dois filhos, a designer Roberta e o engenheiro de produção Roberto, Rejane já mantinha a venda online de livros universitários para contribuir com entidades protetoras de animais. Mas está convicta de ter dado um novo sentido à vida ao criar o Engenharia Solidária. Ela chora ao ressaltar o projeto como o seu verdadeiro legado, e não se imagina distante dele. Pelo contrário, quer seguir sendo exemplo para a família, os amigos e os alunos, demonstrando que sempre haverá um tempo livre para dedicar-se a uma causa social.

ME SINTO MUITO MAIS ÚTIL

A assistente administrativa aposentada Rosangele Calliari Bedin, 63 anos, se tornou voluntária seis meses depois do início do projeto. Simpatizante da causa animal, ela encontrou no Engenharia Solidária o caminho que buscava para o voluntariado. Hoje, é braço direito de Rejane e dedica pelo menos quatro dias da semana à coleta e à seleção do material a ser reciclado.

- O projeto é muito gratificante porque conseguimos ajudar muito a causa animal. Me sinto mais útil desde que comecei a fazer parte do Engenharia Solidária. E a Rejane nos motiva. É uma pessoa muito disponível e engajada, que não para um minuto. É um exemplo de vida.

ALINE CUSTÓDIO


23 DE FEVEREIRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

EDUCAÇÃO HIPSTER OU NÃO?

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Di

O ano letivo engrena e chega a um novo momento para pensar na imensa tarefa de educar. Se você é mãe ou pai responsável, deve ter medo. Se você for um professor de qualidade, pode estar apreensivo. Quem sabe a responsabilidade da escola na definição do futuro de alguém tem apreensões.

Não existe receita. Vamos trazer dados objetivos para que cada mãe e cada pai, cada escola e cada professor possam acrescentar sua visão de mundo e complementar (ou contradizer) o que proponho a seguir.

1) Alguém é educado da mesma maneira que alguém peca na liturgia católica: "Por pensamentos e palavras, atos e omissões". Você educa pelo que diz, pelo que omite, pelo que faz e até por pensamentos, já que eles provocam marolas no olhar ou são pais de gestos concretos. Ao dirigir, você está educando um filho que está na cadeirinha do banco de trás. Ao entrar na sala de aula, sua roupa, seu tom de voz, sua postura, seu sorriso ou seu azedume estão educando. O chamado "currículo oculto" é, quase sempre, o mais poderoso da educação.

2) Educação deve ser um equilíbrio entre o prazer lúdico que produz muito conhecimento e, por vezes, a insistência do esforço que não está acompanhado de resultado imediato. Focar em sorrisos 100% do tempo atende o aluno-consumidor e não ao ser humano maduro. É errado supor que tudo deva ser sofrimento e equivocado dizer que só tem valor quando fazemos com gargalhadas. A "chatice" nunca é um bom projeto, mas o gosto do esforço deve e pode ser estimulado.

3) A sala de aula e as atividades culturais declaradas são importantes, porém existe a autonomia do indivíduo. O desejo de consumo, por exemplo, é quase igual para todos os alunos ao emergirem do Ensino Médio. Nenhuma aula disse que o smartphone X era o melhor, mas o mundo inteiro disse algo assim. Isso deve nos deixar um pouco menos preocupados: fazemos muito, não controlamos tudo. Nem todos os desejos e as repulsas dos alunos derivam do gosto dos pais ou da orientação dos professores.

4) Muitos pais de classe média e alta dão celulares bem cedo para os filhos sob o argumento de que "todos os colegas possuem um". A ida para a Disney segue lógica similar. Uma roupa da moda acaba sendo imposta porque a criança/adolescente ficaria deslocada/do em outro traje. Quem pensa assim está produzindo uniformidade, time, torcida ou batalhão militar. Uma parte do sucesso no futuro dependerá de autonomia, inteligência, originalidade. Em resumo, querer tudo igual torna seu filho e sua filha iguais em demasia e, como tal, mais aptos à repetição. Ser "hipster" no sentido original e positivo da palavra é uma estratégia boa de sucesso. Pensar de forma autônoma dá mais futuro.

5) Se alguém de 14 anos fosse maduro e equilibrado, soubesse aprender por si e fosse sábio, pais e professores poderiam ser dispensados. Um médico é procurado por doentes. Educar é lidar com imaturidade, inconstância, crises artificiais, egoísmos, narcisos feridos, incapacidade de ver o outro e uma insegurança brutal que se traveste de arrogância. Pais e mães têm poder sobre os filhos porque os filhos necessitam do poder. São seres únicos, ainda que sejam na teoria e na prática incapazes judicialmente. Professores estão ali para fazer parte do processo longo, penoso e desgastante de pressionar o carvão para que surja algum diamante. É por serem difíceis que a criança e o jovem necessitam de você.

6) Não cansarei de repetir: não educo para suprir dores da minha educação, para sublimar o que ouvi no passado ou para ressignificar minhas frustrações. Educo um ser único, especial, parte da minha biografia, todavia autônomo nas coisas boas e ruins. Educo para o futuro, educo-me junto, reaprendo valores, entendo que gerações anteriores tinham vantagens e defeitos e, por fim, pratico a suprema lição ecológica: amparar o animal selvagem ferido é, exclusivamente, para reinseri-lo na natureza. O grande objetivo de toda educação é liberar o educando no mundo selvagem e complicado. O cativeiro protege e imbeciliza. A jaula é desejo de controle do proprietário, raramente um anelo do bicho. Bichos/animais no mesmo parágrafo que alunos e filhos? Se alguma fera lê o Estadão eu peço desculpas. Foi um pleonasmo didático.

7) Há pais, professores, mães e outros educadores que criam fronteiras e regras bem demarcadas. Há quem prefira laços mais frouxos. Há os que ligam de meia em meia hora e há os que se controlam. As linhas variam e dependem de muitos fatores. Só existe uma questão que jovens não perdoarão no futuro: a indiferença. Dá para superar um pai controlador, difícil encarar o omisso. Educar é um projeto enorme e duradouro. Já escrevi que há mais gente fértil no mundo do que vocações autênticas de pai e de mãe. Há mais gente com diploma de licenciatura do que professores de verdade. Sua linha pode variar. O que nunca será esquecido é se você esteve presente, integral, empenhado e com todo o seu corpo e alma no momento. Pode errar junto, nunca distante.

A escola e a família podem muito, mas não podem tudo. Você é responsável e seu papel fundamental, todavia o mundo lhe excede, o futuro não lhe pertence e o ser humano não é determinado pelos pais e professores. Tente fazer o melhor, haverá erros e lacunas enormes, mas tudo pode ser reparado se existiu um projeto genuíno de estimular liberdade, conhecimento, curiosidade e valores coerentes. O resto? Devemos dar uma chance profissional a terapeutas e psicólogos. A vida sempre será o maior professor de todos nós. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL



23 DE FEVEREIRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA



TRAVESTIS


O preconceito contra elas é tão arraigado que basta colocarem os pés na rua para serem marginalizadas
Tenho interesse pelo universo das travestis desde que entrei numa cadeia pela primeira vez. Como conseguem sobreviver e impor respeito em celas superlotadas de homens machistas e violentos?

