quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008



28 de fevereiro de 2008
N° 15524 - Nilson Souza


Marias-vitórias

A humanidade se enternece quando um bebê sobrevive ao abandono, como aconteceu esta semana com a menina encontrada numa lixeira de São Gabriel - ironicamente a cidade gaúcha que tem o nome do anjo da Anunciação.

Mas esse tipo de ocorrência se tornou tão comum em nosso país, que o Congresso já analisa uma proposta de lei para possibilitar que mães de filhos indesejados façam seus partos nos hospitais sem se identificar, podendo deixá-los abrigados e cuidados em vez de descartá-los na rua.

A idéia ressuscita a medieval roda dos enjeitados, sistema criado pela Igreja no século 12 para o recolhimento anônimo de crianças que os pais não podiam ou não queriam criar.

Apesar de bem-intencionada, a proposta também provoca resistências, especialmente de quem acha que a nova legislação poderá adiar para as calendas gregas a necessária discussão sobre planejamento familiar em nosso país.

Não quero entrar neste debate, pois não me reconheço habilitado para tanto. O que desejo abordar neste texto despretensioso é a curiosidade do nome escolhido pelas pessoas que recolhem e abrigam bebês abandonados, especialmente para as meninas.

Quase sempre passam a ser chamadas de Vitória - homenagem óbvia ao triunfo sobre a improbabilidade de sobrevivência.

O filhote do homem, como sabemos, vem ao mundo desprovido de resguardos naturais. Se não for alimentado, morre de fome e sede. Se não for coberto, morre de frio. Se não for protegido dos perigos e das doenças, perece inexoravelmente.

E só cresce sadio se continuar recebendo assistência durante a infância. Precisa de alguém que lhe guie os primeiros passos, precisa de alguém que lhe indique os caminhos do futuro, precisa - para se orientar na adolescência - de amor e atenção permanentes.

Sem apoio, os filhotes humanos sequer conseguem atravessar saudáveis de corpo e alma a areia movediça da juventude, que também é cheia de armadilhas e abandonos.

As marias-vitórias, infelizmente, são filhas de marias-derrotas.

Não conheço o texto da nova lei, mas ela será bem-vinda se contribuir para salvar bebês e aliviar a culpa das mães desesperadas ou perturbadas que se desfazem das suas crias, sabe-se lá com que sofrimento.

De minha parte, se tivesse poderes para editar uma norma a respeito deste complexo assunto, redigiria apenas um artigo de quatro palavras: "Nenhuma criança será abandonada". E o complementaria com um inciso mais sintético ainda: "Nunca".

Uma excelente quinta-feira, esta que com certeza, estará cheia de torcedores pelas ruas, com as camisetas de seus times , comemorando as vitórias de goleada ontem a noite.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008


Elio Gasperi

O BRASIL PRECISA COMEÇAR A DEPORTAR

Peter Collecott, o embaixador de Sua Majestade Britânica, precisa se acautelar. Duzentos anos depois de sua primeira visita ao Brasil, lorde Strangford está armando encrencas com Pindorama.

Só pode ser dele a idéia de criar juntas de triagem para os nativos que desejam visitar o Reino Unido.

Do jeito que as coisas estão, de cada cem brasileiros que compram passagem e descem no aeroporto de Londres, três são deportados. Em 2006, foram 4.985 mil, conforme revelou o repórter Rafael Cariello.

Lorde Strangford foi um craque. Arrancou de dom João VI um tratado que, entre outras coisas, deu aos ingleses residentes na terra o privilégio de serem julgados por tribunais formados por compatriotas.

Agora, ele quer criar juntas inglesas para julgar brasileiros em aeroportos brasileiros. Deve ser mágoa das chicotadas que levou de um estribeiro de dona Carlota Joaquina.

Os acordos firmados pelos governos das duas nações dizem que os brasileiros não precisam de visto para entrar na Grã-Bretanha, nem os ingleses para vir para cá.

Como há milhares de nativos interessados em entrar na Inglaterra, ou em outros países da Europa, em busca de trabalho e sem a devida documentação, os governos se protegem. A Polícia dos aeroportos faz a triagem no olho e pede provas de que o viajante não está mal-intencionado.

Essas exigências variam de país para país e vão da passagem de volta ao comprovante da reserva de hotel, passando por dinheiro no bolso e até demonstração do propósito da viagem. As sentenças dos guardas são quase sempre irrecorríveis e, às vezes, néscias.

É direito de ingleses, espanhóis e europeus em geral recusar o ingresso de estrangeiros. Quanto a isso, nada há a fazer.
Nada mesmo?

Talvez haja. Basta criar um sistema de reciprocidade. Quando um avião da British Airways descer em Guarulhos, pede-se aos passageiros que mostrem reserva de hotel, passagem de volta e uma quantia em dinheiro vivo.

Não tem? Volta, mesmo que seja um físico a caminho da Argentina para uma palestra. Pode-se fazer o mesmo com o vôo seguinte, da Iberia. Por cortesia, os deportados ficariam sempre num patamar equivalente à metade dos brasileiros punidos.

Se esse remédio parecer radical, o Itamaraty pode informar aos embaixadores Collecott e Peidró Conde, da Espanha, que a reciprocidade só será aplicada em 2009.

Até lá, ingleses e espanhóis, que não estiverem com a papelada em ordem, serão convidados a assinar a seguinte declaração:
'Cheguei a este aeroporto sem os documentos necessários para atender às exigências que o governo do meu país impõe aos brasileiros.

Em nome das boas relações entre os dois povos, solicito, pela presente, que seja dispensado desse procedimento.'
Assinou, fica. Não assinou, volta.

Lorde Strangford ameaça restabelecer a necessidade do visto. Se esse for o único caminho, nada a fazer, pois é preferível ser obrigado a solicitar o carimbo dos ingleses (exigindo a mesma coisa deles) do que ser tratado como vagabundo, ou vagabunda, por Polícia de aeroporto.

Em tempo: por mais que os europeus azucrinem os brasileiros, nada os aproxima da inépcia dos serviços consulares americanos.

Eles exigem que os nativos peçam visto e avisam que a demora para marcar uma entrevista está em 109 dias no Rio de Janeiro.

A espera em Pequim é de 15 dias, em em Buenos Aires, de dois.

Pois é... olho por olho, dente por dente, não é assim...? Uma ótima quarta-feira esta que marca o Dia Internacional do Sofá.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



26 de fevereiro de 2008
N° 15522 - Liberato Vieira da Cunha


O belo e a verdade

Tomem professores bem preparados e bem pagos, adicionem um currículo variado, temperem tudo com índices baixíssimos de repetência e estará servida a receita da escola ideal.

Ela existe, e não fica nos Estados Unidos, no Japão ou na Alemanha nem em outras potências econômicas, mas na discreta Finlândia, dona do melhor sistema de ensino do mundo, segundo conta a Veja do dia 20.

Não há milagres na fórmula. Os alunos estudam toda a manhã e parte da tarde, os docentes do ensino fundamental precisam ter diploma de mestrado, o gasto público com educação vai a 6,1% do PIB (no Brasil não passa de 3,9%), as salas de aula não dispensam o giz e o quadro negro - e naturalmente alguns computadores - e os diretores são responsáveis pela criação de um ambiente agradável para os estudantes.

Esses e mais alguns detalhes do gênero tornaram o sistema de formação finlandês o mais eficiente entre 57 nações, segundo avaliação feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O Brasil disputa algumas das últimas posições, com países como a Tunísia e a Indonésia.

Alguns segredos do sucesso da nação nórdica não são difíceis de descobrir. As crianças e os jovens estudam, além das matérias básicas, ecologia, ética, música, artes e economia doméstica.

São obrigadas a aprender duas línguas estrangeiras, número que, se o aluno quiser, pode dobrar para quatro. Não é preciso ser doutor em pedagogia para imaginar que um currículo tão atraente torna a escola ainda mais.

Mais do que isso: transforma-a de uma simples agência de transmissão de conhecimentos num espaço criativo. É o que falta entre nós, além de uma carreira bem estruturada e bem remunerada para os professores, que os estimule a um constante aprimoramento pessoal e profissional.

Dinheiro empregado em educação não é despesa, é investimento. E é preciso não esquecer que quando um aluno encontra mais do que disciplinas burocráticas à sua espera, ele se desenvolve como ser humano, ele cresce - e se acrescem seus interesses e seus sonhos.

Pois nunca é demais lembrar que é para isso que existe a formação: ensinar crianças e adolescentes a amar o belo e a verdade.

Enqanto em Florianópolis chove por aqui faz sol e meu desejo é de que tenhas uma ótima terça-feira.

domingo, 24 de fevereiro de 2008


FERREIRA GULLAR

Repressão e preconceito

Está tudo muito errado; escolheram reprimir os desejos mais genuínos em função das normas

VAMOS FALAR a verdade: a sociedade em que vivemos é pura repressão. Já foi pior, claro, muito pior. Houve tempo em que as mulheres não podiam mostrar nem o pé, quanto mais as coxas ou a barriguinha, como mostram hoje. Naquela época, os homens apenas imaginavam como seria o corpo da mulher com quem iam se casar.

Hoje, podem vê-lo inteiro, da barriga às nádegas, com exceção talvez do púbis. Por que a repressão? Por mero preconceito, pelo propósito moralista que tomou conta da sociedade.
Não nascemos nus?

Por que então temos de andar cobertos de roupas, que nos escondem o corpo? Disse que hoje as mulheres mostram quase tudo, mas isso na praia, porque, fora de lá, escondem quase tudo. Claro, não como antigamente, quando tinham que se cobrir de saias e mais saias, blusas e corpetes.

E os homens? Esses, coitados, tendo que imitar os hábitos europeus, sufocavam dentro de roupas pesadas, paletós e coletes. O calor insuportável terminou por obrigá-los a aliviar a vestimenta, mas, até hoje, homem que se respeita usa paletó e gravata.

Às vezes, alguns tiram a gravata, mas dificilmente tiram o paletó, a camisa, as calças; a cueca, então, nem pensar. Por que não podemos andar nus como os índios?

Não nascemos nus? Nos países frios, no inverno, admito, não dá para abandonar as roupas, mas, nos trópicos, as roupas são a expressão dos preconceitos morais e da repressão religiosa.

Os únicos que se aventuram a ficar nus em pêlo são os nudistas, mas apenas em certas praias, e não por culpa deles; por culpa, sim, da hipocrisia social que obrigaria a polícia a prendê-los. Por que não se pode entrar nu num banco, já que obscenidades maiores são lá praticadas com permissão da lei?
A verdade é que a repressão está presente em todos os momentos de nossa vida. E de tal modo introjetou-se em nós que, quase automaticamente, vamos impondo-a sobre cada pessoa, mal começa a entender as coisas.

Não pode pôr a mão na boca, o dedo no nariz, juntar a chupeta do chão e chupá-la, trepar na cadeira de balanço, aproximar-se do fogão, brincar com faca e tesoura, chupar bola de gude.

Não pode nada, nada! Além disso, tem de obedecer aos mais velhos -mesmo os que tenham mais de 30 anos-, aturar as gaiatices dos irmãos, apanhar sem revidar etc. Em seguida, vem a fase escolar, que nos obriga a soletrar, decorar, aprender a ler, a escrever, a contar, a dividir, a multiplicar.

Ou seja, o sujeitinho que nasce livre é transformado em outra pessoa, metido numa camisa-de-força, engessado, robotizado. E se se rebela, paga caro; conforme seja, cortam-lhe a mesada; se insiste, termina internado ou preso, vira bandido.

E depois reclamam que o cara virou bandido! Se ele gosta de birita, maconha, cocaína, crack ou ecstasy, é problema dele. Mas não, pai, mãe, polícia, a sociedade inteira se volta contra ele. E depois ainda se tem o desplante de afirmar que vivemos numa democracia.

Como democracia, se o cara tem que se sujeitar às imposições sociais? Por quê? Se o cara cheira, fica doidão e sai assaltando os caretas, é problema dele. O assaltado que se vire. Eu gostaria de saber por que esse preconceito contra quem gosta de drogas.

