sábado, 27 de setembro de 2008



28 de setembro de 2008
N° 15742 - MARTHA MEDEIROS


Longa vida aos famintos

A fome é o flagelo número 1 do mundo.

Todos querem combater a fome na África, na Ásia, no Brasil, em todos os cantos onde possa haver uma criança que não usufrua do direito de se alimentar e crescer. Fome zero. De democratas a ditadores, a intenção é única: erradicá-la. Não há como manter um ser vivo com fome.

Posto isso, passo para o terreno das metáforas, que sempre nos coloca frente a frente com a ambigüidade das situações. Tendo pão e manteiga à mesa, um copo de leite, alguma proteína e vitamina, ainda assim uma criatura bem alimentada pode seguir faminta e isso lhe salvar a vida.

Não há razão para se existir com fome, mas tampouco sem fome. Alguma fome é necessária. É o que nos dá energia para levantar todos os dias.

Você tem fome de quê, perguntava uma letra de rock. De paixão, responde a maioria. Há milhares de casais que se amam e que não compreendem a razão de seguirem insatisfeitos, já que a vida lhes foi tão boa e generosa. Falta-lhes paixão, que é coisa bem diferente de amor.

Paixão mantém a falta de gravidade do corpo, os pés longe do chão, a vida de ponta cabeça, prazer e vertigem, o sim e o não convivendo no mesmo espaço de tempo. Paixão: a causa de tantos desacertos comemorados com champanha, depois das lágrimas.

A raridade de sentir-se vivo como nunca se desejou conscientemente, porque a gente sabe o tamanho da encrenca. Paixão é uma fome hemorrágica: de sangue e coração. Milhares morrem pela carência, e outros tanto vivem justamente por mantê-la como uma gula feroz: é a fome mais gloriosa.

E há a fome de vida, que é ainda mais aguda. Além de incorporar a fome por paixão, inclui a fome contraditória por liberdade, e também a fome por conhecimento, a fome pelo êxtase, a fome de sol.

Uma pessoa que atingiu a saciedade não percebe que jaz embaixo da terra, ainda que mantenha-se como um zumbi caminhando sobre ela. Morre-se de fome, mas também morre-se por não ter fome.

A fome é mais violenta que o desejo. Este está aliado à vontade, é uma intenção que mistura o emocional com o racional, já que a gente deseja com o cérebro também.

A fome, ao contrário, não pensa. Não dialoga, não negocia. É instintiva, febril. A fome é um grito de “eu quero”, “eu preciso”, sem levar em consideração tudo o que está ao redor. A fome nos expulsa da sociedade, nos desloca de toda civilização e nos isenta de todos os pecados.

Voltamos à natureza mais primitiva. A luta por esse tipo de sobrevivência nos redime de qualquer culpa e de qualquer racionalidade.

É uma necessidade vital. Como se fôssemos ursos, leoas, guepardos. Não há lei regendo nossas ações predatórias, de subsistência. Você precisa, você luta, e se tiver sorte, vence.

Olho para os lados e vejo pessoas atracadas em pratos de macarrão, sem fome alguma. Devorando carnes, bolos, doces, sem que a vida lhes pareça igualmente suculenta.

Não vão morrer de fome de comida, mas alguns correm o risco de morrer antes do tempo, saciados pelo seu vazio.


Paula Neiva e Roberta de Abreu Lima - Lew Robertson/Corbis/Latinstock

Já sobrou para a lagosta

Queda no consumo do crustáceo é sinal de que a próxima vítima pode ser o mercado de luxo

A preço de picanha

A crise econômica fez com que os americanos passassem a consumir menos lagosta. O aumento da oferta derrubou o preço da iguaria nos Estados Unidos em 25%.

No Brasil, que exporta 85% de sua produção para os EUA, o preço caiu pela metade – nos supermercados brasileiros, compra-se lagosta a preço de carne de primeira

Ainda não se sabe ao certo como a crise financeira nos Estados Unidos vai afetar o Brasil, mas pelo menos um benefício ela trouxe aos apreciadores da boa mesa – o preço da lagosta caiu pela metade nos supermercados brasileiros. Já é possível comprá-la pelo mesmo valor da picanha ou outra carne de primeira.

A explicação para isso está nos mecanismos do mercado. Diante da turbulência na economia, os americanos têm contido os gastos com produtos caros e supérfluos, como a lagosta.

A demanda em baixa fez com que seu preço despencasse 25% nos EUA desde o início do ano. O país passou a importar menos o pescado e a pagar menos por ele. O Brasil costuma exportar para os Estados Unidos 85% de sua produção de lagosta.

Com a retração dos importadores americanos, os produtores brasileiros começaram a direcionar maior quantidade do produto para o consumo interno. Resultado: o crustáceo ficou mais acessível também no Brasil.

"A lagosta é um alimento de celebração, consumido em ocasiões especiais. Se a economia vai mal, as pessoas deixam de comprá-la", disse a VEJA Bob Bayer, diretor do Instituto da Lagosta da Universidade de Maine.

Peter Kramer/AP


A crise das bolsas

Quinta Avenida, em Nova York: algumas das lojas mais caras da cidade anteciparam as liquidações

Se o que acontece com a lagosta se estender a outros produtos caros, a próxima vítima da crise deverá ser o mercado de luxo, aquele nicho de roupas, veículos e objetos pessoais que custam uma fábula, mas têm um público fiel que não se importa em sacar do cartão de crédito seja qual for o valor estampado na etiqueta.

Desde o início da década, após amargar uma retração passageira com os atentados de 11 de setembro, o mercado de luxo vem crescendo à razão de 15% ao ano.

De modo geral, o segmento é considerado um dos menos vulneráveis às trepidações da economia. Agora, começam a soprar os primeiros ventos de que a crise pode atingi-lo em cheio.

Lojas de Nova York especializadas em artigos de luxo, como a Saks Fifth Avenue e a Neiman Marcus, vêem seu faturamento aumentar a ritmo mais lento. No caso dessa última, as vendas no primeiro semestre deste ano não aumentaram em comparação com o mesmo período do ano passado.

Outra rede do gênero, a Nordstrom, teve faturamento 6% menor nos primeiros quatro meses de 2008 com relação ao mesmo período de 2007. Muitas delas anteciparam as liquidações de fim de estação deste ano.

Spencer Platt/AFP


Baixa velocidade

Feira de carros luxuosos montada em Manhattan: a venda dos modelos mais caros encolheu 10% nos EUA neste ano

Os primeiros clientes a fugir das lojas que vendem artigos de luxo não são os milionários, mas aqueles que podem comprar um ou outro objeto de desejo.

Na joalheria Tiffany & Co., celebrizada no filme Bonequinha de Luxo, a queda mais acentuada nas vendas ocorreu com as jóias que custam até 10 000 dólares.

O comércio de alianças de 50 000 dólares ou mais continua estável. O mercado de carros de luxo nos Estados Unidos, por sua vez, encolheu 10% entre janeiro e agosto deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado.

A BMW projeta vender nos EUA, neste ano, 40 000 veículos a menos do que o inicialmente previsto. Segundo os analistas de mercado, embora a crise ainda não tenha afetado os produtos destinados aos muito ricos, pode ser questão de tempo para que isso aconteça.

"Esses consumidores geralmente são imunes às crises, mas desta vez seus investimentos podem estar ameaçados, e isso os deixa duplamente alertas", disse a VEJA o consultor americano Edward Henderson, especialista no setor de varejo da agência internacional de avaliação de risco Moody’s.

Divulgação


Vão-se os anéis

Jóia da Tiffany: alianças de até 10 000 dólares estão encalhadas

À medida que se espalham pelo mundo, os reflexos da crise americana forçam os consumidores a mudar de hábitos. Na França, 3.000 restaurantes fecharam as portas nos primeiros quatro meses deste ano – no mesmo período, as redes de fast-food triplicaram suas vendas.

Segundo os sindicatos que representam esses estabelecimentos, os hábitos dos clientes à mesa também se tornaram mais frugais, de modo a diminuir o valor da conta ao fim da refeição.

No caso do mercado de artigos de luxo, a crise que se avizinha no Primeiro Mundo pode ser benéfica para o Brasil, e não apenas por baratear o preço da lagosta.

Diz o empresário Carlos Ferreirinha, consultor especializado em mercado de luxo: "A prioridade dos grandes conglomerados desse segmento sempre foram os mercados americano e japonês.

Agora, para se estabilizar, eles contam também com os mercados emergentes, como a China e o Brasil. Isso poderá trazer mais investimentos para o país nos próximos anos".

Lya Luft

Somos um país de analfabetos

"A verdadeira democracia tem de oferecer a todos o direito de saber ler e escrever, pensar, questionar e escolher"

Segundo pesquisa do confiável IBGE, estamos num vergonhoso lugar entre os países da América Latina, no que diz respeito à alfabetização. O que nos faltou e tanto nos falta ainda? Posso dizer que tem sobrado ufanismo.

Não somos os melhores, não somos invulneráveis, somos um país emergente, com riquezas ainda nem descobertas, outras mal administradas.

Somos um povo resistente e forte, capaz de uma alegria e fraternidade que as quadrilhas, o narcotráfico e a assustadora violência atuais não diminuem. Um povo com uma rara capacidade de improvisação positiva, esperança e honradez.

Ilustração Atômica Studio

O sonho de morar fora daqui para escapar não vale. Na velha e sisuda Europa não há um sol como este. Recordo meu espanto na primeira estada por lá, num verão, vendo o sol oblíquo e pálido.

Lá não se ri, não se abraça como aqui. Eles trabalham mais e ganham mais, é verdade. A pobreza por lá é menos pobre porque, se fosse miserável, morreriam todos de frio na primeira nevasca.

O salário-desemprego é tão bom que, infelizmente, muitos decidem viver só com ele: o mercado de trabalho lá também é cruel, e com os estrangeiros, nem se fala. Em muitas coisas somos muito melhores.

Mas somos um país analfabeto. Alfabetizado não é, já disse e escrevo freqüentemente, aquele que assina seu nome, mas quem assina um documento que leu e compreendeu.

A verdadeira democracia tem de oferecer a todos esse direito, pois ler e escrever, como pensar, questionar e escolher, é um direito. É questão de dignidade.

Quando eu era professora universitária, na década de 70, já recebíamos nas faculdades vários alunos que mal conseguiam escrever uma frase e expor um pensamento claro. "Eu sei, mas não sei dizer nem escrever isso" é uma desculpa pobre.

Não preciso ser intelectual, mas devo poder redigir ao menos um breve texto decente e claro. Preciso ser bem alfabetizado, isto é, usar meu instrumento de expressão completo, falado e escrito, dentro do meu nível de vida e do nível de vida do meu grupo.

Para isso, é essencial uma boa escola desde os primeiros anos, dever inarredável do estado. Não me digam que todas as comunidades têm escolas e que estas têm o necessário para um ensino razoável, para que até o mais pobre e esquecido no mais esquecido e pobre recanto possa se tornar um cidadão inteiro e digno, com acesso à leitura e à escrita, isto é, à informação.

Um sujeito capaz de fazer boas escolhas de vida, pronto para se sustentar e que, na grave hora de votar, sabe o que está fazendo.

Enquanto alardeamos façanhas, descobertas, ganhos e crescimento econômico, a situação nesse campo está cada vez pior. Muito menos pessoas se alfabetizam de verdade; dos poucos que chegam ao 2º grau e dos pouquíssimos que vão à universidade, muitos não saem de lá realmente formados.

Entram na profissão incapazes de produzir um breve texto claro. São desinteressados da leitura, mal falam direito. Não conseguem se informar nem questionar o mundo. Pouco lhes foi dado, pouquíssimo lhes foi exigido.