No antigo Carandiru, em 1989, realizei um inquérito epidemiológico para avaliar a prevalência do HIV. Testamos os 1.492 inscritos no Programa de Visitas Íntimas, que lhes possibilitava receber as companheiras no fim de semana, direito adquirido havia pouco tempo.

A intenção era a de avaliar a gravidade da epidemia na população carcerária, que se infectava com seringas e agulhas compartilhadas no uso de cocaína injetada na veia - em voga naquele tempo -, e de demonstrar o tamanho da irresponsabilidade do Estado, ao admitir, dentro das muralhas, mais de mil mulheres, todas as semanas, para manter relações sexuais sem lhes dar informações sobre contracepção, infecções sexualmente transmissíveis nem preservativos para se protegerem.

Os testes revelaram que 17,3% dos participantes do programa eram HIV positivo e 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C, que pode levar à cirrose e ao câncer de fígado com o passar dos anos.

Extrapolados esses números para os quase 8 mil encarcerados no presídio, ficava evidente que cerca de 1,2 mil carregavam o vírus da aids nas secreções sexuais. Os resultados foram publicados em uma revista científica internacional.

A despeito da romaria aos gabinetes das autoridades penitenciárias do Estado, na tentativa de convencê-las a adotar medidas preventivas para evitar a disseminação da epidemia, ainda se passariam alguns anos para que conseguíssemos distribuir preservativos nas prisões paulistas.

No mesmo estudo, testamos separadamente 82 travestis que cumpriam pena no último andar do pavilhão 5, espaço reservado a elas: 78% eram HIV positivas. Das que cumpriam pena havia mais de seis anos, 100% eram portadoras do vírus. Nunca soube de um estudo em que a totalidade de um subgrupo estivesse infectada.

Entre as travestis testadas, identificamos uma que, nos 12 meses anteriores ao exame, tivera mais de mil parceiros na cadeia, com os quais praticara sexo anal receptivo - a mais arriscada das práticas - e se mantinha HIV negativa.

Na manhã do dia 2 de outubro de 1992, dei uma aula sobre a transmissão do HIV para as travestis reunidas no palco do que tinha sobrado de um antigo cinema, no pavilhão 6, incendiado numa rebelião anterior.

Quando terminei a apresentação, perguntei se havia alguma dúvida. Uma travesti magrinha, de cabelos oxigenados, que passara o tempo todo com as pernas cruzadas a meu lado, lixando as unhas, levantou a mão:

- Doutor, a gente agradece a sua boa vontade, mas todas nós estamos cansadas de saber como pega ou não pega o vírus, o que nós precisamos é de camisinha. Sem ela, o que adianta falar?

Nunca esqueci daquele dia, por causa da lição que recebi e porque, horas mais tarde, começaria a rebelião do pavilhão 9 e o maior massacre da história das prisões brasileiras.

No mês passado, recebi um convite do dr. Guilherme Rodrigues, diretor de uma das quatro prisões que formam o Cadeião de Pinheiros, um dos centros de detenção provisória de São Paulo, para fazer uma palestra para as 198 travestis detidas naquela unidade.

Falamos sobre prevenção às infecções sexualmente transmissíveis e sobre a condição das travestis na sociedade brasileira. Vinham das periferias mais pobres de São Paulo e de outras cidades do Estado. Apanhar do pai, dos irmãos e dos moleques na rua por causa dos modos femininos era acontecimento rotineiro na infância de todas. Abandonar a casa dos pais para viver por conta própria, mal chegada a adolescência, também.

O preconceito contra as travestis é tão arraigado que basta colocarem os pés na rua para serem consideradas marginais. "Travesti é assim: se ainda não fez, vai fazer", disse um delegado, certa vez.

Ninguém as defende da arbitrariedade policial nem das agressões dos celerados que as espancam pelo simples fato de existirem. Muitas se suicidam ou perdem a vida nas mãos desses psicopatas com transtornos sexuais.

No fim da conversa, queixaram-se da superlotação das celas naqueles dias de calor infernal e da falta de acesso aos hormônios para manter as formas femininas.

Quando perguntei onde sentiam mais segurança e eram mais respeitadas, na cadeia ou na rua, responderam: "Na cadeia". Nenhuma discordou.

DRAUZIO VARELLA

23 DE FEVEREIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Apartheid

Na minha infância, não tive nenhum amigo negro. Estudei durante 11 anos no mesmo colégio e não tive uma única colega negra - e também nenhum professor. Nos prédios em que morei, zero. Na praia? Puxa, na praia haveria negros, óbvio. Mas na Guarita, em Torres, que era uma espécie de Califórnia da elite bronzeada do Sul, nos anos 1970, não tinha, não. Na faculdade e nas agências de propaganda em que trabalhei, era raridade. Se havia, não frequentei suas casas nem fiz festa junto. Para completar a vergonha, sou madrinha de uma garota negra que a última vez que vi foi em seu casamento, quase 20 anos atrás. Depois ela se mudou para o Paraná e perdemos o contato.

A poeta e atriz Elisa Lucinda é uma honrosa exceção. Outro dia, num vídeo que viralizou nas redes, minha amiga sentenciou: "Se tem territorialidade, tem apartheid". Não há como ficar em silêncio ao escutar esse balaço.

Por muito tempo, coloquei a questão racial sob o mesmo guarda-chuva da desigualdade social. Custei a entender que era um subterfúgio para não chamar o problema pelo nome que ele tem. O negro pobre sofre mais que o branco pobre. O negro pobre é mais perseguido, agredido, executado que o branco pobre. A absurda morte de um negro asfixiado por um segurança de supermercado confirma. Negro pobre tem menos chance de defesa do que o branco pobre. Então não é uma questão socioeconômica. É racial.

Eles não andaram de bicicleta comigo, não foram meus colegas de aula, não tomaram banho de mar ao meu lado e não me namoraram, e a razão disso não é apenas porque não tinham dinheiro, mas porque não tinham acesso ao mesmo mundo que eu - ainda que fosse o mesmo mundo em que vivessem.

Felizmente, hoje os negros não são vistos apenas em paradas de ônibus, cozinhas e bailes funk. Estão nos comerciais de tevê, nas novelas, nos telejornais, nos editoriais de moda, ocupando um espaço de visibilidade que lhes era vetado. E também nas redes sociais - e só por isso já compensa fazer parte deste universo esquizofrênico de fake news, julgamentos sumários e vaidade doentia. Há gente séria discutindo o preconceito. Há movimentos surgindo. Não dá mais para ficarmos alheios. É preciso colocar o dedo na nossa própria cara em frente ao espelho e se comprometer a ser um novo "eu", que é o único jeito de inaugurar também um novo país.

Demorei a entrar nas redes e hoje acredito que, em meio a tanta besteirada, elas nos ajudam a evoluir, desde que a gente não siga apenas os sócios do nosso clube e escute a voz da diversidade. É nossa responsabilidade criar uma nova cidadania, começando por interromper a propagação de ideias criminosas, incitações à violência ou qualquer situação que nos mantenha segregados. Hora de compreender que somos todos cúmplices do Brasil ser atrasado como é.