Não tem gente que gosta de alpinismo, de asa-delta, de mascar chiclete, comer chocolate, malhar na academia? E então? Cada um nasce com suas manias e preferências, que devem ser respeitadas pelos demais, do contrário não se pode falar que vivemos numa sociedade que respeita os direitos dos cidadãos.

A verdade é que não respeita. Nem o poderia, uma vez que quase nunca as normas sociais coincidem com as necessidades e desejos das pessoas.

Por exemplo, se o cara tem preferências sexuais, que escapam ao que se chama de normalidade, está sujeito, conforme o caso, a condenações judiciais ou até linchamento por parte dos fanáticos defensores daquelas normas.

Se o sujeito nasceu pedófilo, por que sua preferência sexual é considerada crime? Por que punir alguém que apenas obedece a impulsos inatos que lhe são impostos pela natureza?

Está tudo muito errado. Por razões que ignoro -mas que refuto liminarmente-, os homens escolheram reprimir seus desejos mais genuínos e seu modo espontâneo de vida em função de normas, disciplina, valores que, como observou Nietzsche, só favorecem os fracos e covardes. Só esses necessitam de leis repressoras para compensar a natural superioridade dos fortes.

Agora, se alguém me pergunta se permito que defequem em minha sala e não no vaso do banheiro, respondo que devem fazê-lo no vaso. E que dêem a descarga, certo?

DANUZA LEÃO

Um presente

Existem alguns arco-íris que são meio pela metade. Mas aquele era tão lindo que parecia feito a compasso

DIA SIM, DIA NÃO, eu, que moro no Rio, ando na Lagoa durante uma hora. Andar é uma mania dos cariocas, para conservar a saúde.

Meu horário é seis da tarde, mas nesse último mês tem sido difícil. Os dias amanhecem lindos, ensolarados, céu azul, mas a partir das três horas o céu começa a ficar cinza, e daí a pouco começa a chover. Um verão atípico, pois isso tem acontecido quase todos os dias.

Na última segunda-feira, quando desci para andar, o céu era um chumbo, e fiquei na dúvida: vai ou não chover? Perguntei a meu porteiro, ao do edifício ao lado, os dois me tranqüilizaram: não, não vai chover. Acreditei, e lá fui eu.

Quando cheguei à Lagoa, o tempo estava meio estranho: olhando para o lado da Barra, céu azul e sol. Do outro lado, nuvens negras anunciavam um temporal.

Como eu já estava indo, resolvi apostar no melhor e comecei a andar. Uns 800 metros depois caiu uma chuva daquelas, mas daquelas mesmo.

Dizem que o mundo é dividido entre os que usam e os que não usam guarda-chuva e sou das que acham a chuva uma delícia, sobretudo quando está fazendo calor; mas aquela era demais.

Para piorar a situação, tinha ido ao cabeleireiro e feito uma escova naquela manhã, e se meu cabelo molhasse seria uma catástrofe. Mas não havia nada a fazer, a não ser esperar. Sentei num banco debaixo de uma árvore, rezando para a chuva passar.

Enquanto esperava, olhei o céu: a mesma coisa. De um lado sol, do outro lado chuva. Foram 15 ou 20 minutos difíceis: se decidisse voltar para casa, ia ficar encharcada. Quanto tempo ainda duraria aquela tortura?

A chuva, daquelas bem de verão, passou. As últimas gotas ainda caíam quando voltei a andar, e quando olhei para o céu, o milagre: um arco-íris.

Na verdade não é um milagre, é um fenômeno explicado pela ciência e que acontece às vezes, mas que é tão lindo, mas tão lindo, que é difícil de acreditar que esteja mesmo acontecendo.

O enorme arco-íris ligava um morro a outro. Existem alguns arco-íris que são meio pela metade, e com cores meio desbotadas.

Mas aquele era tão lindo, tão inteiro, tão perfeito, que parecia feito a compasso; as cores vivas, nítidas, belas, um verdadeiro presente da natureza -e que presente.

Na volta, comecei a prestar mais atenção ao caminho que faço todos os dias, automaticamente. Algumas árvores haviam florescido e as flores estavam caídas no chão, dando a impressão de serem tapetes amarelos.

E havia outras, nas quais nasce, no tronco, um tipo de flor em vários tons de vermelho; vi turistas estrangeiros maravilhados, pegando as flores, provavelmente para levar para seus países, de lembrança. Elas eram lindas, e eu nunca havia notado que existiam.

Quando fiz o caminho de volta, o sol continuava a brilhar, e voltei para casa feliz; mais feliz do que se tivesse ido a qualquer museu e visto as mais lindas obras de arte.

Feliz e pensativa; como conheço razoavelmente a natureza humana -a minha, sobretudo-, não será impossível que em uns meses, quando estiver fazendo o mesmo percurso, no lugar de prestar atenção nas montanhas, na luz, que muda a cada dia, nas flores, que podem ter caído ou estarem enfeitando as árvores, esteja distraída e tensa, pensando que é hora de declarar o imposto de renda, ou no inevitável novo escândalo que acontecerá no país.

E isso - quando e se acontecer- será muito melancólico.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 23 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Massa e kebab

"Para Elias Canetti, o populacho revanchista que incendiou o Palácio de Justiça em Viena serviu como um prenúncio do nazismo. Para mim, a massa bestializada que foi assistir ao espetáculo de Claudia Leitte em Copacabana provou apenas que eu preciso sair menos de casa"

Lula e Isaiah Berlin. Os dois nomes foram citados juntos, lado a lado, ombro a ombro, no mesmo parágrafo de um editorial de O Estado de S. Paulo. É sempre espantoso quando um encontro desses acontece:

– Isaías, apresento-lhe Lula. Lula, este é Isaías, o filósofo. Isaías, tente explicar ao Lula o significado do conceito "liberdade negativa". Não, Lula: liberdade negativa não é o abuso da liberdade, é o contrário. Isaías, tente explicar novamente, por cortesia.

Não, Lula: "As pessoas escrevem o que querem e ouvem o que não querem" não pode ser considerado um exemplo de liberdade negativa. Acho melhor a gente ir embora, Lula. O Isaías prefere ficar sozinho. Sim, Lula, o Isaías está morto.

No último domingo, testemunhei outro encontro inusitado: Claudia Leitte e Elias Canetti. Fui jantar com meus filhos num restaurante árabe de Copacabana. Meio de transporte: bicicleta.

Um filho na cadeirinha dianteira, outro filho na cadeirinha traseira. No caminho de volta para casa, fomos imersos pela gigantesca onda humana que acabara de assistir a um espetáculo da cantora Claudia Leitte, na Praia de Copacabana. Imediatamente, pensei em Elias Canetti.

Ele relatou que o evento decisivo de sua vida ocorreu em 15 de julho de 1927, quando foi arrastado por uma horda de arruaceiros que depredou e incendiou o Palácio de Justiça em Viena. Toda a sua obra foi inspirada pelo episódio. Em particular, o romance Auto-da-Fé e o tratado Massa e Poder.

Eu senti uma inquietude similar à de Canetti no último domingo, quando fui arrastado pelas centenas de milhares de pessoas que debandaram depois do espetáculo de Claudia Leitte, com meus filhos na bicicleta e a barriga cheia de homus e kebab.

Onda humana. Eu nunca uso figuras de linguagem. Nesse caso, ela cabe: Canetti identificou onze símbolos que representam as massas. Um desses símbolos é o mar. A massa de espectadores de Claudia Leitte era representada por um símbolo que não chegou a ser contemplado por Canetti: o Smirnoff Ice.

Para Canetti, o populacho revanchista que incendiou o Palácio de Justiça em Viena serviu como um prenúncio do nazismo. Aquela gente estava pronta para seguir o primeiro demagogo sanguinário que aparecesse.

Para mim, a massa bestializada que foi assistir ao espetáculo de Claudia Leitte em Copacabana, formada por uma gente embriagada, barulhenta, porca, feia e de pernas curtas, provou apenas que eu preciso sair menos de casa.

O que demonstra de uma vez por todas – como se isso fosse necessário – que eu jamais serei um Elias Canetti.

Tenho bastante intimidade com Elias Canetti. Li suas memórias e sei praticamente tudo sobre ele, de seu nascimento até sua morte.

Sim, Lula, o Elias também está morto. A partir de agora, vou me dedicar ao estudo da vida e da obra de Claudia Leitte. Ela pode ser um prenúncio dos desastres do nosso tempo.

Ponto de vista: Stephen Kanitz

O suplício das malas

"Se quisermos fazer bonito em hospitalidade e receber os turistas aposentados do mundo todo, vamos ter de humanizar os nossos aeroportos"

Depois de doze horas viajando num avião a 12 000 metros de altura, seu corpo está cansado, sua cabeça está zonza, devido ao fuso horário, e seus reflexos diminuem.

Seu corpo está ligeiramente inchado, reduzindo sua força, medida por centímetros cúbicos de massa muscular. Provavelmente, você está ligeiramente desidratado, o que limita sua capacidade na troca de calor.

Daqui a alguns minutos, quatro malas virão em sua direção a 10 quilômetros por hora, e você terá cinco décimos de segundo para capturar suas alças e com um forte solavanco levantar de 25 a 32 quilos no ar, numa espetacular explosão de energia, e, finalmente, colocar as malas, uma a uma, a seu lado.

Só que, na maioria das vezes, você erra na coordenação motora e só consegue capturar a bendita alça quando a mala já está fugindo de você, na direção contrária. Isso significa 20 quilômetros por hora de diferença. Ao todo, você despenderá 1 280 joules de energia em menos de um minuto.

Ilustração Atômica Studio

Com a elevação no número de passageiros aposentados, com mais de 65 anos, viajando merecidamente mundo afora, o cirurgião Antonio Luiz Macedo vem notando algo muito preocupante.

Com todas as precondições do início deste artigo, mais a vida sedentária dos aposentados, está aumentando assustadoramente o número de lesões internas devido a esses heróicos atos de bravura.

Dias depois surgem os primeiros sinais de hérnias inguinais, dores musculares, luxações, microrrompimento de tendões, que passam despercebidos e muitas vezes terminarão em cirurgias.

No Brasil, o custo de uma cirurgia dessas não sai por menos de 4 000 reais. No exterior, nem se fala. Tudo isso porque a maioria dos aeroportos do mundo decidiu economizar 150 reais, que é o custo de dez fortes carregadores trabalhando por uma hora, que poderiam entregar-lhe as malas num carrinho, pronto para você empurrar.

Os aeroportos do mundo devem ter sido projetados por jovens engenheiros que nada entendem do corpo humano ou que nunca viajaram. Construíram esteiras rolantes e carrosséis caríssimos para facilitar a vida dos carregadores, não dos passageiros.

Em vez de passageiros se digladiando em torno desses carrosséis, não é difícil imaginar um sistema no qual as malas fossem colocadas em ordem, com o número dos assentos, do mesmo jeito que as companhias aéreas as receberam: juntinhas num carrinho de mão.

Sistema parecido já existe no Aeroporto de Denver, para equipamentos de esqui. Se engenheiros conseguem construir aviões que voam, certamente conseguiriam bolar um sistema de entrega de malas muito mais amigável do que o que temos hoje em dia.

No mínimo, as companhias aéreas poderiam disponibilizar dez carregadores para ajudar os velhinhos e as velhinhas que precisam de auxílio, como havia antigamente. Isso representaria 0,06% a mais no custo do avião. "Nossas esteiras se tornaram desumanas", afirma o doutor Macedo, com toda a razão.

Se nossos médicos estão preocupados com saúde, em vez de lutar pela volta da CPMF, devem lutar pela redução dos riscos à saúde e de despesas médicas desnecessárias como essa.

O problema não é somente de quem tem início de hérnia ou sofre uma distensão muscular totalmente desnecessária no meio de uma viagem. Muitas pessoas idosas se enganam com os novos métodos cirúrgicos minimamente invasivos, que não deixam quase cicatriz e cortam o tempo de internação pela metade.

Eles reduzem a cicatrização por fora, mas por dentro continua a mesma encrenca, o que exige tempo e comedimento. Há recém-operados que se esquecem disso e dois meses depois estão lá na fila, lutando pelas malas, sem saber dos perigos que correm.