A única saída para tamanha calamidade está no maior interesse pelo que há de mais importante num país: a educação. E isso só vai começar quando lhe derem os maiores orçamentos.

Assim se mudará o Brasil, o resto é conversa fiada. Investir nisso significa criar mais oportunidades de trabalho: muito mais gente capacitada a obter salário decente. Significa saúde: gente mais bem informada não adoece por ignorância, isolamento e falta de higiene.

Se ao estado cabe nos ajudar a ser capazes de saber, entender, questionar e escolher nossa vida, é nas famílias, quando podem comprar livros, que tudo começa. "Quantos livros você tem em casa, quantos leu este mês?

E jornal?", pergunto, quando me dizem que os filhos não gostam de ler. Família tem a ver com moralidade, atenção e afeto, mas também com a necessária instrumentação para o filho assumir um lugar decente no mundo. Nascemos nela, nela vivemos.

Mas com ela também fazemos parte de um país que nos deve, a todos, uma educação ótima. Ela trará consigo muito de tudo aquilo que nos falta.

Lya Luft é escritora

Um ótimo sábado e um Feliz Fim de Semana


...depois, querida, ganharemos o mundo”

A profética frase de Machado de Assis faz parte de um conjunto inédito de cartas que ÉPOCA revela com exclusividade. Hoje, o maior escritor brasileiro começa a ser reconhecido em todo o mundo
Luis antônio Giron

MATURIDADE?

A fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez tem a data presumida de 1890. Mas o modelo parece ter menos de 50 anos, comparado à imagem das fotos das próximas páginasNos cem anos de sua morte, comemorados nesta segunda-feira, 29 de setembro, Machado de Assis ainda é capaz de provocar surpresas.

Sua extensa obra – nove romances, 200 contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas – está praticamente canonizada e o torna, indiscutivelmente, o maior escritor do Brasil.

Mas quem é esse gênio? É o austero fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL)? O monstro cerebral pessimista e sarcástico como o descreviam os modernistas? Ou o herói do povo, como defendiam os primeiros socialistas?

Embora os estudos machadianos tenham gerado dezenas de milhares de títulos – Machado é o ramo do conhecimento literário brasileiro mais estudado –, sua vida permanece envolta em mistérios, em especial os anos de juventude.

Como um sujeito pobre e mestiço, numa sociedade ainda escravagista, conseguiu se tornar o mestre da cultura brasileira?

ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a um conjunto de cartas ainda inéditas de Machado, que ajudam a responder a essas perguntas e a desvendar o enigma machadiano. “Pela primeira vez, podemos compreender o fluxo da correspondência de Machado, suas amizades, amores, relação com a política de seu tempo e preocupações filosóficas”, diz o ensaísta e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, da ABL.

Rouanet coordena o projeto mais arrojado do centenário de Machado: organizar em ordem cronológica toda a correspondência do escritor, tanto a escrita por ele como a recebida por ele ao longo de 50 anos de vida intelectual.

O primeiro volume do trabalho, Correspondência de Machado de Assis, Tomo I (1860-1869) , sairá em outubro. São 90 cartas. O segundo, previsto para 2009, contém oito centenas de cartas e cobre os 40 anos restantes.

O Machado de Assis que emerge dessas cartas é um personagem novo, distante dos estereótipos que nos habituamos a estudar na escola. Trata-se de um dândi, um jornalista e poeta empolgado com a frenética vida social e boêmia do Rio de Janeiro imperial. Ele sai com atrizes de teatro, conta suas aventuras aos amigos, divide confidências e dá conselhos.

Num sinal de que estava bem à frente de seu tempo, sugere à noiva a leitura de um compêndio feminista. A um amigo distante, filosofa sobre a podridão do comportamento humano e a vida na cidade.

De modo maroto, esquiva-se das ordens dos caciques políticos que chefiam o jornal em que trabalha, o Diário do Rio de Janeiro. Ele é um Machado que, mais que tudo, desce do monumento da academia e vai às ruas, rejuvenescido.

A ÍNTEGRA DAS CARTAS

As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro.

A investigação que descobriu esse novo personagem mundano começou há dois anos, sem outra intenção que ordenar um material desconhecido.

Rouanet convidou as pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleuterio para sair à cata de cartas em arquivos e bibliotecas. Logo, as surpresas e os textos inéditos começaram a vir à tona – e esse novo Machado, mais jovem e impetuoso, começou a ganhar corpo.

Uma das principais descobertas feitas por Irene está no texto de uma das duas cartas íntimas que restaram de Machado a Carolina, então sua noiva. Elas foram escritas no mesmo dia, 2 de março de 1869, quando Carolina estava em Petrópolis para tomar conta do irmão, o jornalista e poeta – e amigo de Machado – Faustino Xavier de Novaes (1820-1869).

Faustino sofria de distúrbios mentais e morreria em agosto. “Machadinho”, como Machado assinava sua correspondência a Carolina, estava aflito por reencontrar a amada.

Derramou-se em declarações e elogios a ela, numa letra apressada e nada legível. Perto da conclusão, uma palavra soava estranha a quem se acostumara com uma versão que fora divulgada em 1939, no Catálogo da Exposição do Centenário de Machado de Assis, repetida até hoje.

O trecho da carta que embatucou a pesquisadora dizia: “depois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

O convite de Machadinho para a queimada planetária soava esquisito. “Havia algo de errado”, diz Irene. Acostumada com manuscritos, ela foi à caça dos originais, dados como perdidos.

Encontrou o documento no Museu da República, no Rio de Janeiro. As duas cartas foram doadas à instituição pela sobrinha de Machado, Laura Braga da Costa.

Irene fez a cópia das cartas e comparou-as com os textos impressos. “Notei discrepâncias e deduzi, pela análise dos garranchos, que tudo apontava para ‘ganharemos’, e não ‘queimaremos’”, afirma Irene. A carta, corrigida, ganhou um novo sentido.

Machadinho declara premonitoriamente a sua “Carola”: “...depois, querida, ganharemos o mundo”. “A sensação foi de alívio”, diz Rouanet. “Nosso Machado não era incendiário aos 30 anos, nem fez um convite terrorista a Carolina!”

AMOR DEFINITIVO

A portuguesa Carolina (em foto de c. 1890) casou-se com Machado de Assis (acima, aos 25 anos) em 1869. Ela foi trazida do Porto depois de uma suposta desilusão amorosa. Viveram juntos por 35 anos

O desejo de Machado está se cumprindo. Hoje, ele começa a conquistar o mundo. Os simpósios internacionais sobre sua obra, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, atraem a atenção de acadêmicos respeitáveis.

Críticos de alta reputação, como os americanos Harold Bloom e Susan Sontag e o inglês John Gledson, elevaram-no ao patamar dos gênios.

Em seu livro Gênio, de 2003, Bloom define Machado como “um milagre”, por ter conseguido fugir de sua situação social e histórica para criar uma ficção universal. Seus livros foram traduzidos para 14 idiomas, a maior parte na década passada. Há, nos EUA, um entusiasmo por novas traduções.

A glória mundial de Machado será enriquecida pela redescoberta de suas cartas. Elas contêm mistérios que mostram a complexidade da relação amorosa entre Machado e Carolina. Uma das charadas da primeira carta está no terceiro parágrafo.

Ele diz: “Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida”. Soa cifrado. E as únicas explicações que poderiam elucidar o enigma estariam nas demais cartas íntimas, queimadas após a morte de Machado.
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A ÍNTEGRA DAS CARTAS

As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro.

Para: CAROLINA AUGUSTA XAVIER DE NOVAIS
Fonte: MUSEU DA REPÚBLICA. Arquivo Histórico. Manuscrito original.
[Rio de Janeiro,] 2 de março [de 1869].
Minha Carola.


Já a esta hora deves ter em mão a carta que te mandei hoje mesmo, em resposta às duas que ontem recebi. Nela foi explicada a razão de não teres carta no domingo; deves ter recebido duas na segunda-feira.

Queres saber o que fiz no domingo? Trabalhei e estive em casa. Saudades de minha Carolina, tive-as como podes imaginar, e mais ainda, estive aflito, como te contei, por não ter tido cartas tuas durante dois dias. Afirmo-te que foi um dos mais tristes que tenho passado.

Para imaginares a minha aflição, basta ver que cheguei a suspeitar oposição do Faustino, como te referi numa das minhas últimas cartas. Era mais do que uma injustiça, era uma tolice.

Vê lá; justamente quando eu estava a criar estes castelos no ar, o bom Faustino conversava a meu respeito com a Adelaide1 e parecia aprovar as minhas intenções (perdão, as nossas intenções!)

Não era de esperar outra coisa do Faustino; foi sempre amigo meu, amigo verdadeiro, dos poucos que, no meu coração, têm sobrevivido às circunstâncias e ao tempo. Deus lhe conserve os dias e lhe restitua a saúde para assistir à minha e à tua felicidade.

Contou-me hoje o Araújo2 que, encontrando-se num dos carros que fazem viagem para Botafogo e Laranjeiras, com o Miguel, este lhe dissera que andava procurando casa por ter alugado a outra. Não sei se essa casa que ele procura é só para ele, se para toda a família.

Achei conveniente comunicar-te isto; não sei se já sabes alguma coisa a este respeito. No entanto, espero também a tua resposta ao que te mandei dizer na carta de ontem – relativamente à mudança.

Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras, e que eu te apareço em tudo e em toda a parte? É então certo que eu ocupo o teu pensamento e a tua vida? Já mo disseste tanta vez, e eu sempre a perguntar-te a mesma coisa, tamanha me parece esta felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu acabei de ler

1 Adelaide Xavier de Novais, irmã de Carolina, que viera para o Brasil pouco depois desta. (IM)

2 Provavelmente o amigo comum Manuel de Araújo*. (IM)

3 La Famille - la Mère (1865), segundo Massa (1995). Obra do polígrafo francês Eugène Pelletan (1813-1884), por quem Machado teve grande admiração desde muito jovem. Dedicou-lhe o poema “O Progresso (Hino à Mocidade)” e citou-o inúmeras vezes.

A respeito de suas idéias progressistas sobre a emancipação feminina, escreveu, em crônica publicada pelo Diário do Rio de Janeiro (21/11/1861):


há dias; intitula-se: A família3. Hei de comprar um exemplar para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia sagrada. É um livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dele dá vontade de casar.

Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás lá a melhor carta que eu te poderei mandar, que é a minha própria pessoa, e ao mesmo tempo lerei o melhor (...)4.

“Pretende Eugène Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos, há de vir a exercer no mundo um papel político. Sem entrar na investigação filosófica da profecia, a que dá uma tal ou qual razão a existência de certas mulheres da sociedade grega e da sociedade francesa, eu direi que é esse um fato que eu desejava ver realizado, em maior plenitude do que pensa o autor da Profession de Foi.

Eu quisera uma nação, onde a organização política e administrativa parasse nas mãos do sexo amável, onde, desde a chave dos poderes até o último lugar de amanuense, tudo fosse ocupado por essa formosa metade da humanidade. O sistema político seria eletivo.

A beleza e o espírito seriam as qualidades requeridas para os altos cargos do estado, e aos homens competiria exclusivamente o direito de votar. / Que fantasia! Mas, enquanto esperamos a realização dessa linda quimera, à mulher cabem outros papéis, que se não satisfazem a inspiração de um humorista, podem contentar plenamente o espírito de um filósofo e de um cristão.” (IM)

4 Esta carta, incompleta, e a anterior – tão emocionantes – são o que restou da correspondência de Machado e Carolina. Ambas pertenceram à sobrinha e afilhada do casal, e herdeira universal de Machado, Laura Braga da Costa, mais tarde Laura Leitão de Carvalho (1894-1988).

