sábado, 31 de agosto de 2013


01 de setembro de 2013 | N° 17540
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu coração em tuas mãos

– Escute meu coração! – ela me pediu.

Achei bobagem. Concluí que era coisa de criança, que adultos não deviam perder tempo ouvindo o coração. Lembrava uma infantilidade, uma doçura extravagante. Apesar de minha recusa, ela colocou minha palma esquerda sobre seu peito.

Fingi interesse até que a sequência virou música. Fazia muito que não ouvia o coração com as mãos. A mão é o ouvido perfeito. A mão é uma concha natural; o oceano nos dedos.

Naquela hora, eu capturei o animal acelerado, seu silêncio enervado, seu desejo correndo para todas as veias da boca. Espantei-me com a banalidade, a redescoberta do óbvio, como se estivesse aprendendo a amarrar os cadarços depois de velho.

Eu entendia o que ela estava sentindo melhor do que se falasse. Eu via que ela era real, e que ela era possível. As palavras foram se tornando palpáveis. As frases cresciam em sentido. É como um coro que desmancha a solidão do pensamento.

Eu me apavorei com o meu desconhecimento do gesto. Por que não cumprimento as pessoas escutando seu coração? Por que abandonei o hábito de pequeno? Por que reservei a mecânica ao médico?

Por que não me permitia ser despudoradamente emocional? Ouvir o coração é como acompanhar os passos num piso de madeira. A gente identifica o familiar avançando pela casa, somos capazes de adivinhar o cômodo em que se encontra.

Ouvir o coração é como ouvir um órgão numa igreja, não um piano. Há uma diferença de fundo. Os tubos de metal e de madeira ressoam como um segundo sino, em caixas de cinco andares.

Ecoa um planger épico, inevitável. O corpo já treme ao andar. O coração é mesmo um altar, mas quem ainda escuta? Ouve-se o batimento da criança no ventre, os pais se emocionam com os primeiros sinais de vida de seus filhos, mas nos desacostumamos com o próprio ritmo. Ninguém nos inspira ou exige sua consulta.

Esquecemos de conferir o beijo, o abraço e o toque registrados lá, na linha cardíaca.


Com o coração dela em minhas mãos, compreendi qual o nosso medo. Quem escuta o coração não machuca o outro. Será responsável pela fraqueza. Sofrerá esperando o próximo suspiro do som. Estará consciente do intervalo de cada batida. Tem noção do que é ferir, e como dói ser sozinho.

01 de setembro de 2013 | N° 17540
MARTHA MEDEIROS

Meu coração em tuas mãos

Não é porque ele foi grosseiro comigo que eu tinha que ser grosseira com ele também, mas fiz, está feito, agora acabou, solidão pra sempre é o que me espera, assim como aquela dívida maldita que só aumenta, meus credores não têm nenhuma compaixão, vou ter que vender meu carro para pagá-la, e essa tosse insistente só pode significar que estou condenada, sem falar que minha filha ainda não voltou da festa, pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, como está quente nesse quarto, eu nunca mais vou conseguir dormir, nunca mais, vou acordar com olheiras até o queixo, sou uma miserável que... zzzzzz.

E então você acorda, abre as cortinas da janela, e recebe um telefonema do seu amor reconhecendo que andou abusando da sua paciência e que está morrendo de saudades, e entra um trabalho freelancer que ajudará a pagar a conta atrasada, e a tosse passa com Melagrião, e a filha está dormindo feito um anjo no quarto ao lado, e as suas olheiras estão aparentes mesmo, mas nada que um corretivo não disfarce. Olhe só, suas preocupações ficaram desse tamanhozinho, de quem foi a mágica?

Do primeiro raio de sol. Durante o dia, nossa cabeça pensa melhor e as soluções aparecem no decorrer das horas. A mente ajusta o foco e não dá trela a fantasmas. Já a madrugada não conhece a palavra sanidade.

A escuridão e o silêncio transformam pequenas chateações em dramas diabólicos, e a gente cai nessa cilada, achando mesmo que estamos lidando com o pior da vida. Mas que vida? Hipercansados, ansiosos, deprimidos, paranoicos, isso é vida? A insônia desperta em nós a morte, isso sim. Ficamos todos ferrados não pela falta de sono, mas pelo excesso de dilemas. Como disse Dostoievski, ser extremamente consciente é uma doença. A gente morre por pensar demais. E pensar é só o que nos resta durante uma insônia.

Mas é possível controlar esses pensamentos malditos.

Em vez de permitir que o cérebro maximize nossos problemas, o melhor seria transformar nossa miséria noturna em algo produtivo. Porém, nem todos conseguem levantar da cama – ainda mais no inverno – a fim de guerrear com seus demônios. Até porque sempre há a esperança de se conseguir dormir pelo menos por uma ou duas horas, o que não acontecerá no caso de acendermos as luzes para pintarmos quadros, escrevermos poemas, fritarmos omeletes, cortarmos o próprio cabelo – ai, não corte o cabelo às quatro da manhã, vá por mim.

Posso fazer uma sugestão? Sem precisar levantar, sem acender a luz, jogue “stop” mentalmente com você mesmo. Países: a, Alemanha; b, Bélgica; c, Canadá; d, Dinamarca... Há grande chance de, antes de chegar no p, Portugal, você já ter adormecido. Se não, siga com o jogo, fazendo seu a-b-c para títulos de livros, comidas, profissões, ruas da cidade. O truque é simples: trocar de preocupação. Ou você prefere continuar fazendo o a-b-c das doenças que poderá contrair ou das pessoas a quem já magoou?

