quarta-feira, 30 de novembro de 2011



30 de novembro de 2011 | N° 16903
MARTHA MEDEIROS


Autoajuda

Estava lendo o divertido Tudo é Tão Simples, de Danuza Leão, quando uma senhora chegou perto, com ar de desprezo, e disse: “Não te imaginava lendo autoajuda”. Pensei em responder que Kafka e Tchekhov também são autoajuda: dos eruditos aos passatempos, todo livro escrito com honestidade ajuda. Se bobear, até mesmo embustes tipo “Como arranjar marido” ou “Como juntar o primeiro milhão antes dos 30 anos” ajudam – quer ilusão, toma ilusão.

O psicanalista Contardo Calligaris certa vez disse numa entrevista que escreve para estimular o leitor a melhorar a qualidade de sua experiência de vida, intensificando-a. E Calligaris realmente consegue esse feito, por isso o leio. Assim como leio e sublinho inúmeras citações do filósofo romeno Cioran, que me ajuda a identificar a miséria humana sob uma ótica extremamente lúcida.

Muito antes de eu descobrir Calligaris e Cioran, tive que descobrir a mim mesma, e Marina Colasanti foi, nesse sentido, minha guia espiritual. Com suas crônicas, abriu minha cabeça para a sociedade que estava se firmando no início dos anos 80, quando as mulheres assumiram um novo papel. Eu não seria a mesma se não tivesse lido seus livros (muitas garotas talvez citem hoje a autora de Comer, Rezar, Amar como divisora de águas em suas vidas – eu também adorei).

Ainda adolescente, Fausto Wolff me deu consciência política, Millôr Fernandes me ensinou a enxergar o reverso do espelho, Verissimo me incentivou a rir de mim mesma, Paulo Leminsky me fez ver que poesia não precisava ser um troço chato e Caio Fernando Abreu me apresentou um mundo sem preconceitos. Seria uma ingrata se dissesse que eles não fizeram nada além de me entreter.

Além desses autores geniais, passei também por livros maçantes que me serviram como ansiolíticos – me ajudaram a pegar no sono. Hermetismo nem sempre é sinônimo de inteligência, profundidade não é privilégio dos deprimidos e mesmo histórias bem escritas podem naufragar se forem pretensiosas.

Michael Cunnigham ajuda a manter minha humildade (nem que eu vivesse 200 anos conseguiria escrever algo minimamente parecido com Ao Anoitecer, que acaba de ser lançado), Cristovam Tezza ajuda a controlar minha inveja (que técnica!) e Dostoievski me ensina que a fúria é mais produtiva quando transformada em arte.

Qualquer tipo de arte, aliás. Música de Autoajuda? Existe. Cazuza, por exemplo, já estimulou minha indignação com o país, Ney Matogrosso me faz sentir sensual, Jorge Ben sempre me alegra e Chico Buarque diversas vezes me comoveu, e ficar comovido é de primeira necessidade.

Existe autoajuda para todos os gostos. Tendo ou não esse propósito, nenhum livro deve ser diminuído por ter sido útil.

terça-feira, 29 de novembro de 2011



29 de novembro de 2011 | N° 16902
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Três virtudes

É um debate com alunos de uma escola média. Pergunto, para surpreendê-los, qual foi o maior presidente do Brasil. São eles que me surpreendem. Nada menos que três citam Juscelino Kubitschek. Ora, eles nem eram nascidos, e talvez nem os seus pais quando JK abriu para este país as portas da modernidade.

Faço algumas perguntas a meus jovens interlocutores. Eles conhecem muito sobre o sorridente mineiro de Diamantina. Sabem que implantou a indústria automobilística. Não ignoram que construiu imensas hidrelétricas, rasgou o nosso território de estradas, ergueu Brasília em meio ao enorme Cerrado.

Mais do que tudo, colocou o Brasil no mapa do mundo.

Raul Bopp conta em suas memórias que, embaixador na Áustria, fez tocar todos os sinos de Viena bem no momento da inauguração de Brasília, a mais moderna capital do universo.

Era um momento de grandes ousadias. A Seleção Nacional ganhava sua primeira Copa do Mundo na Suécia. A Seleção de Basquete vencia o Mundial do Chile. Maria Esther Bueno se impunha em Wimbledon. Eder Jofre vestia o cinturão da vitória no boxe. A Bossa Nova encantava o Carnegie Hall, em Nova York. Nascia o Cinema Novo.

Tudo isso coincidiu, certamente não por acaso, com o governo de Juscelino Kubitschek.

Romi-Isettas, Volkswagens, Dauphines, Gordinis, Simca-Chambords, Aero-Willys – e não por acaso JKs começavam a transitar por nossas ruas.

Havia todo um clima de otimismo no ar. O Brasil podia ser uma grande nação.

Tudo isso – mas não com esses inteiros detalhes – eu conversei com meus amigos estudantes.

Esqueci de dizer no entanto que ele era um brasileiro cordial, na acepção que deu ao termo Sérgio Buarque de Holanda. Esse homem foi JK.

Duas vezes oficiais amotinados se rebelaram contra o seu governo.

Ele no entanto não usou seu poder de esmagar as revoltas. Ao contrário, perdoou e anistiou os revoltosos.

Na política não foi diverso: era um conciliador.

Essa é uma virtude que esquecemos durante a ditadura militar.

Fiquei contente ao perceber que a memória de JK não está perdida mesmo nas escolas. Pois ele nos legou três heranças: a ousadia, a cordialidade e a conciliação.


29 de novembro de 2011 | N° 16902
CLÁUDIO MORENO


Será que ouvi direito?

1) Nascidas na década de 1930, no Canadá, as irmãs Dionne foram as primeiras quíntuplas a ganhar notoriedade na era pré-televisão. Por “motivos numéricos e biológicos”, explica nosso Jorge Luis Borges, a imagem das cinco graciosas figurinhas, levada nas asas ligeiras da publicidade e do cinema, conquistou o mundo inteiro com sua simpatia.

A extraordinária semelhança física entre elas, reforçada pelo fato de sempre usarem roupas e penteados iguais, tornava quase impossível identificá-las - exceto para um tal doutor Blatz, que dedicou a elas um vasto volume ilustrado por fotografias encantadoras, onde oferece a seus leitores a solução óbvia do problema: “Yvonne é facilmente reconhecida por ser a maior, Marie por ser a menor, Annette porque todos a confundem com Yvonne, e Cécile porque é praticamente idêntica a Émilie”.

2) No final do séc. 18 já se desenhava a estreita relação entre o saber e o poder. Não foi por acaso que a expedição militar ao Egito, comandada por Bonaparte, incluía uma verdadeira plêiade de cientistas, cujas observações e experimentos certamente foram muito mais gloriosas e duráveis que as batalhas vencidas pelos legionários.

Conta-se que, sempre que os mamelucos atacavam, as forças francesas formavam um quadrado de ferro e fogo para proteger os membros mais preciosos da expedição, a toques de corneta e gritos de “Jumentos e sábios, no meio!”.

3) Baudelaire, em uma de suas máximas sobre o amor, escreve este desabafo – e não parece estar brincando: “E não é que existem por aí os que se envergonham por ter um dia amado uma mulher burra? Pois não passam de pedantes vaidosos, nascidos para pastar os cardos mais impuros da criação.

A burrice é muitas vezes o ornamento natural da beleza; é ela que dá aos olhos aquela limpidez quase morna das lagoas escuras, aquela calma espessa dos mares tropicais. A burrice sempre contribuiu para a conservação da beleza; ela retarda as rugas e é o cosmético divino que poupa nossas deusas das cicatrizes que o pensamento nos inflige, a nós, que nos julgamos sabichões”.

4) O Barão Grimm, que tinha a má fama de maltratar seus criados e arremessar-lhes – com força – punhados de moedas na cabeça, sentenciava, gravemente, que o homem comum “não foi feito para a verdade, nem para a liberdade, embora sempre traga na boca estas duas palavras. Esses dois bens pertencem à elite do gênero humano, sob a condição expressa de aproveitá-los sem fazer muito alarde, nem se gabar demais. Os outros nasceram para a servidão e para o erro; é o seu destino”.

