quarta-feira, 29 de julho de 2009



29 de julho de 2009
N° 16046 - MARTHA MEDEIROS


A turma do dããã

Tenho observado esse pessoal faz um tempo. Eles me provocam reações diversas: sinto repulsa, sinto medo, sinto desânimo, mas acho que a sensação que prevalece é mesmo a compaixão.

Porque eles são tão recalcados, que não conseguem se manifestar no mundo de outra forma. A única coisa que possuem para exibir é isso: seu espírito de porco.

Não é um defeito novo, mas ganhou um espaço de divulgação inimaginável na internet. Se antes eles exerciam seu espírito de porco em pequenos grupos, em comentários ferinos para meia dúzia de ouvidos, agora eles abusam da sua tolice em rede internacional para um público tão amplo, que os deixa embriagados com o alcance atingido. Eles são os neorretardados, os pusilâmines de grande escala.

Se você é uma pessoa de discernimento, que seleciona a informação que obtém, talvez ainda não tenha se deparado com eles. Sorte sua.

Mas se tiver curiosidade de saber como a coisa funciona, entre em qualquer site de notícias de um provedor, como a página do Terra, por exemplo, e dê uma olhada nos comentários deixados. É de perder a esperança num mundo mais elegante.

Pra exemplificar, nas últimas semanas o site colocou no ar duas notícias de segunda linha, que não chegaram a repercutir mais do que poucas horas. Uma delas era sobre uma garota de 18 anos que se jogou da Torre Eiffel, em Paris.

Chegaram a dizer que seria uma brasileira, mas era uma africana. Em poucos minutos, essa notícia gerou 1.581 comentários de gente lesada das ideias, cujo único prazer é fazer piadinha sobre a dor alheia, sem conseguir articular um raciocínio lógico.

Pessoas que têm na agressividade sua única forma de expressão. Foram 1.581 comentários que deixam clara a quantidade de infelizes espalhados por todos os cantos. Porque o espírito de porco nada mais é do que uma exposição despudorada de infelicidade. Como o cara não se suporta, detona com tudo o que vê pela frente.

No mesmo dia desse suicídio, foi noticiada também a estreia da primeira gondoleira de Veneza. Depois de séculos de hegemonia masculina, agora há uma mulher conduzindo turistas nas gôndolas da mais deslumbrante cidade italiana.

Fato que não mobiliza o mundo como a morte de Michael Jackson, mas é uma informação curiosa e simpática, que poderia gerar saudações a mais este espaço conquistado pelas mulheres, ou ser simplesmente ignorada, o que também é legítimo.

Mas não. Os espíritos de porco, sem ter nada mais produtivo pra fazer, deixaram registradas suas manifestações de preconceito, numa exibição constrangedora de estreiteza mental. Porque o espírito de porco não é apenas uma pessoa com o humor mal-lapidado. Ele é um ignorante com empáfia.

Se fossem poucos, nada a temer. Mas a tacanhice é uma epidemia bem mais assustadora do que qualquer gripe. Porque não é temporária e tampouco tem cura.

É o retrato do isolamento e da deseducação de uma geração recém saída das fraldas que, ao ter um teclado à disposição e o anonimato garantido, expõe toda sua miséria intelectual e afetiva. É a turma do “dããã” ganhando voz e propagando a mediocridade universal.

Aproveitem o dia. Uma excelente quarta-feira para você.


29 de julho de 2009
N° 16046 - JOSÉ PEDRO GOULART


Twitter or not twitter?

A palavra é o pensamento subornado. Digo isso apesar de ter certeza que essa frase sequer explique verdadeiramente meu pensamento – afinal, é uma frase, contém palavras.

É que há certos sentimentos impossíveis de se traduzir. A palavra é uma tentativa vã de chegar no cume emotivo dessas sensações. E é suborno porque gratifica com a ideia de que tal tradução é possível. Falo aqui de pensamentos abstratos.

Há outras linguagens. A música, a pintura, a expressão corporal. São decodificações do nosso ser profundo – esse a que estou me referindo nesse texto. Essas expressões auditivas/visuais talvez sejam mais fiéis a um sentimento original, e por conta disso são mais limitadas e passíveis de interpretações distintas.

Entretanto a palavra vem ganhando o jogo de goleada. Raciocinamos e interpretamos com palavras. Usamos o vocabulário para tudo, e a tudo queremos conceituar. O jogo jogado na vida é um jogo de palavras.

A invenção do ser humano vem junto com a invenção da palavra; e junto com ela uma permanente necessidade de reinvenção. Harold Bloom, por exemplo, garante que foi Shakespeare (com palavras) quem inventou o homem tal qual ele é.

Antes dele, diz Bloom, os personagens literários eram praticamente imutáveis. “Em Shakespeare, os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque têm a capacidade de se autocriarem.”

É de Shakespeare o conceito absoluto da existência: “Ser ou não ser, eis a questão.” Frases assim funcionam como boias jogadas num mar de inconsciência. Porém, os tempos atuais necessitam uma revisão. Existir somente não basta, é preciso se exprimir. E mais, alguém precisa ouvir: é a garantia de que existimos.

A resposta veio com a internet, sobretudo num fluxo de expressão antes inimaginável. Alguns se incomodam com isso, especialmente os que detinham exclusividade da expressão. Ou seja, os que existiam não estão gostando de ter que dividir a existência.