Não são as companhias aéreas as culpadas pelas esteiras. São os aeroportos, que estão economizando e destruindo ainda mais o turismo receptivo deste país, hoje dominado por aposentados do mundo inteiro, sem mordomos nem ajudantes de bordo para auxiliá-los.

Se o Brasil quiser fazer bonito na área de turismo e hospitalidade, se quiser receber os turistas aposentados do mundo, cheios da grana, mas sem energia, vamos ter de humanizar os aeroportos na chegada e na saída, lembrando que mala de 32 quilos não é para qualquer um levantar.

Stephen Kanitz é administrador - (www.kanitz.com.br)

Os segredos da Lipo

Entenda quais são os fatores que regem o sucesso e o fracasso da cirurgia plástica mais popular do mundo e o que você pode fazer para ficar completamente satisfeito com o resultado

Por CILENE PEREIRA E MÔNICA TARANTINO



Lançada há quase três décadas, a lipoaspiração é um sucesso. É a cirurgia plástica mais realizada no planeta e no País – estima-se que mais de 300 mil pessoas tenham feito lipo no ano passado no Brasil. O lado positivo de tamanha procura é que cada vez mais indivíduos ficam satisfeitos com a própria silhueta.

A outra face do fenômeno é a existência de muitos pacientes frustrados com os resultados. O problema ganha expressão na quantidade de gente que marca novas consultas para consertar estragos.

Em alguns consultórios do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, por exemplo, quatro a cada dez pacientes estão à procura de soluções para furos, manchas e ondulações na pele por culpa de procedimentos malfeitos.

O número de insatisfeitos tem tomado dimensão tão importante que está motivando acaloradas discussões internacionais. Nos Estados Unidos, a Sociedade de Cirurgia Plástica criou uma comissão só para lidar com a questão. Nesta semana, o Brasil pega a mesma trilha, com a inauguração de um grupo similar na Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

Os especialistas irão investigar os motivos que levaram a lipo a dar errado em casos de pessoas internadas depois da alta por complicações pósoperatórias e naqueles em que houve morte. “Com esses dados, faremos um trabalho de esclarecimento dos médicos e da população”, afirma José Tariki, presidente da entidade.

No meio médico, comenta-se que os índices de problemas e óbitos têm ultrapassado os limites aceitáveis. Um levantamento breve na internet mostra os nomes de pelo menos dez pessoas mortas após lipoaspirações no ano passado, mas seguramente há outros – muitos são subnotificados.

Por tudo isso, a preocupação em tornar algumas verdades sobre a lipoaspiração mais conhecidas da população chega em boa hora. O que se quer é que os pacientes tenham claro o que podem esperar da intervenção e as regras que devem seguir para que ela efetivamente dê o resultado almejado.

A primeira verdade sobre a lipo – e que muitos médicos e pacientes desconsideram – é que, por menor e mais breve que ela seja, trata-se de uma cirurgia. Portanto, tem riscos. Isso quer dizer que não é um ato corriqueiro e que um bom préoperatório é fundamental para o processo começar de forma correta.

“Fazer os exames clínicos e laboratoriais é indispensável mesmo para tirar poucos mililitros de gordura”, diz o cirurgião plástico Miguel Sabino Neto, da Universidade Federal de São Paulo.

Esse rigor na avaliação pode revelar aspectos omitidos pelo paciente.

O desejo de alguns em realizar a cirurgia é tão grande que não contam ao médico que têm diabete ou pressão alta, por exemplo. Porém, as duas patologias devem estar controladas antes do procedimento. Caso contrário, há chance de ter problemas graves durante a cirurgia.

O levantamento prévio das condições de saúde também contribui para prevenir a trombose venosa profunda, alteração caracterizada pela formação de coágulos nas pernas que podem migrar até o pulmão e o cérebro, obstruir o fluxo sangüíneo nos dois órgãos e levar à morte.



23 de fevereiro de 2008
N° 15519 - Paulo Sant'ana


Anticorporativismo

No programa do Faustão, naqueles espaços em que homenageiam um artista de qualquer sexo, quando eles botam no ar gravações de parentes ou colegas do homenageado, claro que todas as referências lançadas ao ar são elogiosas, tenho ouvido freqüentemente algo espantoso.

É que diretores de televisão e outros artistas, para acentuar ainda mais as qualidades da personalidade homenageada, dizem que ela é querida de todos do ambiente artístico, que tem excelente caráter, "o que não é comum no nosso meio".

Ficamos sabendo assim, por outras palavras, em quase todos os domingos, que na televisão e no teatro, mormente no meio das novelas, a maioria dos artistas e diretores não tem bom caráter ou que pelo menos não são "pessoas queridas".

Isso me parece um exagero.

Canso de ouvir que um dos mais graves pecados da conversação e das análises de comportamento em geral é a generalização.

Por esse princípio, temos de acreditar, o que me parece sensato, quem nem todo funcionário público é ocioso, nem todos os policiais e políticos são corruptos, até mesmo nem todos os pitbulls e rottweilers atacam e dilaceram e matam as pessoas.

Só para ficar neste último exemplo, num terreno em que, se há uma pessoa que muito comete o pecado da generalização, é este colunista que está lhes escrevendo.

Com que então não é comum no meio artístico as pessoas serem boas? Isso me tem feito restar perplexo diante da televisão. Menos pelo impacto do exame de mérito da declaração do que pela falta de corporativismo de quem a tem pronunciado.

Ou seja, os artistas e os diretores ficam falando mal dos artistas e dos diretores, embora pela forma de metáfora.

Isso pode decretar no espírito dos telespectadores um mau juízo dos próprios artistas e diretores.

Faz me lembrar do tempo, há 70 anos, em que na sociedade brasileira se acreditava que ser artista, músico, ator, cantor, era infamante. Os pais proibiam seus filhos de tocar violão, de fazer testes no rádio como comunicadores ou artistas, a polícia combatia os seresteiros nas ruas como se eles fossem ladrões.

Essas manifestações que tenho ouvido podem vir a ter o condão de voltarmos àquela época de caça às bruxas contra qualquer vocacionado à arte popular.

Por exemplo, quando Noel Rosa, com apenas 23 anos de idade, abandonou a Faculdade de Medicina que cursava para ser compositor e boêmio, morreu para a dita sociedade da época - melhor dito para a elite do início do século passado.

E Noel Rosa, ao não querer mais ser médico, acabou como o maior gênio da música popular brasileira, o que pode fazer crer que o Brasil apenas perdeu um médico medíocre.

O pior é que hoje não é mais assim: a profissão de ator, cantor, músico, qualquer artista popular, é muito respeitada - e adorada - pelo público, portanto pela sociedade.

A de jogador de futebol também, ainda mais depois de Pelé.

Concluo dizendo que não acho que o ambiente artístico seja um serpentário. Há, como em todo ambiente, algumas víboras, mas a maioria dos seus integrantes são pessoas retas e de bom caráter.

E não falo isso por ser integrante desse ambiente. Embora essa condição me dê melhor credencial para falar sobre ele.

Então, como é que os artistas e diretores de telenovelas e teatro vivem dizendo nos últimos tempos na televisão que o meio deles é agressivo e desumano?

Além de contrapropaganda da profissão, essas declarações repetidas na televisão sugerem uma certa megalomania: e os outros milhões de profissões todos? Não têm o mesmo defeito? Como é que desconsideram assim as outras profissões?

Quase sempre essas distorções analíticas não levam em conta que os defeitos de personalidade não são intrínsecos a determinada classe, mas a toda a humanidade.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008


CONTARDO CALLIGARIS

"Me Larga!" (e me abraça!)

As separações são decididas por dinâmica que pouco tem a ver com os defeitos do outro

ÀS VEZES , milagrosamente, um psicanalista consegue transmitir os resultados de sua experiência clínica do jeito certo: sem simplificar, mas sendo mais cuidadoso com o leitor leigo do que preocupado em impressionar a turma dos colegas.

É o caso do livro de Marcel Rufo, "Me Larga! Separar-se para Crescer", recentemente traduzido em português pela Martins Fontes.

Rufo, 62, francês, terapeuta de crianças e adolescentes, segue passo a passo as peregrinações pelas quais o indivíduo conquista sua autonomia, ou seja, o difícil caminho que leva da fusão inicial com a mãe à independência rebelde do adolescente.

Ao longo do percurso, ele apresenta inúmeras vinhetas clínicas: crianças agressivas, infelizes na escola, com enuresia, pré-adolescentes adotados ou que se imaginam sê-lo, outros que fogem sem parar, jovens que se drogam ou querem acabar com sua vida, assim como pais que largam os filhos cedo demais e outros que não os largam nunca.

Mas "Me Larga!" não é apenas um livro para pais e filhos sobre as dores do crescimento.

A leitura é, para qualquer um, uma ocasião imperdível para refletir um pouco sobre o conflito (que nunca pára de nos assolar) entre nossos sonhos de sossego e nossos anseios de independência -conflito especialmente complicado, aliás, porque ele se repete dentro de cada um dos campos que nele se enfrentam: o amparo da dependência é também o porto seguro que (mesmo remoto e fantasiado) nos dá a força de continuar navegando para o largo, e não há liberdade sem a nostalgia de um lar que nos prenderia.

Como escreve Rufo: "Prender-se, desprender-se, voltar, sair novamente, encontrar, abandonar... Toda a nossa vida segue esse movimento permanente".

E relacionar-se significa encontrar um mágico equilíbrio nesse movimento: "Cada qual precisa do outro para se construir e se conquistar, para se tranqüilizar às vezes, e para compartilhar momentos, idéias e desejos. O outro é precioso na medida em que representa uma abertura para o mundo".

Ou seja: a solução do conflito entre dependência e autonomia nunca é definitiva e é um paradoxo. Como é possível encontrar amarras que nos libertem?

Em suma, o conflito entre nossa necessidade de amparo e apego e, do outro lado, nossa sede de separação e independência é central na constituição de nossa subjetividade e continua crucial durante a vida toda. Sugiro um exemplo.

Em geral, atribuímos tanto os apaixonamentos quantos as separações de nossa vida amorosa ao outro, que se revela, segundo os casos, sublime, incompetente ou sacana.

Ou então, às circunstâncias, facilitadoras ou infelizes. Mas talvez os percalços de nossa vida amorosa sejam decididos por uma luta que se trava dentro de nós e que pouco tem a ver com as qualidades e os defeitos do outro ou com as adversidades do mundo.

Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário (a imagem é de Rufo) e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez. Prova disso?

Primeiro, obviamente, pense nas separações, por assim dizer, "abstratas": aquelas que acontecem em razão de um surto irresistível de independência num dos dois ou em ambos e, inversamente, naquelas que são maneiras de manter o conforto de outro apego: "Gosto de você, mas me largue, porque você me leva para liberdade demais; prefiro ficar aqui no quentinho".

Logo, lendo o livro de Rufo, é fácil reencontrar as modalidades da ruptura amorosa na lista dos percalços das separações pelas quais a criança conquista sua autonomia: separar-se para não ser abandonado, separar-se para crescer e medir o alcance de nossa liberdade, separar-se para testar o outro, para verificar que ele não nos deixará por isso, e por aí vai.

É como se os altos e baixos de nossa vida amorosa fossem, antes de mais nada, a expressão de um conflito entre liberdade e apego que está em nosso âmago e nunca se resolve.

À primeira vista, muitos acharão essa idéia incongruente com sua experiência. Mas, antes de descartá-la, façam o seguinte.

Depois de uma separação, quando os "erros" e as "falhas" do outro se afastaram um pouco na memória e começam a parecer irrelevantes, pergunte-se, por exemplo: "Mas, afinal, por que nós nos separamos?" Na maioria dos casos, a gente não sabe responder.

ccalligari@uol.com.br


21 de fevereiro de 2008
N° 15517 - Nilson Souza


Copiar e colar

Quando aprendi a datilografar, dois ou três séculos atrás, a professora colocava uma grande folha de papel sobre minhas mãos para evitar que eu enxergasse o teclado.

Era quase uma tortura: sem ver as letras, com mingos frágeis e anulares desconectados dos demais dedos, eu tinha que pressionar com força as teclas da máquina de escrever.