5) E houve aquela dama, evocada por Paul Valéry, que exclamou, diante de um quadro que representava Jesus Cristo: “Mas como está parecido!”.

sábado, 26 de novembro de 2011



27 de novembro de 2011 | N° 16899
MARTHA MEDEIROS


De vestido de oncinha e plumas

Temos o direito de ficar ressabiados por postarem nossas fotos pré-históricas sem nos consultar?

Outro dia aconteceu algo que me deixou sem saber direito o que pensar. Um caso corriqueiro, mas novidade pra mim. Quando era publicitária, trabalhei por três meses numa agência. Estamos falando do ano de 1984 ou seja, 27 anos atrás.

Pois uma ex-colega da agência postou essa semana, no blog de uma confraria da qual faz parte, uma foto daquela época na qual apareço numa festa à fantasia. Uma homenagem que ela me fez, sem nenhuma intenção difamatória. Nem estou tão medonha na foto, apesar do cabelo estilo Dallas, do vestido de oncinha e da echarpe de plumas negras. Foi a primeira festa à fantasia a que fui. E a última.

Me garantiram que o blog é acessado por pouquíssimas pessoas. As confrades estavam crentes de que eu iria me comover. Mas, nascida com vários defeitos de fabricação, não me comovi. Em vez disso, considerei que a titular do blog poderia ter pedido autorização para publicar uma foto minha de 27 anos atrás. Seria atencioso da parte dela. Mas devo estar variando: quem pede licença antes de postar foto dos outros?

Lembrei de uma discussão que testemunhei entre duas amigas: uma delas havia ficado chateada por a outra ter postado a foto do seu chá de panela, em que ela aparecia completamente descomposta, mas descomposta de uma maneira que só quem já foi a um chá de panela sabe que é possível.

Já a outra amiga defendia o seu direito de postar o que quisesse, e de julgar ela mesma o que era descompostura e o que era apenas uma foto engraçada. De fato, era uma foto engraçada. Lembro que pensei: “Quá, quá, quá, que engraçado – ainda bem que não sou eu”.

Agora sou eu. E, se ainda não chegou sua vez, aguarde.

Tenho plena consciência de que, cada vez que tiro foto com um leitor numa sessão de autógrafos, aquela foto estará no Facebook em poucos segundos. Tudo bem. Meu trabalho faz com que me exponha, e sei que não há controle sobre a propagação de imagens.

E, mesmo quando não é um evento profissional, tudo bem também: ao viajar com amigos ou ir a um churrasco, sei que serei fotografada junto ao grupo e logo estarei num álbum virtual, pra quem quiser espiar. Qualquer pessoa que se deixe fotografar, hoje, sabe que é assim. Se quiser discrição, melhor evaporar na hora do clique.

Não tive essa prerrogativa em 1984. Naquela época, nem em meus sonhos mais premonitórios poderia supor que o conceito de privacidade em breve estaria condenado à morte e que o “cá entre nós” seria substituído pelo “cá entre todos”.

Por isso, a dúvida: temos o direito de ficar ressabiados por postarem nossas fotos pré-históricas sem nos consultar ou dá no mesmo se a foto foi tirada 27 anos atrás ou ontem à noite? Suspeito que estou sendo preciosista. Vaidosa. Tá bom: chata. Mas queria compartilhar essa indagação.

Quanto à ex-colega, sem mágoas. Assimilei. Nenhum problema de eu circular pela internet de oncinha e plumas. Ao menos estou vestida, ufa.

marthamedeiros@terra.com.br

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


Jaime Cimenti

Mais de 115 razões para amar Porto Alegre

Uma edição especial que circulou com a revista Veja 2243, da semana passada, coordenada por Alessandro Duarte, editada por Fernanda Guzzo, com reportagens de Anelise Zanoni, Guilherme Kolling, do Jornal do Comércio, Kellen Moraes e Naira Hofmeister, listou 115 razões para amar nossa cidade.

Os textos e as fotos falam, com encanto e competência, de quatro estações, pôr do sol, personalidades, Erico, Elis, Scliar, restaurantes, igrejas, Ospa, Brique, Morro do Osso, Estádio Beira-Rio da Copa e muitas outras seduções da Capital. Claro que 115 razões poderiam ser 500 para nosso 1,4 milhão de habitantes, como está, aliás, escrito na carta ao leitor da edição especial.

Sem querer chegar às 385 razões para completar as tais 500, listo outras para se gostar ainda mais da cidade do sorriso. Porto Alegre pode ser visitada de ponta a ponta, tipo Itapuã-Sarandi ou Partenon-Ilha da Pintada, em poucos quilômetros (uns 50) e em minutos. Pocket-metropolis. Pequenas distâncias, grandes prazeres.

A Igreja Nossa Senhora da Conceição é nosso point barroco-baiano. Nossa Londres tombada é o casario geminado da Félix da Cunha. Nossa alma zen japonesa flutua na Praça Província de Shiga, cidade-irmã de Porto Alegre.

É um dos lugares mais charmosos e pouco conhecidos que temos. O terraço do nosso edifício mais alto, Santa Cruz, na Rua da Praia, deveria ser mais frequentado e receber mais turistas, com sua vista bonita, a mais de cem metros de altura. Os cemitérios da Santa Casa, São Miguel e Almas e Evangélico merecem atenção, pela arte, pelas pessoas e histórias, mas não fique tempo demais por lá, se não te chamam.

As colinas, as plantações de pêssegos e os parreirais da Vila Nova são nossa mini-Toscana ou nosso mini-Vêneto, com sua energia italiana. O Morro Santa Teresa, com o busto do saudoso jornalista Carlos Nobre lá em riba, sempre foi motivo para amar a cidade. Antigamente, nos tempos do chubidu-bidu, foi um simpático e informal drive-in com casais se azarando e se amando noite adentro.

Enfim, já elogiei a bela edição da Veja, acrescentei alguma coisa. Mande aí para mim suas razões, seus lugares preferidos e as comidas que te fazem amar esta cidade, apesar de nosso clima.

Bom, tem abril e outubro, gostosos. Não se queixe tanto. Fui, vou flanar na Padre Chagas, síntese da Rua da Praia e de quase tudo que nos encanta nesta cidade que, no fundo, no fundo do Guaíba, nos ama.

Jaime Cimenti

Complôs, assassinatos, falsificações e personagens históricos em delirante trama de Eco

O Cemitério de Praga é o novo romance do professor, escritor e pensador Umberto Eco, nascido na Alexandria em 1932 e autor dos romances O nome da rosa; O pêndulo de Foucault; A ilha do dia anterior; Baudolino e A misteriosa chama da Rainha Loana. Eco é autor também de obras de filosofia, crítica literária e semiótica já clássicas como Obra Aberta e Kant e o ornitorrinco.

Trinta anos após o estrondoso sucesso de crítica e de público de O nome da rosa, Eco traz novamente uma rica trama envolvendo personagens históricos, complôs, enganos, falsificações e assassinatos.

O jovem médico Sigmund Freud (que prescreve terapias à base de hipnose e cocaína), o escritor Ippolito Nievo, judeus que querem dominar o mundo, uma satanista, missas negras, os documentos falsos do Caso Dreyfus, jesuítas que conspiram contra maçons, Garibaldi e a formação dos Protocolos dos Sábios de Sião, entre muitas outras coisas, figuram na narrativa vertiginosa, na qual a única figura de fato inventada é o protagonista Simone Simonini, que, por sinal, é o mais verdadeiro de todos. Isso talvez por ser muito parecido com muita gente que ainda anda por aí.

Simonini, diga-se de passagem, faz coisas que na verdade não foram feitas exatamente por ele e tal. Na narrativa, ao longo do século XIX estão uma satanista histérica, uma abade que morre duas vezes e alguns cadáveres dos fétidos esgotos parisienses.