Reclamam da vulgarização, da proliferação dos não habilitados. Enquanto isso e sem dar a mínima os excluídos se aproveitam da recente inclusão e se esfalfam em opiniões, mensagens e conclusões. A palavra virou barata – não como adjetivo, mas como substantivo mesmo – e se multiplica.

Mas insisto, somente se exprimir não basta. É preciso eco. É preciso que alguém esteja ouvindo, se não, não tem graça. Exemplo da hora? Twitter: 140 caracteres, uma fotinho, quem você segue, quem segue você. A propósito, @ZPgoulart.

Well meus leitores eu também estou aí no Twitter.

terça-feira, 28 de julho de 2009



28 de julho de 2009
N° 16045 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A menina do bonde

Era um domingo luminoso do inverno de 1958. Eu viajava num bonde Floresta rumo ao Abrigo da Praça XV, onde me transplantaria para o bom e velho Duque, rumo ao almoço em casa.

Acabava de assistir a um filme matinal no Cine Colombo, esplendidamente estrelado por Jacqueline François, e era com sua doce imagem vestida numa saia translúcida que eu sonhava quando um flagrante da vida real me despertou.

Bem na minha frente, no banco longitudinal oposto, o que um juiz severo chamaria de crime estava para ser perpetrado. Com infinita dissimulação, uma menina de seus 12 anos, magra e pobremente vestida, tentava roubar a carteira do belo tipo faceiro que sentava ao seu lado.

O sujeito era distraído pela própria natureza. Pagara a passagem ao cobrador abrindo de par em par a nutrida carteira para catar os trocados e depois a deixara descansar, convidativa, no bolso direito do sobretudo elegante. Era praticamente uma oferenda à menina que, todo mundo via, passava frio e fome.

Ela trajava um vestido curto e gasto, uma blusinha exígua de algodão e toda a imagem da miséria da humanidade. Com uma mirada rápida, localizou a carteira, estendeu os dedos ágeis e finos e ia pescá-la quando me viu.

Percebeu no exato instante que eu seguia seus gestos. Não fugiu o olhar de mim. Ela via um garoto de 13 anos, usando óculos, uma japona e uma dose apropriada de receio. Ela compreendeu, embora um pouco incerta, minha timidez. Ela mandou me dizer, em pensamento, que por favor a desculpasse, mas não tinha um centavo, não pusera nada na boca aquele dia e talvez sua mãe estivesse num hospital.

Foi pelo menos isso que eu entendi. De modo que me fixei nos cartazes do bonde, numa garota linda que não me dava bola, na paisagem transeunte da Avenida Cristóvão. Não me fixei mais na menina de 12 anos, em seus dedos ágeis, em sua dissimulação.

No Abrigo da Praça XV desci do bonde Floresta, tomei o Duque, em casa me esperava um almoço com salada de maionese, massa e galinha assada.

Jamais soube se a menina pobre de 12 anos obteve ou não o que desejava. Mas como não sou um juiz severo, bem dentro de mim mesmo torço até hoje para que tenha conseguido vencer seu desamparo.

sábado, 25 de julho de 2009



26 de julho de 2009
N° 16043 - MARTHA MEDEIROS


Eu não preciso de almofada

Quando participo de bate-papos públicos, geralmente em escolas, costumo ser perguntada sobre de onde vêm os assuntos para escrever uma crônica, e aqui está um bom exemplo do quão inusitado pode ser o caminho da inspiração: conversando outro dia sobre decoração de ambientes, um defensor da linha franciscana de morar me disse a frase que acabei de utilizar no título acima: “Eu não preciso de almofada”.

Ao escutá-lo, olhei para os lados, disfarçadamente. Estávamos cercados por mais ou menos 25 almofadas de todas as cores, tamanhos e origens. Na minha sala e escritório tenho quatro sofás (e mais dois na sacada) e todos eles são cobertos de almofadas indianas, nordestinas, uruguaias: minha casa é o albergue internacional das almofadas.

É só colocar o pé para fora de Porto Alegre e está feito: na bagagem, dobradinha, vem mais uma capa de almofada que trago do Rio, de Buenos Aires, de Gramado, de Fortaleza. É o que dispara meu lado consumista. Mas, claro, eu também não preciso de almofada.

Tampouco preciso de flores, mesmo que na minha casa nunca deixarão de ser encontrados ao menos três vasos com astromelias de cores variadas: amarelas, laranjas, fúcsias. E, no mínimo, duas orquídeas. Também gerânios que parecem pequenas margaridas. Alguns ficus, bromélias. E, quando o saldo da conta corrente permite, lírios brancos. Mas eu preciso de flores? Era só o que me faltava.

Também não preciso de tapetes. O fato de minha casa parecer uma loja turca é só para evitar desconforto aos que andam descalços. Não preciso de cortinas também, mas um dia encasquetei que a casa pareceria mais aquecida e acolhedora com elas, e aí gastei dinheiro bobamente com uns tecidos de linho cru e palha da índia. Frescura.

Também não preciso de música. Nem tenho lugar para guardar tanto CD. Coisa mais antiga, CD. Também não preciso de portarretrato, sei de memória o rosto das minhas filhas, mesmo o de quando elas eram crianças. Não preciso de castiçais, já que tenho energia elétrica.