MARTHA MEDEIROS


23 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

Humildade da doença

Já fiquei doente. Já tive que largar uma sessão de cinema pela metade. Já tive que abandonar uma refeição antes do fim. Já tive que suspender um passeio. Já fiquei doente, confinado a uma cama, soprando canja, controlando intervalos dos remédios, sem hipótese de circular. 

Quando melhorei, vibrei ao degustar um prato predileto, ao assistir a um filme, ao sair com os amigos. Recuperava a liberdade de ser inteiro - situação que eu sempre desfrutei, mas esnobava pela sua completa naturalidade.

Talvez tenhamos que ter a humildade da doença na mais completa saúde.

Mesmo com as condições físicas perfeitas, na hora de jantar, permitimos a comida e a conversa esfriarem para tratar de outras preocupações.

Em vez de aproveitar a família, nossa cabeça anda buscando resolver as contas, o trabalho do dia seguinte, as demandas absolutamente adiáveis da rotina. Abrimos várias janelas e links de interesses diversos e não nos concentramos na tela do rosto da esposa e dos filhos. Simplesmente não estamos presentes, estamos aflitos com o que devemos fazer.

Quem tem saúde acaba adiando o que é essencial, jurando que é invencível e que contará com todo o tempo do mundo para reparações. Não existe essa segunda chance. Ou caprichamos presencialmente ou desperdiçaremos os nossos grandes amores.

Assim como ninguém é imortal. Morreremos de repente. Não tem como planejar despedidas. O fato de antecipar tudo nos deixa tristes. A pressa vem nos desalojando por dentro. Não coincidimos o corpo com os pensamentos.

Querendo economizar meia hora, perdemos vidas inteiras ao nosso lado.

Podemos viajar de ônibus, mas cogitamos como seria mais fácil de carro. Usamos o carro, mas desejamos andar mais rápido de avião. Deslocamo-nos de avião e não basta, desejamos um voo particular, sem conexões e horários. Somos transportados em jatos particulares, mas daí sonhamos com um helicóptero, para não sacrificar alguns minutos.

Não há limites para as nossas falsas urgências, apesar dos trajetos curtos. A ambição nos leva para longe de nós mesmos e de quem gostamos. Os instantes que são economizados jamais retornam para o lar, são gastos em novas neuroses de sucesso.

Nossa alma nunca se sacia com o que alcançou e despreza a simplicidade anônima e deliciosa das pequenas tarefas. Até adoecermos de verdade e percebemos que ser feliz é somente se dedicar ao presente, nem ao passado, nem ao futuro.

CARPINEJAR

23 DE FEVEREIRO DE 2019
PIANGERS

Pais escavadeira

Faz algum tempo, alguém inventou o termo "pais helicópteros", para descrever a geração que fica o tempo todo espiando por cima do ombro dos filhos adolescentes para ver o que eles estão fazendo. Mais ou menos nesta época aumentava a violência urbana, as drogas eram uma preocupação e começavam a aparecer dezenas de novos livros sobre criação de filhos, botando ainda mais pressão para que os pais estivessem o tempo todo por perto. Essa foi a primeira geração que permitia aos filhos dormir na cama dos pais, a primeira geração que tinha participação obrigatória na escola dos filhos, a primeira geração que tinha poder de compra para substituir sua ausência com presentes.

Os pais helicóptero do passado deram espaço para uma geração ainda mais superprotetora. Os pais de hoje em dia são chamados pelos especialistas de "bulldozer parents", ou pais escavadeira. Vão tirando da frente dos filhos qualquer coisa que os possa incomodar. Outro apelido desta geração: "concierge parents", mais ou menos como "pais mordomos", sempre dispostos a fazer tudo pelos filhos o tempo todo.

O resultado são crianças com pouca autonomia e nenhuma capacidade de lidar com os problemas do dia a dia. Impacientes, impertinentes, autoritários. A criança nunca tem culpa por uma nota ruim, é o professor que o está perseguindo; a escola está sempre errada; os amiguinhos não estão à altura. Não é surpresa, os pequenos passam a não respeitar os pais. A superproteção vira direito adquirido, e os filhos passam a destratar, desrespeitar, exigir a realização de tarefas e, muitas vezes, xingar os pais na frente de outras pessoas.

Talvez nossa tendência a mimar seja fruto de nossas próprias carências. Aumentamos a dose de carinho, mas esquecemos de manter as doses de firmeza. Uma criança só cresce completa quando tem amor e limites. Dá trabalho explicar, contrariar, frustrar. Dói mais na gente do que neles. Mas é fundamental para que a criança desenvolva tolerância à frustração, paciência, respeito ao próximo. O conflito dentro de casa prepara para os conflitos mais sérios fora de casa. Amar é ensinar com dedicação e paciência, com didática e explicação. Obviamente, erraremos em alguma área, assim como nossos pais erraram também. E a próxima geração de pais, em alguns anos, terá algum outro apelido esquisito.

PIANGERS

23 DE FEVEREIRO DE 2019
ANA CARDOSO

O mundo de cada um


Ao casar com alguém - tcharam - casamos também com elementos até então ocultos. Ninguém conhece tão bem a família do outro. O irmão estelionatário que mora em Roraima, a tia viciada em sexo, o amigo de infância alcoólatra e por aí vai. De perto, nenhuma família é Doriana. Seis meses, ou menos, são suficientes para saber de tudo o que não se mostra no Instagram.

Não pense que isso é 100% ruim. Minha amiga Maitê me contou que teve que escrever uma carta de agradecimento em um curso que fez. Pensou, pensou e chegou a uma inusitada conclusão: sua sogra, uma senhora de origem simples, com pouco estudo e uma disposição ilimitada para ajudar as pessoas, deveria ser a destinatária de tal carta.

Sem a sogra ela jamais poderia trabalhar, saber que seu pequeno está sendo cuidado com todo o amor possível ou ficar tranquila em meio ao caos da chegada de um filho no casamento. Diferentemente de sua própria família, a sogra está sempre disponível, sem nunca exigir nada em troca, de ninguém. A própria Maitê, uma empreendedora, uma empresária de sucesso, diversas vezes, no passado, ria da sogra, de sua devoção cega.

Depois de escrever, teve que ler a carta. Impossível saber quem chorou mais. As duas saíram tocadas. Uma por ter seu trabalho e dedicação enfim visibilizados e reconhecidos. Não, não é obrigação de ninguém viver em função dos outros. A verdade é essa. Maitê percebeu algo ainda maior nesse momento: que o casamento é mais do que paixão, sexo, brigas, pazes, planos, frustrações e recomeços. O casamento é um mergulho profundo em outros contextos, é a oportunidade de conhecermos de verdade muitas outras pessoas e visões de mundo. Se soubermos aproveitar isso e respeitar os envolvidos, a experiência será muito mais completa que qualquer enxoval já visto em loja de presentes.

Reconheço que nem sempre é assim. Nem sempre a sogra ajuda. Nem sempre o casamento vale a pena. De qualquer forma, encarar a família de uma forma mais sistêmica, sem exigir nem esperar demais apenas do cônjuge, reduz - e muito - as cefaleias conjugais.