Serviços secretos, agentes duplos, oficiais traidores e eclesiásticos pecadores figuram no enredo que envolve, entre outras coisas, a disseminação gradual da falsificação conhecida como Protocolos dos Sábios de Sião.

Eco trabalhou, como se vê, com um material que seria perfeito para os famosos folhetins do século XIX, ilustrados com os feuilletons daquela época. Folhetins em que tudo podia acontecer. O jornal italiano La Repubblica considerou o novo romance de Eco como “uma obra destinada a se tornar um clássico”. As palavras não parecem exageradas, o tempo e os leitores dirão.

Dirão depois de ler sobre testamentos enganosos, irmandades diabólicas, falsos notários e outras coisas do gênero. Coisas que passaram a existir, muitas, depois de aparecer a narrativa de Umberto Eco. Editora Record, 480 páginas, tradução de Joana Angélica d’Avila Melo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011



23 de novembro de 2011 | N° 16895
MARTHA MEDEIROS


New Miami

É um senhor com diversos serviços prestados à cultura brasileira, além de ter um refinamento como já não se vê. Foi ele que me contou que encontrou um casal de amigos no aeroporto e perguntou para onde estavam embarcando. Responderam que para Paris. “E você?”. Meu amigo respondeu meio constrangido: “Para Miami”. Incredulidade. “Miami? Você, Ricardo?”

Para esse casal, Miami não passa de um shopping center atrativo para sacoleiros, e não para pessoas de bom gosto habituadas a ir a concertos de música erudita e exposições de arte. Eu tinha essa mesma impressão, e o elegante Ricardo Cravo Albin, de quem falo, idem. Nosso preconceito foi confidenciado um ao outro num bate-papo que tivemos durante uma das mais expressivas Feiras do Livro dos Estados Unidos. Pois é, a de Miami.

Admito que aceitei o convite da feira pela chance de conhecer essa cidade mítica. Não fosse a trabalho, quando iria? Jamais. Depois de fazer um passeio transcendental pelo Peru, imaginei que a Flórida seria o anticlímax. E quebrei a cara, como sempre quebram os que resolvem dar uma olhada por trás das cortinas de suas ideias prontas.

Conversando com moradores e circulando pela cidade, descobri uma Miami disposta a provar que é mais do que uma devoradora de cartões de crédito. De 10 anos para cá, foram feitos investimentos em modernas casas de espetáculos e centros culturais, que hoje recebem musicais e peças de teatro que antes só eram vistas em Nova York.

O orgulho atual é o New World Center, concebido por Frank Gehry (arquiteto do Gugenheim Bilbao) e que possui um megatelão instalado de frente para um jardim público, para que os concertos possam ser assistidos por transeuntes. Outra experiência democratizante: jovens escutam ópera e música clássica por 30 minutos, como aperitivo antes de shows de hip hop e festas techno. Educação cultural, com resultados que o futuro mostrará.

Além disso, os prédios art déco em Miami Beach são um museu a céu aberto. A Art Basel, que começa semana que vem, é a maior mostra de arte da América. E é animador caminhar pelas ruas do centro e encontrar esculturas permanentes de Botero e Henry Moore. Basta de Romero Britto.

E há o de sempre: belas praias, temperatura amena e espírito alegre. Lojas? Cheguei e saí com a mala do mesmo tamanho. Fora os outlets, que dizem ser uma oportunidade econômica imperdível, não entendo a compulsão por compras. O check in no aeroporto, na hora de embarcar de volta ao Brasil, parece um filme de terror, com pessoas tentando passar volumes enormes e suspeitíssimos: o que trazem de lá que não tem aqui?

Enfim, há vida inteligente em Miami para quem consegue desviar os olhos das vitrines. Agora, é torcer para que não construam o descomunal resort-cassino patrocinado por um grupo da Malásia, que promete ser a principal fonte de renda da cidade, já que jogo atrai mais que cultura. É a vulgaridade lutando para não ceder à – eca! – sofisticação. Resista, Miami.

marthamedeiros@terra.com.br

Uma excelente quarta-feira pra você

terça-feira, 22 de novembro de 2011



22 de novembro de 2011 | N° 16894
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Lugar para a ternura

Receio que se agrava a minha desmemória. Antes, esquecia poemas, letras de música, trechos de Machado de Assis. Agora, não consigo lembrar os versos de um tango ou uma declaração de amor. Esses dias tentei evocar a letra da segunda estrofe do Hino Nacional e falhei miseravelmente. Só recordava o “Deitado eternamente em berço esplêndido ao som do mar e à luz do céu profundo”, mas ficava por aí.

Menos mal que a minha desmemória é seletiva. Não esqueço certos capítulos de Minha Vida.

Paris, 1980. Saio do Le Danton e a mais bela das garotas loiras da França segura delicadamente a minha mão e me conduz, junto com outros rapazes e moças , para a cripta da igreja de Saint-Sulpice, onde todos cantam louvores ao Divino Espírito Santo. Me bate uma paz tão bonita que gostaria de ficar ali pelos séculos dos séculos.

Éfeso, Turquia, 2002. Contemplo o anfiteatro grego de 20 mil lugares dispostos em semicírculo e, encantado com aquela perfeição de formas que os milênios não abalaram, mal sinto aproximar-se de mim a menina de seus 20 anos que simplesmente me diz: “Te lembras? Ambos assistimos a Édipo Rei bem naquela terceira fileira de lugares”.

Nova York, 2004. Assisto a O Fantasma da Ópera na Broadway e, fascinado pelo espetáculo e pela música, , no intervalo me ofereço uma dose de Dimples’s on the rocks. É o melhor uísque que já provei em minha existência sobre a Terra. Depois dele, o musical ganha uma nova sonoridade.

Berlim, 1982. Estamos no Viktoria Park e então uma doce brandura baixa sobre mim. Somos cinco reunidos ao redor de uma mesa – e a noite é tão suave como deveriam ser todas as noites de verão. Trocamos ideias sobre o curso que acabamos de concluir, relembramos aulas, episódios, personagens, e aí baixa sobre nós um súbito silêncio. Somos de países diversos e distantes e talvez nunca nos voltaremos a ver.

Costa Oeste, 1984. O Pacífico se estende infinito como o universo. Em algum lugar desta imensidão estão as Ilhas dos Mares do Sul, tão bem descritas por Somerset Maugham. Somos sete numa van e, a certa altura., decidimos descer à praia. São rochas e areias, nada parecido com Copacabana. É quando a moça canadense me dá um beijo na face. Não lhe pergunto porquê. Para certos gestos, só há a explicação da ternura.

Receio que se agrava a minha desmemória. Mas nela haverá sempre lugar para a ternura.

liberato.vieira@zerohora.com.br

domingo, 20 de novembro de 2011



20 de novembro de 2011 | N° 16892
MARTHA MEDEIROS


Alguém quem?

Faz muitos anos. Eu estava assistindo a um show do Living Colour, som pesado que fazia tremer as paredes de um pequeno ginásio da cidade. Guitarras, sonzeira, mal dava para se falar com a pessoa ao lado.

Foi quando resolvi dar uma espiada na tal pessoa ao lado: era uma mulher com um bebê de colo que não deveria ter mais do que quatro meses. Fiquei maluca. O que aquela criança fazia em meio a uma poluição sonora que era atordoante até para adultos?

Sem falar que na época se fumava à vontade em ambientes fechados. Não resisti e, entre uma música e outra, perguntei: você acha que esse é um local adequado para um bebê? Ela poderia ter me mandado longe, já que eu estava me metendo onde não devia, mas foi educada e respondeu que sabia que não, porém ela era muito fã do Living Colour e não tinha quem pudesse ficar em casa cuidando da sua filhinha. Respondi: que tal você mesma?

Ela me deu as costas e trocou de lugar.