Parece bobagem, e é, mas quase sempre funciona. Jogue “stop” noturno com você mesmo, e stop a insônia.


quarta-feira, 28 de agosto de 2013


28 de agosto de 2013 | N° 17536
MARTHA MEDEIROS

Todos os motivos do mundo

Da série “Morro e não vejo tudo”: 165 mil pessoas de mais de 120 países se inscreveram para participar do programa de assentamento em Marte, projeto elaborado pela organização holandesa Mars One. Os brasileiros estão em terceiro lugar em número de inscritos: 8.686 – perdem apenas para americanos e chineses. No próximo sábado, encerram-se as inscrições.

A empresa pretende desembarcar quatro voluntários em 2023, e depois novos cosmonautas a cada dois anos, a um custo de US$ 6 bilhões, parte financiada por um reality show sobre os primeiros anos de existência da colônia. Idade mínima: 18. Taxa de inscrição: de US$ 5 a US$ 75, dependendo da nacionalidade do cidadão, que deve enviar também um vídeo de um minuto falando sobre os motivos de querer viver em Marte para sempre.

Um minuto de motivos? Cronometre aí.

“Desatentos” que continuam jogando lixo na rua – multa para todos, não só para os cariocas. O custo de vida. Fraudes em licitações. Corrupção em todos os setores da sociedade. A demora em concluir obras. A péssima qualidade dos serviços públicos. Gente levando tiro dentro de hospital. Crianças sendo violentadas por parentes. Policiais envolvidos em crimes. Irresponsáveis dirigindo a 150 km/h. Fanáticos religiosos. Impostos que são verdadeiros assaltos.

Burocracia que impede a agilidade de novos negócios. Calçadas em péssimas condições. Estradas que ficam intransitáveis aos primeiros cinco minutos de chuva. Irregularidades em contratos. Violência urbana sem controle. Professores mal pagos. Funcionários mal treinados. Ruas sem placas de identificação. Tornozeleiras eletrônicas que não funcionam. Enchentes a cada temporal. O quê? Já passou um minuto?

Nem deu tempo de falar do que acontece fora do Brasil, como utilização de armas químicas na Síria, os índices de mortalidade na África, o fundamentalismo islâmico, a recessão europeia etc. etc.

E tem ainda as crises pessoais. O que não falta por aí são pessoas desmotivadas, devendo dinheiro, administrando fracassos, sem perspectiva de crescimento, amargando dores de cotovelo, entediados com a vida, aborrecidos crônicos, sem fé no futuro. A oportunidade de em 10 anos partirem em uma expedição inédita e eternizarem seu nome através de um projeto sem precedentes na história da humanidade daria a eles um sentido pra vida. Colonizar Marte – e com cobertura da imprensa!

A viagem durará alguns meses. A espaçonave é estreita. De alimentação, apenas produtos liofilizados e enlatados. Banho, só com toalha úmida. Desistir no meio do caminho está fora de cogitação. Pedir para descer, nem pensar. E a passagem é só de ida.

Ainda assim, 165 mil pessoas se inscreveram, o que me faz chegar a duas conclusões: que a vida na Terra, definitivamente, não está para brincadeira. E que Marte deve ter wifi grátis.




Linda quarta-feira pra voce!

Às vezes pensamos que a saudade foi feita
só para machucar, mas os dias passam e
percebemos que ela é a maneira mais
certa e clara de sabermos o quanto
gostamos de alguém.




BOA SEMANA!!

Vieram ao Mundo

" Pessoas não foram feitas pra levar escuridão.
Pessoas vieram ao mundo pra irradiar claridade
E iluminar o caminho dos demais.
Que eu possa ser luz por onde eu passe. "

Luzia Trindade


sábado, 24 de agosto de 2013


25 de agosto de 2013 | N° 17533
MARTHA MEDEIROS

O que você vai ser quando crescer?

Numa sociedade competitiva como a de hoje, não é de estranhar que o fator mais importante da vida seja o trabalho. Ele consome nosso tempo e nossas preocupações: temos que ganhar dinheiro, temos que ser os melhores, temos que superar a concorrência e só então... Só então o quê? Morrer?

Crianças mal atingem os cinco anos e já começam a ser sabatinadas sobre o futuro: “O que você vai ser quando crescer?”. E as coitadinhas entram no jogo. Em vez de responderem que pretendem ser surfistas, caroneiras, participantes de um coro ou defensoras da natureza, respondem com a primeira profissão que lhes vêm à cabeça: veterinário, professor, bombeiro. Na verdade, elas não têm a menor ideia do que querem ser – nem os vestibulandos têm – mas já intuem que sua identidade estará atrelada ao que fizerem para se sustentar.

Tanto isso é verdade que os anjinhos crescem, estudam, começam a trabalhar e um dia estão numa festa e são apresentados a alguém. Trocam um aperto de mãos e a primeira pergunta entre os dois desconhecidos será: “O que você faz?”.

E não se ouvirá como resposta “eu levo meus filhos ao estádio, eu participo de rallys aos domingos, eu sou campeão em palavras-cruzadas, eu saio com meu cachorro todo final de tarde, eu vou ao cinema às quintas-feiras, eu namoro a mulher mais incrível do mundo, eu corro maratonas”.