Não preciso de estantes abarrotadas de livros, coisa mais inútil, e eles ainda acumulam pó. Não preciso de quadro: ninguém presta atenção mesmo e furar paredes é um troço que às vezes dá errado. Não preciso de esculturas.

Não preciso de abajur. Não preciso de espelhos. Não preciso de guardanapos de pano. Não preciso de toalhas estampadas. Não preciso de caixinhas compradas em feiras e briques. Não preciso de lembranças de viagem. Não preciso de lembranças. Não preciso de viagens.

E poderia prosseguir dizendo que não preciso de cor, não preciso de beleza, não preciso de sonho, não preciso de arte, não preciso de criatividade, não preciso de diversão, não preciso de prazer, não preciso de senso estético, não preciso de humor e também não preciso traduzir minha alma e minha história de vida em tudo o que me cerca. Mas isso equivaleria a dizer que eu não preciso de mim.

É isso, garotada. Até mesmo uma simples almofada pode gerar uma reflexão.

Ainda que com frio um domingo super colorido para você.


VERGONHA, ELE? NEM PENSAR

Gravações de conversas íntimas com prostituta e fotos de orgias na Sardenha mal atingem Berlusconi, que faz blague: "Nunca fui santo"

Duda Teixeira - Luca Bruno/AP



VERMELHO, MAS DE BRONZEADOR
O primeiro-ministro italiano é acusado de usar voos oficiais para transportar acompanhantes e de "frequentar menores"


Tudo o que você queria saber, e provavelmente muita coisa que preferiria continuar ignorando, já foi revelado sobre os hábitos íntimos de Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro italiano.

Um resumo rápido: ele promove festas orgiásticas, gosta de múltiplas acompanhantes na cama, excede-se no bronzeador artificial, tem um agregado encarregado de encontrar garotas bonitas, anda com uma caixa de joias para premiar as favoritas e passa horas de vídeos com os próprios discursos antes de ir aos finalmentes. Usa maquiagem, mas não camisinha.

Ah, sim, ele também paga pela companhia e pelo sexo, certamente uma surpresa para quem acreditava que todas aquelas mulheres deslumbrantes à sua volta estavam interessadas nos cabelos naturalmente acaju e na pele cor de cenoura.

Acossado por nova onda de revelações na semana passada, ele jogou com a fama de malandro, que faz a alegria de seus simpatizantes, além de uma popularidade afetada em meros 4 pontos, e provoca repugnância entre seus opositores – todas as gamas da esquerda, até chegar a uma fatia da direita elegante, horrorizada com a ideia de que os nobres valores do pensamento liberal sejam defendidos por um sujeito como esse. "Não sou santo", provocou. "Acho que vocês já perceberam isso."

Ninguém jamais imaginou o contrário. Aos 72 anos e 6,5 bilhões de dólares, o Cavaliere é capaz de pedir para apalpar uma voluntária em meio às ruínas de um terremoto ou promover uma dançarina a ministra da Igualdade de Oportunidades, isso para não entrar nas histórias de cama.

Destas, uma das mais engraçadas é literal. Numa das conversas expostas por Patrizia D’Addario, loiraça de 42 anos que abriu o bocão, frustrada pela indiferença do primeiro-ministro ao projeto de construção de um condomínio (onde mais se veria a combinação de prostituta e empreendedora imobiliária?),

Berlusconi lhe pede que o espere na "camona", enquanto toma um banho. "A de Putin?", pergunta Patrizia. Ele confirma que a noite vai ser mesmo na cama presenteada, certamente com ulteriores intenções, pelo atual primeiro-ministro da Rússia.

A onda atual teve início quando Berlusconi foi à festa de 18 aninhos de uma de suas protegidas. A mulher, Veronica Lario, de quem vivia separado, estrilou, acusou-o de "frequentar menores" e pediu o divórcio. Concomitantemente, começaram a circular as imagens feitas durante dois anos pelo fotógrafo Antonello Zappadu, revelando cenas tórridas de Villa Certosa, a casa de Berlusconi na ilha da Sardenha.

O primeiro-ministro conseguiu impedir a circulação, invocando o direito à privacidade, mas como empresário de mídia deveria saber: tudo o que se tenta sufocar ressurge com mais força ainda.

As fotos apareceram em jornais estrangeiros, e mostram garotas com pouca roupa, algumas simulando atos sáficos, e homens com muito entusiasmo – entre os quais o então primeiro-ministro checo Mirek Topolanek, de cheque em riste. No clima de conta tudo, participantes das festas da Sardenha e dos jantares no Palazzo Grazioli, a residência oficial em Roma, começaram a revelar detalhes sórdidos.

Que Berlusconi não tem a menor preocupação com a liturgia do cargo é evidente, mas teria cometido crimes? Atualmente, está sob investigação o empresário Giampaolo Tarantini, que garimpava os talentos nacionais para frequentar as festinhas berlusconianas. Ele negociava valores e fazia o pagamento com envelopes. Pode ser indiciado por proxenetismo.