ANA CARDOSO


23 DE FEVEREIRO DE 2019
FOTOGRAFIA

O CAÇADOR DE TEMPESTADES E ESTRELAS

AOS 18 ANOS, Gabriel dos Santos Zaparolli é conhecido no Litoral Norte pelas imagens que faz de fenômenos naturais

São 2h30min de uma madrugada estrelada em Torres, no Litoral Norte. Depois de um café preto para espantar o sono, Gabriel dos Santos Zaparolli, 18 anos, reúne numa mochila o necessário: uma câmera fotográfica, duas lentes, um timer, mais de 10 baterias e cartões de memória, um disparador remoto e um tripé. Cena comum na vida do adolescente nos últimos cinco anos. Sem temer a solidão da noite, ele parte rumo aos pontos mais altos da cidade. Desses lugares, Zaparolli registra as imagens que o tornaram conhecido na região como o caçador de estrelas e tempestades.

A paixão começou ao acaso, depois de assistir na televisão a um programa sobre pesquisadores de fenômenos naturais. Aos 13 anos, buscou na internet as informações necessárias para começar a fotografar. Definido pela mãe, a comerciária Maria Rosane dos Santos, 56 anos, como guri inquieto e persistente, ele usou para os testes uma câmera da família. Autodidata, mexeu, desconfigurou o equipamento e borrou muitas imagens até fazer o primeiro registro que o emocionou. Depois de colocar a câmera semiprofissional num tripé, programá-la para cliques a cada 30 segundos e instalar os equipamentos no quintal de casa, Zaparolli conseguiu fotografar a Via Láctea.

- Fiquei maravilhado com aquela coisa! - resume, ao recordar da noite em que teve certeza de que continuaria fotografando.

Ele seguiu na função, mesmo com os pais apostando que se tratava de paixão passageira. Preocupado com a segurança do filho, o motorista Claudecir Zaparolli, 51 anos, começou a acompanhá-lo nas investidas noturnas por morros de Torres. O ritmo do pai, que trabalhava durante o dia, era muito distante da energia do adolescente, estudante no período da tarde. A tranquilidade só veio após o jovem fazer amizades com outros simpatizantes da fotografia na região - alguns o acompanham até hoje na caçada às estrelas. Mas a paixão por tempestades não foi abandonada. Pelo contrário, cada vez mais absorvido pelo trabalho, Zaparolli descobriu suas movimentações por meio de radares meteorológicos, detectores de raios e aplicativos. E foram as redes sociais que abriram as portas para ele. Hoje, graças à divulgação do trabalho, tem autorização para fotografar do alto dos maiores prédios da cidade.

- Se a tempestade está muito perto, fico em casa, no telhado ou na árvore do pátio. Mas, se ela estiver distante, vou para um prédio ou para um morro, para compor a imagem. Não costumo ficar totalmente exposto, só tenho medo se um raio cai muito próximo - diz.

Seja à noite ou durante um temporal, a mãe de Zaparolli confessa não sossegar até ver o filho retornar para casa.

- Fico com o coração na mão. Não é fácil. Rezo e peço a Deus que cuide dele. Nós trabalhamos e ajudamos no que podemos porque ele sempre chega eufórico, muito feliz com o trabalho. Nos conta tudo - diz a mãe.

Com a ajuda dos pais e do único irmão, o vendedor Rafael, 36 anos, Zaparolli trocou de câmera depois de dois anos de atividades e adquiriu novos equipamentos. Mais experiente, vendeu as primeiras fotografias, incluindo imagens de surfe - a praia é a outra paixão. A venda de fotografias tornou-se profissão. Nas ruas, é reconhecido. Basta uma volta para ser parado e receber apertos de mão de quem o acompanha pelas redes sociais.

Ao contrário da maioria dos garotos de mesma idade e dos amigos da escola, o jovem fotógrafo já lamentou estar numa balada e perder a chegada de um novo temporal. Se estiver namorando, deixa claro que a próxima tempestade ou chuva de meteoros terá prioridade. Diversão mesmo, confessa, é conseguir captar a grande e a pequena nuvem de Magalhães, os satélites cruzando o céu estrelado e os raios caindo sobre as praias de Torres.

TEM O SONHO DE DESENVOLVER SISTEMAS DE ALERTA PARA AJUDAR A POPULAÇÃO

De tanto dedicar-se ao aprendizado sobre meteorologia e fotografia, Zaparolli deu o primeiro escorregão na vida pessoal: repetiu o segundo ano do Ensino Médio, em 2018. A situação acendeu a luz vermelha entre os pais. Tudo foi contornado depois da promessa de dedicar-se à conclusão dos estudos e seguir à universidade. Ele deseja cursar astronomia ou meteorologia, para desenvolver sistemas de alertas que possam ajudar a população. E tem dois sonhos, ainda difíceis de serem realizados por questões financeiras: ir aos Estados Unidos, para caçar tempestades, e ao Chile, para fotografar a noite no Deserto do Atacama.

Acostumado a dormir em horários incomuns, como depois das aulas da tarde, Gabriel tem um ritmo diferenciado. Aos conhecidos, não se importa de enviar mensagens durante a madrugada. Foi assim ao longo do tempo entre o primeiro contato da equipe de reportagem e a publicação. Numa das conversas iniciadas com a repórter, por volta das 6h30min, via Whatsapp, ele confirma a animação pela noite de trabalho: "Se eu parar de responder, meu corpo misteriosamente parou na cama. Mas ainda estou na adrenalina da imagem! Foi meteoro para todos os lados!".

Em outra data, avisou a equipe sobre a formação de um novo temporal no local: "Aqui em Torres, tempestade de 360 graus. Tem atividade elétrica em direção à serra gaúcha e a Santa Catarina! Está uma loucura! Queria ter duas câmeras aqui!". A mãe, inclusive, confessa informar-se por meio do filho se poderá lavar e estender a roupa no varal no dia seguinte.

Na data marcada com Zero Hora, Zaparolli estava entusiasmado para apresentar o céu de Torres à reportagem. O grupo seguiu até o parque da Guarita. Em meio à escuridão, os olhos atentos do fotógrafo definiam com exatidão cada estrela e satélite. Somente com a ajuda de uma lanterna, ele desbravou a trilha que passa ao lado do penhasco e posicionou a câmera na direção do horizonte. Garantia de que em meia hora os olhos da equipe já estariam treinados para perceberem a Via Láctea sobre as cabeças. Foi o que ocorreu. Sem as luzes da cidade, somente as das estrelas, foi possível ver o alinhamento dos planetas Vênus, Saturno e Júpiter. A Via Láctea surgiu entre 3h30min e 5h da manhã.

No meio da sessão de fotos, o grupo ouviu ao longe alguém chamando pelo sobrenome do jovem. Como era impossível ver quem o havia identificado, ele seguiu fotografando. Depois de quase duas horas, foi surpreendido pela presença do fotógrafo Egon Filter, referência em astrofotografia na América do Sul, professor de fotografia e autor do projeto "Caminho das Estrelas", que tem o foco em paisagens únicas do Estado. Filter é um dos ídolos do adolescente e estava em Torres para registrar o alinhamento dos planetas.