Concordam os biógrafos ao afirmar que, a pedido expresso do escritor, após seu falecimento fossem destruídos os papéis e outras recordações de sua companheira. Porém, um relato de Herculano Borges da Fonseca (1960) altera um pouco essa versão. Referindo-se ao pequeno móvel queimado com as relíquias, diz o autor:

“O famoso móvel, comprado por Carolina com suas economias mensais, foi mandado entregar por Machado às irmãs Pinto da Costa, que moravam perto, com instruções para que estas o dessem a minha tia, Fanny de Araújo, então residente na rua Moura Brasil, a quem Machado e Carolina votavam excepcional afeição.

Sua vontade foi cumprida. Entretanto, jamais consegui apurar, com certeza, se Machado quisera as cartas queimadas ou não. / Sempre ouvi contar que tia Fanny o fizera para que olhos estranhos não profanassem o santuário de amor doméstico do casal;

sempre ouvi observações de pessoas que ficaram inconsoláveis com o zelo excessivo de minha tia que, espontaneamente ou cumprindo instruções de Machado, agira em relação a ele e a Carolina, pensando mais nos grandes amigos que no escritor.

De qualquer forma, recatado como foi, estou certo de que o autor do Memorial de Aires ratificaria, com um sorriso irônico, aquela deliberação, que veio privar-nos, os bisbilhoteiros da posteridade, do maior e mais saboroso quitute e da mais preciosa relíquia de seu pequeno mundo.

Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis n.º 3, 1960. (IM)


27 de setembro de 2008
N° 15741 - NILSON SOUZA


O céu de Porto Alegre

No dia em que conheci o monastério de Melk, na Áustria, pensei que nunca mais chegaria tão perto do céu.

O lugar é mágico, tem 900 anos de história, uma igreja barroca e uma biblioteca com mais de 100 mil volumes, muitos deles mais antigos do que o personagem medieval ressuscitado por Umberto Eco – o célebre Adso de Melk – em O Nome da Rosa.

E fica encravado no alto de uma rocha, de onde se vê o Danúbio riscar aquele recanto encantado da Europa. Pois esta semana cheguei novamente perto do azul infinito, e essa possibilidade estava todo o tempo ao meu alcance.

Estive no teto de Porto Alegre, o Morro da Polícia, e também no Morro da Glória, onde se localiza o Santuário Nossa Senhora Mãe de Deus. Não são os lugares mais altos da Capital. Mas certamente são os mais impressionantes.

Do primeiro, se vê a cidade inteira, viva e exuberante, como uma aquarela recém pintada. Do segundo se vê aquela luz que deve ter inspirado o poeta Mário Quintana quando ele escreveu: “Oh, céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o Céu?”.

Talvez eu tenha sido contagiado pela fé do meu anfitrião, o padre Antônio Lorenzato, que teve a bondade de me acompanhar na excursão aos dois morros.

Profundo conhecedor de cada pedra do bairro onde vive há mais de 30 anos e onde exerce a função de capelão do Hospital Divina Providência, o religioso me explicou pacientemente um paradoxo local: a famosa Gruta da Glória (Gruta Nossa Senhora de Lourdes) não fica na Glória e sim no bairro Cascata, que foi desmembrado da antiga localidade.

Pois monsenhor Lorenzato me levou a conhecer também o Santuário, que fica no Morro da Glória, onde também não é mais Glória. Mas o que interessa é a beleza e a paz do local.

O templo de linhas modernas tem vitrais lindos e uma estátua da padroeira feita em madeira de tília, vinda da Itália.

Ao relatar-me que a imagem foi abençoada pelo papa João Paulo II, antes de ser trazida para o Brasil, o experiente religioso deixou escapar uma lágrima de emoção.

Também fiquei comovido com tudo o que presenciei. Sempre vejo minha cidade natal com os olhos do coração. Mas costumo observá-la a partir do espelho do Guaíba, chegando de alguma viagem ou percorrendo as calçadas de Ipanema.

Desta vez, tive o privilégio de subir nos seus ombros, auscultar-lhe a alma e vislumbrar o seu céu.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008



26 de setembro de 2008
N° 15740 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Breve ensaio de eternidade

Nunca estou só nesta sala. Me acompanha sempre a galeria de retratos que reuni ao longo dos anos e que são cúmplices testemunhas de minha vida.

Tudo começou como um jogo do acaso. Encontrei, depois de muito perdida, uma foto minha e de meus pais. Eles sorriem para mim. Eu, nos meus três meses de idade, me volto para um flagrante da vida irreal, talvez um gato, talvez uma andorinha, talvez ainda uma gota de chuva, pois faz agosto e o inverno é rigoroso.

Rigorosa será também minha vida, mas naquele instante de nada sei. Creio também nem suspeitar, nas sucessivas fotos que fui redescobrindo, em que estamos de novo os três – e logo somos quatro e cinco e seis.

E já que éramos múltiplos – e tão unidos em festas de aniversário, momentos de alegria, encontros de improviso –, decidi juntar todas essas fotos e emoldurá-las. Mas aí me bateram as perguntas inaugurais: Quem sou? De onde venho? Para onde vou?

Tentei respondê-las abrindo as gavetas do passado. Estes são meus avós. Aqueles ali não, são meus bisavós, meus trisavós, os pais de meus trisavós. E a todos dei competente moldura, embora algumas fotos estivessem tão desmaiadas quanto uma lembrança que sente de repente a tentação do eclipse.

A esta altura já tinha reservado nesta sala duas prateleiras para abrigar os recém-chegados de ontem e anteontem. Sobravam espaços – e abri a galeria de hoje. Hoje somos assim, logo não teremos idéia de como seremos. E amanhã?

Providenciei imediatamente a ala do futuro, prontamente preenchida com as fotos de meus filhos e de meus netos. Há um problema com os meus netos: estão sempre crescendo.

Mas como ainda sobram pequenas alamedas nas estantes, resolvi que vou ocupá-las com o seu florescimento. Nunca estou só nesta sala.

Nela está a imagem de minha vida e de todas as vidas que vieram antes de mim – a de quantos recém estão aportando a este breve ensaio de eternidade.

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana

quarta-feira, 24 de setembro de 2008



24 de setembro de 2008
N° 15737 - MARTHA MEDEIROS


Os créditos finais

A gente pode catalogar as pessoas através de vários critérios.

Uma vez a jornalista Monica Waldvogel disse que classifica a população em dois grupos: os que estacionam seu carro na primeira vaga que aparece, mesmo que esteja a cem metros do local onde se deseja ir, e aqueles que vão até a frente do local, certos de que conseguirão uma vaga bem ali – e conseguem.

Claro que isso diz muito sobre a determinação, o positivismo e a autoconfiança de alguém.

E eu, como demarcaria as fronteiras entre os grupos? Fui ao cinema esta semana e cheguei à conclusão de que também existem duas espécies bem distintas: as que levantam da poltrona assim que o filme acaba e aquelas que ficam sentadas lendo todos os créditos finais, e só então deixam a sala.

Não existe, claramente, um julgamento maniqueísta entre os dois grupos da Monica. Os que estacionam na primeira vaga que surge podem ser considerados precavidos, responsáveis, planejados.

E os que arriscam e vão com o carro até a frente do local onde desejam ir podem ser considerados ousados, seguros, otimistas. Nos dois casos, o juízo de valor é positivo.

Mas, no caso dos créditos finais dos filmes, não é bem assim.

Os que saem no momento em que o filme acaba demonstram não ter o menor interesse pela ficha técnica, não estão nem aí para o trabalho que cada profissional teve para que aquele filme ficasse bacana do jeito que ficou.

Não faz a menor diferença o nome dos dublês, ou dos figurantes, ou o playlist da trilha sonora.

Quem sai imediatamente do cinema é apressado, não quer perder tempo. Curtiu o filme e agora não vê a hora de buscar o carro no estacionamento e ir jantar, ou voltar pra casa.

Não é exatamente um pecador, uma pessoa de má índole – de jeito nenhum. Mas é diferente daquele que esperou mais cinco minutos dentro da sala.

Quem fica sentado vendo os créditos finais é uma pessoa, antes de tudo, calma. Ulalá, será que isso ainda existe, pessoas calmas? Ela não está aflita pra sair do estado de encantamento que o filme provocou.

E tem uma curiosidade quase infantil de enxergar por trás das cortinas, espiar os bastidores, saber o nome daquele anônimo que fez papel de guarda de trânsito, ou o nome daquela loirinha que fez uma ponta como garçonete.

E será que aquele ator que fez uma rápida aparição de três minutos é mesmo quem se está pensando? Basta aguardar os créditos e conferir.

E tem mais: quem espera os créditos sabe que pode haver uma recompensa. Alguma cena reveladora lá no finalzinho dos créditos. Ou cenas do making of. Tem acontecido muito isso.

Eu fui assistir recentemente Quando Estou Amando, filme francês com o estupendo Gerard Depardieu e a gracinha Cécile de France e, aviso, não se deve sair antes dos créditos finais. Mas achei o filme tão arrastado que saí.

Pois é. Se pareceu que eu iria me classificar como uma boa criatura que espera as luzes se acenderem, foi só impressão. Estou no grupo dos que se mandam assim que o filme acaba. Lembro de apenas dois filmes que me prenderam na cadeira após o término:

Magnólia e Fale com Ela, e isso porque eu estava impressionada demais para conseguir me mover. Não foi por curiosidade com a ficha técnica, e sim porque uma avalanche emocional me deteve.

Na maioria das vezes, escapulo assim que termina a última cena. Eu sei, ansiedade é um defeito. Mas digo, em meu favor, que sou do tipo que dirige o carro até bem em frente onde pretendo ir e, miraculosamente, consigo vaga.

Portanto, sou uma otimista: defeitos podem ser corrigidos.

Ótima quarta-feira, especialmente a você.

domingo, 21 de setembro de 2008


FERREIRA GULLAR

Onde andarás?

Buenos Aires já foi uma alegria; a América Latina, mesmo sem Helena, fazia sentir-se menos infeliz

COMEÇO A TE esperar, gritou ela da janela do apartamento, quando ele saiu do prédio e iniciou o caminho sem volta para o outro lado do mundo.

Seu tempo em Moscou havia se esgotado, mas deixar Helena, separar-se dela para sempre, era como morrer e, ainda assim, seguia em frente pisando um chão coberto de neve naquela noite gelada. Foi quando ouviu o ruído de passos atrás de si e voltou-se. Ela se jogou sobre ele, abraçou-o e beijou-o chorando.

Em seguida, sem que ele tivesse tempo de dizer qualquer palavra, deixou-o e voltou correndo para a entrada do edifício, onde sumiu. Ele rebentou em soluços e retomou seu caminho.

Até chegar à "abchejite", ainda no metrô, a frase de Helena não lhe saía da cabeça: "Começo a te esperar". Por que dissera aquilo, se sabia que nunca mais se veriam? Talvez o disse para tornar possível uma última esperança, já que ninguém suporta o fim arbitrário de um amor feliz.

Ao chegar a seu quarto, lá encontrou um grupo de amigos, que o esperavam com cerveja e vodka para se despedirem dele festivamente. Queriam saber onde estivera até aquela hora da noite, mas ele apenas sorriu e nada revelou.

Puseram na vitrola um disco de samba, ele tomou um porre-mãe e só acordou de manhã, quando bateram à porta do quarto.

Era um funcionário do PCUS, que o levaria para o aeroporto. Como um zumbi, trocou de roupa, pegou a maleta que já estava feita, desceu pelo elevador e entrou no carro que o esperava à porta da casa de estudantes.