Berlusconi também pode se complicar pelo uso dos aviões oficiais para transportar as borboletinhas e até por crime contra o patrimônio – numa conversa gravada por Patrizia D’Addario, ele se jacta de ter encontrado em Villa Certosa tumbas fenícias datadas de 300 anos antes de Cristo. Outra prova de que num lugar que já viu tudo, como a milenar Itália, Berlusconi ainda consegue surpreender.

As borboletas do Papi

Todas o chamam de Papi, ganham joias com borboletas – o símbolo do partido de Berlusconi – e visitam a casa de praia na Sardenha ou o palácio oficial, em Roma. Muitas falam

AFP
Noemi Letizia

Tudo começou por causa dela. Berlusconi foi à sua festa de 18 anos, a mulher dele, Veronica, com quem vivia em separação consensual, soltou os cachorros e as revelações constrangedoras não pararam mais.

Berlusconi já deu cinco versões sobre o tipo de relacionamento que tem com a napolitana.


Os fatos: Noemi mandou um book de fotos para um amigo do primeiro-ministro e foi convidada a visitar a notória Villa Certosa. Com mais quarenta meninas












Barbara Montereale

Amiga de Patrizia e autodefinida como hostess, afirmou ter recebido o equivalente a 26 000 reais, em dois envelopes, por ter comparecido a uma festa de Berlusconi em Villa Certosa, além de colares, pulseiras e anéis em formato de borboleta.








Patrizia D’Addario

Profissional do sexo, 42 anos e um celular muito ativo, é responsável pelos detalhes mais íntimos.

Em conversas gravadas que entregou a um promotor público, comenta que um homem mais jovem já teria atingido o objetivo do encontro com mais antecedência e que não fazia sexo assim havia muitos meses.

Educadamente, Berlusconi sugere:

"Se me permite, acho que você deveria fazer mais sexo consigo mesma"

Entregou a promotores fotos dela e de amigas tiradas no banheiro da residência oficial do primeiro-ministro, em Roma Reprodução

Cristiane Segatto

O valor dos pequenos prazeres

A felicidade está nos 'micromomentos', sugere estudo de universidade americana

Na primeira volta, fiz uma descoberta deliciosa: o point dos namorados no Parque Villa-Lobos não é o viveiro de mudas, não é a sombra das árvores, não é um cantinho qualquer. É uma ribanceira com vista para a Marginal Pinheiros. É ali que os casais – abonados, pobres ou remediados – estendem toalhas no chão e fazem o tempo parar.

Como se estivessem no mais belo dos mirantes, contemplam o rio imundo e a passagem frenética dos carros. Precisei dar mais uma volta completa no parque até conseguir entender que prazer eles conseguiam enxergar.

Alinhei o meu olhar com o deles e respeitei o silêncio. O que se ouve é um "vrummmmm" contínuo e distante. Ele serve de fundo sonoro para uma experiência incomum: a de sair do palco da cidade para ser espectador. Quem passa a semana praguejando no trânsito da Marginal ganha, no sábado, a chance de olhar aquelas tantas pistas por uma outra ótica. De cima, como se não fizesse parte daquela engrenagem.

Os carros, o trem, o rio – nada daquilo parece real quando deitamos na grama e os observamos de longe. Concordo com os casais. Aquele lugar "dá um barato". E é romântico.

É admirável a capacidade dos moradores de São Paulo de encontrar a felicidade numa cidade tão dura. A explicação, para mim, só pode ser uma: esses heróis da resistência sabem enxergar o valor dos pequenos prazeres. Inventam oportunidades para que o prazer exista nos lugares mais improváveis.

Um carioca, numa rápida visita a São Paulo, não entenderia a felicidade dos casais que contemplam a Marginal Pinheiros como se estivessem nas Paineiras. Estranharia também a alegria da mulher apaixonada que ganha flores compradas no Cemitério do Araçá.

Sempre precisei de muito pouco para ser feliz. Coisas como namorar a noite inteira e, entre um cochilo e outro, reconhecer Neil Young tocando no aparelho três em um. Acordar ao meio-dia com uma fome de um mês. Caminhar pela rua plana até a feira de domingo. Comer dois pastéis com caldo de cana. A lembrança dessa felicidade vira-lata, que me inspira há tantos anos, vai durar para sempre.

Qual é o efeito terapêutico dos momentos felizes que acumulamos na vida? O senso comum nos diz que eles só podem fazer bem. Há quem se dedique a responder isso cientificamente. A professora de psicologia Barbara Fredrickson, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, tentou medir o valor dos pequenos prazeres.

Durante um mês, 86 voluntários relataram diariamente as emoções que sentiram, em vez de responder a questões genéricas, do tipo "Nos últimos meses, quanta alegria você sentiu?". O resultado foi publicado no mês passado na revista científica Emotion, publicada pela Associação Americana de Psicologia.

Quanto mais emoções positivas uma pessoa sentia a cada dia, mais acentuada era sua capacidade de se recuperar de situações difíceis ou estressantes, concluiu Barbara. "Pequenos momentos de prazer fazem florescer as emoções positivas. Elas nos tornam mais abertos", diz Bárbara. "E essa abertura para o mundo nos ajuda a construir recursos que favorecem a recuperação diante da adversidade, nos mantém longe da depressão e nos permite continuar a crescer."