- Que demais te encontrar aqui! Acompanho sempre as tuas postagens e admiro muito o teu trabalho, que é uma referência para mim - comentou o jovem fotógrafo, quase eufórico.

- Nos conhecemos nas redes sociais, e acompanho o seu trabalho. Você tem talento - respondeu Filter, que fotografa desde 1985.

Os dois tiraram fotos juntos, combinaram um possível reencontro e seguiram fotografando o amanhecer. À reportagem, Filter revelou acompanhar a distância, desde 2016, a evolução da qualidade do trabalho de Zaparolli.

- Ele é um jovem com talento. Mas isso só não basta. O que o diferencia, realmente, é a energia ilimitada e a sede em sempre aprender mais, perseguindo raios, sprites e a Via Láctea! Se eu pudesse dar alguma dica para ele, seria para não desanimar jamais porque a persistência vai render belas imagens - garantiu o professor de fotografia.

Perto das 8h, Zaparolli desceu as escadarias do parque da Guarita. Mesmo cansado, visitou rapidamente a Praia da Cal e ainda fotografou os primeiros surfistas daquela manhã. Era hora de voltar para casa, editar as imagens e colocá-las nos arquivos com outras milhares, dormir algumas horas e voltar na noite seguinte. Afinal, seguia de férias da escola, e os radares meteorológicos apontavam mais uma noite estrelada, antes de recomeçarem os temporais.

Fique sabendo quer ser um caçador de estrelas?

Atividade comum nos Estados Unidos, o caçador de tempestade é um especialista em registrar fenômenos naturais, como tornados e grandes tempestades, em fotos e vídeos.

Com cerca de 1,2 mil tornados por ano, os Estados Unidos são o país que mais sofre com a quantidade destes fenômenos no mundo. Eles são frequentes nos Estados das grandes planícies, chamados de "Corredor de Tornados", que se estendem da Dakota do Sul ao centro do Texas. Trata-se de um corredor no centro do país onde as massas de ar frio e quente se encontram.

-O fotógrafo Egon Filter, referência em astrofotografia, explica que quem deseja atuar nessa área precisa de disposição (para levantar da cama quente em noite fria), curiosidade (para buscar informações científicas), planejamento (quando fotografar o quê) e propósito (afinal, o que se pretende mostrar?).

-Entre os equipamentos necessários, estão câmera DSLR com lente grande-angular, tripé e lanterna de cabeça (além de boa capa de chuva). Além disso, um celular para acompanhar meteorologia online e computador para tratamento das imagens. O ideal é fazer um curso de princípios da fotografia do software Lightroom (tratamento de imagens) e de astrofotografia. Autodidatas como Gabriel, às vezes, pulam etapas.

ALINE CUSTÓDIO

23 DE FEVEREIRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

DELÍRIOS BOLIVARIANOS


Uma escalada de tensão no continente só serve aos interesses do ditador venezuelano, que precisa de fantasmas externos para se manter, ainda que cambaleante, no poder

É condenável sob todos os aspectos, mas principalmente os de caráter humanitário, o fechamento unilateral de uma fronteira agora convulsionada, mas que sempre foi símbolo de amizade e de cooperação: a da Venezuela com o Brasil. Ogoverno Jair Bolsonaro age certo ao não morder a isca envenenada pela moribunda administração de Nicolás Maduro, acusada de desrespeitar reiteradamente noções elementares de direitos humanos. É importante que a cautela brasileira diante do aumento das tensões, que já provocaram até mortes, se mantenha. A expectativa de encaminhamento de solução se transfere para a reunião do Grupo de Lima nesta segunda-feira, em Bogotá, na Colômbia, da qual participarão o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o chanceler Ernesto Araújo.

O melhor que o governo venezuelano poderia fazer nesse momento é se convencer de que não tem condições de seguir adiante. O reconhecimento abriria caminho para a realização de eleições livres e para um plano de reconstrução do país, tanto sob o ponto de vista da economia quanto das estruturas institucionais. O fato de essa ser uma saída improvável, e de faltarem canais de diálogo, reforça a importância da reunião do Grupo de Lima. No encontro, representantes de países que reconheceram o líder opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela buscarão saídas para restabelecer a normalidade institucional no país vizinho.

Impedir a entrada de ajuda humanitária é um ato grotesco, que mereceria a condenação de toda a sociedade brasileira. Diante do sofrimento da população venezuelana, causa estranheza o silêncio de segmentos que se autoproclamam defensores dos direitos humanos e da democracia. Os venezuelanos, como demonstra a cobertura da crise que vem sendo feita por Zero Hora, são os mais prejudicados. Milhões deles conseguiram passar pela fronteira há algum tempo, antes do fechamento. Os que continuam no país já vêm sendo privados de suas liberdades e de itens essenciais, como comida e medicamentos. Não podem ficar também sem ajuda humanitária.

O clima de beligerância na fronteira surge como um ingrediente preocupante. Até mesmo brasileiros são prejudicados diretamente pela intolerância do país vizinho, e não apenas nas relações comerciais. Roraima, que não está interligada ao sistema elétrico brasileiro, depende do fornecimento de energia por parte da Venezuela, onde muitos brasileiros também abastecem seus veículos. Uma escalada de tensão no continente só serve aos interesses do ditador venezuelano, que precisa de fantasmas externos para se manter, ainda que cambaleante, no poder.

OPINIÃO DA RBS


23 DE FEVEREIRO DE 2019

SEGURANÇA

Por que mataram Eduarda?

QUATRO MESES APÓS CRIME, polícia não tem pistas de homem que assassinou menina de nove anos

A pequena Eduarda Herrera de Mello dizia que seria médica. De sorriso largo, cumprimentava a todos na escola. Duda era aplicada e meiga. Em casa, dormia abraçada no irmão caçula e perguntava repetidas vezes quanto faltava para seu aniversário de 10 anos. Estava ansiosa para escolher a personagem tema do bolo. A comemoração nunca veio a acontecer. O destino não lhe permitiu crescer, tampouco alcançar sonhos. Aos nove anos, foi encontrada morta, em 22 de outubro, horas após ser raptada de casa, no bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre. Quatro meses depois, não há pistas do autor.

A falta de respostas para a perda da filha, que lhe faz chorar sempre, corrói os pensamentos de Kendra Camboim Herrera, 32 anos. A revolta, o vazio e a culpa se misturam à descrença. Já não acredita que descobrirá quem tirou Duda da frente da casa onde vivia com a família para levá-la até o Rio Gravataí e afogá-la.

- Não consigo entender. Quem faz uma coisa dessas? Não tenho mais esperanças de que a polícia descubra quem fez isso. Antes eu tinha. Hoje, não mais. Não é possível que quatro meses depois não tenham uma imagem de câmera, um DNA, nada. Eles dizem que é prioridade, mas não têm resposta para me dar. Que prioridade é essa? - indaga, entre lágrimas.

A família deixou a moradia onde vivia, a mãe abandonou o emprego em um posto de combustíveis, e o irmão de sete anos não conseguiu mais ir à escola. Por vezes, Kendra evita sair de casa. A compaixão também faz sofrer. Onde passa, perguntam pela menina. Na rua, recebe abraços de desconhecidos, olhares e comentários.