Você responderá que é professor, veterinário, bombeiro. Ou vão achar que você não tem uma vida.

Mas você também. Só que ela ocupa um lugar muito menor do que deveria na sua lista de prioridades. Você passa um terço do dia trabalhando, e outro terço pensando na reunião de amanhã cedo, nas tarefas que ainda não foram concluídas, no cliente que está ameaçando deixar a empresa, no funcionário que não está correspondendo. No terceiro terço você dorme. Mal.

Quem está viciado nesse esquema pode encontrar dificuldade em relaxar. Mas para quem está entrando agora no mercado de trabalho, vale adotar desde cedo uma postura mais equilibrada entre vida pessoal e profissional, começando por repensar essa questão da identidade: você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz. As horas de lazer também são produtivas, uma vez que elas abastecem nossa imaginação, sonhos, ideias, reflexões, e sem isso, aí é que não se cria identidade alguma, viramos apenas um número a mais nas estatísticas de mão-de-obra.


Não sei o que o Brasil pretende ser quando crescer, mas tomara que ele cresça com pessoas que, ao chegarem perto da morte, não tenham tantos arrependimentos pelo que deixaram de fazer quando ainda tinham tempo para fazê-las.

25 de agosto de 2013 | N° 17533
FABRÍCIO CARPINEJAR

Última palavra

Quando Mariela anunciou que iria pegar suas coisas, Everton rasgou em pedacinhos o cartão que contava a história do casal. Esfacelou como um pão.

O cartão descrevia como eles se conheceram, narrava os melhores momentos de seis anos juntos, apontava as expressões que somente os dois conheciam e que formavam um dialeto engraçado e comovente. Era o cartão de todos os cartões. Uma aliança de papel.

Tinha o tamanho de um cartaz. Para não ter mesmo lugar para guardar. Para repousar nas prateleiras como um porta-retratos, para ser exibido entre os vasos como um quadro, para surgir entre os objetos de estimação como uma escultura viva.

Homem de poucas frases, que nunca escrevia, Everton superou seu laconismo e resolveu o atrasado da linguagem em longo testamento.

Pediu até para uma amiga professora de Português corrigir, não querendo passar vergonha com erros de ortografia.

As rosas que acompanhavam o texto secaram em uma semana, o que ficou foi a letra dele. Pois o cartão sempre será a pétala que não murcha, mais importante do que o buquê porque é a memória do buquê.

Possuído pela fúria, Éverton sequer pensou duas vezes. Esfarinhou a homenagem em suas mãos. Chorou o que podia com os cortes violentos das margens. Os dedos, afiados em tesoura, desfiguraram o conjunto. Com o pedido de separação, buscou se vingar destruindo sua declaração de amor. Sua única declaração de amor.

Depois do vandalismo, ligou para Mariela:

– Venha pegar suas roupas, mas saiba que rasguei o cartão que lhe dei.

– O cartão era meu, não podia ter acabado com ele.

– Você acabou comigo, o que adianta o cartão?

– Não fala desse jeito. Onde ele está?

– Está no lixo.

– Vai lá e recolhe os pedaços.

– Nunca. Nunca mais me abro para nenhuma mulher.

Éverton desapareceu de casa por uma semana, a fim de deixá-la livre a separar e encaixotar seus pertences.

Ao regressar, surpreendeu-se com o cartão que havia rasgado em cima dos travesseiros.

Todo colado. Todo remontado. Um trabalho de recorte e cole tão imenso quando o dele de escrever.

O cartão lembrava o vitral de igreja que se casaram, com os retângulos formando as imagens da caligrafia.

Estava ainda mais bonito. Mais iluminado.

Ele esqueceu o boicote e telefonou para Mariela:

– Qual o sentido de recuperar o cartão? – perguntou.

– E você ainda acha que a gente não tem conserto?

Com o gesto absolutamente esperançoso, eles se prenderam um ao outro.


A última palavra nada é perto de um novo beijo.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013


21 de agosto de 2013 | N° 17529
MARTHA MEDEIROS

Banksy e os black blocs

Por mais justas que sejam as reivindicações por melhoras no país, fica difícil apoiar black blocs, que se manifestam através da violência e da depredação, sem estimular nenhuma ideia original, nenhuma consciência – apenas promovem pânico e prejuízos à cidade.

Para encerrar a série de crônicas inspiradas em Londres, me parece oportuno lembrar de Banksy, grafiteiro inglês que há uns 10 anos preenche muros, paredes, pontes e estações de metrô com grafites ora engraçados, ora chocantes. Agindo de madrugada, disfarçando-se com nariz postiço e óculos escuros, ele faz suas interferências urbanas de uma forma extremamente audaciosa – introduz objetos em monumentos públicos, instala avisos surpreendentes em meio aos lagos dos parques e até já conseguiu colar obras suas nas paredes dos museus mais respeitados da Inglaterra.

Às vezes, leva uma ou duas horas para que descubram e apaguem seus grafites ou retirem das paredes suas marcas de protesto, mas já conseguiu que levasse dias e até meses antes de ter sua arte recolhida. E detalhe: até hoje, ninguém sabe quem ele é.

Se a polícia não gosta nada do moço, a população rendeu-se a esse transgressor misterioso, e o inusitado aconteceu: hoje suas obras valem milhares de libras e estabelecimentos comerciais rezam para ter suas paredes pichadas por Banksy.