Estas impulsionavam hastes metálicas com letrinhas na ponta, que por sua vez pressionavam uma fita de pano molhada de tinta contra o papel preso no rolo do carro móvel, que a gente movimentava com uma alavanca para mudar de linha.

Aquele processo arcaico, ainda hoje utilizado por escribas mais conservadores e em repartições públicas esquecidas no tempo, servia para produzir textos como este que agora digito no computador, sem a necessidade de inutilizar folhas de papel ou apelar para o errorex - que também surgiu muito tempo depois. O computador é uma maravilha.

Só que está dificultando a vida dos estudantes. Pesquisa divulgada esta semana por uma respeitada universidade de São Paulo mostra que os alunos que ficam muito tempo na frente do computador têm notas menores do que aqueles com pouco acesso à máquina.

Motivo: embora permita textos limpos e pesquisas instantâneas, o computador transformou-se também num irresistível instrumento de comunicação interpessoal.

Crianças e adolescentes sentam diante dele para fazer o trabalho escolar, mas logo estão trocando mensagens com os amigos, consultando sites curiosos ou praticando jogos interativos. Sem contar que o trabalho escolar pode ser concluído em alguns segundos, com uma simples operação: control-C, control-V - copiar e colar.

O computador é realmente uma maravilha.

O problema é o seu uso. Se os pais conseguissem fazer como a minha professora de datilografia, encobrindo o que não deve ser visto (ao menos naquele horário sagrado do tema escolar), aposto como as crianças aprenderiam mais.

Não se trata de privar os jovens dos benefícios da tecnologia, mas, sim, de orientá-los com alguma firmeza para o aprendizado.

Em vez de colar um texto da internet, ler o capítulo de um livro e resumi-lo. Leva tempo, pode ser chato, mas alguma coisa fica. Em vez de interromper o trabalho para consultar o Orkut ou dialogar pelo MSN, alguns minutos de isolamento e concentração.

Tortura? Talvez seja mais ou menos como obrigar um adolescente a escrever sem ver o teclado. Foi assim que aprendi a datilografar (e a digitar) com os 10 dedos, rapidamente e sem cometer muitos erros.

Claro que a qualidade do texto é outro capítulo - e esse ainda estou aprendendo. Esforçadamente, sem copiar nem colar.

Weel, após o Eclipse lunar desta madrugada que tenhamos todos, uma excelente quinta-feira, ainda que com sono.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008



19 de fevereiro de 2008
N° 15515 - Liberato Vieira da Cunha


Os livros de capa verde

Cresci numa casa de muitos livros - e eles eram algo mais do que simples peças decorativas.

Minhas mais longínquas lembranças são equipadas de pessoas lendo, e dizem que antes dos três anos eu mesmo fui surpreendido tentando decifrar uma revista, algo desapontado por não ir além das figuras.

Da bem provida biblioteca de meus pais, uma prateleira em especial me dominava a atenção. Era a ocupada por uma longa série de volumes verde-escuros. Já tinha então aprendido a decifrar as lombadas e me enchia de admiração o fato de que em todas elas constava um nome: W.M. Jackson, Inc.

Um dia perguntei que espantoso autor era aquele e logo me esclareceram que aquele era o editor, o que imprimia a larguíssima coleção. O escritor era outro. Seu nome aparecia mais em cima: Machado de Assis.

- Ele é bom? - indaguei.

- Ele é o melhor - me esclareceram.

Apesar da propaganda, foi só na quarta série do ginásio - que era um curso que havia entre o primário e o clássico - que abri pela primeira vez um dos livros verde-escuros. Chamava-se Memórias Póstumas de Brás Cubas, e não só o li como o reli.

E não só o reli como fui atrás de tudo o que havia sobre o criador de Brás e de Virgília, desafio que naquele tempo não se resolvia na internet, mas imergindo em cada enciclopédia ao alcance da mão.

As enciclopédias são breves, cada verbete não te dá mais que umas coordenadas gerais. De modo que resolvi tirar um curso intensivo de Machado de Assis percorrendo toda a sua obra.

É o que venho fazendo desde então.

Perdi a conta de minhas releituras das Memórias. Romances como Dom Casmurro, contos como Missa do Galo ou Uns Braços jamais faltarão em qualquer antologia que algum dia se ouse fazer da literatura universal.

Só não me peçam teorias. Este é o ano do centenário de Machado de Assis e nutridos ensaios dissecarão sua obra.

Para quê?

O Bruxo do Cosme Velho deve ser lido pelas histórias que conta, os personagens que inventa, as tramas que tece.

Pois ele mesmo não suportaria as teses que se engendram a seu respeito nos altos círculos da intelligentsia

Com sol brilhante e uma temperatura elevada, que tenhamos todos uma ótima Terça-feira.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008



Amor: a única força criativa

Um professor universitário levou seus alunos de sociologia às favelas de Baltimore para estudar as histórias de duzentos garotos. Pediu a eles que redigissem uma avaliação sobre o futuro de cada menino.

Em todos os casos, os estudantes escreveram: "Ele não tem chance alguma." Vinte e cinco anos mais tarde, outro professor de sociologia deparou-se com o estudo anterior. Pediu aos seus alunos que acompanhassem o projeto, a fim de ver o que havia acontecido com esses garotos.

Com exceção de vinte deles, que haviam se mudado ou morrido, os estudantes descobriram que 176 dos 180 restantes haviam alcançado uma posição mais bem-sucedida do que a comum como advogados, médicos e homens de negócios.

O professor ficou estarrecido e resolveu continuar o estudo. Felizmente, todos os homens continuavam na mesma área, e ele pôde perguntar a cada um: "A que você atribui o seu sucesso?" Em todos os casos, a resposta veio com sentimento "A uma professora".

A professora ainda estava viva, portanto, ele a procurou, perguntando à senhora idosa, embora ainda ativa, que fórmula mágica havia usado para resgatar esses garotos das favelas para um mundo das conquistas bem sucedidas.

Os olhos da professora faiscaram e seus lábios se abriram num delicado sorriso.

- É realmente muito simples – disse ela. – Eu amava aqueles garotos.

Eric Butterworth

domingo, 17 de fevereiro de 2008


DANUZA LEÃO

Tentando ser feliz

Basta que a filha da faxineira esteja com problemas -o marido a deixou com os três filhos, que a felicidade acaba

DIZEM QUE a felicidade se baseia num tripé: amor, saúde, dinheiro -não necessariamente pela ordem. Mas as coisas não são assim tão simples. Nada é simples.

Digamos que na sua vida pessoal tudo esteja correndo às mil maravilhas. Mas basta que a filha da sua faxineira esteja com problemas -o marido sumiu e a deixou com três filhos, sem dinheiro, ela não pode nem arranjar um emprego porque não tem com quem deixar as crianças-, que sua felicidade acaba. Se não acaba, fica, pelo menos, bem abalada.

A cada vez que ela te atormenta com o aspirador você vê, no seu rosto, os sinais da preocupação. Sabe a razão pela qual ela deixou de sorrir, o olhar ficou triste.

E não dá para ficar indiferente a uma pessoa que você vê todos os dias, nem para pedir para ela passar o vestido com que você vai sair à noite, sobretudo não dá para reclamar se a carne estiver muito salgada.

O que é uma carne salgada, diante de tantos problemas? E na sexta-feira, na hora de pagar pela semana de trabalho, quando você pensa em quanto gastou no cabeleireiro ou numa sandália de que nem precisava, dá para ser feliz? Não, não dá.

E tem seu amigo que está mal de grana, sua tia que está velhinha e de quem você gosta tanto, mas que vê pouco porque o tempo é curto para ler os jornais, fazer Pilates, ir ao cinema, saber dos cartões corporativos do governo, se vai ganhar Hillary ou Obama. E o remorso?

Dá para ser feliz sentindo não só um, mas vários remorsos? Não conheço ninguém que cumpra com todas as coisas que deveria, seja por fraqueza, preguiça, egoísmo, ou apenas porque prefira não pensar.

Não pensar nas tragédias alheias para se proteger e assim poder ser feliz não deixa de ser uma teoria. Mas a vida dos outros -e sobretudo a dos mais próximos- sempre nos diz respeito, e para sermos totalmente felizes seria preciso que todos que nos rodeiam também o fossem.

E se isso acontecesse, não se poderia nunca mais ler os jornais nem ligar a TV nos noticiários. O pior mesmo é quando alguém de quem você gosta muito suspeita estar doente.

Se a intimidade for grande, você vai acompanhar todas as etapas, desde o primeiro médico, que pede vários exames, ao preço de cada um deles -que vão ser pagos com dificuldade e que demoram a ficar prontos.

Depois dos resultados, é preciso ir a pelo menos mais dois outros médicos, para ouvir o diagnóstico: vai ser mesmo preciso operar.

São muitos os sentimentos pelos quais passa quem participa do problema; da preocupação à pena, da solidariedade à raiva. Até raiva, raiva de quem está os fazendo sofrer.

E nos dias que antecedem a cirurgia você não sabe se fala só disso -pois naturalmente é só no que o outro está pensando-, ou se fala bobagens, para distrair.

E evita, de todas as maneiras, dizer "é preciso ter fé", pois seria admitir que a coisa pode ser feia, o que o outro não pode saber que você acha, e nisso não quer pensar.

Chega o dia da cirurgia, e acorda atrapalhada; não consegue fazer nada direito, esperando por um telefonema, por vários telefonemas, para saber como as coisas se passaram.

E quando ouve que foi tudo bem e pensa que já passou, vê que a agonia ainda não acabou: falta o resultado dos exames pós-cirurgia, que só ficarão prontos em sete dias.

Aí você descobre que não está sofrendo só por ela, mas por você mesma e por sua própria vulnerabilidade, coisa na qual nunca havia pensado. E ainda há quem pretenda ser feliz.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Esperei Godot. E ele apareceu

"Eu sei que o caso da Telecom Italia é uma pauleira. Mas alguns fatos precisam ser esclarecidos. O mais urgente é o seguinte: o nome do presidente foi citado nos autos de um tribunal italiano"

Eu sei que o caso da Telecom Italia é uma pauleira. Eu sei que há uma série de interesses empresariais em jogo. Mas alguns fatos precisam ser esclarecidos.

O primeiro e mais urgente é o seguinte: o nome do presidente da República foi citado nos autos de um tribunal italiano. Ninguém pode fazer de conta que isso é uma bobagem.

Acompanhei o inquérito contra a Telecom Italia por dois anos. Esperando Lula. E, como Godot, ele nunca aparecia. Na semana passada, recebi uma cópia de um despacho emitido no finzinho de 2007 pelo Ministério Público italiano.

Na página 33, pode-se ler um trecho do interrogatório de 5 de maio de 2007 de Giuliano Tavaroli, um dos diretores da empresa. Ele declarou:

"Sendo um homem do presidente Lula, (Mauro) Marcelo, depois de assumir o cargo no serviço secreto, nos garantiu seu apoio institucional, uma vez que (Daniel) Dantas era um inimigo do presidente Lula".

Como é que é? Apoio institucional? Lula pode ser inimigo de quem ele quiser. Daniel Dantas que se dane. Mas a suspeita de que isso teria motivado uma oferta de apoio institucional a uma empresa em detrimento de outra precisa ser contrastada. Por mais temerário que seja o acusador.

Aos fatos. Em meados de 2004, o delegado Mauro Marcelo foi nomeado para chefiar a Abin, depois de ter trabalhado como guarda-costas de Lula na campanha eleitoral de 2002. A escolha de seu nome para ocupar o cargo na Abin foi feita pessoalmente pelo presidente.

De acordo com os autos do tribunal italiano, o relacionamento de Mauro Marcelo com a Telecom Italia era de perfeita intimidade. Interrogado sobre o assunto, Fabio Ghioni, especialista em computadores contratado pela empresa, declarou que o chefe da Abin era "fornecedor de Jannone no Brasil, e por este era remunerado". Ghioni referia-se a Angelo Jannone, diretor da Telecom Italia.

O apoio institucional do lulismo à Telecom Italia é mencionado novamente em outra passagem do despacho. Está na página 13. No interrogatório de 19 de abril de 2007, Giuliano Tavaroli foi indagado sobre os 25 milhões de euros pagos pela empresa a Naji Nahas, sem que houvesse, de acordo com o procurador, "a menor evidência documental de um serviço efetivamente prestado".