Essa história me veio à lembrança depois que li no blog de uma leitora um caso semelhante. Ela e a mãe estavam passando de carro por uma rua, quando viram um senhor de cabelos brancos ajoelhado junto à sua bicicleta, tentando consertá-la. As duas viram a cena e ficaram com pena do homem. Comentaram: “Coitado, alguém tem que ajudá-lo”. Rodaram mais uns metros e então frearam bruscamente. “Ora, por que não nós?”

Deram meia-volta e descobriram que o senhor de cabelos brancos não era tão senhor, e sim um rapaz precocemente grisalho, e que ele estava com quase tudo já resolvido. Recusou a ajuda, agradeceu a gentileza e ofertou às duas seu melhor sorriso. O sorriso de quem sabe que pode contar com alguém, seja esse alguém quem for.

Alguém. Uma entidade a quem confiamos a solução de todos os nossos problemas. Alguém tem que dar um jeito no país. Alguém tem que mandar arrumar a máquina da lavar. Alguém tem que pensar no futuro das crianças. Alguém tem que se mexer, alguém tem que providenciar, alguém tem que ver o que está acontecendo. Mas como ele fará isso por você, sendo alguém tão ocupado?

Na hora de falar, nos anunciamos como muito capazes, mas quando a teoria necessita ser posta em prática, somos os primeiros a transferir responsabilidades. Talvez porque preservamos uma certa arrogância de senhor do engenho, que acredita que o servilismo de seus criados é que faz a roda do mundo girar.

Talvez por egoísmo: para que sujar minhas mãos se outro pode fazer o mesmo? Talvez tenha a ver com pouca autoestima: canto de galo, mas no fundo não presto para nada. Seja o motivo que for, estamos sempre esperando que Alguém se apresente para a tarefa que julgamos não ser nossa.

Abrimos mão do protagonismo em prol de uma coadjuvância acomodada e maléfica para a sociedade. Pois é, e agora? Alguém tem que fazer alguma coisa.

Danuza Leão

Procura-se uma cozinheira

Apesar do tom brincalhão, Nizan publicou um anúncio, em espaço nobre, procurando uma cozinheira

Quando, na última quarta-feira, comecei a ler a coluna de Fernando Rodrigues, aqui na Folha, logo no primeiro parágrafo pensei: "Ah, achamos a mesma coisa; Nizan não podia ter usado o espaço do jornal para um assunto pessoal, isto é, para encontrar uma cozinheira". Mas quando continuei a leitura, vi que não era bem por aí.

Tenho grande admiração por Fernando Rodrigues, acho Nizan um superprofissional, não sou amigona de nenhum dos dois, mas já que Fernando se manifestou sobre a coluna do Nizan, me dou ao direito de me manifestar sobre a coluna de um e de outro.

Apesar do tom brincalhão, Nizan na verdade publicou um anúncio, em espaço nobre, procurando uma cozinheira -e imagino que muitas devem ter aparecido querendo trabalhar em sua casa. Mas é o tal negócio: quem precisa dos serviços de alguém põe um anúncio e paga por ele.

No caso -no meu entender- foi um abuso, pois os jornais vivem de seus espaços publicitários e, claro, Nizan não pagou nada; aliás, deve ter recebido para escrever a coluna. É um problema de não misturar as bolas: opinião é opinião, anúncio é anúncio.

Vamos agora à coluna de Fernando.

Não existe, em português, a tradução exata para "chef de cuisine". Depois que a gastronomia entrou na moda (no Brasil), os restaurantes estrelados têm "chefs de cuisine" famosos, que aparecem na imprensa e viram celebridades. Sempre foi assim em outros países, por aqui é mais recente.

Imagino que uma pessoa rica, que tem uma casa grande e pode arcar com a despesa, gostaria muitíssimo de ter um "chef de cuisine" em casa, mas só se costuma chamar de "chef" quem trabalha em restaurante. Uma cozinheira é considerada como alguém que tem uma profissão "menor", mas ser "chef" -no masculino- pode e é até chique.

Quando Fernando diz que, ao escrever "procura-se uma cozinheira", Nizan mostra "como é resiliente o velho Brasil no nosso cotidiano", e que "até em cabeças como a dele sobrevive um pedaço renitente do Brasil antigo e profundo", nosso grande jornalista, querendo denunciar o preconceito, acabou sendo preconceituoso, logo ele.

Ser cozinheira é uma excelente profissão; uma profissão nobre, pois a culinária de um país é parte importante de sua cultura, e foi descascando legumes que começaram todos os célebres "chefs de cuisine".

Muitos deles são, hoje, donos de restaurantes, os mais talentosos têm filiais em várias capitais do mundo, e lançam produtos com seu nome no rótulo. Uma boa cozinheira vale ouro, e ganha mais do que muitas executivas de grandes empresas. Ter um dom é uma coisa preciosa, seja ele escrever, fazer publicidade ou cozinhar.

E aí chegamos aos politicamente corretos; de uma pessoa que gosta de ficar em casa, que pouco sai, que aprecia seu lar, diz-se que tem índole doméstica. Por outro lado, quem tem um emprego, seja ele qual for, é empregada/o. Então, se uma mulher trabalha dentro de um recinto doméstico, é uma empregada doméstica, não uma "secretária do lar".

Qual a ofensa em ser chamada de empregada? No meu entender, nenhuma. Por que razão "funcionária" ou "secretária" pode, e "empregada" não? Eu me considero uma empregada da Folha; não é ela que me emprega? Ora, ora, são apenas palavras.

Queria eu ter uma casa enorme -e os meios- para ter uma maravilhosa cozinheira, e, se ela fosse baiana, melhor ainda. Já tive uma, Lizete, que importei de Salvador, e lembro com saudades do tempo em que melhor comi na vida.

É o que eu tinha a dizer, apenas uma opinião.

danuza.leao@uol.com.br

Ferreira Gullar

Pegadinha da Caixa

Não entendeu nada. Que diabo de aviso era aquele dizendo que a conta tinha sido fechada a seu pedido?

Josiel Fernandes, aposentado do serviço público e contador nas horas vagas, casado com Anita Fernandes, conseguiu -e com a ajuda da mulher, que prepara quitutes para festas de aniversário- juntar certa grana na Caixa Econômica Federal. Esse dinheiro é para fazer frente a alguma eventualidade, diziam eles e acreditavam nisso, tanto que até recentemente não tinha sacado dali nenhum centavo.

Sim, até recentemente, porque, faz alguns meses, ele teve que usar uma parte dessa economia para atender à doença do filho Joselito, que, tendo perdido o emprego, deixara de pagar o plano de saúde.

"Veja você", queixou-se Josiel, "meu filho pagou durante anos esse plano de saúde e nunca necessitou dele. Foi parar de pagar e logo surgiu essa complicação nos rins". De fato, teve que despender uma nota preta com o médico, e outra, ainda mais preta, com os exames. Felizmente, ficou nisso, sem necessitar de cirurgia, porque aí então pouco ou nada sobraria do dinheiro.

Parecia, assim, que o pior havia passado, quando o porteiro lhe entregou uma carta vinda da Caixa Econômica Federal e que ele largou em cima da mesa julgando ser um extrato de suas aplicações. Mas quando a abriu levou um susto.

A carta dizia o seguinte: "Prezado Cliente, informamos que sua conta na Agência Copacabana, de número tal, foi encerrada no dia 31/10/2011, conforme sua solicitação e aviso enviado anteriormente".

No primeiro momento não entendeu nada. Que diabo de aviso era aquele dizendo que sua conta tinha sido fechada a seu pedido? Não havia feito pedido algum. Imaginou tratar-se de um engano do porteiro que lhe teria entregue uma carta destinada a outro morador. Mas, ao verificar o endereço constante no envelope, constatou que era de fato o destinatário.

Talvez a conta não fosse a sua, pensou, mas logo viu que o número ali mencionado era mesmo o de sua conta. E entrou em pânico: como a sua era uma conta de investimento e havia sido encerrada é que o dinheiro foi retirado dela. Alguém, se fazendo passar pelo titular da conta, enganara o funcionário da Caixa e se apossara do dinheiro.