Como um zumbi, entrou no avião e adormeceu. Só acordou quando aterrizava em Roma, era como se acordasse de um sonho, que durara dois anos, e era agora devolvido à realidade.

Chegou ao hotel, trancou-se no quarto e, deitado na cama, abandonou-se à derrota: chorou sem aflição, sem desespero, as lágrimas descendo-lhe dos olhos e ensopando-lhe a camisa.

Nada fez para parar o choro, disposto que estava a chorar tudo o que devia chorar, até não mais ter lágrimas nem necessidade.

Quando terminou, sentiu-se aliviado e vazio, um morto-vivo, que se ergueu, lavou o rosto e voltou a sentar-se na cama. Ainda bem que, na manhã seguinte, voaria para Santiago do Chile.

Na verdade, o vôo era Roma-Buenos Aires e pareceu não terminar. Nunca. Sentiu um misto de melancolia e consolo, quando o comandante informou que o avião bordejava a costa brasileira.

Consolou-se com o fato de que sobrevoava o Brasil e que, lá embaixo, estavam seus filhos, sua mulher, seus amigos, sua gente. Mas doía-lhe saber que não poderia descer em nenhuma daquelas cidades, muito menos no Rio, e voltar para casa. Por quanto tempo ainda teria que suportar o exílio?

De qualquer modo, chegar a Buenos Aires já foi uma alegria, sentiu-se quase em casa. Calle Florida, Corrientes já lhe eram familiares. Estar na América Latina, mesmo sem Helena, fazia sentir-se menos infeliz.

Em Santiago, a situação era ameaçadora, pois os inimigos do governo Allende o boicotavam, comprando tudo nos supermercados e deixando a população sem alimentos suficientes.Uma greve de transportes parara o país, ao mesmo tempo que a ameaça de golpe militar pairava no ar.

Em meio a esses problemas, ainda sentia a falta de Helena a tal ponto, que, certa tarde, ao cruzar uma avenida do centro da cidade, ele a viu entrar numa loja. Seu coração quase explode.

Entrou na loja, mas não a encontrou; ao sair, viu que ela seguia pela calçada em meio aos transeuntes. Foi atrás dela, empurrando as pessoas que lhe dificultavam a passagem, mas de nada adiantou: uma esquina adiante, ela tomou um táxi e seguiu nele.

Desapontado, voltou para o apartamento onde morava, na Providência. Só então se deu conta de que não podia ser ela, tudo aquilo não era mais que um delírio.

Passaram-se os meses, a situação política se agravou e um golpe derrubou Allende e o levou ao suicídio. Conseguiu sair do Chile para a Argentina, depois para o Peru e Buenos Aires, de novo.

A vida seguiu adiante, envolta em sustos e desespero, até que, finalmente, voltou para o Brasil. Recompôs sua vida, retomou suas ocupações e esqueceu Helena.

Anos mais tarde, porém, ao ver um filme sobre a vida de Luis Carlos Prestes, depara-se, surpreso, com ela, a mesma daqueles anos, linda, falando e rindo na casa dele, em Moscou.

Onde andará ela, hoje? perguntou a si mesmo. Àquela altura, já a URSS se acabara e, certamente, ela, que sonhava conhecer o mundo, deveria ter saído de lá.

Telefonou para um amigo, que também estivera em Moscou, e soube que ela fora para Cuba, donde seguira para Madri. Depois disso, ninguém teve mais notícia dela.

Neste domingo de vento frio e chuva fina nesta Porto e que por isso não está nada alegre...Também me pergunto: onde andarás..?

sábado, 20 de setembro de 2008



21 de setembro de 2008
N° 15733 - MARTHA MEDEIROS


Passeio completo

Outro dia o programa Saia Justa mostrou uma reportagem sobre as bonitas e doces mulheres da Guatemala, seus hábitos e costumes. A matéria era focada em moda: elas mostravam o seu jeito de vestir, suas tranças e suas estampas.

Assim que o sol desponta, essas mulheres se preparam para o dia com muitas saias e blusas coloridas, que denunciam um astral de celebração que dura de segunda a segunda. A repórter então perguntou: “E o que vocês vestem em dia de festa”?

A resposta: “A mesma coisa”! No máximo, estréiam uma roupa nova, mas não diferente das que costumam usar em suas tarefas cotidianas.

Isso me fez lembrar de uma teoria que eu defendo e que não sei se serve apenas para mim ou se as companheiras concordam: em dia de festa, nunca ficamos tão bonitas quanto no dia-a-dia.

Quando eu chego numa festa, geralmente penso: que trabalhão deu para cada uma de nós se enfeiar. A maquiagem é demais. A base no rosto envelhece. O brilho é vulgar. O salto nos deixa capengas. Há excesso de adereços.

Todas olhando pro celular para ver que horas são (mulher quase nunca usa relógio de pulso em festa), contando os minutos para voltar pra casa, passar um demaquilante no rosto, colocar uma pantufinha nos pés e cair na cama para, no dia seguinte, aí sim, vestir um jeans, uma camisa branca, amarrar uma echarpe em volta do pescoço, passar um blush e voltar a ser uma mulher sensacional.

Rituais, essa praga. Me convidem para uma balada mais chique e entro automaticamente no meu inferno astral. Missão: montar um personagem e deixar de ser eu mesma.

Pronta para a guerra, me olho no espelho e pergunto: quem é essa vestindo uma peça de roupa que ainda não foi totalmente paga e que daria tudo para estar com a mesma camiseta que vestia à tarde?

Não que eu seja uma vítima da moda. Em dia de festa, tomo banho e coloco uma roupa nova, ao estilo guatemalteco, mas é preciso seguir as regras da sociedade, que é carrasca: não posso ir de qualquer jeito num casamento, usar um vestidinho de algodão num jantar cerimonioso, vestir bermuda na hora de percorrer um tapete vermelho.

Tapete vermelho: de onde tirei isso? Baixou Hollywood na crônica. Mas serve como metáfora.

Estique um tapete vermelho em frente a qualquer mulher e ela arriscará um penteado que a envelhecerá 10 anos, passará um batom escarlate que a deixará igual a uma dona de inferninho, usará uma bolsa minúscula em que não caberá nem a chave de casa e se atreverá a usar uma cor inusual que afugentará qualquer candidato a marido – mas ela já tem o seu garantido, lógico.

E o coitado ainda será obrigado a dizer “você está linda”, torcendo para que aquela estranha seja mesmo a mulher dele.

O mesmo tipo de roupa para o dia, o mesmo tipo de roupa para a noite e o mesmo para festas - isso sim é personalidade e estilo. Um dia quero ser moderna como as camponesas da Guatemala.

Ronaldo Soares

A cavalaria salvou o dia

O mundo financeiro parecia derreter na semana passada quando George W. Bush e seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, comandaram a maior intervenção da história do capitalismo. Salvaram o dia, o sistema e nossos bolsos

Montagem sobre fotos de Brian A. Vikander/Corbis/Latinstock – Mandel NGAN/AFP – Chris Kleponis/AFP

ORDEM DE ATACAR

Bush e Paulson (na montagem) usaram a riqueza e a força para impedir o desastre. Vão cobrar caro por isso



Se as novelas de televisão são sempre histórias sobre ricos com problemas que o dinheiro não resolve, a maior crise dos mercados financeiros do século XXI é uma história sobre ricos e pobres com problemas que o dinheiro resolve – pelo menos em parte.

A crise eclodiu na segunda-feira passada, quando um dos mais tradicionais bancos de investimento de Wall Street, o Lehman Brothers, foi a pique e afundou sem que seus pares ou o governo americano lhe estendessem uma mão salvadora. O naufrágio do Lehman foi fagulha no arsenal.

Outro banco tradicional, o Merrill Lynch, correu para debaixo das asas do Bank of America, vendido por 50 bilhões de dólares, dois terços do seu valor de mercado. Lehman Brothers e Merrill Lynch, para quem não é familiarizado, eram astros de primeira grandeza.

Logo outras estrelas começaram a se descolar do firmamento e cair sobre a cabeça dos investidores não mais apenas nos Estados Unidos, mas do outro lado do Atlântico. A maior hipotecária inglesa, o HBOS, foi vendida às pressas ao Lloyds.

O pânico virou terror quando a operação de salvamento pelo governo americano da maior seguradora do mundo, a AIG, teve o efeito de aumentar ainda mais a já ebuliente ansiedade geral. No meio da semana parecia que o mundo financeiro havia perdido a consistência interna e, sem as leis universais que o mantinham coeso, ameaçava derreter.

Na quinta-feira, quando as bolsas mundiais já perdiam no total quase 4 trilhões de dólares, Washington mandou a cavalaria. Henry Paulson, secretário do Tesouro americano, anunciou que os Estados Unidos estavam dispostos a "gastar centenas de bilhões de dólares" para "desintoxicar" os bancos com dívidas podres em seus balanços.

A promessa de mais dinheiro, o soar do clarim e o tremular da bandeira transformaram o pânico em euforia, e a semana terminou com as bolsas em altas histéricas em todo o mundo. O sistema voltou a acreditar em si mesmo. O capitalismo está salvo. Fim do primeiro capítulo.

Indranil Mukherjee/AFP

DESFILE NA ÍNDIA

A modernização dos países emergentes, o crescimento elevado da China e até a criação de uma nova classe média no Brasil se devem à bolha que estourou

A novela continua. Seu final depende de que os investidores também voltem a acreditar no sistema a longo prazo. Sim, porque a euforia do fim da semana passada, que deu às bolsas a maior valorização da história na sexta-feira, é apenas o reverso do pânico.

É o outro lado do mesmo sentimento. Os especialistas têm até um termo para o fenômeno – panic buying, em inglês, como é todo o vocabulário desse universo em mutação.

Nessa voracidade para comprar, exatamente como as donas-de-casa na famosa liquidação anual do Magazine Luiza, os investidores ignoram fundamentos e correm em busca das ações que eles acreditam terem se desvalorizado demais. Para vendê-las no dia seguinte, não mudam a cara. Recuperar a confiança no sistema é outra história (veja o quadro Depois da farra).

Apenas como exemplo, examine-se o ocorrido com os dois únicos bancos de investimento de primeira linha dos Estados Unidos que escaparam da crise – o Morgan Stanley (MS) e o Goldman Sachs (GS). O MS perdeu quase um quarto de seu valor em bolsa, suas ações caíram 24% e o banco agora procura furiosamente uma fusão com alguma instituição comercial tradicional.

O Goldman Sachs, o primeiro de sua classe, perdeu 14% de valor em bolsa. É o único que deve continuar existindo com o próprio nome e gerência depois da segunda-feira negra da semana passada.

Sendo o melhor, o mais sólido e o mais reputado dos bancos de investimento, o Goldman Sachs serve como base para a análise do sistema financeiro mundial atual, o que esta reportagem e as seguintes se propõem a fazer. O sistema se apóia em duas pernas.

Uma, bem fininha, chama-se liquidez – ou seja, a capacidade de devolver aos investidores o dinheiro investido e os lucros quando eles assim o desejarem.

Se um banco tem capacidade de devolver cada dólar a cada um dos investidores de uma só vez, ele tem 100% de liquidez. Um banco assim não precisa ter a segunda perna de sustentação do sistema, a confiança. O Goldman Sachs tem apenas 1 dólar para cada 25 dólares investidos.

No jargão técnico, ele tem uma alavancagem de 25 – em termos reais são 40 bilhões de dólares em dinheiro de clientes para 1 trilhão de dólares de investimentos. Relembrando, o Goldman Sachs é o mais sólido e o único que sobreviveu incólume. Imagine-se, então, a alavancagem dos que sucumbiram.