Segundo o estudo, ninguém precisa adotar uma postura de Polyana e negar as decepções que a vida nos reserva. Nem achar que a felicidade seja decorrente apenas dos momentos grandiosos. As emoções positivas que produziram mais benefícios durante a pesquisa não eram derivadas de eventos extraordinários. "É preciso valorizar os 'micromomentos' que podem produzir uma emoção positiva aqui ou ali", diz Barbara.

Cada vez mais busco esses "micromomentos". Quando minha filha me mostrou no sábado que já era grande o suficiente para deslizar sobre patins in-line, vivi um desses "micromegamomentos". Ontem mesmo eu estava grávida. Hoje ela já é essa menina apaixonante que, equilibrada sobre as rodinhas, alcança meu ombro.

Quanto vale olhar aqueles longos cabelos ao vento, aquela franjinha que encobre as sobrancelhas grossas e retribuir o sorriso mais sincero que já vi? Como diz aquela propaganda de cartão de crédito, isso não tem preço.

Nas próximas três semanas estarei em férias. Espero desfrutar muitos "micromegamomentos" na serra, na praia e nas ruas de São Paulo. Adoro ter a chance de olhar minha cidade com olhos de turista.

Essa coluna volta em 21 de agosto. Agradeço aos meus queridos leitores pela bela parceria que construímos nesse primeiro semestre.

Aprendi muito com os comentários, as críticas, as ideias e os elogios de vocês. Espero voltar com o corpo descansado e os sentidos mais atentos. Volto para fazer jornalismo, uma das grandes razões da minha felicidade.

Lya Luft

Crime e Castigo

"Estamos levando na brincadeira a questão do erro e do castigo, ou do crime e da punição. Sem limites em casa e sem punição de crimes fora dela, nada vai melhorar"

Tomo emprestado o título do romance do russo Dostoiévski, para comentar a multiplicação dos crimes nesta cultura torta, desde os pequenos "crimes" cotidianos – falta de respeito entre pais e filhos, maus-tratos a empregados, comportamento impensável de políticos e líderes, descuido com nossa saúde, segurança, educação – até os verdadeiros crimes: roubos, assaltos, assassinatos, tão incrivelmente banalizados nesta sociedade enferma.

A crise de autoridade começa em casa, quando temos medo de dar ordens e limites ou mesmo castigos aos filhos, iludidos por uma série de psicologismos falsos que pululam como receitas de revista ou programa matinal de televisão e que também invadiram parte das escolas.

Crianças e adolescentes saudáveis são tratados a mamadeira e cachorro-quente por pais desorientados e receosos de exercer qualquer comando. Jovens infratores são tratados como imbecis, embora espertos, e como inocentes, mesmo que perversos estupradores, frios assassinos, traficantes e ladrões comuns. São encaminhados para os chamados centros de ressocialização, onde nada aprendem de bom, mas muito de ruim, e logo voltam às ruas para continuar seus crimes.

Ilustração Atômica Studio

Estamos levando na brincadeira a questão do erro e do castigo, ou do crime e da punição. A banalização da má-educação em casa e na escola, e do crime fora delas, é espantosa e tem consequências dramáticas que hoje não conseguimos mais avaliar. Sem limites em casa e sem punição de crimes fora dela, nada vai melhorar. Antes de mais nada, é dever mudar as leis – e não é possível que não se possa mudar uma lei, duas leis, muitas leis. Hoje, logo, agora!

O ensino nas últimas décadas foi piorando, em parte pelo desinteresse dos governos e pelo péssimo incentivo aos professores, que ganham menos do que uma empregada doméstica, em parte como resultado de "diretrizes de ensino" que tornaram tudo confuso, experimental, com alunos servindo de cobaias, professores lotados de teorias (que também não funcionam).

Além disso, aqui e ali grupos de ditos mestres passaram a se interessar mais por politicagem e ideologia do que pelo bem dos alunos e da própria classe. Não admira que em alguns lugares o respeito tenha sumido, os alunos considerem com desdém ou indignação a figura do antigo mestre e ainda por cima vivam, em muitas famílias, a dor da falta de pais: em lugar deles, como disse um jovem psicólogo, eles têm em casa um gatão e uma gatinha. Dispensam-se comentários.

Autoridade, onde existe, é considerada atrasada, antiquada e chata. Se nas famílias e escolas isso é um problema, na sociedade, com nossas leis falhas, sem rigor nem coerência, isso se torna uma tragédia. Não me falem em policiais corruptos, pois a maioria imensa deles é honrada, ganha vergonhosamente pouco, arrisca e perde a vida, e pouco ligamos para isso.

Eu penso em leis ruins e em prisões lotadas de gente em condições animalescas. Nesta nossa cultura do absurdo, crimes pequenos levam seus autores a passar anos num desses lixões de gente chamados cadeias (muitas vezes sem sequer ter havido ainda julgamento e condenação), enquanto bandidos perigosos entram por uma porta de cadeia e saem pela outra, para voltar a cometer seus crimes, ou gozam na cadeia de um conforto que nem avaliamos.

Precisamos de punições justas, autoridade vigilante, uma reforma geral das leis para impedir perversidade ou leniência, jovens criminosos julgados como criminosos, não como crianças malcriadas.