Ele defende o grafite como uma arte honesta e popular. Diz que é uma resposta aos milhares de anúncios publicitários estampados em painéis gigantescos por toda a cidade, inclusive nas laterais dos ônibus: por que todos aceitam que a cidade se desfigure com publicidade e não com o grafite artístico? Ele mesmo responde: as pessoas acham que só o que gera lucro tem o direito de existir.

Banksy apronta e faz pensar. Esconde-se porque o grafite ainda é considerado subversivo, e também para denunciar essa sociedade que valoriza mais o artista do que sua arte: hoje estão todos mais interessados em saber que rosto têm, como se vestem, com quem namoram as grandes estrelas, em vez de focarem apenas no trabalho que fazem.

Pois através do mistério, Banksy conseguiu total visibilidade para o que faz e ficou famoso sem aparecer. Há quem diga que ele não existe, que as obras são criações coletivas de um grupo, que o Dalai Lama é seu fã, que ele foi expulso da escola por causa de uma briga em que não teve culpa, por isso sua obsessão por justiça social. Rumores que só reforçam o mito.

Dilapidar patrimônio público e placas de sinalização é crime, bandidagem. Já Banksy não depreda nem picha imundícies: ele tem um propósito e uma estética, por isso se diferencia. Inverte nosso senso de ordem, denuncia hipocrisias e surpreende com seu espírito rebelde e um talento gráfico inquestionável. Diz que gostaria de ter permissão para fazer o que faz, mas, não tendo, vai em frente contando com o perdão da cidade. Tem conseguido. Demonstrou que é possível protestar com inteligência e pacificamente.


terça-feira, 20 de agosto de 2013


20 de agosto de 2013 | N° 17528
FABRÍCIO CARPINEJAR

Infiéis da própria vida

Nossa vida está perdendo consistência. Espessura. Segurança. Estamos mais sujeitos a mudar do que a insistir.

Estamos mais sujeitos a nos separar do que a permanecer casados.

Estamos mais sujeitos a ir embora do que a voltar para casa.

O mundo está tomado de mutantes, zeligs, camaleões, transformers.

Se algo incomoda, se algo atrapalha, o botão Desapego é rapidamente acionado.

Como não pretendemos sofrer, caminhamos para a total insensibilidade. Deixa-se o começo por outro começo. Não há mais meio ou fim, o que vigora é a desistência.

Substituímos a responsabilidade pela ideia de liberdade.

Experimentar é a lei – fazer patrimônio e futuro não tem sentido.

Anteriormente, nos dedicávamos à família. Agora, nossa obsessão é o prazer pessoal. Danem-se as complicações.

A aparente leveza se assemelha a desenraizamento.

Buscamos chegar logo, não olhar a paisagem. A velocidade é o que nos provoca. Buscamos desembarcar logo num novo destino, não nos vale a estrada. A viagem deve ser curta e indolor, jamais reflexiva e longa.

Não estou sendo dramático. Na infância, tínhamos três canais de tevê. Hoje, são mais de 300. A variedade nos conduz a não nos fixarmos em nada durante grande tempo.

Ter um romance longo é quase uma insanidade, assim como ler um livro de 400 páginas ou assistir a um filme de três horas.

Não oferecemos chance para permanência, para a rotina, para a confirmação das expectativas.

Não toleramos o desgaste, o tentar o possível antes de se despedir. Sacrifício e renúncia são expressões banidas do vocabulário, significam burrice. “Perder tempo com alguém, com tanta gente interessante por aí?” é o que nos dizem.

O oi já é um convite, o tchau já é um adeus, não existe relacionamento seguro e firme que suporte a tempestade de contradições.

São muitos apelos para biografias imaginárias. São muitas opções de ser diferente, que nem descobrimos quem somos.

É sempre alguém nos chamando no Facebook ou nas redes sociais com uma história incrível, extraordinária, afrodisíaca, que é um crime não provar.

É sempre alguém oferecendo conselhos, dicas, sugestões.

Repare. O mundo virou sábio de repente: todos têm soluções, ninguém mais convive com seus problemas. Não me refiro à infidelidade amorosa, mas ao quanto somos infiéis com o nosso passado.

Não é trocar de parceiro ou parceira, mas trocar de tudo: largar emprego, cidade, amigos, esportes, manias. Troca-se de mentalidade mais do que de opinião.

E é tão fácil descartar, difícil é refinar a própria vida.

Mas se você concluiu a leitura desta crônica, ainda há esperança.


Esperança de não virar a página por um momento.

sábado, 17 de agosto de 2013


18 de agosto de 2013 | N° 17526
MARTHA MEDEIROS

Em que planeta a gente vive?

Tem pessoas que vão a Londres só para fazer um tour pelas suas exposições: é uma cidade reconhecida pela oferta inesgotável de museus e galerias, cujo acervo abrange todos os períodos, artistas e tendências.

Enquanto estive lá, um dos pontos altos da programação cultural era a mostra do holandês Vermeer na National Gallery, mas o que me emocionou de forma profunda foi Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro reconhecido mundialmente, que com seu atual ensaio chamado Genesis, em exposição no Museu de História Natural, eleva ainda mais o status da fotografia como obra de arte.