Pelos cálculos da consultora McKinsey, a alavancagem média do sistema financeiro americano é de 10 – ou seja, em caso de um colapso total cada pessoa salvaria 1 dólar de cada dez investidos.

Um gráfico desta reportagem tem vários exemplos desse tipo de alavancagem, entendida como a produção de riqueza financeira a partir de riqueza real ou a partir até de dívidas. A produção de riqueza financeira sobre dívidas, a securitização, está na base de toda a questão sobre a credibilidade do sistema e ajuda a explicar a crise de confiança da semana passada.

Em resumo, algumas brilhantes mentes de Wall Street encontraram um meio de transformar dívidas, principalmente imobiliárias, em investimentos. Até aí nenhuma ousadia especial. O pulo-do-gato, que caiu de costas na semana passada, foi misturar em um mesmo pacote "dívidas podres", ou incobráveis, com dívidas contraídas por pessoas com vontade e capacidade de honrá-las.

E, claro, empacotar e rotular tudo como dívida boa. Isso equivale a misturar água de esgoto a água filtrada e vender o volume total do líquido como soro fisiológico.

Assim, um título da dívida assinado por um comprador de casa honesto e com bom salário passou a ter o mesmo valor (ou quase, para sermos exatos) de um título de um comprador deliciosamente apelidado de Ninja (no income, no job, no assets), alguém sem salário, sem emprego e sem patrimônio.

A McKinsey mostrou que há menos de vinte anos esse universo financeiro era muito menor e bem menos complexo.

Para um PIB real global de 10 trilhões de dólares em 1980, havia de ativos financeiros no planeta cerca de 12 trilhões de dólares. Em 2006, enquanto o PIB real mundial chegava a 48 trilhões de dólares, os ativos financeiros batiam em 170 trilhões de dólares – a maior parte desse valor fabricada com aquela mistura de dívidas boas e dívidas ruins de que se falou acima.

O planeta finanças tornou-se gigantesco e formado por gases tóxicos misturados a gases respiráveis. Não por acaso, a expressão usada pelo secretário Henry Paulson foi "desintoxicar" os balanços dos bancos de modo a identificar as dívidas podres.

O governo americano vai bancar essas dívidas e procurar devolver ao sistema não apenas sua credibilidade, mas sua liquidez, além de, no processo, tentar que essas duas características não andem mais tão separadas.

Com o mundo salvo pela ação do governo americano, tem-se folga para calcular quanto vai custar a operação "desintoxicação" do sistema, imaginar como ele vai funcionar daqui para a frente e refletir sobre que efeitos positivos no mundo real teve a farra financeira.

Comecemos pela última questão. Bolhas destroem riquezas quando estouram, mas também criam, e muitas, quando são infladas. É justamente o caso da bolha que estourou na segunda-feira passada.

Na sua fase de crescimento, essa mesma bolha, esse mesmo sistema tóxico e demonizado da semana passada, foi o que produziu a liquidez mundial capaz de tirar da miséria centenas de milhões de pessoas na China e no Brasil, principalmente. Graças ao sistema financeiro, quase meia centena de países antes estagnados hoje cresce a taxas de 7% ou mais por ano.

O aumento do nível e da qualidade de consumo no Brasil, a economia pujante do país e, por conseqüência, a popularidade recorde do presidente Lula se devem a cabeças brilhantes e maquiavélicas de Wall Street que inventaram esses gigantescos instrumentos de liquidez mundial.

Por esse prisma, é uma pena que a bolha tenha estourado. Limpar a bagunça vai custar cerca de 1 a 2 trilhões de dólares – o mesmo custo de cinco a dez anos de guerra no Iraque. Quem vai pagar? O contribuinte americano.

Mas boa parte disso será recuperada pelo Tesouro americano no mercado – e, a se fiar em operações salvadoras anteriores, com lucro. Finalmente, como vai funcionar o sistema daqui para a frente? Será menor, sem dúvida. No começo, com mais cautela e mais regulação.

Depois, ninguém sabe. Com a palavra, Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, o banco central americano: "Se um banco concede um empréstimo sem saber se o cliente pode pagar, quem vai saber? O governo? Impossível".

Depois da farra



O americano Norman Gall, diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sugere quatro ajustes para evitar que os mercados produzam novas bolhas de irracionalidade financeira.

Seu ensaio "Dinheiro, ganância, tecnologia" foi publicado no Braudel Papers, jornal do instituto, acessível no site www.braudel.org.br.

Qual é o papel dos governos nessa crise?

Os bancos centrais precisam eliminar os juros negativos, para refrear o excesso de demanda e parar a inflação. Segundo indicadores financeiros publicados semanalmente pela The Economist, 24 de 41 países listados mantêm taxas de juros negativas, liderados pelos Estados Unidos, Japão, China, Índia, Rússia, Chile e Arábia Saudita.

Cinqüenta países já têm inflação anual acima de 10%. A eliminação dos juros negativos pode ser politicamente difícil para as nações individualmente, mas uma ação coletiva e cuidadosamente explicada de vários governos e bancos centrais a facilitaria.

E as taxas de câmbio?

As taxas de câmbio subvalorizadas têm de ser eliminadas. Se as taxas de juros se tornassem positivas, as taxas de câmbio subvalorizadas subiriam para níveis mais realistas, reduzindo as distorções no comércio mundial e nos fluxos financeiros e refreando a escalada da inflação mundial.

Apesar da valorização recente, a taxa de câmbio da China ainda estaria entre um terço e metade abaixo do que seria necessário para o equilíbrio com seus parceiros comerciais. Outros exportadores asiáticos relutam em elevar seus juros, temendo perder competitividade se a China não agir primeiro.

Como regular o mercado financeiro?

É preciso livrá-lo de atividades perigosas e frívolas, como a securitização irresponsável e a proliferação cancerosa de derivativos exóticos.

Os contratos de derivativos que podem ser implementados devem ser limitados a instrumentos padronizados, comercializados em bolsas de compensação reconhecidas que assumam a responsabilidade pela execução final dos contratos.

O que os governos dos países afetados pela crise devem fazer?

Respondendo às adversidades econômicas, os governos deveriam lançar programas de modernização da infra-estrutura comparáveis ao New Deal de Roosevelt nos anos 30, para consolidar a estabilidade política no momento em que os tempos difíceis se aproximam, mostrando preocupação com os setores que enfrentam adversidade e projetando esperança para o futuro.

O New Deal não foi capaz de pôr fim à Grande Depressão, mas seus projetos de obras públicas ajudaram a sustentar o sistema político. As grandes economias, como Estados Unidos, Brasil, Rússia e Índia, e muitas menores também, precisam urgentemente de melhorias em infra-estrutura.


Claudio de Moura Castro

Quem entendeu a nova avaliação do ensino?

"Louvemos a coragem do MEC de gerar e divulgar avaliações. Mas parece inapropriado entregar ao público uma medida tão confusa"

Um médico que ficasse sabendo que seu paciente tem 88 batidas cardíacas por minuto, 39 graus de febre e um índice de 380 de colesterol teria os elementos iniciais para fazer um diagnóstico. Imaginemos agora que somássemos esses três índices e mostrássemos apenas o total. Seria um número sem sentido.

É tal espécie de soma que o MEC acaba de fazer, com o seu novo indicador de qualidade dos cursos superiores, o Conceito Preliminar de Avaliação. Ao somar três indicadores, deixa o público igualzinho ao médico do parágrafo acima.

Pior, junta conceitos individualmente pouco conhecidos. Como o professor Simon Schwartzman havia partido antes na empreitada de entender essa química, juntei-me a ele na preparação do presente ensaio.

O primeiro número levantado pelo MEC é baseado em prova aplicada a uma amostra de alunos de cada curso. É o Enade (a nova versão do Provão), que mede quanto os alunos sabem ao se formar.

É um conceito tão simples e poderoso quanto o resultado de um jogo de futebol. Só que não podemos comparar profissões, como faz o MEC, pois a dificuldade das provas não é a mesma. Se o Grêmio ganhou do Cruzeiro, isso não significa que é melhor do que o Real Madrid que perdeu do Chelsea.

Ademais, o MEC introduziu um complicador. Soma aos resultados da prova aplicada aos formandos a nota dos calouros na mesma prova.

Ou seja, premia o curso superior que atrai os melhores alunos (a maioria deles oriunda de escolas médias privadas). Portanto, soma a contribuição do curso superior à do médio.

Em uma pesquisa de que participei, 80% do resultado do Provão se devia à qualidade dos alunos aprovados no vestibular. Assim sendo, ele favorece as universidades públicas, pois sendo gratuitas atraem os melhores candidatos.

Ilustração Atômica Studio

O segundo ingrediente do teste é o Índice de Diferença de Desempenho (IDD). O Enade mostra quais cursos produzem os melhores alunos.

Contudo, um desempenho excelente pode resultar apenas de haver recebido alunos mais bem preparados. Em contraste, o IDD mede a contribuição líquida do curso superior.

A idéia é boa. Em termos simplificados, calouros e formandos fazem a mesma prova. Subtraindo das notas dos formandos a nota dos calouros, captura-se o conhecimento que o curso "adicionou" aos alunos.

Portanto, mede a capacidade do curso para puxar os alunos para cima, ainda que não consigam atingir níveis altos. É o que faltava na avaliação. Exemplo: na Farmácia temos uma escola com 5 no Enade e 2 no IDD.

Temos outra com 2 no Enade e 5 no IDD. Embora a média seja a mesma, esconde mundos diferentes. A primeira forma os melhores profissionais, porque recruta bem, mas ensina pouco. A segunda produz alunos medíocres, mas oferece muito a eles. Cada indicador tem seu uso.

Finalmente, há o terceiro elemento, o Índice de Insumos. Trata-se de uma lista de descrições do processo de ensino, incluindo o número de doutores, docentes em tempo integral e outros.

Pensemos no famoso Guia Michelin, que dá estrelas aos restaurantes franceses. O visitador vai anônimo ao restaurante e atribui estrelas se a comida e o ambiente forem muito bons.

Jamais ocorreria pôr ou tirar estrelas por conta da marca do fogão, dos horários dos cozinheiros ou do número de livros de culinária disponíveis. Depois que a comida foi provada, nada disso interessa – exceto para algum consultor da área. Para escolher um restaurante, só interessam as estrelas, refletindo a qualidade da sua mesa.

A avaliação da excelência de um curso é como as estrelas do Michelin. Para o público, conhecidos os resultados, os meios ou processos se tornam irrelevantes. Se o aluno aprendeu, não interessa como nem com quem – a não ser aos especialistas.

Mas há outras tolices. Um curso de filosofia em que todos os professores são doutores em tempo integral pode ser ótimo.

Mas seria medíocre um curso de engenharia, arquitetura ou direito em que isso acontecesse, pois as profissões estariam sendo ensinadas por quem não as pratica.

Esse curso ganha pontos pelo perfil dos docentes, justamente quando deveria perdê-los. Há outros desacertos técnicos que não cabe aqui comentar.

Mas, como dito, a falha mais lastimável é a decisão de somar três indicadores que mal sabemos como interpretar individualmente. Louvemos a coragem do MEC de gerar e divulgar avaliações. Mas nos parece inapropriado entregar ao público uma medida tão confusa.

Claudio de Moura Castro é economista (claudio&moura&castro@cmcastro.com.br)

Roseli Loturco

O risco do subprime brasileiro

O crédito para a compra de carros tem sistema similar ao que originou a crise nos EUA

HORA DE FREAR?

Pátio da fábrica da Renault, em Curitiba. Longos financiamentos têm ajudado a manter as vendas em altaEm novembro de 2006, a nutricionista Laís Leiros Barone, com 23 anos, comprou seu primeiro automóvel.