Tavaroli respondeu: "Naji Nahas era conhecido por suas ligações com os aparatos institucionais, como o ministro da Fazenda brasileiro". Isso mesmo: Antonio Palocci.

Tavaroli relatou também que a mala cheia de dólares a respeito da qual falei duas semanas atrás serviu, em parte, para subornar parlamentares.

O interesse dos procuradores italianos pelo Brasil é meramente incidental. O foco de seu inquérito é a arapongagem da Telecom Italia na própria Itália; o Brasil só entra de passagem.

Se a gente quiser indagar mais sobre o assunto, o jeito é trabalhar. Quem já está fazendo isso é o Ministério Público brasileiro.

O documento em que Godot finalmente aparece está em poder da nossa magistratura. Ele também pode ser consultado por qualquer um na internet: http://www.divshare.com/download/3785247-d05.

Ótimo sábado. Feliz fim de semana.

Ponto de vista: Lya Luft

Falta de educação e velocidade

"Os motoristas americanos e europeus impressionam pela educação. Não por serem bonzinhos ou melhores do que nós, mas porque temem a lei"

Os anjos da morte estão cansados de nos recolher, a nós que nos matamos ou somos assassinados no tráfego das estradas, cidades, esquinas deste país.

Os anjos da morte estão exaustos de pegar restos de vidas botadas fora. Os anjos da morte andam fartos de corpos mutilados e almas atônitas. Os anjos da morte suspiram por todo esse desperdício.

Ilustração Atômica Studio

Não sei se as propagandas que tentam aos poucos aliviar essa tragédia ajudam tanto a preservar vidas quanto as intermináveis, ricas e coloridas propagandas de cerveja ajudam a beber mais e mais e mais, colaborando para uma parte dessa carnificina. Mas sei que estou no limite.

Não apenas porque abro jornais, TV e computador e vejo a mortandade em andamento, mas porque tenho observado as coisas em questão. Recentemente, dirigindo numa auto-estrada, percebi um motorista tentando empurrar para o canteiro central um carro que seguia à minha frente na faixa esquerda, na velocidade adequada ao trajeto.

Chegava provocadoramente perto, pertinho, pertíssimo, quase batia no outro, que se desviava um pouco lutando para manter-se firme no seu trajeto sem despencar.

Logo adiante, pára tudo, um acidente grave. O motorista do carro assediado, um senhor de cabelos brancos, desce, vai até o carro do imbecil agora parado à sua frente, fala, gesticula, numa justa ira.

Depois volta ao carro, em que a família o espera. Recomeça o tráfego, perco os dois de vista. Mas fica em minha memória um motorista boçal tentando fazer um inocente perder o controle do carro. Era inconseqüente por natureza, era um agressivo perigoso, ou estaria simplesmente alcoolizado às 8 da manhã?

Outro dia observei na televisão um motorista, apanhado a quase 200 por hora, sendo entrevistado ainda dentro do carro.

Fiquei impressionada com seu sorriso idiota, o arzinho arrogante, o jeito desafiador com que encarou a câmera num silêncio ofendido, quando perguntado sobre as razões da sua insanidade.

Todo o seu ar era de quem estava coberto de razão: a lei e a segurança dos outros e a dele próprio nada valiam diante da sua onipotência.

Atenção: os jovens são – em geral, mas não sempre – mais arrojados, mais imprudentes, têm menos experiência na direção. Portanto, são mais inclinados a acidentes, bobos ou fatais, em que a gente mata e morre.

Mas há um número impressionante de adultos – mais homens do que mulheres, diga-se de passagem, porque talvez sejam biologicamente mais agressivos – cometendo loucuras ao dirigir, avançando o sinal, quase empurrando o veículo da frente com seu pára-choque, não cedendo passagem, ultrapassando em locais absurdos sem a menor segurança, bebendo antes de dirigir, enfim, usando o carro como um punhal hostil ou um falo frustrado.

Cada um se porta como quer – ou como consegue. Isso vem do caráter inato, combinado com a educação recebida em casa. Quando esse comportamento ultrapassa o convívio cotidiano e pode mutilar pais de família, filhos e filhas amados, amigos preciosos, ou seja lá quem for, então é preciso instaurar leis férreas e punições comparáveis.

Que não permitam escapadelas nem facilitem cometer a infração com branda cobrança. Que não admitam desculpas e subterfúgios, não premiem o erro, não pequem por uma criminosa omissão.

Precisamos em quase tudo de autoridade e respeito, para que haja uma reforma generalizada, passando da desordem e do caos a algum tipo de segurança e bem-estar. Os motoristas americanos e europeus impressionam pela educação.

Não por serem bonzinhos ou melhores do que nós, mas porque temem a lei, a punição, a cassação da carteira, a prisão, por coisas que aqui entre nós são consideradas apenas "normais", meros detalhes, "todo mundo faz assim".

Autoridade justa, mas muito rigorosa, é o que talvez nos deixe mais lúcidos e mais bem-educados: em casa, na escola, na rua, na estrada, no bar, no clube, dentro do nosso carro.

E os fatigados anjos da morte poderão, se não entrar em férias, ao menos relaxar um pouco.

Lya Luft é escritora

15/02/2008 - 23:21 | Edição nº 509

A internet em pessoa

Três mil internautas acostumados a se ver só pela web se encontram em carne e osso. A festa digital teve desde aulas de como fazer foguetes até shows de DJs

MARCELO ZORZANELLI

FESTA NA BIENAL



1. Rapaz se distrai usando a conexão de alta velocidade para conversar pela internet 2. Grupo de jogadores comemora uma vitória durante um campeonato de videogame 3. O ministro da Cultura, Gilberto Gil (ao lado de Marcelo Branco, diretor do evento), cumprimenta o pingüim, mascote do sistema operacional Linux

4. Um campuseiro manda um recado para casa 5. Um gabinete de PC em forma de caveira: nem dá para imaginar que há um computador ali dentro 6. Esfera giratória ligada a um visor tridimensional. Os sensores da esfera enviam sinais que permitem mover-se no ambiente virtual

Sob um calor que a arquitetura calcária de Oscar Niemeyer amplifica como nenhuma outra, aconteceu na semana passada a primeira Campus Party brasileira.

O evento é importado da Espanha, onde se consolidou como a meca dos amantes da tecnologia. No Brasil, ocupou os três andares da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Ali estiveram 3 mil “campuseiros” – aficionados de tecnologia que pagaram R$ 100 para passar sete dias acessando a internet a 5 gigabytes por segundo (625 vezes melhor que a conexão mais veloz disponível no país) e, se assim desejassem, dormindo em barracas. Mas não só isso.

Gente entre 12 e 50 anos discutia tendências tecnológicas, apresentava trabalhos acadêmicos e desenvolvia novas habilidades em palestras e oficinas. Cada um levou o próprio computador.

As áreas de interesse representadas na Campus Party foram muitas: astronomia, games, música, modificação de computadores, construção de robôs, redação de blogs, desenvolvimento de foguetes... A lista parece não acabar. Nem assim, o cardápio de atividades agradou a todos.

“Fiquei frustrado porque as palestras foram feitas para iniciantes”, disse o campuseiro Lázaro Mariano. “O que está sendo mais útil é a troca de arquivos de músicas, filmes e games”, disse Felipe Navas, que acampava perto de Lázaro.

“É como se estivéssemos dentro de uma rede torrent de compartilhamento de arquivos.” Este foi, a princípio, o maior desafio da Campus Party: fazer um evento que fosse mais que uma lan house gigante.

A solução começa a aparecer quando se acompanha Marcelo Branco, o diretor-geral da Campus Party. Rouco de tanto dar entrevistas, ele tentava raciocinar enquanto passeava ao longo dos balcões onde centenas de adolescentes batucavam os teclados de seus computadores multicoloridos.

Branco é um dos mais atuantes defensores do uso do sistema operacional Linux em detrimento de sistemas pagos, como o Windows, da Microsoft. Sua presença na Bienal guardava certa semelhança com a filosofia tecnológica que ele prega, a do código aberto.

Qualquer blogueiro que se aproximava conseguia trocar algumas palavras, e geralmente deixava alguma sugestão. Marcelo ouvia com atenção, processava a informação e tentava responder. “Estamos administrando o caos”, disse.

Marcada por um discurso de abertura em que o ministro da Cultura, Gilberto Gil, afirmou que é preciso “banda-alargar” o Brasil, a Campus Party pareceu obstinada em cumprir seu objetivo de não ser apenas um ponto de acesso à internet rápida.

“Conversei com as pessoas na versão espanhola e reparei que a maioria só estava lá por causa da conexão”, diz Alexandre Youssef, coordenador dos projetos de música da Campus Party Brasil. “Aqui, vejo as pessoas participando das palestras e trocando conteúdo.” A forma cooperativa de tratar o trabalho foi uma das pautas mais exploradas na Bienal.

Até os DJs que apresentaram suas músicas projetavam a imagem da tela dos computadores para que todos soubessem o que eles estavam fazendo. Juliano Spyer, historiador da Universidade de São Paulo, deu uma palestra para a tribo dos blogueiros sobre o novo cenário da internet.

“A Wikipédia é um dos melhores exemplos de colaboração: cada pessoa participa quando quer, compartilhando informação para formar verbetes que se interligam para criar uma enciclopédia.”

Segundo ele, na nova internet, os indivíduos não têm uma tarefa definida e os processos estão em eterno aprimoramento. Spyer, que tem dez anos de experiência em projetos de comunidades on-line, disse que na Campus Party “ninguém é audiência, todos são participantes.”

CARA A CARA



Grupo de jovens que se conheceram pela internet, mas só se viram pessoalmente na Campus Party: “Alguns meses antes, a gente começou a trocar mensagens”

A tendência mais radical no campo das discussões sobre colaboração interativa é o BarCamp. Segundo André Avorio, auto-intitulado evangelista de BarCamp na Campus Party, este é um modelo de “desconferência”.

É o que ele chama de discussão horizontal, porque não há palestrantes em cátedras – qualquer um pode propor um assunto e opinar sobre o que é dito.

E se virar bagunça? “É o que todos me perguntam”, disse André. “O que organiza tudo é uma página colaborativa no estilo wiki (em que as pessoas podem modificar o que outras escreveram). Ali fica a agenda das discussões e um registro dos progressos.”

Um grupo de campuseiros levou mais longe a tendência de fomentar colaborações. Imprimiu camisetas com perguntas como “Os jogos eletrônicos são nocivos à saúde?”.

Na terça-feira, as camisetas diziam: “Para que serve um nerd?”. O administrador do site que criou a campanha, Kleberson Bezerra, disse que os nerds simplesmente “fazem o mundo girar”.

Preocupado em atualizar seu site, chamado Jornal de Debates, Kleberson mal tirou os olhos da tela para dizer: “E somos normais. Os nerds estudam muito, mas também vão para as baladas e ficam com as mulheres”.

Uma boa notícia para os neonerds, portanto, é que a participação feminina na Campus Party brasileira superou as taxas européias.

Na Espanha, elas eram 2%. No Brasil, 22%. Rola namoro? “Sim, e como”, disse Camila Frasquetti, uma campuseira que travou contato no Orkut, antes do evento, com pessoas que iriam à Campus Party.

O menu de lasanha de microondas e refrigerante quente não ajuda a criar o clima de romantismo (vinho está fora de questão, já que bebidas alcoólicas não são permitidas na Campus Party).

Mas a afinidade está garantida: “Aqui é o único lugar onde nossas piadas são entendidas”, diz Camila.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008



CRIME PERFEITO

Continuo a minha luta napoleônica para desvendar os paradoxos do sistema universitário público brasileiro.

Trata-se do crime perfeito. Os mais ricos ficam com a maioria das vagas dos cursos mais valorizados.

Eles têm o álibi ideal: o mérito. Mas por que eles são os melhores e não outros? A resposta é uma auto-absolvição automática das elites majoritariamente brancas: nenhum indivíduo isolado pode ser penalizado por acontecimentos históricos.