Sebastião Salgado sempre esteve comprometido com o meio-ambiente e é inclusive diretor do Instituto Terra, que promove ações ecológicas e de sustentabilidade desde muito antes disso virar moda.

Com o olhar afiado para enquadrar a relação entre os homens e o planeta, dessa vez ele se dedicou prioritariamente a retratar a natureza em sua forma mais primitiva, e o resultado é difícil de descrever em palavras: o que vemos é uma beleza dramática que pulsa, tem vida, salta da parede e nos arrebata como se estivéssemos vendo pela primeira vez algo que não suspeitávamos existir.

E é isso que intriga, pois sabemos que existem geleiras, rios, montanhas, planícies, florestas, mas dessa vez elas nos são mostradas como se não coabitássemos o mesmo planeta. E a verdade é que não coabitamos mesmo. Abra um mapa: fazemos parte do todo. Mas é uma relação representada num papel, não de fato.

O fotógrafo viajou oito anos pelo globo captando imagens no Alaska, na Patagônia, no Sudão, sempre extraindo a força do essencial e nos obrigando a reconhecer o quanto vivemos apartados do planeta. Nós, moradores das cidades, estamos tão engajados numa rotina de velocidade, asfalto, tecnologia, motores e eletricidade que fundamos um planeta próprio, cujo nome “Terra” soa até inapropriado.

Fazemos excursões turísticas àquele outro planeta que fica fora dos limites urbanos, e também o fotografamos para enfeitar nossos porta-retratos, mas Sebastião Salgado faz bem mais do que isso: ele resgata a origem de tudo, aquilo que nunca dependeu do progresso e que ainda resiste com magistral integridade.

E não bastasse essa manifestação de certa forma política, que nos conscientiza sobre nosso afastamento das fontes naturais de sobrevivência, ele ainda o faz com um senso estético arrebatador: suas fotos assemelham-se a uma ópera, não é coisa para amadores. O homem é um gigante.

A mesma mostra está em exposição no Rio de Janeiro e no início de setembro aterrissará em São Paulo.


Se estiver ao seu alcance, não perca. É uma rara oportunidade de estabelecer uma conexão que tem caído a cada dia: a nossa com o planeta real.

18 de agosto de 2013 | N° 17526
FABRÍCIO CARPINEJAR

Foi mal

Quando conhecemos alguém, o mais complicado é acertar as brincadeiras. Afinar o humor. Rir e fazer rir.

É somente pelo riso que nos confessamos. É somente pelo riso que chegamos ao quarto. E somente pelo riso que superamos as experiências anteriores.

Arrisco a dizer que o humor é nossa verdadeira nudez. É quando realmente expomos os nossos preconceitos e fragilidades. Não adianta ser simpático, bonito, inteligente, poético, romântico, dependemos da cumplicidade da graça.

Sem a sintonia das piadas, o casal que está se formando não vai superar as brigas e as diferenças no futuro. Casal longevo é o que ri dos seus problemas, e não transforma aborrecimentos em epopeias. Casal maduro é o que perdoa e segue.

O riso é a porta de entrada de todo o relacionamento. Torna-se a parte complicada da aproximação. Começar uma história significa conhecer as dores do outro durante a mais pura alegria. Estará animado e, sem querer, cutucará uma cicatriz.

O que pode parecer natural para você pode ser de mau gosto para ela, o que pode soar espontâneo para ela pode ser agressivo para você. Não podemos nos frear, mas não podemos machucar. Não podemos nos censurar, mas não podemos ferir à toa.

Precisa se soltar, porém conservando a prevenção de que ela não vive em sua cabeça e não se habituou ao seu tom de voz, à sua ironia, às suas preferências.

A brincadeira estimula a intimidade. Aproxima. Apressa o abraço. Só que também pode desencadear incompreensão e incômodo.

O cuidado aumenta com a intensidade do relacionamento: quanto mais dependente de uma resposta mais vulnerável nas palavras.

Você terá que aprender a brincar, e principalmente, com o que não pode brincar.

Esta é a senha: não podemos brincar com tudo. Ao brincar, desvenderá o que é sério e deve manter distância. Será um trauma, será um hábito, será uma convicção.

Ela dirá que não gosta, e não insista. Não volte mais ao assunto. Não busque se corrigir provando que a crença dela é insignificante.


Há um território do pensamento feminino onde não é possível debochar ou subestimar, é uma lembrança com cerca elétrica, ninguém entra, nem ela mesma. Toda mulher adora quem a faça rir, mas o que mais ama é quem descobre o que merece respeito.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013


14 de agosto de 2013 | N° 17522
MARTHA MEDEIROS

100% satisfaction

Quem acompanha meus textos sabe que arrasto um trem pelos Beatles, ainda que os Rolling Stones tenham igualmente sonorizado minha adolescência. Na hora de responder à pergunta clássica – Beatles ou Stones? –, eu cravava Beatles sem meio segundo de vacilação.

As coisas mudaram. Hoje, se me fizessem de novo a mesma pergunta, desconversaria, pois a comparação não procede. Apesar de serem bandas contemporâneas e conterrâneas, a guitarra de um não bate com a guitarra do outro. Isso só ficou evidente pra mim quando, no último dia 13 de julho – Dia do Rock! – tive a sorte e o privilégio de assistir a um show dos Stones em pleno Hyde Park, em Londres, num início de noite ainda com céu claro e calor intenso.