Fez e refez as contas e concluiu que conseguiria pagar os R$ 560 por mês do financiamento, durante 48 meses, para ter seu Corsa Wind 1.0. Era mais de um terço de seu salário, mas Laís, casada e mãe de uma criança de 3 anos, se dispôs ao esforço.

Um ano e meio depois, o marido perdeu o emprego. “Não teve jeito. Vendi o carro por R$ 500 e passei a dívida para a frente. Perdi tudo o que já havia pago.” Há dois meses, Laís pegou outro financiamento. “Hoje estou pagando por mês R$ 502 por um Gol 1.0, ano 2001.”

Luciana Maria Dualibi tem uma situação parecida. Comprou um Corsa 1.0 em maio, financiado em 48 meses. Em suas contas, o que importava não era o valor total do carro, e sim se as mensalidades cabiam em seu bolso.

Cabiam. Mas o carro foi roubado três dias depois da compra. “Hoje ando com um Furgão velho para quebrar um galho até conseguir comprar outro carro”, diz.

Laís e Luciana não estão sozinhas. Só neste ano, até julho, foram financiados R$ 133 bilhões para a compra de carros. Esse tipo de crédito ajudou o setor automobilístico a faturar R$ 71,4 bilhões em 2007 – um quinto da receita de toda a indústria e 5,4% de toda a riqueza produzida no país no ano passado.

Só há um pequeno problema: esses créditos estão sendo vistos por especialistas como um modelo simplificado de subprime, o crédito de alto risco que levou ao colapso o sistema de hipotecas nos Estados Unidos e detonou a atual crise financeira mundial.

A primeira a dar o alerta foi a consultoria americana A.T. Kearney, há pouco mais de dois meses. Ela afirmou que a expansão do crédito passou a incluir consumidores com menos condições de honrar seus compromissos. Na maioria das vezes, isso não é um problema.

O próprio bem comprado a crédito funciona como garantia. Se o comprador não consegue pagar, o vendedor retoma o bem e o revende.

Mas essa lógica deixou de funcionar com os carros brasileiros pelo mesmo motivo que nas hipotecas americanas: com prazos de financiamentos muito longos, o bem perde seu valor de mercado e já não serve de garantia.

A expansão do crédito inclui consumidores com menos condições de honrar seus compromissos

No caso dos carros, um ano após a compra ele vale, em média, 78% do preço original. “Em cinco anos, o valor cai a menos da metade”, afirma Silvana Machado, vice-presidente de Prática de Serviços Financeiros da A.T. Kearney no Brasil.

A expansão do mercado tem ocorrido justamente com o aumento do prazo. Só assim as prestações mensais baixam para dar possibilidade de compra a quem antes não conseguia.

Em 2003, os prazos de financiamento oscilavam entre 24 e 36 meses. Hoje, o padrão são 60 meses. Financeiras mais ousadas fazem contratos de 72 até 99 meses. Com o alongamento das dívidas, o volume de financiamentos quase quadruplicou.

Esse modelo de aumentar as vendas com apoio de financiamentos faz sentido num ambiente de crescimento, como o que o país tem vivido nos últimos anos.

Uma economia que cresce a taxas próximas de 5% ao ano oferece mais oportunidades de emprego e aumento de salário para seus cidadãos. Isso garante que casos como o de Laís e Luciana, que tiveram problemas com sua dívida, sejam exceções, não uma tendência.

A armadilha é que, tal como aconteceu no subprime americano, a sanidade do mercado passa a depender de um único cenário econômico. Lá, a valorização imobiliária constante; aqui, o crescimento econômico constante.

Nos Estados Unidos, a bolha imobiliária estourou. Aqui, o crescimento econômico ainda garante os negócios. Mas a previsão dos economistas, agora, é que dificilmente o Brasil manterá seu crescimento no mesmo patamar. Fala-se em 3,5% do PIB, em vez de 5%.

Mesmo sem esse impacto negativo, a inadimplência no mercado automobilístico já tem crescido. Passou de 3,22% para 3,68% nos últimos 12 meses, até julho. Se o nível do calote crescer muito, poderá afetar a capacidade das financeiras de emprestar.

O resultado seria menos vendas e crescimento menor na indústria automotiva e no setor de autopeças, que afetam a economia como um todo.

Não é o mesmo efeito da crise das hipotecas nos Estados Unidos, porque lá os créditos imobiliários estavam espalhados por todo o sistema financeiro. No Brasil, o problema é mais localizado. Mas nem por isso deixa de ser preocupante.

De certa forma, as correções já começaram a ser feitas. As ações do Banco Central contra a inflação têm um efeito no mercado de carros.

A elevação das taxas de juro e a criação de novos impostos sobre operações financeiras ajudam a conter a alta acelerada do crédito. Também as financiadoras começam a se precaver: os prazos de pagamento caíram um pouco. O teto tem sido 72 meses para financiar o carro – ainda considerado alto pelos analistas de risco.

Os bancos começaram a limitar a concessão de crédito para quem prova que ganha de quatro a cinco vezes mais que o valor da prestação. Até pouco tempo atrás, aceitava-se que o candidato comprometesse 30% de sua renda com a prestação.

“Os bancos devem se preparar e fazer a lição de casa para evitar riscos. Alguns já estão fazendo”, diz Rafael Guedes, diretor-executivo da Fitch Ratings, uma agência de classificação de riscos, no Brasil. O mesmo aviso faz o diretor-executivo para mercados emergentes do banco WetLB, Ricardo Amorim.

“Cuidado com os prazos muito longos, pois a garantia oferecida (o carro) é inexistente”, afirma. “É bom corrigir possíveis vícios agora, enquanto essa carteira ainda não representa risco sistêmico.”


20 de setembro de 2008
N° 15732 - NILSON SOUZA


O piazinho

O ladrão de Passo Fundo roubou a cena esta semana. Depois de furtar um carro na madrugada do Planalto Médio e de rodar alguns quilômetros com o veículo, o homem se deu conta de que havia um menino de cinco anos dormindo no banco de trás.

Ficou furioso. Ligou para a polícia, confessou o crime, comunicou a localização do carro e excomungou o proprietário pela irresponsabilidade de ter deixado uma criança só e desprotegida.

– Eu vou ser bem sincero – disse o amigo do alheio para o policial. – Eu roubei um carro e não vi que tinha um piazinho dentro.

E, na seqüência, mandou um recado ameaçador para o descuidado cidadão:

– Da próxima vez que eu pegar esse auto e estiver o piá lá, eu vou matar ele.

Referia-se ao dono, não ao menino. Quem ouve a gravação da inusitada ocorrência percebe que o meliante refere-se à criança até com certo carinho.

“Piazinho”, diz ele, usando uma expressão bem nossa e bem adequada a estes dias em que celebramos a guerra que nossos antepassados promoveram contra o Brasil imperial.

Fomos derrotados, é verdade, mas conquistamos uma identidade própria que ninguém mais nos tira. E, em bom gauchês, piazinho é mais do que um tratamento descompromissado. Tem um quê de afetividade.

Em sua origem, contam os estudiosos do nosso dialeto, o termo faz parte de uma expressão de ternura com que as índias guaranis tratavam os filhos e as crianças em geral.

Piazinho virou piazito, na conhecida canção campeira que fala do menino condutor de carretas. “Piazito carreteiro, do cusco amigo e companheiro, que nunca teve infância, pois não pôde ser criança porque a vida não deixou”.

E ainda não deixa para muitos deles, seja nos rincões profundos da campanha, seja nas periferias miseráveis das grandes cidades.

Muitas vezes, nossos negligenciados piás sequer têm direito a um sono tranqüilo na madrugada de suas vidas. Mas não ficam completamente desamparados.

Nos momentos difíceis, como acaba de comprovar esta fantástica fábula dos tempos modernos, sempre aparece um Anjo da Guarda Farrapo para vigiar-lhes os sonhos e para arrancar da garganta de seus improváveis algozes expressões surpreendentes como esta:

– Tem um piazinho dormindo no banco de trás!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008



19 de setembro de 2008
N° 15731- LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Do medo e da esperança

Tanto quanto eu saiba – e há dois livros de genealogia atestando – sou descendente de imigrantes portugueses, espanhóis e italianos. Ou seja: de gentes que abandonaram a certeza de suas aldeias e cidades pela absoluta incerteza do Novo Mundo.

Nada disso aconteceu agora: são travessias do oceano de duzentos e tanto a cem anos atrás. Ainda assim leio sobre elas como epopéias, pois construídas do medo e da esperança de pessoas que trocavam vidas previsíveis pelo desafio do desconhecido.

Pois não é que agora venho acompanhando o caminho reverso? Sigo na internet a aventura de jovens brasileiros que vão povoar a Austrália, a Nova Zelândia ou o Canadá.

O que mais me impressiona é a multidão de candidatos. São centenas, são milhares. Nada os intimida, nem mesmo a muralha absurda das exigências burocráticas.

Para alguns desses destinos são requeridos desde o domínio da língua a extensos exames de saúde. Se você for estudar, em certos casos não poderá trabalhar mais do que 20 horas semanais.

Há prazos para tudo, desde a validade de sua carteira de motorista até a extensão de seu contrato de aluguel. E não faltam listas de transgressões – para nós naturais e simples – punidas com a cassação do visto de permanência.

É claro que, apesar dos severos requisitos, ou talvez mesmo por causa deles, aventureiros solitários ou casais teimosos acabam vencendo todas as dificuldades e hoje já nem pensam em retornar ao Brasil. Acharam bons empregos. Moram em apartamentos e casas confortáveis.

São bem pagos e encontram excelentes perspectivas de trabalho. Os filhos falam o idioma da terra. Fizeram amigos entre outros imigrantes ou entre os naturais do país.

Desconhecem o que é o sentimento de violência policial ou social. E se alguém me perguntar onde esse panorama é mais comum eu diria – baseado não mais do que em rápidas leituras – que é no Québec.

Mas se alguém não me perguntar eu ainda assim deixaria aqui o que mais me impressiona nessa busca por céus distantes.

É uma simples indagação. O que deu errado no Brasil para tanta gente querer ir embora?

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008



17 de setembro de 2008
N° 15729 - MARTHA MEDEIROS


A falta que faz a abstração

Em 1983 (em outra vida, portanto), eu iniciava carreira como publicitária e consegui marcar um gol importante para me firmar na profissão: criei um comercial para o digestivo Olina em que aparecia um Frankenstein comendo uma farta refeição em seu castelo, e depois tomando o produto para garantir que tudo seria digerido sem esforço.

Só que, ao terminar de tomar o digestivo, ele devorava também o copo que tinha em mãos.

Percebeu a genialidade? Olina era tão eficiente, que você podia até engolir um copo de vidro que tudo bem. Hoje acho essa idéia totalmente estapafúrdia, mas na época fez um sucesso danado e até prêmio o comercial ganhou.

Pois eu estava toda boba com minha “sacada”, quando um dia abro o jornal e leio na primeira página: “Menina morde copo imitando propaganda e vai parar no pronto-socorro”. Era só o que me faltava.

Eu queria esganar a guria: nunca ouviu falar em efeito especial? (o “efeito especial”: o copo tinha sido feito com uma geléia endurecida). E de mais a mais: Frankenstein lá existe? Fiquei possessa. Claro, estava com medo de ir para a cadeia.

Não é comum, mas acontece: alguém salta da janela crente que é o Super-Homem ou dispara contra estudantes porque viu fazerem isso num jogo de computador. Dã.

Recentemente, um rapaz produziu notas falsas de dinheiro dizendo que havia se inspirado no filme O Homem que Copiava, de Jorge Furtado. E aí fica a pergunta no ar: qual a responsabilidade dos criadores frente às atitudes de quem consome suas obras?