A culpa coletiva e estrutural do passado é rechaçada em nome dos direitos individuais do presente. Os benefícios são mantidos. No paradoxo do crime perfeito a sociedade, incluindo as vítimas, seria beneficiada pela meritocracia, de valor universal e indiscutível.

Nesse crime perfeito, os corpos desaparecem por proliferação. É o efeito denunciado por Jean Baudrillard.

São tantos os alijados que eles não têm rosto nem representam um problema particular a exemplo de um indivíduo específico que tenha perdido a sua vaga numa universidade em função de uma política de cotas.

Quando os corpos permanecem vivos e se multiplicam, não há cadáver. Por extensão, não há crime. A esquerda é cúmplice desse crime perfeito.

Por princípio, ela não pode defender que os ricos sejam obrigados a pagar pelos seus estudos, pois teme com isso favorecer a privatização das universidades públicas. Limita-se a pregar a universalização do ensino público, algo que a elite dominante aceita e empurra para o futuro.

É o cobertor curto: se os ricos tiverem de pagar, saem da universidade pública, que corre o risco de se tornar uma favela. Se ficam, não pagam.

O paradoxo da esquerda é esperar que a elite altere uma situação que não a incomoda e que lhe traria prejuízos: arcar com a conta inteira.

A perfeição desse crime é tamanha que a esquerda acaba por ajudar a sustentar cursos de universidade pública para ricos, enquanto a universalização não vem, com base num critério, o mérito, pelo qual o privilégio se transforma em direito adquirido. A conivência da esquerda vem de uma chantagem.

Sigamos novamente esta pista de um sistema em que os ricos paguem e os pobres não. O contra-argumento imediato é de que se instalaria uma universidade para ricos e outra para pobres, como acontece em boa parte do ensino básico.

Por que não se poderá manter um ensino público para pobres do mesmo nível do ensino privado ou público para ricos? Porque sem o interesse dos ricos, cujo poder de pressão e sedução é maior, os governos não teriam como bancar as instituições dos pobres.

Sem charme nem recursos, elas seriam desvalorizadas no mercado de trabalho. Golpe fatal. Se os impostos não eliminam pedágios, não seria o caso de impor taxas gradativas nas universidades públicas?

Os ricos adoram dizer que não existe almoço gratuito. Salvo nas universidades públicas, onde estudam sem pagar nos cursos mais procurados.

No crime perfeito, não há culpado, a vítima teria vantagens, o cadáver sai andando, o acusador sente-se na obrigação estratégica de não reclamar certas penalidades e a reprodução infinita do ato é considerada uma maneira de evitar um mal maior. Tudo se justifica.

Qualquer tentativa das vítimas de virar o jogo resulta num crime imperfeito, passível de condenação imediata. No crime perfeito, o combate à desigualdade concreta é um atentado à igualdade formal. O refém é incitado a contrair a síndrome de Estocolmo.

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima sexta-feira, excelente fim de semana e um sensacional Planeta Atlântida para todo mundo.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008



14 de fevereiro de 2008
N° 15510 - Nilson Souza


Primeira leitura

Alguns amigos, e até mesmo um incauto editor, já me sugeriram que passasse para o formato livro a seleção destas crônicas semanais. Pode ser até que venha a mudar de idéia, mas até hoje não me senti tentado a fazê-lo.

E não é por falta de vaidade - seria muita pretensão de minha parte achar que estou livre deste sentimento tão humano e tão comum entre os escribas de todos os calibres. O que me impede de cometer tal descalabro é uma conjugação de autocrítica com timidez e medo de trapacear.

Gosto de escrever, mas nem sempre gosto do que escrevo. E certamente me sentiria um fraudador se colocasse à venda, como novidade, uma edição de textos já publicados neste espaço.

Além disso, teria que assinar autógrafos. Já fiz isso uma vez, numa obra conjunta, e morri de vergonha. Não fui acometido em momento algum pela síndrome dos escritores famosos, que referem seguidamente o sintomático branco cerebral na hora de lembrar o nome de amigos e conhecidos.

No meu caso, o pânico era tão grande, que eu colocava o primeiro nome que me vinha à cabeça. Porém, como devia estar tremendo, a dedicatória ficava tão ilegível que ninguém voltou para reclamar.

O mais incrível dessa história é que o livro que escrevi na ocasião - em co-autoria, repito - acabou sendo o mais vendido da Feira naquele ano, levando o diabinho da vaidade a estufar o peito dentro do meu. Mas passou rápido como um calafrio.

Meu senso de realidade se encarregou do exorcismo. Desde então, só voltei a freqüentar filas de autógrafos pelo lado mais confortável, o de quem busca a firma alheia e tem tranqüilidade para bater papo com os companheiros de espera.

Ainda assim, aquele fatídico livro me proporcionou uma gratificação inesperada. Meses depois do seu lançamento, um senhor desconhecido me procurou no meu local de trabalho, apresentou-se, pediu que eu fizesse uma dedicatória para o filho de 11 anos e confessou:

- Esse foi o primeiro livro que ele leu do início ao fim.

Naquele instante, me senti uma espécie de J. K. Rowling, a autora de Harry Potter, que promoveu o milagre de levar milhões de pré-adolescentes à leitura obsessiva dos seus calhamaços de 600 páginas. Eu mesmo - confesso - li quatro da série e ainda pretendo ler os demais.

Então fica combinado assim: no dia em que eu tiver uma inspiração semelhante e me sentir em condições de escrever uma obra capaz de resgatar jovens do feitiço dementador da internet, prometo que supero todas as resistências internas e me coloco voluntariamente à disposição dos caçadores de autógrafos. Que modéstia, hein?

Com sol brilhante e muita gente bonita na praia, que tenhamos todos uma excelente quinta-feira.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008



12 de fevereiro de 2008
| N° 15508 - Liberato Vieira da Cunha


O mundo não vai desabar por isso

O instante decisivo de tua vida chega quando percebes que podes fazer dela tudo o que quiseres. É quando descobres, de repente, que podes te tornar uma médica famosa ou uma advogada eminente; uma engenheira respeitada ou uma arquiteta audaciosa; uma professora admirada ou uma economista acatada.

Todos os caminhos se abrem diante de ti. É tua a embriagadora liberdade da escolha. Podes ser também uma poeta, uma pintora, uma seresteira, uma romancista, uma pianista, uma viajora.

É então que entra em cena, sem ser convidada, essa palavra que atende por destino. Por circunstâncias variadas, a médica, a advogada, a engenheira, a arquiteta, a professora jamais conquistam seus títulos e seus canudos. Já a poeta, a pintora, a seresteira, a romancista, a pianista, a viajora, ofícios para os quais não se requer diploma, naufragam em profissões dispersas e indesejadas.

Por que te falo tudo isso?

Talvez por haveres me contado que estás indecisa entre manhãs, tardes e noites às voltas com livros e cursinhos e o teste de múltipla escolha de tuas inclinações mais íntimas.

Pois tu, neste momento, és a senhora de teus caminhos. O que decidires agora condicionará de algum modo tua jornada sobre a Terra.

Mas preferência não é renúncia.

Conheço pelo menos um médico que é excelente poeta; um engenheiro que é aplicado pintor; um economista que é imbatível no violão.

Pois a vida não é exclusão; é soma.

Vamos supor que elejas a arquitetura e, em meio a um projeto, te surpreendas sonhando com um concerto.

Vamos dizer que optes pelo giz e pelo quadro-negro e, em meio a um teorema, te pegues devaneando com um soneto.

Vamos fingir que te fixes num tribunal e, em meio a uma sentença, embarques numa viagem.

O mundo não vai desabar por isso.

O mundo só vai desabar se não seguires o que manda o teu coração.

Uma ótima terça-feira, ainda que com muita chuva e promessa de temporais por aqui.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008


MOACYR SCLIAR

Lágrimas da cebola & outras lágrimas

Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas

Cientistas da Nova Zelândia e do Japão criaram uma cebola "antilágrimas". Eles anularam, no alimento, a atuação de um gene responsável pela gênese da enzima que causa este efeito.

Um dos diretores da pesquisa, Colin Eady, disse que a descoberta pode acabar com um dos maiores "problemas" da cozinha: o fato de que cortar uma simples cebola nos faz chorar. Folha Online, 1º de fevereiro de 2008.

DE UMA COISA Aracy sempre teve certeza: cozinha e tristeza governavam sua vida. À cozinha estava destinada desde muito criança: de família pobre, não conseguiu completar os estudos.

A mãe, doente, não podia tomar conta da casa, e o pai decidiu que ela, a filha mais velha, assumiria esta função.

E aí era aquela rotina: acordar às cinco da manhã, preparar o café para o pai e os irmãos, antes que eles saíssem para o trabalho na roça, depois limpar a casa, lavar a roupa, dar comida para a mãe.
À noite estava tão cansada que, depois de lavar os pratos do jantar, caía na cama direto.

Será que minha vida vai ser só isso, perguntava-se, angustiada. Temia que sim: moça pobre, feia, sequer sonhava com um namorado, mesmo porque nunca tinha tempo para namorar. E quando pensava no triste futuro que a esperava tinha vontade de chorar.

Só que não poderia chorar. O pai, os irmãos não admitiriam isso, essa demonstração de fraqueza.

Da única vez em que ela prorrompeu em prantos, enquanto servia o jantar, eles ficaram irritados: o que é isso, Aracy, chorar não adianta nada, chorar não melhora as coisas, faz como a gente e agüenta firme. Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas.

Cebola não faltava no sítio: o pai e os irmãos gostavam muito, tinham até uma pequena plantação do vegetal. De modo que, quando ela se sentia triste, tudo o que tinha a fazer era preparar uma salada de cebolas.

As lágrimas corriam-lhe livremente pelo rosto, mas não se preocupava sequer em enxugá-las; se o pai ou um irmão lhe perguntava a respeito, tudo o que tinha de fazer era incriminar a cebola: essa coisa faz a gente chorar.

O tempo passou. Os pais faleceram, os irmãos seguiram cada qual o seu caminho e Aracy acabou casando com o carteiro da região. Era um bom homem, muito gentil; viviam bem e tiveram três filhos, mas a vontade de chorar continuava perseguindo Aracy.

Era como se a tristeza a tivesse impregnado, passando a fazer parte do seu modo de ser. O marido não se irritava por vê-la chorando; mas ficava tão triste, e Aracy gostava tanto dele, que logo voltou às cebolas.

O marido e os filhos nem gostavam muito de cebola, mas comiam para agradar à mãe. Afinal, se ela derramava copiosas lágrimas preparando a salada, eles tinham de mostrar que o sacrifício valia a pena.

Recentemente Aracy ficou sabendo que cientistas -esses cientistas, sempre inventando coisas- haviam descoberto uma cebola que não faz chorar. E esta notícia a deixou triste, tão triste que teve de correr para a cozinha e descascar uma cebola (daquelas antigas e boas cebolas) para chorar um pouco.

Mas a pergunta agora não sai de sua cabeça: como chorar quando as cebolas não provocarem mais lágrimas?

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

sábado, 9 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Psiu. Recebeu Marcos Valério?

"Há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha:
a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Valério na Granja do
Torto. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo"

Ninguém perguntou diretamente a Lula se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Eu pergunto:

– Psiu. Recebeu Marcos Valério na Granja do Torto?

Duas semanas atrás, Delúbio Soares foi interrogado. O defensor de Marcos Valério encaminhou-lhe algumas perguntas. Numa delas, ele insinuou que seu cliente teria acompanhado Delúbio Soares à Granja do Torto, para encontrar-se com Lula.

De acordo com o Ministério Público, isso só pode ser interpretado como um recado de Marcos Valério à turminha do PT. E o recado é o seguinte: cuidado, porque eu posso entregar o presidente da República.

– Psiu. Como foi o encontro com Delúbio Soares e Marcos Valério na Granja do Torto?

O assunto já ficou caduco. Os mensaleiros fazem parte do passado. Agora a gente quer ser informado sobre as compras na padaria Cirandinha pagas com o Ourocard presidencial, um caso que promete animar a segunda metade do mandato lulista, assim como os mensaleiros animaram a primeira.

Entretanto, há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha: a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Isso significa também que ninguém poderia saber se ele está sendo chantageado ou achacado por causa desse encontro.