Eles entraram no palco às 20h30min e o meu queixo tremeu, o olho marejou, e mesmo me conscientizando ali de que estava diante de quatro pessoas de extrema importância na minha vida, coloquei a culpa do meu faniquito na idade – a deles, claro. Me emociono com os perseverantes.

O fato é que durante as duas horas exatas em que a banda apresentou seus hits mais contagiantes com uma qualidade de som que eu nunca tinha escutado ao vivo e um pique que jamais caiu, me dei conta de que a matéria-prima do rock é a testosterona – e nada menos sexual do que os Beatles.

Mick Jagger seduz com todos os instrumentos de que dispõe: voz, corpo, guitarra, gaita de boca, e a boca, ela própria. Perdoe a vulgaridade do termo, mas não encontro jeito mais suave de expressar: cada música é como se fosse uma trepada com a plateia. Sai-se esgotado da experiência, eles ainda mais do que nós. Se depois de um show assim vigoroso dá vontade de acabar a noite acendendo um cigarro e tomando um uísque, não tenho dúvida de que para eles a noite acaba no hospital tomando soro. Mas com a missão cumprida.

Já os Beatles passam longe do obsceno. Fundadores de um estilo único, experimental, poético e sofisticado, conquistaram o pódio com sua extraordinária inventividade – nunca um disco igual ao outro. O que eles fizeram em apenas 10 anos de carreira ninguém chegou nem perto. Não era rock. Eles criaram um gênero musical chamado... Beatles.

Rolling Stones são definitivamente roqueiros. Há 50 anos oferecem mais do mesmo, e nenhum problema em não mudar. O mundo em volta é que mudou. Em 1969, quando tocaram no Hyde Park pela primeira vez, a plateia era formada por simpatizantes do flower power, todos curtindo paz e amor, muitos em viagem de ácido.

Em julho de 2013, a plateia era formada por simpatizantes do Steve Jobs, todos assistindo ao show pelo monitor do seu iPad, iPhone e tuitando com uma obsessão de viciado. Milhares de cinegrafistas amadores reunidos a fim de documentar o que estavam – estavam? – vendo.

Só o meu queixo tremido é que ninguém viu nem filmou. Ficou sem registro digital. Minha emoção segue totalmente analógica.


segunda-feira, 12 de agosto de 2013

"Sou devoto dos cachorros mancos"

"Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa".


Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS

Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido. Que altivez! Que elegância vinda do desespero!

Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar.

Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.

Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.

Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.

Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la. Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa.

Olhar com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia. Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas.

Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia.

Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.

Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir. O cão manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor.

sábado, 10 de agosto de 2013


11 de agosto de 2013 | N° 17519
MARTHA MEDEIROS

Um mergulho no oceano

A última vez que entrei numa sala de aula foi no último dia da faculdade, e lá se vão muitas luas, parece que foi em outra vida. Fazia tanto tempo que eu não era estudante que fiquei apreensiva ao me matricular na The London School of English, de onde retornei semana passada. Haveria quantos alunos por sala? Ainda existe giz e quadro-negro? E sendo eu uma analfabeta digital, passaria vergonha levando um caderno e uma caneta para anotações?

Éramos poucos em cada sala – no máximo oito, entre tchecos, russos, japoneses, italianos, espanhóis e brasileiros. O quadro-negro agora é um quadro branco onde se escreve com marcadores coloridos (para os saudosistas, vale uma visita à Saatchi Gallery, que expõe antigos quadros-negros das mais famosas universidades do mundo – Cambridge, Harvard, Oxford – extraindo de nós um novo olhar para o efeito das frases, fórmulas e gráficos rabiscados a giz).

E a analfabeta digital não passou vergonha com seu caderno e caneta, mesmo cercada por colegas equipados com tablets e laptops. Não conheço recurso mais eficiente para reter e decorar informações do que escrevê-las à mão.

Fiquei impressionada ao ver que alguns alunos fotografam o quadro antes de o professor apagá-lo. Não copiam, simplesmente fotografam com seus celulares. Eu sempre aprendi mais escrevendo, sublinhando, fazendo círculos em torno das palavras, enchendo a página de flechas e asteriscos. Meu caderno ainda vai acabar sendo exposto numa mostra de design.

O mais valioso da experiência foi resgatar o prazer inocente de aprender. Cada nova palavra, cada nova expressão era uma vitória particular que eu assimilava com humildade. A minha vergonha em falar um idioma que não domino, e ao mesmo tempo a disposição em me divertir com os próprios erros, me tornavam uma aprendiz de mim mesma e da vida, essa venerável mestre.

Algumas pessoas se satisfazem com o que já sabem, é como se seu conhecimento coubesse numa piscina. Dão algumas braçadas para um lado, outras braçadas para o outro, agarram-se às bordas e tocam o fundo com os pés: sentem-se seguras nessa amplitude restrita.

Mas nada como mergulhar num mar do conhecimento sem fim, onde não há limites, a profundidade é oceânica e a ideia é nadar sem chegar à terra firme, simplesmente manter-se em movimento. Cansa, mas também revitaliza. Uma pena que nossa preguiça impeça a grandeza de se descobrir algo novo todos os dias.

Eu, que além de apegada aos instrumentos rudimentares da escrita, tenho certo receio de procedimentos estéticos em geral, descobri uma maneira de me manter jovem para sempre, mesmo que, olhando, ninguém diga: não vou mais parar de estudar e assim realizarei a utopia de me sentir com 20 anos até os 100 – depois disso, aí sim, recreio.