Nervoso, buscou o telefone da Caixa e ligou para lá. Depois de muito, atendeu um funcionário e lhe disse que só o gerente da agência onde tinha a conta poderia explicar o que aconteceu e deu-lhe o telefone, mas o expediente já se encerrara e assim teria que esperar até o dia seguinte, naquela aflição.

E agora, pensou ele, digo à Anita que perdemos nosso dinheiro? Não, achou melhor não dizer nada por enquanto. E a verdade é que, se alguém se apossou do dinheiro, especulou, a Caixa vai ter que arcar com o prejuízo, vai ter que nos ressarcir. Afinal, ela é responsável pela grana que se confia a ela.

Mas Anita percebeu que alguma coisa o preocupava. Ele respondeu que não era nada, mas ela, que bem o conhecia, insistiu até que ele contou: "Alguém roubou a grana que a gente tinha na Caixa", disse ele. Ela empalideceu, "não pode ser, Josiel, não pode ser!". Temendo que ela fosse ter um treco, ele garantiu que a Caixa teria que ressarci-los do prejuízo. "Eu nunca confiei na Caixa Econômica", afirmou ela. "O que a Neuzinha me contou foi o bastante."

Tratou de tranquilizá-la, mas não conseguiu dormir aquela noite. O jeito foi tomar diazepam. Mas, ainda assim, acordou cedo e aflito, só esperando a hora de a Caixa abrir para falar com o gerente. Afinal vestiu-se e tomou o rumo da Caixa, levando no bolso a maldita carta e os últimos extratos de sua poupança.

Mas, ao chegar à rua em frente à agência da Caixa, teve uma surpresa: uma enorme fila de gente se estendia até a esquina. "Vim num mau dia", pensou, mas se aproximou e perguntou a uma senhora para que era aquela fila. "Recebi uma carta dizendo que minha conta foi fechada a meu pedido e não pedi coisa alguma. Passei a noite em claro, porque dependo desse dinheirinho."

Todos ali tinham recebido a mesma carta. Respirou aliviado, seu pé-de-meia estava a salvo. Resumo da ópera: a carta estava errada.

Ele então se lembrou do anúncio da Caixa na televisão e começou a cantarolar baixinho: "Vesti azul, minha sorte então mudou...". É, ao que tudo indica, mudou para pior.

sábado, 19 de novembro de 2011



19 de novembro de 2011 | N° 16891
NILSON SOUZA


Transformação

Uma menina de prata, com asas de borboleta, reza pacientemente por mim enquanto busco inspiração para este registro sabatino. Observo sobre minha mesa de trabalho a delicada estatueta que ganhei de presente de uma amiga querida e penso no artista (ou na artista) que a criou. Terá ele (ou ela) se inspirado no mais belo de todos os insetos para produzir esta miniatura de Psiquê, a mortal que se tornou deusa exatamente por sua beleza incomum?

É uma das lendas mais encantadoras da mitologia grega. Psiquê, que na língua de Sócrates significa alma ou borboleta, era uma mulher tão linda, que despertou o ciúme de Afrodite – a deusa do amor, aquela que venceu o concurso de mais bela contra Hera e Atena, mas acabou provocando uma guerra.

Meio desmiolada, ela. Por isso, quando viu que os homens babavam em torno de Psiquê, resolveu arruinar sua vida e mandou o filho Eros (Cupido, para os romanos) feri-la com sua flecha enfeitiçada para que ela se apaixonasse pelo mais feio dos mortais. Cupido, porém, atrapalhou-se diante de criatura tão bela, arranhou-se na própria arma e ele próprio apaixonou-se pela mulher.

A história é comprida, não vou cansar a beleza das leitoras (e dos leitores, vá lá). Abrevio dizendo que, no final, eles foram para o Olimpo e viveram felizes para sempre. Já a borboleta não tem a mesma sorte. Sua vida é breve, embora possa voar longe e visitar muitos jardins antes de desaparecer. Mas impressiona por seu colorido e por sua beleza. Tanto que se transformou no desenho preferido das tatuadas, por representar a leveza e a liberdade.

Representa, também, a transformação.

O que mais me encanta e impressiona nesse inseto misterioso é exatamente a sua origem, digamos, pouco atraente. Toda borboleta foi um dia apenas uma lagarta medonha e faminta. Até que se dá a metamorfose, ela sai do casulo, flutua no ar como uma fada embriagada pelo perfume das flores e sai pelo mundo no seu voo errante e assimétrico.

Não sou muito chegado a fantasias e simbolismos forçados, mas uma vez fiquei intrigado com uma borboleta colorida que pousou no meu ombro repetidas vezes. Era verão e eu fazia exercícios num parque da Capital. Quando percebi a intimidade, retirei-a delicadamente com uma varinha fina, mas ela retornou ao mesmo ponto três ou quatro vezes. Acho que gostou do meu suor.

Ou, talvez, estivesse querendo me dizer que, ainda na sua breve existência, inspiraria um artista para que fabricasse uma linda estatueta alada. E que esta pequena imagem da mortal transformada em deusa despertaria no coração de uma mulher o desejo de me presentear. Daí por que a menina ajoelhada sobre minha mesa de trabalho me olha com tanta ternura enquanto tento transformar transpiração em inspiração.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011


Jaime Cimenti

Brasília, Brasil, o futuro chegou faz tempo

Brasília ainda é chamada de A Ilha da Fantasia por muitos. Fantasias concretizadas, na maioria, claro, outras nem tanto. Uns a chamam a cidade de autorama, pela quantidade de carros circulando velozmente nas imensas curvas e retas. Uns dizem que a cinquentona é um museu a céu aberto. Museu do futuro, talvez.

O futuro já chegou por lá faz tempo e já até envelheceu. O Plano Piloto tem renda per capita altíssima, qualidade de vida, preços e cara de Bélgica, mas começa a ter problemas típicos de metrópole: falta de estacionamentos, engarrafamentos, criminalidade, tráfico de drogas, mendigos, moradores de rua, preços altíssimos, sujeira nas ruas e outras dificuldades típicas de grandes cidades.

Um certo ar provinciano ainda envolve Brasília, com seus personagens e suas colunas sociais, repletas de emergentes, negócios e poderosos de vários gêneros. Mesmo no Plano Piloto, que uns dizem que deveria ter formato de camburão e não de avião, e, principalmente, na periferia, nas cidades-satélites, as coisas estão bem complicadas nas áreas de educação, transporte, saúde e segurança.

Acidentes de trânsito diários com mortes, transporte público precário, violência doméstica crescente, mortes diárias por infarto ou AVC, entre outras coisas noticiadas todos os dias pelas mídias locais, apresentam índices mais do que alarmantes.

Por vezes é melhor não ouvir rádio, assistir TV ou ler os jornais da capital. Tem horas que é melhor curtir os melhores espetáculos de Brasília: o céu, o sol, os poentes, o clima e as centenas de gansos do Parque da Cidade, onde ninguém deve deixar de tomar as águas dos côcos abençoados e comer as melancias e abacaxis geladinhos.

Para o bem e para o mal, Brasília representa um pouco de tudo e todos do Brasil. É nossa amostra, nossa síntese, nossa geleia-geral. Brasília se tornou o Brasil, seu retrato em cores ou em branco e preto, em tamanho 3x4 ou pôster. Nem dá mais para dizer: mais Brasil, menos Brasília.

Está tudo embolado. Estamos todos juntos e é melhor mesmo que Brasília seja o Brasil. O bom Brasil, o Brasil do bem, aquele que a gente sonha para os filhos, netos e bisnetos e até para os que já dobraram o Cabo da Boa Esperança. Nosso grande negócio, nossa maior matéria-prima, ainda é a esperança. Que é a última que não deve morrer.

Gostoso fim de semana para você, leitor deste blogger. Aproveite.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011



16 de novembro de 2011 | N° 16888
MARTHA MEDEIROS


O cliente desprezado

Sei que é antipático reclamar de atendimento, mas vou correr o risco. Tantas providências estão sendo tomadas para receber os visitantes da Copa de 2014, então que entre elas se inclua maior rigor em treinamento de pessoal. Turistas à parte, quem ganharia são os moradores da cidade.