A mesma nebulosidade cerca os gastos do Palácio do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo. A rigor, nada impediria que os membros do governo tivessem sacado dinheiro vivo para financiar atividades da campanha eleitoral, inclusive o dossiê dos sanguessugas.

– Psiu. Psiu. PSIU. Como é o pastel da padaria Cirandinha?

Lula está perto da aposentadoria. Eu já consigo imaginá-lo daqui a alguns anos, em sua cobertura no ABC paulista, num dia qualquer. Acorda. Liga a TV. Desliga a TV. Chega a pedicure. Come dois pratos de estrogonofe.

Demite a empregada doméstica. Desmonta o aparelho de ar condicionado. É incapaz de remontá-lo. Dá os retoques finais em seu tratado sobre o atomismo de Demócrito. Compra uma grelha antiaderente por telefone. Come dois pratos de nhoque.

Mergulha de trampolim em sua piscina cheia de moedinhas. Demite o motorista. Chega Delúbio Soares. Despede-se de Delúbio Soares. Olha o que acontece nos apartamentos vizinhos com um telescópio. Dorme no sofá.

Apesar de Lula estar chegando ao fim, ainda dá para transformar a última fase de seu mandato em algo proveitoso. Se a imprensa o atazanar e se o Ministério Público perseguir os abusos de seu governo, talvez seu sucessor seja um tantinho mais contido.

É uma hipótese remota, mas é uma hipótese. Lula está perto da aposentadoria. E eu estou perto de me aposentar dele. Quando tudo acabar, quero comprar uma grelha antiaderente por telefone.


Diogo Mainardi

Psiu. Recebeu Marcos Valério?

"Há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha:
a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Valério na Granja do
Torto. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo"

Ninguém perguntou diretamente a Lula se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Eu pergunto:

– Psiu. Recebeu Marcos Valério na Granja do Torto?

Duas semanas atrás, Delúbio Soares foi interrogado. O defensor de Marcos Valério encaminhou-lhe algumas perguntas. Numa delas, ele insinuou que seu cliente teria acompanhado Delúbio Soares à Granja do Torto, para encontrar-se com Lula.

De acordo com o Ministério Público, isso só pode ser interpretado como um recado de Marcos Valério à turminha do PT. E o recado é o seguinte: cuidado, porque eu posso entregar o presidente da República.

– Psiu. Como foi o encontro com Delúbio Soares e Marcos Valério na Granja do Torto?

O assunto já ficou caduco. Os mensaleiros fazem parte do passado. Agora a gente quer ser informado sobre as compras na padaria Cirandinha pagas com o Ourocard presidencial, um caso que promete animar a segunda metade do mandato lulista, assim como os mensaleiros animaram a primeira.

Entretanto, há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha: a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Isso significa também que ninguém poderia saber se ele está sendo chantageado ou achacado por causa desse encontro.

A mesma nebulosidade cerca os gastos do Palácio do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo. A rigor, nada impediria que os membros do governo tivessem sacado dinheiro vivo para financiar atividades da campanha eleitoral, inclusive o dossiê dos sanguessugas.

– Psiu. Psiu. PSIU. Como é o pastel da padaria Cirandinha?

Lula está perto da aposentadoria. Eu já consigo imaginá-lo daqui a alguns anos, em sua cobertura no ABC paulista, num dia qualquer. Acorda. Liga a TV. Desliga a TV. Chega a pedicure. Come dois pratos de estrogonofe.

Demite a empregada doméstica. Desmonta o aparelho de ar condicionado. É incapaz de remontá-lo. Dá os retoques finais em seu tratado sobre o atomismo de Demócrito. Compra uma grelha antiaderente por telefone. Come dois pratos de nhoque.

Mergulha de trampolim em sua piscina cheia de moedinhas. Demite o motorista. Chega Delúbio Soares. Despede-se de Delúbio Soares. Olha o que acontece nos apartamentos vizinhos com um telescópio. Dorme no sofá.

Apesar de Lula estar chegando ao fim, ainda dá para transformar a última fase de seu mandato em algo proveitoso. Se a imprensa o atazanar e se o Ministério Público perseguir os abusos de seu governo, talvez seu sucessor seja um tantinho mais contido.

É uma hipótese remota, mas é uma hipótese. Lula está perto da aposentadoria. E eu estou perto de me aposentar dele. Quando tudo acabar, quero comprar uma grelha antiaderente por telefone.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

Salário de professor

"A experiência dos estados mais bem-sucedidos mostra que consertar a educação requer muito mais do que jogar dinheiro no sistema"

Segundo afirmativa corrente, os professores da educação básica ganham pouco, por isso a educação é ruim. Como tenho a infeliz sina de acreditar na ciência, para mim isso é assunto de contar e medir.

Ganhar pouco ou muito é uma questão relativa (como se viu pelas discussões sobre salários de deputados e juízes). Portanto, só tem sentido a comparação com categorias equivalentes. Com Gustavo Ioschpe, fiz uma revisão de duas pesquisas meticulosas, cotejando o salário dos professores com o de outros grupos profissionais na América Latina.

Os resultados colidem com os mitos. Em confronto com pessoas de educação equivalente, os professores não ganham menos.

Calculando-se os salários-hora, aumenta a superioridade salarial dos mestres, inclusive dos brasileiros. Ou seja, não se pode dizer que os professores ganham mal, considerando a remuneração de profissionais com igual escolaridade.

Há significativas variações, de estado para estado, sendo alguns professores realmente mal pagos. Mas, como a educação é ruim na média, faz sentido comparar salários de professores, também na média.

Atômica Studio

Outro estudo interessante nos é dado por uma pesquisa recente de Samuel Pessoa, na qual o autor confronta os salários do sistema privado com os do sistema público.

Em contraste com as conversas de botequim, em média os salários do setor privado são ligeiramente inferiores, apesar da ampla superioridade no desempenho dos seus alunos. Mais um abalo sísmico nos castelos da imaginação.

Outra maneira de ver o assunto é perguntar se a salários maiores corresponde um ensino de qualidade superior. Filosofar não resolve. Faz mais sentido calcular os coeficientes de correlação.

No caso, esses números medem a probabilidade de que salários mais altos dos professores ocorram nos sistemas estaduais com melhor educação – medida por um índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) mais elevado.

Foram tomadas várias definições de salário: do ensino médio, do fundamental, salário-hora, com e sem gratificação e, também, o orçamento estadual para a educação (per capita).

Os resultados são sempre os mesmos, quaisquer que sejam as definições. Não há nenhuma associação entre salário alto e educação boa.

Os estados com desempenho superior no ensino tanto podem pagar bem como mal. Por exemplo, Alagoas e Amazonas pagam muito e têm desempenho fraco. Minas e Santa Catarina pagam pouco e estão no topo da lista do Ideb.

Só há uma conclusão possível da análise de tais números: a má qualidade do nosso ensino não pode ser explicada pelos salários dos professores. Não se trata de metafísica nem de imponderáveis.

Quem discordar dessa afirmativa que trate de demonstrar que os números estão errados. Mas, remexendo outros números, podemos encontrar algumas pistas intrigantes.

Pesquisa recente indicou que 80% dos professores da rede pública estavam insatisfeitos e com sua auto-estima chamuscada. Já em uma pesquisa com escolas privadas de todo o Brasil, verifiquei que 80% dos professores estavam satisfeitos.

Ou seja, com níveis salariais parecidos, as escolas privadas – não apenas as de elite – atraem melhores professores e os mantêm contentes. Não há dados confiáveis, mas parece que os professores estão também contentes nas públicas bem lideradas.

Se essas idéias fazem sentido, os sistemas públicos ganhariam em qualidade se conseguissem criar um ambiente mais positivo e estimulante para os seus professores. Como a escola tem a cara do diretor, a sua escolha irresponsável arruína o ensino. Onde isso ocorre, os professores se sentem desvalorizados e manipulados pela burocracia.

Os mais graves pepinos estão no clientelismo do governo local. A politicagem passa na frente das preocupações com a qualidade. A carreira do magistério é leniente com malandros e incompetentes. É a "incompetência ignorada, a competência não reconhecida".

No fim das contas, a experiência dos estados mais bem-sucedidos mostra que consertar a educação requer muito mais do que jogar dinheiro no sistema.

Claudio de Moura Castro é economista - (Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br)

08/02/2008 - 20:14 | Edição nº 508

Um atirador dentro da lei

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra

POLÊMICA
O promotor Thales, entre seus advogados. O caso é delicado e divide o meio jurídico

Há duas maneiras de matar alguém e não ir para a cadeia: quando fica comprovada a legítima defesa ou quando a Justiça falha. Se o réu confesso é promotor, conta com algumas benesses, como fórum especial, porte de arma e salário integral. Pelo menos enquanto não for condenado. É o caso de Thales Ferri Schoedl, de 29 anos.

O jovem promotor admite ter matado a tiros o jogador de basquete Diego Modanez, de 20 anos, no balneário Riviera de São Lourenço, em 2004.

Mas sempre alegou ter disparado 11 tiros em legítima defesa. Como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE), a função de Thales é fiscalizar o cumprimento das leis. Seu cargo permite que ele ande armado, mesmo em momentos de lazer.

Os tiros disparados por Thales teriam se diluído no cenário da violência entre jovens caso ele tivesse outra profissão. Por ser promotor, Thales colocou em jogo a imagem pública da Justiça brasileira. Se Thales for inocentado, seria por “corporativismo”? Se for condenado, seria em decorrência do clamor popular contra o corporativismo na Justiça?

O destino de Thales tornou-se mais róseo na tarde de quarta-feira 29 de agosto de 2007, em São Paulo. O jogo virou a seu favor. Foi quando o MPE decidiu que ele seria efetivado no cargo, mesmo após o crime. Quando matou Diego, Thales cumpria o “estágio probatório” – período de dois anos em que promotores iniciantes são avaliados.

Ao fim do estágio, em decisão apertada, com 16 votos a favor e 15 contra, o Ministério Público decidiu estabilizar o promotor em seus quadros. Foram invalidados dois pareceres negativos, do Conselho Superior do Ministério Público, que pediam sua exoneração.

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra
A partir da decisão de agosto do ano passado, Thales passaria a dormir mais tranqüilamente. Ele já não teria de enfrentar o júri popular de Bertioga, município do litoral paulista onde fica o balneário Riviera de São Lourenço.

Ele voltaria a trabalhar, a receber um salário de R$ 10.500 (corrigidos em janeiro para R$ 18.009,75) e a portar uma arma. Quando um promotor comete um crime, ele é julgado num foro especial do Tribunal de Justiça, formado pelos 25 desembargadores mais experientes do Estado. Quando matou, Thales ainda não tinha a certeza desse benefício. Passou automaticamente a ter.

Na tarde em que Thales foi efetivado, faixas com as frases “Justiça para o crime da Riviera” e “Pela expulsão do promotor” eram exibidas em frente ao prédio do Ministério Público de São Paulo.

“Pena que eu não vim com nariz de palhaço”, disse Sônia, mãe de Diego Modanez ao saber da vitória de Thales. “Estão colocando a arma de volta na mão dele para tirar a vida de outros filhos. É um absurdo”, disse Fábio Pira, pai do rapaz assassinado.

A decisão, polêmica, deu início a um novo debate no meio jurídico. “Muitos promotores em estágio probatório já perderam o cargo por problemas menores”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.

Ele cita o caso de uma mulher que deixou de ser efetivada apenas por ter-se divorciado durante esse período. Outro suposto desvio de conduta que impediu a efetivação na promotoria foi um atentado leve ao pudor: o candidato foi flagrado nadando nu. “Thales foi armado à praia, e isso já é motivo suficiente. Acho que foi uma decisão equivocada”, afirma Serrano.

REVOLTA
Os pais de Diego, Sônia e Fábio, hoje vivem em São Carlos, São Paulo, e não aceitam que Thales esteja impune

O procurador-geral do Ministério Público de São Paulo, Rodrigo Pinho, já havia declarado que Thales não tinha condições de seguir na carreira.

Pinho teve de se retratar perante os colegas por ter sugerido que houve corporativismo na decisão de manter Thales no MPE. Procurado pela reportagem de ÉPOCA, o procurador-geral disse que não fala sobre o caso.