FELIZ DIA DOS PAIS...

11 de agosto de 2013 | N° 17519
FABRÍCIO CARPINEJAR

Cachorro manco

Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento. Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido. Que altivez! Que elegância vinda do desespero!

Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar.

Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.

Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.

Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.

Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la.

Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa.

Olhar com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia.

Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas.

Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia.

Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.

Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir.


O cão manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013


07 de agosto de 2013 | N° 17515
MARTHA MEDEIROS

Londres em retalhos

Passei mais de um mês fora do jornal – torço para que tenham reparado. Estive estudando em Londres e virando a cidade do avesso. Sigo não falando inglês com fluência: é projeto para uma vida. Mas o vocabulário se expandiu e a cabeça também, como acontece sempre que se sai em viagem de descobrimento. Voltei me perguntando o que ainda faz de Londres minha cidade preferida no mundo, e, sendo ela tão diversa, não há uma resposta única.

Não importa em que bairro, em que pub, em que estação de metrô você esteja: sempre escutará de três a quatro idiomas diferentes ao mesmo tempo, o que anula nossa nacionalidade e nos dá a sensação arejada de pertencer ao planeta – Londres não é uma capital humilde, como se sabe. Falando em metrô: o primeiro trem subterrâneo de Londres começou a circular em 1863, antes mesmo da invenção da energia elétrica (era movido a vapor). Mind the gap. O nosso começará a circular em algum ano entre 2017 e o infinito.

O.k., evitarei comparações, até porque o londrino está menos londrino: já não é pontual e polido com fanatismo, deu uma relaxada, e isso de certa forma o democratiza. Até a rainha está mais “gente como a gente”. Uma semana antes de o bisneto vir ao mundo, foi perguntada se tinha preferência por menino ou menina: “Tanto faz, desde que nasça logo, pois quero sair de férias”. Foi-se o tempo em que responder “desde que venha com saúde” é que era nobre.

Aliás, se ouvia falar do pequeno George na imprensa, e só na imprensa. Nas ruas, nem um pio. Ninguém se mobilizou. Aquele grupo reunido em frente ao Palácio de Buckingham no dia 22 de julho era composto apenas de turistas estrangeiros, em mesmo número dos que estão lá hoje e que estarão lá amanhã. O inglês está mais interessado na vida real do que na realeza.

Londres perdeu um pouco a fleuma até no clima. Com temperaturas acima dos 30 graus, sem um pingo de chuva por semanas seguidas, a falta de compostura diante do calor virou notícia. Nunca se viu tanto homem sem camisa pelas ruas – para eles, prova irrefutável da decadência do império.

Ou seja, Londres está mais solta – me segurei para não escrever “mais brasileira”, mas não ando bebendo tanto assim. Continua majestosa em sua arquitetura, com museus de tirar o fôlego (a exposição do fotógrafo Sebastião Salgado no Museu de História Natural é de nos encher de orgulho – absolutamente espetacular) e com parques cujo paisagismo você jura que ficou a cargo de algum pintor impressionista.

Aliás, foi em um parque que meu queixo tremeu e quase fui às lágrimas, e não por causa dos esquilos e das flores: enquanto o Papa abençoava nossa terra, eu dizia amém para os Rolling Stones em show satânico em pleno Hyde Park, com Mick Jagger a poucos metros de distância, em carne, osso, rugas e testosterona. Como se sabe, o sublime pode se manifestar de maneiras variadas e insuspeitas.

Enferrujada do jeito que estou, considere este texto apenas como um “oi, cheguei”. Um breve sumário de assuntos que logo adiante serão mais bem desenvolvidos. Por ora, ofereço esse patchwork só para dizer que estava com saudades e que, por mais que viajar seja fascinante, nada como estar de volta à casa.


domingo, 4 de agosto de 2013

FERREIRA GULLAR

Uma questão de bom senso

Todo mundo sabe que, dos que se viciam em drogas, poucos conseguem largar o vício

Falando francamente, o que você prefere, a segurança ou a insegurança, o previsível ou o imprevisível? Em suma, quer acordar de manhã certo de que as coisas vão caminhar normalmente ou prefere estremecer ao pensar no que fará, neste dia, o seu filho drogado?

Acho muito difícil que alguém prefira viver no desespero, temendo o que pode ocorrer nesse dia que começa. Estou certo de que todo mundo quer viver tranquilo, certo de que as coisas vão transcorrer dentro do previsível.

Mas quem se droga comporta-se, inevitavelmente, fora do previsível, ou não é? Já imaginou a apreensão em que vivem os pais de um filho drogado? Começa que ele já não vai à escola e, se vai, arma sempre alguma encrenca por lá. Se já trabalha, abandona o emprego e começa a roubar o dinheiro da família para comprar drogas.

Se isso se torna inviável, entra para o tráfico, passa a vender drogas ou torna-se assaltante, porque tem de conseguir dinheiro para comprá-las, seja de que modo for. Daí a pouco, não apenas assalta e rouba como também mata. Os pais já não reconhecem nele o filho que criaram com tanto carinho. Pelo contrário, o temem, porque, drogado, ele é capaz de tudo.