Supermercados, por exemplo. Os corredores andam obstruídos por mercadorias embaladas em caixas enormes, ainda fora das prateleiras, tumultuando a vida do comprador que já não consegue transitar livremente.

Frequento dois, de redes diferentes, e em ambos isso acontece, sendo que o segundo é mais irritante: mantém poucos caixas abertos, os carrinhos ficam abandonados no estacionamento e o descaso com a clientela é generalizado. Nesse, já diminuí a frequência das minhas visitas, o que não faz a menor diferença pra eles, mas se outros pensarem como eu, fará.

Bancos, mesma coisa. Por que não colocam funcionários trabalhando em todos os caixas? Mesmo com uma fila enorme, é comum ver apenas dois caixas a postos, sendo que um atende apenas os clientes especiais. Será por falta de dinheiro que os bancos não contratam mais gente? É, deve ser isso.

Semana passada, uma amiga reuniu um grupo de 10 mulheres para brindar seu aniversário num bistrô. Pediu um espumante, porém a atendente avisou que não havia cálices de espumante para todas, por isso algumas teriam que ser servidas em cálice de vinho.

Por desleixo, o bistrô perdeu 10 clientes potenciais. Bares e restaurantes fecham antes de completar um ano por não prestarem atenção em pequenos detalhes que parecem frescura, mas são determinantes para estabelecer fidelização.

E me surpreende o modo como os funcionários ficam conversando entre eles enquanto estão atendendo. Discutem suas crises conjugais, doenças, não raro usando linguagem chula, e a gente ali, invisível.

Óbvio que conversar entre eles é natural, mas creio que a atenção deveria estar 100% voltada ao cliente, que não precisa saber da vida íntima de quem o atende. Quando o cliente se afasta, aí, sim, pode-se xingar o centroavante e esculhambar o ministro à vontade.

Se isso parece elitismo, que pena. Não é. Educação e presteza são valores de primeira necessidade em qualquer setor. Qualidade e atendimento, juntos, é que fazem com que empresas cresçam e o Estado se modernize.

Um funcionário despreparado e displicente está transmitindo exatamente essa imagem da empresa para a qual trabalha – aliás, se assim for, bem feito pro patrão. É dos donos a responsabilidade de treinar direito sua equipe.

A nós, resta sermos bons clientes (não somos santos: muitos consomem os produtos antes de passar no caixa, estacionam o carro sem respeitar a delimitação das faixas amarelas e tratam subordinados com arrogância) e trocar de estabelecimento quando formos mal atendidos. A concorrência está aí para nos receber de braços abertos.


16 de novembro de 2011 | N° 16888
JOSÉ PEDRO GOULART


O caos e o inferno

1) Escrevo numa segunda-feira espremida entre um domingo e um feriado. Pobre dia para um redator. A semana começou com os ventos bravios da primavera mas lenta no noticiário.

Os assuntos fortes da outra semana ainda repercutem. Por exemplo, a prisão do chefe do tráfico na Rocinha, o Nem; achado, juntado, encolhido como um feto no porta-malas de um carro. Na delegacia, o traficante exerceu seu direito constituído e fez sua ligação permitida, telefonou para mãe; pediu a ela que fizesse com que os filhos dele fossem a escola normalmente.

A) Preocupação de pai, zeloso com os filhos?
B) Queria o traficante mandar uma mensagem pública de que com estudo ele não estaria ali?
C) Um aviso cifrado para os subordinados?

2) Três estudantes presos por fumarem maconha no campus foi o estopim que gerou a crise USP. Do que saiu na imprensa sobre a invasão por parte dos estudantes ao prédio da reitoria na universidade, o que mais me impressionou foi a rapidez em culpar a rapaziada.

Maconha, subversão, anarquia, os suspeitos de sempre: um eterno rodízio acusatório em prol do ordinário. Depois se soube dos excessos da policia, mesmo assim foi um “eles pediram” para cá, ou um “os filhinhos do papai” para lá; e por aí foi o andor levando seu eterno santo de barro.

3) Há um desejo de repressão no ar. A mesma polícia que quebra o circuito do tráfico e ajusta a ordem injustifica a ocupação dos estudantes. Da mãe do traficante até os papais dos estudantes muito se especula.

Dois momentos distintos da nossa cândida realidade, e só um tiquinho assim para uma mistura insidiosa de assuntos. Alguém aposta uma moeda de que o consumo de drogas irá diminuir no Rio de Janeiro, no Brasil, no mundo, depois da prisão de qualquer chefe de tráfico de qualquer favela? Ou que qualquer aluno de qualquer universidade deixe de fumar um baseado por falta do produto?

4) O jornais, as revistas, a imprensa formal, têm editores, pessoas que fizeram carreiras subindo degraus e se prepararam para separar o joio do trigo, pensar na informação, organizar o debate. O filme Contágio, do Soderbergh, põe no banco dos réus um blogueiro leviano que diante do caos provocado por uma contaminação global insiste em levar vantagens pelo fato de ter um instrumento poderoso e sem controle, a internet.

A falta de controle pode contaminar as opiniões?

Quem controla o incontrolável? Soderbergh, um cineasta de esquerda, fez um filme que defende o sistema? Quais os vírus mais perigosos, os detectáveis em laboratórios ou os inatingíveis por qualquer vacina, como a liberalidade? A liberalidade não é um preço a pagar pela quebra na espinha da mídia hegemônica?

5) Aliás, há vacinas contra o desejo de as pessoas se drogarem?

6) “Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem”, poetizou a polonesa Wislawa Szymborska, Nobel de literatura. A poesia faz sentido fora da poesia?

terça-feira, 15 de novembro de 2011



15 de novembro de 2011 | N° 16887
CLÁUDIO MORENO


Algumas coisas não mudam

O mundo antigo não conhecia este estágio que chamamos de adolescência. A passagem para a idade adulta era quase instantânea, rápida demais se comparada ao ritmo de hoje. Para a mulher, a transição era vertiginosa: a mocinha grega passava diretamente das brincadeiras infantis para a cama do homem que o pai escolhera para seu marido.

“Quatro anos depois da puberdade”, diz Hesíodo, “a jovem está pronta para acender todos os fogos de uma casa” – e o leitor certamente terá percebido que ele não se refere apenas às brasas que ardem na cozinha.

Se era cedo demais, fica difícil saber. Não vamos cometer o erro primário de julgar a vida dos outros por nossos próprios parâmetros, ou decretaremos que uma jovem estudante paulista é mais feliz que uma esquimó da mesma idade, ou que todas as esposas islâmicas são tristes e oprimidas.

Não contamos com um testemunho fidedigno, pois raríssimas foram as mulheres da Antiguidade que conseguiram registrar alguma coisa por escrito. Os textos que temos são de autoria de homens, mas ao menos registram fatos que nos permitem imaginar o que significaria esta ruptura na vida da jovem grega.

Nos poemas dedicados ao casamento, a jovem noiva sempre parece aturdida pela vertigem dessa transição abrupta, por esse salto no mundo desconhecido do sexo e da maternidade. Ela mal acaba de guardar suas bonecas de osso e o tamborim que usava no coro das virgens e vêm chamá-la para cortar os cachos juvenis e vestir o manto nupcial!

Eurípides, homem sensível, dos clássicos o que melhor entendeu as mulheres, põe na boca de Medeia um desabafo: “Temos de viver sob costumes diferentes, mas nada nos ensinaram em casa; se você não é profetisa, é difícil saber como se portar ao lado do homem que vai viver com você”.

Esta frase isolada é como aquela breve abertura entre as nuvens que às vezes nos deixa entrever a paisagem lá embaixo – mas não vai além disso, pois tudo se esconde em seguida sob o espesso véu de silêncio que encobre a mulher do passado.