- Não tem um dia em que a gente não lembre dela. Mas não é sempre que tu quer falar disso, às vezes não consegue. Onde eu parar e olhar para o nada, é o rosto dela que vejo. É muito difícil.

DESDE QUE PERDEU A FILHA, DIFICULDADE PARA DORMIR

Por vezes, a mãe esquece que Duda se foi. Quando vê as roupas da filha com as primas, quase chama por ela. O mesmo ocorre quando avisa que o almoço está pronto. Desde que perdeu a filha, tem dificuldade para dormir à noite. Sentada numa praça, apega-se a lembranças como os joguinhos que fazia para ensinar a filha a ler ou o gosto por saladas que a pequena herdou da avó. Ansiosa, Duda perguntava pelas férias, pela praia, pelas viagens em família. Planos que não conseguiu concluir. Vaidosa, adorava passar batom e posar para fotos. Segundo a mãe, era muito alegre. Duda chegava à escola, a 15 minutos de casa, cumprimentava a porteira, a moça do lanche ou quem passasse por ela.

- Todo mundo era muito apaixonado pela Eduarda. Era muito amada. O centro das atenções. Muito carinhosa. Ela é, era, uma criança muito querida - conta a mãe.

Kendra veste camiseta branca com a foto de Duda. No braço esquerdo está gravada na pele a imagem da filha. Fez a tatuagem duas semanas após a morte da criança. A arte reproduz imagem feita por ela. A garota estava deitada sobre a cama, com a mão no queixo. Duas semanas antes do dia trágico, Kendra pediu à filha para deitar com ela. A mãe sentia aperto no peito:

- Era uma sensação de que não ia ficar com ela para sempre, e me doeu. Só eu sei o que senti.

Kendra abraçou Duda forte e chorou, sem explicação. A menina logo se desvencilhou, levantou e foi brincar. Quando a filha sumiu, temeu o pressentimento. Horas depois, o corpo foi encontrado às margens da RS-118, em Alvorada. O atestado de óbito aponta morte por afogamento. O crime teria sido cometido por volta de 0h30min. Hoje, a mãe pensa que aqueles minutos abraçadas foram a despedida antecipada.

"O caso é o mais grave da DP", afirma delegada

Mais de cem dias se passaram, e a polícia ainda não conseguiu descobrir quem era o homem no veículo que abordou Eduarda. O relato de uma testemunha permitiu que a investigação divulgasse retrato falado do suspeito de ter raptado a menina. A imagem gerou uma série de denúncias. Mas acabou resultando também na divulgação de informações falsas sobre possíveis suspeitos. Depois disso, a polícia colocou a investigação sob sigilo.

Responsável pela apuração desde janeiro, a delegada Sabrina Dóris Teixeira diz que a equipe trata o caso como prioridade, mas não há desfecho previsto.

- Infelizmente, não temos nada de novo a acrescentar no momento. É bem complicado esse caso. Muitas pessoas foram ouvidas, diligências feitas. Segue sendo divulgado o retrato falado. Todas as informações que chegam estão sendo apuradas. É um trabalho árduo, mas ainda não conseguimos o desfecho - afirma.

NEM SEQUER MODELO DE CARRO FOI IDENTIFICADO

A investigação, cujo inquérito tem 700 páginas, encontra dificuldade pelo fato de o crime ter sido cometido à noite. Agentes refizeram o possível trajeto do veículo desde a casa da família até onde a menina foi encontrada para localizar câmeras. A delegada reconhece que nenhuma imagem foi significativa.

- De fato, as câmeras não colaboraram. Foram analisadas horas de imagens. Nem sequer foi confirmado um modelo de veículo. O retrato falado foi feito com base numa testemunha, que viu uma pessoa no início da noite, sentado de lado, dentro de um carro. É tudo complexo - afirma.

Antes de ser decretado sigilo da investigação, a polícia confirmou que averiguava possível abuso sexual, vingança contra familiares da menina ou mesmo a morte em algum ritual. A delegada diz que nenhuma das hipóteses foi descartada, mas prefere não detalhar as possibilidades.

- Nem tudo que consta nesse inquérito pode ser repassado. Sei que apenas dizer que é prioridade não convence. Mas é prioridade da delegacia e da Polícia Civil. Estamos numa busca desenfreada. A gente entende a angústia da mãe, e isso também me angustia. O crime não está esquecido e não será. Pelo contrário, é o caso mais grave que a gente tem na delegacia no momento - afirma.

LETICIA MENDES

23 DE FEVEREIRO DE 2019
+ ECONOMIA

IDENTIFICAR BODES AJUDA NA REFORMA

Especialistas envolvidos há anos com tentativas de reforma da Previdência, não evitam apontar os chamados bodes na proposta levada quarta-feira à Câmara dos Deputados. Alguns desses itens foram incluídos já com a possibilidade calculada de serem derrubados. A identificação de pontos polêmicos e não essenciais pode ser uma aliada na votação dos pontos do projeto.

Além de proteções legítimas, interesses contrariados e até pressões de grupos atingidos, o debate parlamentar fatalmente incluirá tentativas da manipulação. Por isso, se os bodes verdadeiros estiverem identificados, diminui o poder de quem quiser fazer apenas barganha política.

Também há risco de inclusão de bodes tão evidentes quanto a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que hoje garante um salário mínimo para pessoas sem outra renda a partir de 65 anos. Ao incluir a faixa etária a partir de 60 anos e limitar o pagamento a R$ 400 mensais até 70 anos, o governo dá discurso para quem acusa a medida de perversa.

Associações de servidores públicos já se organizam para contestar na Justiça as alíquotas crescentes de contribuição à Previdência, descontadas dos salários, pelo fato de a máxima alcançar 22% em um caso muito excepcional, de salários acima de R$ 39 mil mensais, no limiar do teto do setor público. Técnicos que escrutinam o déficit da Previdência consideram o sistema escalonado, que eleva a contribuição percentual conforme o tamanho do salário uma medida justa. O motivo é que, quanto maiores os vencimentos do servidor, mais contribui para aprofundar o desequilíbrio.

No caso dos trabalhadores privados, a avaliação é diferente. A contribuição escalonada serve mais à sustentação do discurso "quem ganha menos, paga menos, quem ganha mais, paga mais" que inspira o mote de corte de privilégios que o governo quis dar à proposta de reforma, do que a algum efetivo ganho de receita ou redução de despesa. Conhecer os detalhes da proposta, identificar o que é bode e o que é essência, é fundamental para avançar com uma reforma crucial para a estabilidade das contas públicas.

Os papéis da Kraft Heinz, que removeu US$ 15 bilhões de seu balanço, levando a prejuízo de US$ 12,6 bilhões no quarto trimestre de 2018, despencou quase 30% na sexta na bolsa de Nova York. Arrastou a fama de dois "midas" dos negócios, Jorge Paulo Lemann e Warren Buffett, que haviam se unido na formação da gigante mundial de alimentos. E virou alvo da SEC, a xerife do mercado acionário nos EUA.