Ensino, educação e justiça tornaram-se tão ruins, tudo isso agravado pelo delírio das drogas fomentado por traficantes ou por irresponsáveis que as usam como diversão ou alívio momentâneo, que passamos a aceitar tudo como normal: "É assim mesmo".

Muito crime, pouco castigo, castigo excessivo ou brando demais, leis antiquadas ou insuficientes, e chegamos aonde chegamos: os cidadãos reféns dentro de casa ou ratos assustados nas ruas, a bandidagem no controle; pais com medo dos filhos, professores insultados pela meninada sem educação. Seria de rir, se não fosse de chorar.

Lya Luft é escritora


25 de julho de 2009
N° 16042 - NILSON SOUZA


Pergunta infalível

A segunda coisa de que mais gosto em minha amiga é a sua paciência. Ela ouve com abnegada atenção os relatos de meus problemas, não concorda nem discorda, e não transige nem mesmo quando percebe que estou implorando por solidariedade. Apenas pergunta:

– E o que a gente aprende com isto?

É a primeira coisa de que mais gosto nela. Sua indagação é ao mesmo tempo afetiva e profissional. Quando fala “a gente”, está dizendo sutilmente que está ao meu lado. Ao colocar o ponto de interrogação, porém, está me estimulando a pensar, a reagir, a buscar dentro de mim a solução para dúvidas e impasses, está sugerindo com convincente habilidade que sou capaz de dar a volta por cima de qualquer coisa. Sempre saio revigorado desses diálogos.

Se pudesse, transferiria esta técnica terapêutica para o país.

Tenho observado muita gente desanimada com o que lê e com o que ouve de seus representantes políticos. É tal o desencanto que as pessoas passam a colocar todos no mesmo saco, concluem que não tem jeito mesmo, que os poderosos continuarão usando o poder para se beneficiar, para empregar parentes, para gastar o dinheiro do contribuinte em mordomias.

Todo dia tem um escândalo novo nas manchetes e seus protagonistas não apenas permanecem impunes como voltam a ser eleitos, em alguns casos chegando mesmo a aparecer na capa dos jornais abraçados a antigos desafetos. Já ninguém mais consegue distinguir quem é quem. Dá mesmo vontade de desistir desta tal democracia. Pois, ainda assim, cabe a pergunta infalível:

– E o que a gente aprende com isto?

A resposta, como ensina minha querida amiga, está dentro de nós. Cada um de nós tem que descobrir o que pode fazer para o país aprimorar seus padrões de decência. Talvez tenhamos que começar por casa, pela educação das nossas crianças, pela construção de novos padrões morais.

Talvez tenhamos que expurgar de nossas vidas o tal jeitinho brasileiro, que justifica a informalidade mas também estimula a esperteza. Talvez tenhamos que sair às ruas para protestar coletivamente.

Talvez tenhamos que reaprender a utilizar o voto como forma efetiva de seleção dos nossos representantes políticos. Talvez seja hora de buscar caminhos ainda não trilhados.

Só não podemos desistir do direito de fazer nossas próprias escolhas. Se renunciarmos a isso, alguém vai escolher por nós.

quinta-feira, 23 de julho de 2009



23 de julho de 2009
N° 16039 - LETICIA WIERZCHOWSKI


Um incêndio no meu prédio

Todo mundo tem medo de alguma coisa. Certas pessoas não conseguem entrar num avião. Outras tem medo de escuro. Tem gente por aí com medo de baratas, de elevadores, de altura, de cachorro. Tem gente que tem medo até de gente. Se eu tivesse que apontar uma fobia, seria o fogo. Ainda menina, acompanhei o famoso incêndio das Lojas Renner.

Eu assistia a um desenho pré-mesozoico, o Faísca e Fumaça, quando os boletins sobre o drama na Renner interromperam a programação televisiva. Esse episódio deu origem ao meu medo. O desenho Faísca e Fumaça soa por demais evocativo para o caso? Bem, não se deve confiar completamente nas recordações de uma escritora, é o que diz o meu marido.

Voltemos aos medos. Ou aos incêndios. Pois quero contar que, pesadelo dos pesadelos!, na semana passada houve um incêndio no meu prédio.

Um ar-condicionado entrou em curto-circuito no 12º andar, tomou o quarto de casal, e logo as labaredas já saíam pelas janelas. Eram dez horas da noite e tivemos o pacote completo: bombeiros, elevadores parados, moradores assustados descendo diligentemente pelas escadas de emergência do prédio.

Nunca saí de casa tão rápido na minha vida. Após o aviso do porteiro, ridiculamente ainda dentro do meu velho pijama e usando minhas pantufas mais velhas ainda, desabalei-me pelas escadas de emergência com meus dois meninos a tiracolo.

Se algum vizinho assustou-se com minha toalete entre tantos outros sustos mais prementes, teve a finésse de disfarçar (confesso que, nessa noite, meu dileto esposo estava em São Paulo, o que baixou sensivelmente meu padrão de elegância noturna).

Mas nem tudo foi um fiasco… Bombeiros corriam lá em cima, fazendo seu brilhante trabalho, e todos nós no hall nos portamos com a devida calma e equilíbrio. Até os bebês pareciam serenos, surrupiados dos seus berços no meio da noite fria. Eu diria que o clima era amistoso e quase alegre.