Se ela tivesse, como hoje, a liberdade e os meios de expressar o que pensava e sentia, talvez constatássemos – sem surpresa – que a alma feminina compartilha certos valores imutáveis, o que faz com que as mulheres se entendam, umas às outras, acima dos limites impostos pelo tempo e pela geografia.

Amanhã, na Casa de Ideias, começo meu curso sobre Helena de Troia. Informações: fone 3018-7740.

Um gostoso feriado pra você.

sábado, 12 de novembro de 2011



13 de novembro de 2011 | N° 16885
MARTHA MEDEIROS


Adeus ao general

Agora posso engolir todos os “nunca viajarei em excursão” que já pronunciei na vida

Conforme comentei no texto da última quarta-feira, estive no Peru recentemente numa viagem em grupo, modalidade de turismo que adotei uma única vez, quando fui para o Marrocos, dois anos atrás.

Com essa dupla experiência, acho que agora posso engolir todos os nunca viajarei de excursão que já pronunciei na vida. Claro que há excursões e excursões: encontrei minha turma. E descobri algo ainda mais importante: nada como tirar férias do nosso generalato.

Costumo estar no controle de tudo, é meu jeito. Não tenho agente, assessora, assistente, motorista, nenhum staff que faça as coisas por mim. Sou minha própria secretária executiva, gasto 80% do dia gerenciando minha vida profissional, pessoal e a da minha família. Nos 20% que sobram, quando sobram, escrevo um pouquinho.

Logo, quando viajo, sou aquela que reserva hotéis pela internet, planeja os voos, agenda serviços de translado, pesquisa restaurantes, se informa sobre a programação cultural da cidade, lê matérias de revistas, compra um guia se for um destino desconhecido, enfim, não saio de casa desprevenida – o tempo geralmente é curto, e não convém dar espaço para roubadas.

Então surgiu essa oportunidade de ir ao Peru numa viagem de sonhos onde tudo estava previamente organizado. Não precisei resolver nada. Decidir nada. Escolher nada. Preocupação zero. Tudo o que me coube foi preparar uma mala enxuta e levar alguns trocados para o caso de querer comprar algum pano colorido, um pratinho de cerâmica ou uma garrafa de pisco. O resto estava tudo acertado. E tudo era tudo mesmo.

Na chegada aos aeroportos, uma van esperando. Hotéis incríveis com o check-in já feito. Restaurantes escolhidos a dedo, os mais charmosos, e que cardápio. Passeios com entrada livre, tudo foi liberado antecipadamente. Eu não olhava para o relógio. Não entrava em filas. Não reservava mesas. Não dava telefonemas. Não esperava para ser atendida.

Não conferia a conta. Não deixava gorjetas. Não interpretava mapas. Não procurava os endereços dos museus. Descobri finalmente o significado da palavra mordomia. O mundo funcionando à perfeição sem minha ingerência. Tudo o que tinha que fazer era me permitir ser conduzida e curtir a paisagem. Obedeci.

Por uma semana, adeus, general. Aqui você não manda nada.

Porém, um general que se preze não abandona o posto, apenas descansa com um olho fechado e outro aberto. Cá estou, de volta ao quartel, executando as atividades em que me reconheço: decidindo, escolhendo, experimentando, duvidando, dizendo sim, dizendo não, errando e acertando por conta própria. E, com secreto prazer, me concedendo a liberdade de me perder pelas ruas desse labirinto chamado vida real.


12 de novembro de 2011 | N° 16884
NILSON SOUZA


O último sorriso

Sei que foi uma coincidência, mas não pude evitar também eu um risinho nervoso: os três mortos da página estavam rindo, aparentemente às gargalhadas. Exatamente, naquela rápida passada de olhos que todos nós, leitores, damos pela página do obituário, só para conferir se algum conhecido não bateu as botas sem avisar, deparei com três rostos sorridentes. Claro que minha primeira reação foi de espanto, considerando a natureza do conteúdo:

– Ué, estão rindo de quê? – pensei.

Riam da minha curiosidade recém despertada, provavelmente. Tanto que fui ler a história de cada um – e todas justificavam aquele último sorriso congelado para a eternidade. O primeiro era um motorista de táxi aposentado que fez sua derradeira corrida aos 93 anos, o que talvez já fosse motivo suficiente para uma despedida alegre. Mas tinha mais na sua sintética biografia: apaixonado pelo acordeão, que aprendeu a tocar por conta própria, passou a maior parte da vida animando bailes de Carnaval e Kerb. Estava mais do que explicado o sorrisão.

O outro até que se mandou cedo deste vale de lágrimas, aos 59 anos, mas também parece ter se divertido bastante por aqui. Era Rei Momo nos Carnavais, amava música sertaneja, gostava de cantar e dançar. Só por aí já dá para entender o sorriso póstumo.

O terceiro sorriso bonito da página fúnebre pertencia a uma senhora que só parou de fazer tricô, palavras cruzadas e de cuidar do seu jardim aos 79 anos. Segundo o registro da sua passagem pelo planeta, era muito religiosa e não perdia jogo do seu time do coração. Educou três filhos e conviveu com quatro netos. Deve ter tido mesmo muitos motivos para rir.

Os mortos sorridentes alegraram o meu dia nas primeiras horas da manhã, que é quando debulho as páginas coloridas do jornal, nem sempre com a tranquilidade necessária para curtir histórias interessantes que emergem das entrelinhas. Raramente me detenho no obituário, mas naquele dia não pude resistir ao apelo dos dentes à mostra.

O sorriso, realmente, tem uma força insuspeitada. Já li em algum lugar o que repito a seguir, sem a exatidão do texto original: existe um sorriso capaz de te fazer forte, de serenar o teu coração, de te fazer superar obstáculos aparentemente intransponíveis e, principalmente, de atrair outros sorrisos.

Este sorriso é o teu.

E, como aprendi naquele dia de surpresas, funciona mesmo depois da vida.

nilson.souza@zerohora.com.br

sábado, 5 de novembro de 2011



05 de novembro de 2011 | N° 16877
NILSON SOUZA


A caneta e a enxada

Vou à feira neste sábado.

Adoro livros. Nenhuma invenção simboliza tão bem o gênio humano quanto esses pequenos objetos compostos por frágeis folhas de papel, mas capazes de condensar séculos de conhecimento, milênios de imaginação e uma eternidade de sentimentos.

Cada vírgula impressa, sentenciou o nosso poeta que virou estátua na praça dos livros, é uma confissão do seu autor. Trabalho diariamente com esses signos da comunicação e sou obrigado a reconhecer que é bem assim.

Mas a feira que visitarei neste sábado, como faço a cada semana, não tem livros. Mas tem histórias. É uma feira agrícola, de produtos orgânicos, que se materializa numa comunidade de frutas e verduras nas primeiras horas da manhã e desaparece depois do meio-dia – como uma daquelas cidades encantadas dos nossos melhores ficcionistas.

Pois já conheço bem os habitantes desta Macondo de rúculas e abóboras. Gosto de conversar com os feirantes, de ouvir os seus relatos, de saber que por trás de cada molho de cenoura tem uma aventura da vida no campo.

O homem que vende bananas explica para um cliente como faz o desbaste de sua plantação. A senhora dos biscoitos sem glúten fala sobre os sabores mais deliciosos. A família da banca das laranjas dá lições sobre a melhor época para plantar e colher as suas frutas.

Gosto de conversar com aquela gente simples e trabalhadora. Outro dia, contei ao homem que me servia que também fui feirante na primeira adolescência. Trabalhava na banca de meu padrinho. Acordávamos de madrugada, embarcávamos num caminhão velho e, antes do dia clarear, tínhamos que armar rapidamente o balcão improvisado e sua cobertura de lona, já com a freguesia chegando para levar os produtos mais frescos. Era uma correria.

Ao meio-dia, desarmávamos o circo e corríamos para outro ponto, onde começava tudo de novo até o anoitecer. Como usávamos aquelas balanças antigas, com pesos, tínhamos também que enfrentar a desconfiança de alguns clientes. Era uma barra.