MARTA SFREDO

23 DE FEVEREIRO DE 2019
RBS BRASÍLIA

SUPERMINISTROS E GENERAIS SALVAM COMEÇO DO GOVERNO


Escolhidos pelo presidente Bolsonaro para serem as estrelas da Esplanada, os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sergio Moro, salvaram esses primeiros 60 dias de governo. Pela complexidade e rapidez do trabalho, Guedes foi o mais eficiente, ao mandar para o Congresso ainda antes do Carnaval uma reforma da Previdência completa e bem formulada. Como havia prometido, Moro também encaminhou o pacote anticrime, mas perdeu um pouco do brilho ao sucumbir à pressão de parlamentares e esfriar a criminalização do caixa 2.

O presidente começa o ano pautando o Congresso e honrando bandeiras de campanha, o que é importante. Corporações de servidores públicos descontentes com as mudanças na aposentadoria podem reclamar de tudo, menos de terem sido enganados por Bolsonaro durante o período eleitoral. Guedes avisou que faria a reforma e que seria radical. Com isso, o governo ganha credibilidade junto aos mercados.

São ações práticas, que de alguma forma compensam as trapalhadas na área política e a saia-justa provocada pelos filhos do presidente. As movimentações financeiras atípicas do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), os laranjais do PSL, a fritura pública do ex-ministro Gustavo Bebianno e o vazamento de conversas entre o então ministro e Bolsonaro formam um caldeirão com potencial explosivo.

Até aliados do presidente - aqueles livres da paixão cega - acompanham o bate-cabeça com perplexidade. O mais recente constrangimento foi a crítica do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) a uma orientação do Exército sobre uso de armas. Nos ofícios, o Ministério da Defesa apenas reforça o que já é lei.

É como se houvesse dois ou mais governos: um ainda agarrado às questões ideológicas próprias de palanques, embalado por teorias da conspiração, e outro que funciona.

Com pouco dinheiro e com a missão de tocar obras, o Ministério da Infraestrutura também pode ser enquadrado no saldo positivo, assim como o time dos militares.

Graças ao conhecimento e bom senso dos generais, o governo agiu com estratégia no caso da ajuda humanitária à Venezuela. O presidente formou um comitê de crise e divulgou informações objetivas, sem pirotecnia nas redes sociais ou declarações desencontradas. Bem como um governo deve ser.

CAROLINA BAHIA









23 DE FEVEREIRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

O SEGREDO DO DAVID COIMBRA

Homens são vítimas de muitos preconceitos. A pressão social ainda não nos liberou totalmente para chorar, mostrar fraqueza e, até bem pouco, para um procedimento absolutamente banal: amenizar as rugas do rosto, o que muitas mulheres já fazem há bastante tempo.

Encontrei o David Coimbra durante a semana. Descobri que ele estaria em um bar de Porto Alegre. O David não convida os amigos para ir ao bar, ele deixa vazar a informação de que talvez esteja em determinado boteco. Quem descobre, vai até lá. Há também pistas falsas, para confundir incautos. Sei de um infeliz que, dia desses, foi parar no Raupp´s, em Capão da Canoa, enquanto o David se refestelava no Tartere, na Mariland, em Porto Alegre.

Depois de consultar minhas fontes, fui até o endereço certo. Lá estava o David, tal qual um abelho rainho, cercado por copos de chope e amigos de infância. Ver o David bem me deixa muito, muito feliz. Já faz tempo que o David está bem, mas dessa vez notei algo diferente. A pele de pêssego fazia-o aparentar uns 10 anos menos. Não era o bronzeado, porque em Brookline, nessa época do ano, a neve alcança alturas que nem o Jardel ou o Dadá Maravilha, nos áureos tempos, alcançariam.

"Cara, como tu tá bem", eu disse. O David me ollhou com aquela cara de "sim, eu sei", mas mudou de assunto. Foi quando eu perguntei, brincando: "Tu botou botox?". O David não me respondeu. Olhou para mim como se eu fosse uma parede, virou para o lado e engatilhou uma conversa com o Potter e o Ivan Pinheiro Machado.

TRIBUNA

Aqui, o leitor tem a palavra final

Sobre se a troca de mensagens entre Jair Bolsonaro e Gustavo Bebianno é uma conversa ou não:

A imprensa continuar discutindo a etimologia da palavra conversa é tentar fazer os ouvintes e leitores de ignorantes. Na era da comunicação em que vivemos, até crianças pequenas sabem muito bem o significado.

Celso Fernando Spadoni

WhatsApp não é mais do que uma espécie de MSN de smartphone, com seus recursos obviamente adaptados ao uso desse dispositivo. Mas é quase a mesma coisa, mensagens de texto, envio de imagens e de voz e vídeo de forma imediata. E, sendo a troca de mensagens por MSN considerada conversa há vários anos, não teria por que o WhatsApp ser diferente.

Engraçado como um tipo de ferramenta há anos e anos em uso ainda seja considerado algo tão anormal.

Diego Figueiró Dias

Tudo o que eu escrever aqui, se ninguém ler, será imediatamente ou automaticamente um monólogo.

Tudo o que eu escrever aqui e você ler, mas não responder, também será um monólogo.

Tudo o que eu escrever aqui e, posteriormente, na minha ausência for respondido, ou argumentado, não será uma conversa, mas sim uma reflexão sua, detalhada ou resumida sobre meus argumentos. Então, não foi uma conversa nossa, mas sim um discurso ou declaração minha.

Penso que a palavra "conversar" deveria se referir a comunicação interpessoal, física, no mesmo local.

César Borba

Sobre o número de militares no primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro:

Quando dos 16 anos de roubos e corrupções do PT, nunca li na tua coluna alguma citação de que o governo Lula/Dilma tinha levado o oitavo guerrilheiro para o ministério, ou o décimo terrorista para o governo, ou o vigésimo incompetente para um cargo no Planalto.

Flavio da Rosa

Sobre a criação de associação de pais no RS que promete lutar contra o projeto Escola sem Partido:

Dê os parabéns para a nova Associação de Mães e Pais pela Democracia. Como é bom termos pessoas engajadas pela democracia. É mais uma entidade a lutar pela democracia em Cuba, Venezuela, Suriname, Nicarágua, China, entre outros. Agora acho que vai.

Valter Vieira

Sobre o modelo fracassado de financiamento de campanha no Brasil:

O nosso sistema de eleições proporcionais, na verdade, é um sistema de candidaturas avulsas (os partidos são meros cartórios de registro) que não existe em lugar algum do mundo. Ele é a excrescência!

Antonio A. d´Avila

TULIO MILMAN

sábado, 16 de fevereiro de 2019



16 DE FEVEREIRO DE 2019
LYA LUFT

Sempre a velhíssima senhora

Em uma de minhas primeiras colunas de jornal, na década de 1960, escrevi sobre "aonde vão ao partir os nossos mortos". Eu era jovenzinha, numa fase luminosa da vida. Pouca perda grave. Nesta altura agora, muitos, demasiados amigos, conhecidos e amados meus se recolheram (ou se libertaram, se expandiram?) nesse "outro lado", seja o que for que ele é. Depende da crença, da filosofia de vida, depende do desejo e do sonho de cada um.