Afinal, afora os óbvios prejuízos materiais, nenhum morador ficou ferido. E olhem que nesse nosso prédio andamos todos ocupados, quase nem nos vemos, silenciosos pelos corredores, parcimoniosos nos elevadores, compenetrados nas reuniões de condomínio.

Mas, nessa noite, nos comportamos todos com leveza de alma. No meio do susto, a simpatia e a solidariedade imperaram. Como diz o ditado, é na adversidade que a gente se agiganta.

Uma ótima quinta-feira, especialmente para você.

quarta-feira, 22 de julho de 2009



22 de julho de 2009
N° 16038 - MARTHA MEDEIROS


Castidade fashion week

Há 15 anos, publiquei minha primeira crônica em Zero Hora. Nem imaginava a possibilidade de ser uma colunista fixa. O convite foi para escrever uma vez e fim, mas não foi o fim, e sim o começo de uma carreira que se mantém até hoje. Lembro bem do texto.

Foi inspirado numa reportagem de revista em que algumas atrizes diziam que pretendiam se casar virgens. Manchete da capa: “A virgindade na moda de novo”. Aquela matéria me pareceu um desserviço às mulheres: como assim, a virgindade na moda de novo? Castidade fashion week? E os rapazes iriam adotar essa moda também?

Mesmo sendo uma alienígena para os leitores, sem jamais ter escrito uma única linha para jornal, estreei atirando: condenei a papagaiada.

Disse que se uma mulher quisesse se manter virgem até o casamento, era uma escolha pessoal, íntima e legítima, mas a imprensa alardear o fato como tendência de comportamento era menosprezar as conquistas de toda uma geração que lutou muito pelo nosso direito à independência e ao prazer. Como ficar quieta ao ver o sexo ameaçado de voltar a ser um dote nupcial?

Pois passados esses 15 anos, retomo o assunto, agora inspirada na pastora Carol, que vem a ser Caroline Celico, esposa do jogador Kaká, que anunciou que irá abrir uma igreja Renascer em Cristo em Madri, pelo visto atendendo a um desejo do Senhor, segundo recente depoimento.

“Como pode no meio da crise alguém ter dinheiro? O dinheiro do mundo tem que estar em algum lugar. E Deus colocou esse dinheiro na mão de quem? Do Real Madrid, para contratar o Kaká. Foi uma grande bênção”.

Pois essa inocência em pessoa também vem pregando a valorização da virgindade, fazendo inclusive revelações sobre os detalhes do dia em que declarou a Kaká que pretendia se casar virgem. Segundo ela, Kaká a ouviu e, depois de um prolongado silêncio, disse que esse era o sinal divino que esperava para ter certeza de que ela era a mulher da sua vida.

É a história particular de um casal e ninguém tem nada a ver com isso, mas assistir a essa linda moça quase em transe, ao lado da bispa e chave-de-cadeia Sonia Hernandes, perpetuando preconceitos já vencidos (o vídeo está circulando pela internet para quem quiser conferir), me faz bater nas mesmas teclas de outrora: devagar, pastora Carol.

Você é esposa de um ídolo de massa, incluindo nessa massa muitas mulheres e homens mal informados. Assim como a gandaia em que vivem alguns jogadores não deve servir de exemplo para ninguém, a carolice (desculpe o trocadilho) também não.

O período do namoro serve justamente para se conhecer melhor a pessoa com quem, a priori, desejamos passar o resto dos nossos dias. E a compatibilidade sexual é um dos fatores decisivos para o sucesso de uma união.

Deixar para testá-la depois de consumado o casamento pode ser romântico, mas é um risco. Sexo não é pecado, e sim um impulso natural, e dos bons. Quando reprimido, gera radicalismo, tara, violência e histeria.

Depois de as mulheres terem vivido tanto tempo oprimidas na sua sexualidade, hoje elas finalmente administram seus desejos de uma forma adulta, responsável e livre. Retroceder, a essa altura, é que não tem perdão.

Aproveite o dia - Uma ótima quarta-feira para você.

terça-feira, 21 de julho de 2009



21 de julho de 2009
N° 16037 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Pane no computador

Meu computador mergulhou de novo em nocaute. Um fio, uma tomada, um circuito – não sei qual deles – entrou em queda livre e interrompeu o diálogo dos delicados mecanismos da máquina. Convoquei experts de minha agenda de pronto socorro, mas nenhum deles mostrou-se capaz de penetrar no mistério da pane. Fato que me levou a algumas reflexões baldias.

Em 1964, eu estava no segundo ano do Curso de Direito. De repente, o que até a véspera eram solidíssimas verdades ruiu por terra. O que eu aprendi sobre a Constituição, as leis, a democracia, as liberdades individuais e coletivas, a soberania do povo exercida pelo voto, ou virou pó, ou transformou-se num arremedo de instituições. Os novos donos da República cassavam, prendiam, exilavam, proibiam, calavam, sem que poder algum fosse capaz de contrastar a sua força.

Essa ditadura, que fez de minha geração um sanduíche, se repete hoje, guardadas as proporções, na opressão da tecnocracia. Tudo começou com um pacote pedagógico encomendado do Primeiro Mundo, onde já estava abandonado por se ter provado inservível.