Depois de efetivar Thales, o MPE decidiu que ele assumiria a posição de segundo promotor na comarca de Jales, uma cidade de 40 mil habitantes a 585 quilômetros da capital paulista. Só precisava comparecer ao fórum da pequena cidade e começar a trabalhar. Mas isso nunca aconteceu. Até hoje ele não assumiu o posto que lhe fora designado.

A notícia de que Thales Ferri Schoedl substituiria o promotor Herivelto de Almeida espalhou-se por Jales com prodigiosa velocidade. Quando alguém se lembrou de que o pai de Diego Modanez, Fábio Pira, havia jogado basquete pelo time da cidade, entre 1994 e 1995, um sentimento de indignação tomou conta das ruas.

As três rádios davam a notícia sem parar. Elas convocavam os habitantes a firmar um abaixo-assinado repudiando a nomeação do promotor. Moema Passos da Silva, uma aposentada de 72 anos, foi uma das primeiras a articular a reação.

Em pouco tempo, centenas de moradores se dirigiram à Praça dos Jacarés, ponto de encontro da cidade, para assinar o documento. O texto de quatro parágrafos termina assim: “A presença de Thales causará um sentimento de desconforto e intranqüilidade aos cidadãos e famílias de bem”.

Além de Moema, que apareceu em rede nacional de TV como guardiã do abaixo-assinado, o ex-vereador Carlos Cardoso ajudou a espalhar o texto. Cardosão, como é conhecido, tornou-se próximo da família de Diego porque seu filho morou com os Modanez durante seis meses enquanto jogava basquete com Diego. “Não vamos aceitar calados.”

Embora imbuídos de uma atitude legítima, Cardosão e Moema encontraram resistência. Um dos juristas da cidade teria dito ao ex-vereador: “Deixa quieto. O cara vem para trabalhar”. Ressabiado, Cardosão ligou para o filho, que é advogado. “Protestar é um direito da população”, disse o rapaz. Anos antes, ele havia jogado basquete com Diego.

No dia 31 de agosto de 2007, o governador José Serra esteve em Jales para inaugurar uma faculdade de Tecnologia. Era o auge da polêmica, e o governador emitiu sua opinião em público: “Fiquei profundamente triste com essa decisão (da Justiça, de enviar o promotor a Jales). Quero dizer que sou solidário com a indignação da população de Jales a respeito desse assunto”.

A população de Jales, São Paulo, se mobilizou e impediu a ida do promotor para a cidade onde a vítima viveu com os pais
Aos 26 anos, tudo parecia dar certo para Thales Ferri Schoedl. Em um concurso difícil, desbancara mais de 8 mil candidatos para conseguir a vaga de promotor de justiça. Tinha uma namorada bonita e ganhava bem. Seus superiores avaliavam seu trabalho como bom ou ótimo.

Mas ele temia represálias porque aceitara processos polêmicos que envolviam grupos de extermínio e policiais militares. Por isso, fez cursos de manuseio de armas e passou a carregar uma pistola calibre 38. No dia em que sua vida mudou para sempre, Thales não foi trabalhar.

Dirigiu por várias horas, de Iguape, no litoral sul de São Paulo, onde cumpria o estágio probatório, até a Riviera de São Lourenço, onde sua família tem uma casa de veraneio. Iria se encontrar com Mariana Uzores Batoleti, de 19 anos, sua namorada.

Testemunhas da acusação afirmam que Thales havia tentado falar com ela a noite toda, sem sucesso. O celular da moça estaria desligado. Ele chegou à Riviera por volta das 3 horas da madrugada. Passou em casa, onde havia um churrasco. Mariana também não estava lá.

A relação entre Thales e sua namorada é um dos pilares da acusação. Segundo o advogado Pedro Lazarini, Mariana provocava Thales em público. Um dos depoimentos mais explosivos é o do dono de uma boate que Thales freqüentava na Riviera, chamada Los Gringos. Jacques Bonhomme, que conhece o promotor desde que ele era adolescente, afirmou em juízo que Mariana “é uma menina que põe fogo em Thales”.

Jacques disse ainda que o promotor se envolvera em dois “bate-bocas” na casa noturna e quase brigara com outros rapazes porque Mariana reclamou do assédio deles.

Segundo Jacques, ela se apresentava como “a namorada do promotor”. Meses depois da noite do crime, o casal terminou o namoro. No depoimento de um policial militar que patrulhava a portaria da Los Gringos, Thales é retratado como “boca dura”, briguento e alguém que vivia se envolvendo em confusões. Segundo o PM, Thales manuseava a pistola automática em público e fazia valer sua posição.

Naquela noite, Mariana havia ido até a boate Los Gringos. Sem Thales. O promotor só a encontraria mais tarde, perto de um local onde acontecia um luau com mais de mil pessoas. Juntos, os dois atravessaram uma praça rotatória em direção ao carro de Thales. Havia ali duas viaturas da Polícia Militar e duas da vigilância particular do condomínio.

Centenas de jovens ouviam som ao redor de carros estacionados. Eram 4 horas. Alguém se dirigiu a Mariana. “Gostosa”, teria dito. Thales diz ter exigido respeito. Testemunhas afirmam que o casal começou a brigar. Foi quando Diego Modanez e Felipe de Souza se aproximaram.

A partir desse momento, as versões diferem. De acordo com a defesa, os dois jogadores de basquete, com mais de 2 metros de altura, estavam entre os que haviam faltado com o respeito. Teriam desafiado Thales. A acusação afirma que Diego e Felipe somente pediram calma ao casal. Thales teria sacado sua arma e se identificado como promotor de justiça. Diego e Felipe se afastaram.

“Guarda essa m...”, teria gritado Mariana. Um grupo de dez rapazes então começou a gritar: “Você é ‘promoter’ de balada! Sua arma é de brinquedo!”. A defesa diz que Diego e Felipe se destacavam à frente da turma. Segundo a acusação, Diego e Felipe, de costas, se afastaram da confusão. Foi então que Thales teria dado tiros de advertência, para o chão e para o alto. A perícia balística não encontrou nenhum projétil no solo.

REAÇÃO
A aposentada Moema, em Jales, com uma das faixas usadas nos protestos

Depois dos primeiros tiros, Thales foi acuado e perseguido. Uma testemunha afirma ter ouvido gritos de “Mata, mata!”. Para a acusação, Diego e Felipe tentaram segurar o braço de Thales para evitar que ele atirasse. Os advogados de Thales dizem que ele só atirou, em legítima defesa, quando foi encurralado e depois que Felipe agarrou seu braço.

Um laudo da perícia mostra ferimentos no braço direito de Thales, Rodrigo Bretas Marzagão. A acusação afirma que ele atirou de cima para baixo, quando as vítimas já estavam caídas.

“Na verdade, foi o Felipe quem provocou tudo”, diz o advogado de Thales. “Tomou um tiro na perna, não parou; outro no braço, continou avançando.” No desfecho, Diego e Felipe se contorciam, caídos no chão. Felipe fora alvejado quatro vezes: nos braços, na perna e no peito. Diego, atingido por duas balas, no braço e do lado direito do peito, morreu por ter perdido muito sangue. No total, Thales disparou 11 tiros.

A acusação afirma ter o testemunho de um dos guardas do condomínio, segundo o qual Thales teria apontado sua arma, ainda com uma bala, para o rosto do vigia antes de fugir de carro. Mariana entrou numa ambulância dizendo-se parente de Diego.

Thales foi preso na casa dos pais, já de manhã. “Era um garoto apavorado”, disse Alberto Corazza, diretor do Departamento de Polícia Judicial da região de Santos.

Às 5 horas daquela manhã, o telefone tocou na casa de Sônia e Fábio Pira, em São Carlos, no interior paulista. Ficaram sabendo que o filho Diego estava no hospital.

Hoje, o casal diz que só consegue dormir à base de tranqüilizantes. Sobre a mesa da sala, uma pilha manuseada de jornais e revistas sobre o caso. Quando foi a Jales participar de uma moção de repúdio à nomeação de Thales votada pela Câmara Municipal da cidade, Sônia ficou surpresa. “Todo mundo queria me tocar”, disse ela sobre a solidariedade que recebeu.

Quem conviveu com Diego diz que ele era incapaz de brigar. “Podem procurar alguma história ruim”, diz dona Sônia. “Se tivesse, alguém já teria encontrado e transformado em prova contra meu filho.” Sobre Thales, ela diz simplesmente: “É um monstro. Gostaria de olhar dentro dos olhos dele.

Quero que ele me peça perdão pessoalmente”. Fábio, o pai, sente que lhe falta um pedaço. “Antes, eu colocava a mão aqui e sentia meu peito. Agora, a mão atravessa.” Bruno, irmão de Diego, que deveria se apresentar à seleção brasileira juvenil de basquete logo depois da morte do irmão, perdeu dois anos da vida para a depressão. Hoje, está nos Estados Unidos. Jogando basquete.

No dia 3 de setembro de 2007, o procurador Nicolao Dino pediu a suspensão temporária da decisão de efetivar o promotor na carreira.

Foi a primeira vez, desde sua criação, em 2004, que o Conselho Nacional do Ministério Público interferiu numa decisão estadual de concessão de cargo vitalício a um promotor. Seu caso ilustra o choque entre duas instituições: o Conselho Nacional do Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar do status de promotor de Thales estar suspenso pelo Conselho, o processo criminal contra ele continua correndo no Tribunal de Justiça. Caso o Conselho decida expulsá-lo, o julgamento que corre em São Paulo perderá a validade – Thales será então submetido ao júri popular de Bertioga. Se isso acontecer, a decisão final caberá ao Superior Tribunal de Justiça, os guardiões da Constituição Nacional.

A qualquer momento, o Tribunal de São Paulo pode convocar o julgamento. O processo já está sendo lido pelos revisores. Os conselheiros de Brasília estão perto de chegar a um consenso sobre a carreira do promotor.

Enquanto isso, Thales faz pós-graduação. Tem sonhos. Mesmo sem trabalhar há três anos, ganha R$ 18.000 por mês. E diz que, “graças a Deus”, tem recebido solidariedade de muitas pessoas. No dia 21 de maio, festejará 30 anos.

5 perguntas para Thales Schoedl
O promotor afirma ter agido em legítima defesa, diz que atirou contra a vontade e conta como essa decisão afetou sua vida
Você se arrepende do que fez?
Posso lhe dizer que, embora tenha convicção de que agi em legítima defesa e que minha conduta salvou a minha vida, eu lamento muito o que aconteceu.

O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre o caso e que, em sua opinião, ainda não sabem?
Que os disparos não ocorreram porque mexeram com a minha namorada, mas sim porque, após esse fato, aquele grupo de pessoas, incentivado por uma multidão que gritava para me matar, correu atrás de mim, iniciou as agressões e tentou tomar a minha arma, momento em que fui obrigado a atirar, contra a minha vontade, para salvar a minha vida. Tudo isso está no processo, relatado por várias testemunhas.

De que forma a repercussão pública do caso mudou sua vida?
Eu estou terminando um curso de pós-graduação, mas tem sido muito difícil não poder realizar o trabalho que eu amo, na Promotoria de Justiça. Claro que por conta da repercussão do caso eu tenho receio de freqüentar lugares públicos, mas graças a Deus eu só tenho recebido solidariedade das pessoas, pois hoje muita gente conhece a realidade dos fatos, de acordo com o que consta no processo.

Existe algum conflito em ser promotor depois de ter matado em legítima defesa?
Não penso em outra profissão. Ser promotor de justiça sempre foi o meu sonho, e eu lutei muito por isso.

Como eu já disse, é a profissão que eu amo. Não vejo problemas em um promotor de justiça que agiu em legítima defesa continuar atuando, mesmo porque legítima defesa não é crime e pode acontecer com qualquer pessoa.

Você fez cursos para manejar armas de fogo? Teve de usar a arma antes?
Sim, fiz dois cursos, um no Exército e outro no Barro Branco, promovido pela APMP, mas nunca havia utilizado minha arma de fogo em outra situação.

Fotos: Alex Silva/AE, Pisco Del Gaiso/ÉPOCA (2)