"Os mortos pedem licença/ para morrer mais", escrevi num poema há bem pouco tempo, quando os meus já eram um grupo respeitável. Que não os oneremos demais com nossas angústias e inconformidade. Fácil escrever, difícil fazer, mas a gente consegue, se tiver amores bons que aqui ainda nos apoiam, convocam, nos fazem sentir que somos queridos e úteis e que tudo faz algum sentido. O horizonte clareia, o coração mesmo enlutado se acalma e - se amamos a vida - vivemos. De preferência, apesar da tristeza sem eternas queixas, que ninguém precisa aguentar.

Voltei ao assunto pelo impressionante número de mortes que nos impressionaram só nestes últimos dias: Brumadinho, enchente no Rio, meninos no clube de futebol, e o amado de todos, ainda que às vezes temido, Boechat, num acidente de helicóptero. Ele, que revolucionou para sempre o jornalismo brasileiro, e acabou amigo de todos, ao menos de muitos, ao menos meu - que não o conheci pessoalmente. 

Mas era como se conhecesse. Seu tom de voz, sua risada, suas brincadeiras e suas indignações - comovente sua mãe, Mercedes, aos 87 anos, revelando ao falar dele essas mesmas inclinações, esses valores que Boechat deve ter recebido dela. Seu humor e seu rigor. Ele faz falta a cada um de seus ouvintes ou espectadores: era uma boa coisa, positiva, confiável, neste Brasil que mal começa a dar novos passos em direção à esperança.

Seja como for, a velhíssima Senhora Morte nos espera no fim do trajeto, cedo ou tarde, cedíssimo às vezes, ou tardíssimo quando temos idade avançada e já nada vemos, nem sabemos, mal sabemos que estamos vivos. Porém o escândalo nestes dias não foi a morte individual, no momento destinado a cada um: o horror são mortes coletivas, evitáveis, como disse Raquel Dodge, como diz a maioria dos brasileiros. Mortes - não porque os responsáveis não soubessem do perigo, porque sabiam e fingiram ignorar, arriscando - e destruindo - a vida de centenas e centenas como em Brumadinho, ou mais de uma dezena no time de futebol no Rio, ou mesmo uma vida só que fosse, por descuido ou por futilidade.

Pensamos, avaliamos rapidamente que é muito chato, muito caro, muito menor do que nos afirmam os técnicos; que amanhã a gente dá um jeito. Ou andamos meio anestesiados quanto a esse valor supremo, inegável, às vezes difícil e pesado: A VIDA HUMANA?

Vai então, que a Velhíssima Senhora faz aquela visita a outra velha dama, em seu apartamento no Rio. Bibi Ferreira, encantadora na vida mas rigorosa no trabalho, reclama do atraso. Finalmente as duas saem de braços dados pelo céu sobre os mares, conversando como boas amigas. Bibi pergunta: "E aquele menino, o Boechat?". "Esperando por você pra trocarem ideias e risadas, um pouco condoídos das humanas trapalhadas aí embaixo..."

LYA LUFT


16 DE FEVEREIRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Deputada Paulinha

Confesso. Quando vi o decotão dela em meio a uma coleção de fotos bizarras dos novos deputados e senadores tomando posse, achei que fosse, sei lá, uma ex-BBB ou outra subcelebridade dessas que sempre se elegem por causa de um decotão. Ah, essa mania de julgar os outros. Bonitona, maquiada, de vermelho, toda justinha e com aquele decote, hum. O que essa dona quer na Assembleia de Santa Catarina?

Só que, antes de chegar à Assembleia de Santa Catarina, a dona do decote, Ana Paula da Silva, do PDT, já tinha uma carreira política bem mais consistente do que a da grande maioria dos seus colegas engravatados - gravatas horrendas, no mais das vezes. A Paulinha, como é conhecida, foi por dois mandatos consecutivos prefeita de uma das cidades-praia preferidas dos gaúchos, Bombinhas. E deixou a prefeitura com a aprovação lá em cima para ser a quinta deputada estadual mais votada pelos catarinenses, com mais de 51 mil votos. Só aí a gente já vê que a mulher merece respeito.

Mas não é o que vem acontecendo. Quando chegou em casa depois da posse e abriu seu Twitter, a Paulinha viu que tinha virado alvo por causa do decote. E quase não acreditou na violência das mensagens que leu, grande parte vinda de mulheres. "Não se trata de esquerda e direita, mas de um conservadorismo desnecessário que está chegando por intermédio das redes sociais a uma parcela da população (...). Estimula a violência contra os diferentes. 

E não é só contra a mulher, vai contra a pessoa que tem uma orientação sexual diferente, por exemplo. A violência está vindo em uma escala muito generosa. O poder judiciário brasileiro precisa endurecer nas punições. Eu tenho duas filhas, eu tenho uma mãe de 79 anos. Ninguém gosta de ver quem ama ofendido e xingado desse jeito. Estou sendo xingada apenas porque eu usei uma roupa que as pessoas não acharam apropriada", disse ela ao Terra. O assustador é que muitos desses impropérios trazem junto alguma menção religiosa. Como se religião, qualquer que seja, combine com se querer o pior para uma mulher por causa de um macacão decotado.

Os dois mandatos da Paulinha, de 2012 até o ano passado, focaram principalmente na saúde e na educação - áreas em que também pretende atuar na Assembleia. A gestão dela construiu a maior escola de educação integral do Brasil financiada com recursos públicos. Trilíngue, será inaugurada no início do ano letivo catarinense, agora em março. Também o atendimento da saúde pública de Bombinhas melhorou comprovadamente, com a diminuição das filas nas especialidades médicas. Quantos dos nobres colegas da deputada têm um currículo assim para mostrar?

Às perguntas sobre se não teria quebrado o decoro com seu figurino, Paulinha disse saber de cor o regulamento da Casa - que, em nenhuma linha, faz qualquer menção a decotes. O traje exigido, passeio completo, era o que ela usava - com as todas as interpretações possíveis. Os colegas de camisa apertada, um botão aberto na barriga, o umbigo e os pelos saindo para fora, também estavam de passeio completo. Ao mau gosto deles, nenhuma crítica.

Para Paulinha, a reação das pessoas faz todo sentido dentro da nossa visão (desculpas a quem acha isso mimimi) machista. "A mulher precisa provar todos os dias que é competente. Sempre que uma deputada tem uma pauta e fala um pouco mais é porque é chata, é prolixa ou louca. A gente sempre tem um adjetivo para as mulheres políticas. Um senão para pontuar a sua conduta quando ela é guerreira. No meu caso, nesse momento, foi a roupa." E você vai mudar o estilo para não se incomodar de agora em diante, Paulinha? "Com certeza não. Agora que eu não posso mesmo arredar o pé. Como vou ser uma representante digna das mulheres se agora, depois de tudo isso, de tanto apanhar, eu voltar atrás?" Dá-lhe, deputada.

Decote não tem nada a ver com caráter e competência. Que o digam muitos dos nossos políticos abotoados até o pescoço.

CLAUDIA TAJES