A resposta deveria ser: nenhuma. Se alguém não sabe abstrair, tem que nascer de novo e começar do zero. O problema é que muita gente, em vez de refletir sobre o que vê, simplesmente imita o que vê, e aí saem a dirigir feito loucos, como num filme de ação, ou se comportam de forma vulgar, a exemplo de alguma personagem de novela.

Absorver o mundo de forma literal é falta de cultura e de inteligência.

Uma criança sabe que não pode voar, que não pode escalar paredes e que não pode mastigar copos de vidro. Já tem alguma noção do que é realidade e do que é fantasia, já sabe que dragões e duendes não existem, já descobriu que ninguém na sua família e na escolinha tem superpoderes.

Se ela ainda confunde esses universos, é porque não teve acesso ao mundo espetacular da arte e do nonsense, que serve justamente para a gente abstrair. E seguirá confundida pela vida afora.

Nessa sociedade high-tech e imediatista, muitos se perguntam: para que serve a leitura? Pois é, pra quê? Tem tanto CD-ROM estimulante, tanto programa sexy e violento, tanta facilidade de aventura nas ruas da cidade, tanta besteira aceita como cultura, pra que ler?

Literatura talvez não tenha mais serventia nenhuma, a não ser para evitar o surgimento de gente tola.

Levar tudo literalmente a sério é um sintoma gravíssimo da falta de imaginação, da falta de raciocínio e da robotização de uma galera que não sabe mais pensar.

Ótima quarta-feira a você - Aproveite o Dia Internacional do sofá.

sábado, 13 de setembro de 2008



14 de setembro de 2008
N° 15726 - MARTHA MEDEIROS


O sempre no nunca

Vivemos num mundo de variados prazeres mundanos, sensoriais, transcendentais, mas poucos são tão valiosos quanto ler um livro bom. O que vem a ser tal coisa?

Cada um tem seu conceito sobre livro bom. Os meus livros bons são aqueles em que eu não consigo parar de sublinhar trechos. É aquele que me faz ter vontade de voltar logo pra casa e me enfiar na cama com ele. É o livro que já começa a me dar saudades antes mesmo de acabá-lo.

E quando termino, em vez de pegar outro, quero começar a lê-lo outra vez. Fantasma Sai de Cena, de Philip Roth, não foi pra mim um livro bom, foi fora de série.

O que escolher para ler em seguida e não deixar o êxtase se esvair? Peguei A Elegância do Ouriço, da francesa Muriel Barbery. Não chega a ser um Roth, mas é um livro especial.

Duas narradoras que moram num mesmo prédio elegante de Paris: uma é a zeladora, que é culta, mas para os inquilinos se faz de ignorante, porque é isso que os esnobes que moram lá esperam de uma zeladora (são impagáveis os momentos em que ela se esforça para falar errado de propósito,

pra não dar pinta da sua erudição), e a outra é uma espertíssima menina de 12 anos, filha de um deputado e de uma dondoca, e que despreza o universo fútil em que vive.

Em algum momento, claro, essas duas avis raras que habitam o mesmo endereço francês irão se cruzar, mas, até lá, nos oferecem uma narrativa deliciosa, cada qual na sua. Quando finalmente se encontram na história, bom, aí fazem a festa do leitor.

É um livro filosófico, inteligente e engraçado. Desconstrói certas verdades estabelecidas e, de lambuja, ainda reserva um pouco de poesia nas últimas páginas.

Ou muita poesia. Diante da dor dilacerante, o que buscar? O belo. Diante do impossível, diante de uma vida inútil, diante daquilo que não aconteceu nem acontecerá, o que nos compensará?

Um único instante sublime. Em todo “não”, há um filete de “sim”. Em toda descrença, há uma possibilidade de certeza. É o que a autora chama, no livro, de “o sempre no nunca”.

Basta a lembrança de um piano que tocava em determinado momento de angústia, basta um pedaço de pano colorido que se destacou na hora de reunir as roupas de um morto, basta uma frase especial de uma amiga quando a noite prometia ser um suplício, e a nossa desilusão eterna se atenua.

Para a maioria das pessoas, os dias correm e parece que os sonhos nunca se realizarão. Nunca.

Mas em meio a esse nunca, há de ter um pedacinho afetivo de sempre. Aquela lembrança, aquela foto, aquela música, aquele instante que ficou alheio ao tempo, imortal.

O sempre no nunca. Há em tudo, basta um pouco de doçura para reconhecê-lo.

Giuliano Guandalini

As defesas da supereconomia

O Brasil resiste de maneira inédita aos choques da crise externa e festeja o aumento do crescimento e o recorde nos investimentos



Desde que eclodiu, há um ano, a crise dos mercados financeiros freou a atividade econômica nos países ricos e contagiou as bolsas em todo o planeta.

A despeito dessa tormenta, no entanto, a economia brasileira segue inabalável.

De acordo com números divulgados na semana passada, o PIB (produto interno bruto, soma de todas as mercadorias e serviços produzidos pelo país) cresceu num ritmo forte de 6,1% no segundo trimestre deste ano.

O país, assim, deve completar dois anos consecutivos com aumento do PIB acima de 5%, o que não ocorria havia mais de duas décadas.

O que é melhor: o crescimento foi puxado por um avanço recorde de 16,2% nos investimentos produtivos, ou seja, está-se diante de um crescimento sadio e, ao que tudo indica, sustentável.

Como o país prospera em meio à turbulência dos mercados mundiais? São várias as razões. Uma delas, como mostra a Carta ao Leitor desta edição, é a ascensão de 20 milhões de novos consumidores no Brasil. Esse contingente veio das classes D e E e atingiu os níveis de consumo de classe média, mesmo que ainda nos primeiros degraus.

Eles não emergiram por motivos fortuitos. O país teve de arrumar a casa antes. Desde 1994, a economia foi se cercando de escudos protetores que lhe permitem hoje navegar com mais segurança e capacidade em momentos de tormenta externa, como agora.

Pois é essa imunidade ao contágio externo, ainda que imperfeita e não testada em situações de gravidade máxima, que permite ao Brasil comemorar recordes de investimentos e de consumo privado, a despeito da crise nas bolsas do mundo – com reflexo no nosso próprio mercado acionário. Alguns desses escudos são amplamente conhecidos.

Entre eles, a manutenção de políticas econômicas previsíveis e responsáveis há mais de uma década. O país beneficia-se do fato de ter aderido ao que se faz de mais sensato no mundo, em termos de condução da política econômica.

Ricardo Stuckert/PR

O AÇÚCAR DO PRÉ-SAL

O presidente Lula e a ministra Dilma dão largada à exploração das novas reservas de petróleo: mais dólares para o país

O pilar dessa política é a defesa constante do poder de compra da moeda, por meio do combate à inflação e do controle do déficit público. Outro escudo fundamental, menos conhecido, porém, dá a maleabilidade necessária para que a economia possa se auto-ajustar diante das intempéries. Esse mecanismo é o câmbio flexível.

Quando os preços do petróleo e de outras commodities começaram a subir rapidamente nos mercados internacionais, o dólar perdeu valor no Brasil. A queda da moeda americana torna os produtos importados mais baratos, contribuindo, assim, para o combate à inflação.

Por outro lado, quando as importações começam a crescer de maneira excessiva, o dólar volta a ganhar valor, desestimulando um avanço ainda maior das compras externas e incentivando as exportações.

Esse mecanismo de auto-ajuste permitiu ao país livrar-se de seu histórico desequilíbrio nas contas externas. Favorecido pela demanda internacional por alimentos e minérios – e beneficiado pela sua competência na produção dessas mercadorias –, o país tem batido recordes atrás de recordes em suas exportações.

Os dólares obtidos pela balança comercial foram guardados e depositados nas reservas internacionais. Essa poupança externa supera atualmente 200 bilhões de dólares.

São recursos suficientes para honrar todos os débitos internacionais do país e, graças a eles, o Brasil deixou de ser devedor para ser credor externo. Contra essa couraça protetora, o ataque dos especuladores tem poder de fogo reduzido.

Nos números do PIB divulgados na semana passada, dois setores aparecem com destaque: o financeiro e o imobiliário. Diz o economista Sérgio Vale, da consultoria MB Associados: "Ambos refletem os avanços institucionais e legais alcançados nos últimos vinte anos e que, agora, começam a dar resultados".

O setor imobiliário é um bom exemplo disso. Antigamente, os bancos enfrentavam obstáculos para reassumir imóveis de clientes inadimplentes.

A lei anterior, supostamente destinada a proteger os mutuários, fez com que, na prática, os bancos parassem de financiar a compra de residências. Com o fim desse obstáculo e a diminuição nas taxas de juros, os empréstimos deslancharam – houve um crescimento de 59% no primeiro semestre do ano.

Houve ainda outras reformas importantes, ainda que executadas pela metade, que também ajudaram no aumento da produtividade da economia. "Sem a abertura econômica e as privatizações, não estaríamos nesse novo patamar de crescimento", conclui Vale.

Leo Feltran

PILAR DO MERCADO

Construção residencial no litoral de São Paulo: em crise nos EUA, os setores imobiliário e de crédito lideram o crescimento do PIB brasileiro

Uma reportagem nesta edição de VEJA mostra que, graças à economia aberta e à estabilidade, o Chile terá padrão de renda de Primeiro Mundo em 2020.

O Brasil, que só deverá chegar lá em 35 anos, poderá encurtar esse tempo pela metade se mantiver o ritmo de elevação da riqueza verificado no primeiro semestre. Isso é possível? Sim, desde que o país enfrente seus fantasmas remanescentes.

Segundo o economista Alexandre Marinis, diretor da consultoria Mosaico Economia e Política, o gigantismo do estado ainda joga contra. "Os investimentos privados deveriam se somar àqueles feitos pelo setor público, mas não é o que vem ocorrendo.

O governo tem privilegiado outras despesas, como a contratação de servidores e o aumento salarial do funcionalismo. Deveríamos ter o estado parceiro do crescimento, mas ele tem sido um obstáculo."

A redução dos gastos da manutenção da máquina pública seria essencial para ajudar a conter a inflação e, assim, evitar que o Banco Central (BC) suba ainda mais a taxa básica de juros, a Selic.

"Como o governo não faz sua parte, o BC terá de elevar os juros um pouco mais, e assim conter o excesso de demanda", afirma o economista Alexandre Schwartsman (leia no quadro abaixo).

Nesse ambiente interno favorável, de forte crescimento e retomada dos investimentos, a queda recente na Bovespa deve ser entendida, fundamentalmente, como um fenômeno importado, decorrente da crise no centro do capitalismo mundial e de um reequilíbrio no valor dos investimentos.

Os bancos e fundos de investimento europeus e americanos têm registrado perdas bilionárias. Para taparem o rombo em sua contabilidade, essas instituições financeiras vendem parte dos ativos lucrativos de que dispõem – incluídas aí as ações das empresas brasileiras.

Além disso, como observa o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, as commodities haviam se valorizado excessivamente, o que inflou o preço das ações de empresas brasileiras do setor. Agora esse fenômeno passa por um ajuste.

Afirma Mendonça de Barros: "Vivemos hoje a ruptura de uma nova bolha, representada pelas aplicações financeiras em ações de países emergentes, entre eles o Brasil".

Na avaliação de Alexandre Póvoa, diretor da firma de investimentos Modal Asset Management, após a queda dos últimos dias, há muitas ações com preços atraentes. "Mas o investidor brasileiro, sozinho, não consegue sustentar a bolsa", diz Póvoa.

"Enquanto os estrangeiros não voltarem a comprar ações brasileiras, dificilmente a Bovespa voltará ao pico de alta registrado em maio passado." E quando isso ocorrerá? Ninguém sabe ao certo.