E mesmo assim há quem seja a favor da liberação das drogas. Conheço muito bem o argumento que usam para justificá-la: como a repressão não acabou com o tráfico e o consumo, a liberação pode ser a solução do problema. Um argumento simplista, que não se sustenta, pois é o mesmo que propor o fim da repressão à criminalidade em geral. O argumento seria o mesmo: por que insistir em combater o crime, se isso se faz há séculos e não se acabou com ele?

Fora isso, pergunto: se não é proibida a venda de cigarros e bebidas, por que há tráfico dessas mercadorias? E pedras preciosas, é proibido vendê-las? Não e, no entanto, existe tráfico de pedras preciosas. E ainda assim os defensores da liberação das drogas acham que com isso acabariam com o problema. Claro, Fernandinho Beira-Mar certamente passaria a pagar imposto de renda, ISS, ICMS e tudo o mais. Esse pessoal parece estar de gozação.

Todo mundo sabe que, dos que se viciam em drogas, poucos conseguem largar o vício. E, se largam, é por entender que estavam sendo destruídos por ele, uma vez que perdem toda e qualquer capacidade de refletir e escolher; são verdadeiros robôs que a droga monitora.

Qual a saída, então? No meu modo de ver, a saída é uma campanha educativa, em larga escala, em âmbito nacional e internacional, para mostrar às crianças e aos adolescentes que as drogas só destroem as pessoas.

E isso não é difícil de demonstrar porque os exemplos estão aí aos milhares e à vista de quem quiser ver. Os traficantes sabem muito bem disso, tanto que hoje têm agentes dentro das escolas para aliciar meninos de oito, dez anos de idade.

Confesso que tenho dificuldade de entender a tese da descriminalização das drogas. Todas as semanas, a polícia apreende, nas estradas, em casas de subúrbio, em armazéns clandestinos, toneladas de maconha e de cocaína. É preciso muitos drogados para consumir essa quantidade de drogas.

Junto às drogas, apreendem, muitas vezes, verdadeiros arsenais de armas modernas de grosso calibre. É preciso muito dinheiro e muita gente envolvida para que o tráfico tenha alcançado tal amplitude e tal nível de eficiência. Como acreditar que tudo isso desaparecerá, de repente, bastando tornar a venda de drogas comércio legal? Sem falar nos novos tipos sofisticados de cocaína e maconha, que estão diversificando o mercado.

A verdade é que o tráfico existe e cresce porque cresce o número de pessoas que consomem drogas. Como se sabe, não pode haver produção e venda de mercadoria que ninguém compra. Se se reduzir o número de consumidores, o tráfico se reduzirá inevitavelmente. E a maneira de fazer isso é esclarecer os jovens do desastre que elas significam.


O resultado maior não será junto aos viciados crônicos, que tampouco devem ser abandonados à sua má sorte. Virá certamente do esclarecimento dos mais jovens, dos que ainda não foram cooptados pelo vício. A eles devem ser mostrado que as drogas destroem inevitavelmente os que a elas se entregam.
ERNESTO FARIA - ESPECIAL PARA A FOLHA

Atratividade da carreira docente é questão-chave

Os dados do Enade 2011 apontam que os concluintes de cursos de licenciatura e pedagogia obtêm notas inferiores aos dos concluintes das áreas de engenharia e tecnologias na prova de "formação geral". O que isso quer dizer?

Em resumo, que os futuros professores das escolas brasileiras estão menos preparados do que profissionais de outras áreas em habilidades como compreensão de texto e resolução de problemas.

Embora esse resultado diga pouco sobre o conteúdo dos cursos, já que a formação geral não é o foco deles, trata-se de uma constatação bastante preocupante.

Isso porque essas habilidades são justamente aquelas que se espera que esses profissionais ajudem crianças e jovens a desenvolver ao longo de sua vida escolar.

Com isso, o Enade confirma que a defasagem trazida da educação básica pelos alunos dos cursos de pedagogia e licenciatura -já apontada em outras avaliações- não é corrigida ao longo de quatro anos de faculdade.

Os poucos estudos sobre fluxo no ensino superior também mostram que as taxas de repetência e evasão são mais baixas nestes cursos em comparação com outras áreas (pelo fato de os alunos entrarem menos preparados na faculdade, seria possível imaginar justamente o oposto).

Ao mostrar que alunos dos cursos mais concorridos obtêm melhores resultados no exame, o Enade também reforça a relação decisiva entre a atratividade de uma carreira e a qualificação dos profissionais que atuam nela.

Esse desafio é enorme na área da educação, uma vez que estamos falando de tornar atrativa -e, portanto, concorrida- uma carreira que recebe das universidades mais de cem mil novos profissionais por ano.

Outra informação que chama a atenção nos números do Enade 2011 é que, nos cursos de licenciatura e pedagogia, o conjunto das universidades públicas tem desempenho semelhante ao conjunto das universidades privadas.

Embora sejam necessários mais elementos para uma análise qualificada, esse é um dado que merece ser trazido para o debate.

O papel decisivo de bons professores para o aprendizado dos alunos nas escolas já é um consenso.

Os dados do Enade reforçam que para termos esses bons professores em todas as salas de aula brasileiras é urgente garantirmos uma carreira docente mais atrativa, uma formação inicial exigente e uma formação continuada que esteja diretamente ligada às principais habilidades que os professores precisam desenvolver em suas atividades na escola.


ERNESTO MARTINS FARIA é coordenador de projetos da Fundação Lemann