A feira ecológica que frequento me parece bem mais tranquila. Claro que agora estou do outro lado do balcão, mas tenho a impressão de que fregueses e feirantes desenvolveram uma cordialidade mútua, de pessoas que comungam ideias e valores. Tem lá a sua semelhança com a Feira do Livro.

Basta ouvir o que contam os agricultores para se constatar que eles também escrevem, com a enxada e o forcado, as crônicas, os contos e os romances de suas vidas.

nilson.souza@zerohora.com.br

sexta-feira, 4 de novembro de 2011


Jaime Cimenti

Conquistando o pai ausente e reconquistando a amada

O denso romance O tempo que eu queria marca a estreia, no Brasil, do escritor, ator e diretor de rádio e de TV italiano Fabio Volo, consagrado autor dos best-sellers È una vita che ti aspetto e Esco a fare due passi, traduzidos para várias línguas.

Fabio Volo recebeu em 2010 o prestigiado Prêmio Literário Isola D’Elba e sua obra tem impressionado a milhares por refletir com sensibilidade o homem comum, com suas dores, amores, grandezas e pequenezas. Em O tempo que eu queria, que já vendeu mais de um milhão de cópias com seu texto afiado e inovador, o protagonista Lorenzo não é bem-sucedido no amor.

Pode ser que não saiba amar, ou que não tenha condições de demonstrar seu amor. Ele se depara com dois amores difíceis de reconquistar, de reconstruir: seu pai, um homem ausente, e “ela”, que foi embora e talvez nunca mais volte.

Crescer pode significar aprender a amar e a perdoar, compreender as próprias frustrações, ir em busca do tempo que perdemos e não podemos mais resgatar. Esse é o duro mas inevitável caminho que Lorenzo percorre, viajando à procura de si mesmo e de seus sentimentos autênticos e profundos.

Alternando com habilidade flashbacks da infância do protagonista e a tristeza ao final de um grande caso de amor com uma mulher, cujo nome aparecerá apenas no final da narrativa, Fabio Volo mostra a luta do protagonista para tentar consertar o relacionamento com o pai e para reconquistar a pessoa amada. Personagens, frases e palavras da obra servem como pontes que permitem mover de onde você está para onde você quer ir.

Ao fim do romance os leitores terão a sensação de que poderiam eles mesmos terem sido os autores da história. Provavelmente o leitor vai constatar que já viveu emoções semelhantes, leu os mesmos livros, viu os mesmos filmes e amou pessoas parecidas.

Com sua linguagem criativa e sua arquitetura narrativa bem armada, o autor mostra que está muito acima da média dos best-sellers italianos ou estrangeiros, repletos de chavões e construções esquemáticas. Uma frase resume a obra: você não está vivendo se não souber como viver.

Editora Bertrand Brasil, 294 páginas, tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, R$ 39,00, mdireto@record.com.br.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011



02 de novembro de 2011 | N° 16874
MARTHA MEDEIROS


Quarto

Estamos em plena vigência da Feira do Livro e aproveito para fazer uma recomendação de leitura, já que ainda estou sob o efeito do prazer de tê-lo tido em mãos. Chama-se Quarto, da irlandesa (hoje residente no Canadá) Emma Donoghue.

Vou contar do que se trata, e vai parecer que estou estragando o prazer da descoberta, mas não é nada que já não esteja revelado na contracapa: a história é narrada por um garotinho de cinco anos que vive enclausurado com a mãe num quarto. Ele nasceu lá dentro e nunca saiu pra fora. Nunca.

Seu universo está concentrado entre as quatro paredes daquele cubículo, que a mãe se esforça para transformar num espaço lúdico e estimulante – o que, espantosamente, consegue, apesar da tragédia de estar sequestrada há sete anos.

Quando eu soube do enredo, vi algumas semelhanças com o filme A Vida é Bela, em que o personagem do ator Roberto Benigni faz o possível para que seu filho não perceba que estão trancafiados num campo de concentração.

Mas Quarto vai muito além dessa atitude de amor extremo que faz com que queiramos proteger nossos filhos da violência emocional, nem que para isso seja preciso ocultar-lhes a verdade. O livro confirma a tese de que nada é mais universal que o nosso umbigo e que uma história confinada em si mesma (e põe confinada nisso) traduz a humanidade toda.

Em geral, acho chato ler obras narradas por crianças, salvo algumas exceções. Essa é uma exceção com honra ao mérito. Jack, o garoto preso com a mãe, tem uma inocência que não é apenas terna, mas também inteligente. Através de seu olhar absolutamente inédito para tudo que conhece (e esse tudo é tão pouco), passamos a enxergar as coisas como elas de fato são, sem os condicionamentos a que nos acostumamos.

Não deixa de ser uma narrativa de horror e suspense, mas com profundo teor psicológico – felizmente, sem didatismo ou qualquer pretensão. Inclusive, a certa altura do livro, há um trecho em que a autora debocha das tentativas de se intelectualizar tudo o que acontece e de interpretações pseudofilosóficas que mais complicam do que explicam. Diante de um sabe-tudo exibicionista, um dos personagens resmunga: “Esses sujeitos passam tempo demais na faculdade”.

Quarto é um livro simples, com diálogos espertos e verossímeis. Não requer nota de rodapé. De forma comovente sem ser piegas, apenas utiliza uma história original – beirando o surreal – para lembrar o que todos intimamente sabem: que o cativeiro (ou o útero, a ignorância, os costumes, as convenções, os preconceitos – escolha sua própria metáfora para confinamento) é, no fundo, estabilizante, e que nada é mais assustador do que a liberdade.

marthamedeiros@terra.com.br

terça-feira, 1 de novembro de 2011



01 de novembro de 2011 | N° 16873
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A melhor herança

A Fundação Itaú Social lançou uma campanha publicitária cujo mote é: “Leia para uma criança”. E complementa: o gostar de ler é o início de uma história cheia de descobertas e aprendizagens na vida. E tudo começa quando você abre um livro para ela.

Não poderia haver iniciativa melhor. Lembro que minha mãe sentava ao lado de minha cama de menino e me abria o universo dos grandes contos infantis, e que eu a ouvia encantado, até que o sono chegasse, povoado de príncipes, rainhas, cavaleiros, damas e mais um milhão de personagens que me povoavam o sonho.

Muitos anos depois, estando em Berlim, ouvi de meu amigo Carlos Azevedo, professor de literatura portuguesa e brasileira na Universidade Livre, que ele tinha um compromisso sagrado todas as noites: ler para os filhos livros que contavam histórias simples e belas. Eles não adormeciam sem escutá-las, quer fosse uma noite de verão, quer lá fora caísse mansamente a neve.

Há pouquíssimos anos estive em Mainz (para os portugueses, Mogúncia) e participei de uma cerimônia que celebrava justamente a leitura dos pais para os filhos, organizada por uma instituição que era dirigida por ninguém menos que o presidente da República.

Nada era solene. No pavilhão ao lado do jardim serviam-se acepipes cordon bleu, acompanhados por vinhos, champanhes, uísques, nada que diferenciasse a ocasião de uma festa, patrocinada pela autoridade maior do país.

“A leitura é uma amizade”, dizia Proust. Ao que acrescento que é mais do que isso. É um vínculo profundo entre os seres humanos. Tenho nesta sala onde escrevo dezenas de fotografias de família. Numa delas se vê minha mãe lendo para seus filhos histórias infantis.

Cresci assim, numa casa onde todos liam, ou ao menos acompanhavam em discos long play histórias para crianças. Não havia distração maior do que escutá-las, nem alegria melhor do que comentar os textos lidos ou ouvidos.

Está aí uma nova Feira. Estive presente na primeira delas, de que meu pai foi o orador. Não se limitou a apresentar-nos as barracas, que eram então raras e humildes.

Comprou, para cada um de seus filhos, livros que recebemos encantados.

Poucas heranças são maiores do que essa.

liberato.vieira@zerohora.com.br