Pick Imagem

INFERNO BUROCRÁTICO

Funcionários da área tributária da fábrica de pães Wickbold: a dura tarefa de lidar com o pagamento de dezessete tributos

Olhando à frente, o Brasil conta com uma grande oportunidade (as reservas de petróleo do pré-sal), um desafio (retomar as reformas) e uma vulnerabilidade (a gastança do setor público).

Na semana passada, a Petrobras informou que o Campo de Iara, na Bacia de Santos, possui até 4 bilhões de barris de petróleo.

Somados aos estimados 8 bilhões de Tupi, apenas essas duas jazidas guardam o potencial de praticamente dobrar as reservas conhecidas do país – hoje em 13 bilhões.

A expectativa é que, a partir de 2012, o país passe a ser um grande exportador de petróleo e derivados.

Isso é importante porque reforçará ainda mais as reservas em moeda forte do país, ao mesmo tempo em que atrairá uma nova onda de investimentos – isso, lógico, desde que a exploração seja feita de maneira inteligente e transparente.

O grande desafio para o Brasil nos próximos anos será acelerar as reformas, como a melhora na educação e a racionalização do sistema tributário. Esses avanços são necessários para assegurar os ganhos de produtividade.

A grande vulnerabilidade que paira sobre a economia nacional é a gastança pública. Se, de um lado, o país soube poupar os dólares obtidos com o aumento das exportações, por outro gastou cada centavo arrecadado a mais com o aumento da carga tributária ocorrido na última década.

O governo federal tem concedido ao funcionalismo os maiores reajustes reais de que se tem notícia na história republicana, além de ter contratado mais de 200 000 servidores nos últimos cinco anos. É uma conta pesada, que será deixada para o próximo governo.

O avanço dessas despesas impede que a dívida pública diminua mais rápido, o que permitiria juros mais baixos, e exige que a arrecadação tributária permaneça em alta.

Essa receita venenosa pode não ser suficiente para aniquilar a pujança econômica – nem mesmo nesse momento de elevado pessimismo internacional –, mas impede o país de acelerar a velocidade e alçar vôos mais altos, estreitando mais rapidamente o fosso que ainda o separa das nações desenvolvidas.

Lya Luft

Setenta anos, por que não?

"Hoje em dia, fazer 70 anos é uma banalidade. Vou reunir filhos e pouquíssimos amigos e fazer aquela festona nos 80"

Acho essa coisa da idade fascinante: tem a ver com o modo como lidamos com a vida. Se a gente a considera uma ladeira que desce a partir da primeira ruga, ou do começo de barriguinha, então viver é de certa forma uma desgraceira que acaba na morte.

Desse ponto de vista, a vida passa a ser uma doença crônica de prognóstico sombrio. Nessa festa sem graça, quem fica animado? Quem não se amargura?

O tempo me intriga, como tantas coisas, desde quando eu tinha uns 5 anos. Quando esta coluna for publicada, mais ou menos por aqueles dias, estarei fazendo 70.

Primeiro, há meses, pensei numa grande festa, eu que sou avessa a badalações e gosto de grupos bem pequenos.

Mas pensei, bem, 70 vale a pena! Aos poucos fui percebendo que hoje em dia fazer 70 anos é uma banalidade. Vou reunir filhos e pouquíssimos amigos e fazer aquela festona nos 80. Ou 90.

Ilustração Atômica Studio

Pois se minhas avós eram damas idosas aos 50, sempre de livro na mão lendo na poltrona junto à janela, com vestidos discretíssimos, pretos de florzinha branca (ou, em horas mais festivas, minúsculas flores ou bolinhas coloridas),

hoje aos 70 estamos fazendo projetos, viajando (pode ser simplesmente à cidade vizinha para visitar uma amiga), indo ao teatro e ao cinema, indo a restaurante (pode ser o de quilo, ali na esquina), eventualmente namorando ou casando de novo.

Ou dando risada à toa com os netos, e fazendo uma excursão com os filhos. Tudo isso sem esquecer a universidade, ou aprender a ler, ou visitar pela primeira vez uma galeria de arte, ou comer sorvete na calçada batendo papo com alguma nova amiga.

Outro dia minha neta de quase 10 anos me disse: "Você é a pessoa mais divertida que conheço, é a única avó do mundo que sai para comprar mamão e volta com um buldogue". Era verdade.

Se sou tão divertida não sei, mas gosto que me vejam não como a chata que se queixa, reclama e cobra, mas como aquela que de verdade vai comprar a fruta de que o marido mais gosta, anda com vontade de ter de novo um cachorro e entra na loja quase ao lado do mercado.

Por um acaso singular, pois não são cachorros muito comuns, ali há um filhotinho de buldogue inglês que voltou comigo para casa em lugar da fruta. Foi batizada de Emily e virou mais uma alegria.

E por que não?

Por que a passagem do tempo deveria nos tornar mais rígidas, mais chatas, mais queixosas, mais intolerantes, espantalhos dos afetos e da alegria?

"Why be normal?", dizia o adesivo que amigos meus mandaram fazer há muitos anos para colocarmos em nossos carros só pela diversão, pois no fundo não queria dizer nada além disso:

em nossas vidas atribuladas, cheias de compromissos, trabalho, pouco dinheiro, cada um com seus ônus e bônus, a gente podia cometer essa transgressão tão inocente e engraçada, de ter aquele adesivo no carro.

Não precisamos ser tão incrivelmente sérios, cobrar tanto de nós, dos outros e da vida, críticos o tempo todo, vendo só o lado mais feio do mundo. Das pessoas.

Da própria família. Dos amigos. Se formos os eternos acusadores, acabaremos com um gosto amargo na boca: o amargor de nossas próprias palavras e sentimentos.

Se não soubermos rir, se tivermos desaprendido como dar uma boa risada, ficaremos com a cara hirta das máscaras das cirurgias exageradas, dos remendos e intervenções para manter ou recuperar a "beleza".

A alma tem suas dores, e para se curar necessita de projetos e afetos. Precisa acreditar em alguma coisa.

O projeto pode ser comprar um vaso de flor e botar na janela ou na mesa, para contemplarmos beleza.

Pode ser o telefonema para o velho amigo enfermo. Pode ser a reconciliação com o filho que nos magoou, ou com o pai que relegamos, quando não nos podia mais sustentar.

O afeto pode incluir uma pequena buldogue chamada Emily, para alegrar ainda mais a casa, as pessoas, sobretudo as crianças, que estão sempre por aqui, o maior presente de uma vida de apenas 70 anos.

Lya Luft é escritora


Por que é preciso fazer as reformas

As mudanças estruturais no sistema de impostos e da Previdência são essenciais para corrigir os erros dos constituintes – e para quebrar as amarras que limitam o crescimento da economia brasileira
Murilo Ramos

SEM ESTRUTURA

Uma rodovia federal no Pará (à esq.) e um trecho da Ferrovia Norte–Sul, no Maranhão, que foi projetada há 20 anos e ainda não está pronta. Apesar da arrecadação maior, o Estado não tem como investir em infra-estrutura



Um ano antes de a Constituição ser promulgada, o economista e ex-ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen estava preocupado.

Num artigo memorável, construído à base de erudição, críticas irônicas e idéias lógicas, expressou o temor de que o texto então em elaboração pelos parlamentares pudesse comprometer o futuro do Brasil.

Simonsen vislumbrava que a futura Constituição confiaria ao governo o papel de grande provedor da nação.

“É precisamente na preservação desse sistema de favores, pelo qual o Congresso finge acreditar na possibilidade de o Estado resolver todos os problemas nacionais, que está o mais sério risco para o país”, escreveu. Simonsen dizia que o Brasil andava na direção errada. Para nosso azar, estava certo.

Os receios de Simonsen se confirmaram no decorrer das últimas duas décadas. Se deu um passo fundamental para estabelecer direitos e lançar as bases da necessidade de investimentos na área social, a Constituição de 1988 colocou um peso financeiro insuportável sobre o Estado brasileiro.

Por causa das obrigações de gastos sociais criadas pela Constituição, as despesas do governo – sem contar o pagamento de juros – passaram de 14% para 24% do PIB entre 1991 e 2006. No mesmo período, os gastos sociais cresceram de 6,3% para 14% do PIB.

A Previdência Social é um caso exemplar da prodigalidade dos constituintes. Na ânsia de ampliar os direitos sociais, eles puseram no texto não só o direito à aposentadoria até mesmo para quem não contribuíra, como estabeleceram que as aposentadorias seriam reajustadas junto com o salário mínimo.

Resultado: o Brasil, país de população jovem, gasta cerca de 12% do PIB com despesas previdenciárias, padrão similar ao de países de população bem mais velha, como a Alemanha. Em dez anos, o déficit previdenciário somou quase meio trilhão de reais.

“Fizemos as escolhas erradas. Em vez de ensinar a pescar, demos o peixe a todos, sem distinção”, afirma o economista Fábio Giambiagi, diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Ele é autor do livro As Raízes do Atraso, uma crítica arrasadora dos efeitos das políticas sociais introduzidas a partir de 1988 e das opções econômicas feitas pelo Brasil. “Nos próximos 50 anos, os historiadores vão julgar a Constituição de 1988 com extrema severidade”, diz.

Não por acaso, foi a partir da Constituição que o governo começou a correr em busca de mais dinheiro para bancar suas obrigações. A carga tributária, que estava na casa dos 20% do PIB em 1988, começou a subir. Hoje está em 37% do PIB, um dos níveis mais altos do mundo.

O problema é tão agudo que a Associação Comercial de São Paulo criou até mesmo um contador de impostos, o Impostômetro. É uma espécie de relógio, exposto no centro de São Paulo, que conta, em tempo real, a entrada de reais nos cofres do governo.

PREMONIÇÃO

Simonsen, um ano antes da promulgação da Constituição, previu seus efeitos desastrosos para a economiaA alta arrecadação reduz a capacidade de investimentos das empresas e enche os cofres do governo.

Mas não tem sido suficiente para bancar os investimentos necessários para elevar o padrão da precaríssima infra-estrutura brasileira.

De acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), de cada 10 quilômetros de estradas, 3 são ruins ou péssimos. Isso produz custos maiores no transporte – que são repassados aos preços – e prejuízos.

Só na safra agrícola, o desperdício em virtude de perdas no escoamento é de R$ 4 bilhões por ano.

O Brasil caiu numa armadilha: não tem dinheiro para investir em infra-estrutura, – condição necessária para um crescimento maior e para reduzir a pobreza – justamente porque gasta em benefícios sociais para aliviar os efeitos dessa pobreza.

Para o especialista em contas públicas Raul Velloso, a Constituição de 1988 refletiu o desejo da sociedade brasileira em reparar dívidas sociais antigas, assunto preterido pelos governos militares enquanto estiveram no poder.

“O modelo adotado foi o aumento da arrecadação para financiar os gastos públicos”, afirma Velloso.

Essa opção, segundo ele, explica as taxas de crescimento medíocres, não superiores a 3%, nos anos posteriores à publicação da Constituição. “Foi uma opção diferente da chinesa. Em 30 anos, a partir de 1978, a economia da China cresceu quatro vezes”, diz ele.

Os princípios econômicos básicos não foram levados em conta na elaboração do texto constitucional. Além dos gastos criados sem pensar nas receitas, a Constituição foi publicada com artigos irreais.

Um deles fixava um limite de 12% ao ano para os juros – algo incompatível com a realidade de uma economia de mercado.

Se fosse seguido à risca, todos os últimos presidentes do Banco Central deveriam ser presos. Na prática, o país ignorou a determinação por meio de uma interpretação jurídica peculiar do texto constitucional.