O predomínio da educação humanística – em cuja receita entravam a Filosofia e o Latim – cedeu lugar ao ensino especializado. Isso quer dizer que um estudante que lidasse com Física, Química ou Matemática estava absolvido de se preocupar com matérias como a Sociologia ou o Francês.

As escolas começaram a fornecer diplomas a especialistas em minúcias, e todo um imenso legado de humanismo foi para o brejo. Um projeto de médico radiologista ou de engenheiro eletrônico já não precisava saber quem fosse Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Ao mesmo tempo, prefeitos e governadores não necessitavam perder o sono por causa de votos, e quando o Parlamento não era submisso o bastante havia uma solução simples: fechá-lo.

O que isso tem a ver com os piripaques não consertados de meu computador? Muito. Quando a formação ensina como ver as árvores, mas não a floresta, qualquer desafio à inteligência e à criatividade esbarra no obstáculo das receitas não decoradas.

Um parafuso fora do lugar transforma-se no desafio da Esfinge: decifra-me ou devoro-te. Raciocinar torna-se um luxo. Uma pane que fuja às normas conhecidas converte-se num enigma insondável. Em outras palavras, as pessoas andam esquecidas de pensar.

Uma ótima terça-feira para você especialmente minha amiga

quarta-feira, 15 de julho de 2009



15 de julho de 2009
N° 16031 - MARTHA MEDEIROS


O resgate da normalidade

A foto dá a entender que Obama está olhando o bumbum da menina de 17 anos que posou com os integrantes do G-8 na Itália, mas um vídeo da cena mostra que na verdade ele estava se virando para ajudar uma outra moça a descer as escadas, ou seja, um cavalheiro, e não um malandro. Mas lamentei o tira-teima. Queria que Obama estivesse, sim, olhando pro derrière da moça. Por quê? Porque seria mais um capítulo da minissérie Obama, o resgate da normalidade.

Obama é presidente dos Estados Unidos, cargo que automaticamente o coloca num pedestal, mas ele não faz o tipo que se empina. E o fato de ser o primeiro presidente negro do país lhe confere um status de pioneiro, mas ele tampouco fatura em cima desse pioneirismo. Age como qualquer preto comum ou qualquer branco comum: sendo comum. E é isso que o torna moderno.

Obama tem uma mulher que poderia ser a vizinha da porta ao lado e tem filhas que sempre sonharam em ter um cachorrinho, em vez de, sei lá, um tigre branco siberiano. Obama mata moscas, senta em escadas, tem dificuldade em parar de fumar e olha para traseiros femininos, e se não olhou naquele dia, olhará certamente em outros, discretamente, sem nenhum desprestígio à senhora sua esposa. Homens comuns fazem isso.

Pressinto no ar uma valorização da trivialidade descomprometida, aquela que existia antes da praga do politicamente correto, antes da avalanche de revistas de fofocas e antes dessa era em que tudo parece um grande teatro. Não me excomungue, mas vou ser mais uma a seguir falando do Michael Jackson.

Domingo passado eu esperei o Fantástico terminar só para ver as cenas dos vídeos caseiros onde o cantor aparecia caindo na piscina de roupa e tudo, fazendo guerrinha de bexiga d’água com os amigos, abrindo presentes de Natal e planejando comer um frango com farofa (a farofa é invenção minha, para tornar a cena ainda mais prosaica), ou seja, vivendo sua infância retardatária, mas, ainda assim, vivendo, e não representando.

Sujava-se, molhava o cabelo e gritava “eu vou te matar!” às gargalhadas, em meio a brincadeiras. Num tempo em que celebridades saem direto do palco para o museu de cera, eram imagens desfocadas de alguém normal se divertindo. Extra, extra!

A revista Quem possui uma seção que se chama algo como “Eles são como nós”, onde mostra fotos de famosos comprando aspirina na farmácia, fazendo sinal para um táxi num dia de chuva ou limpando a lente dos óculos na barra da camiseta, como se os desmascarasse: veja, eles não passam o dia todo dentro de um ofurô! Legal.

Assim fica mais fácil virar notícia. É só trocar o champanhe pela água do bebedouro, ser flagrado abocanhando um hambúrguer triplo com a maionese escorrendo entre os dedos, usar a balança do supermercado para se pesar, catar moedinha na hora de pagar o pedágio e comer frango com farofa. Aquela farofa que sempre faz falta quando o mundo fica besta demais.

terça-feira, 14 de julho de 2009



14 de julho de 2009
N° 16030 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Perder e achar

Tem coisas que só são achadas para serem perdidas.

Encontrei em uma casa de câmbio de Ciudad Vieja, em Montevidéu, uma libra esterlina do ano de 1918. Era perfeita, com o retrato do Rei, com aquela solidez do Império Britânico, com aquela perfeição de traços e linhas que nunca mais surpreendi em nenhuma moeda de país algum do mundo.

O dono da loja pedia uma pequena fortuna por ela. Mas eu havia ganho na véspera outra pequena fortuna no cassino do Parque Hotel, de modo que nem regateei. Paguei por aquela preciosidade cada dólar que me pediam – e mais gastaria se mais me houvessem cobrado.

Pois bem; esses dias resolvi revê-la e não a localizei. Aconteceram nos últimos anos algumas mudanças – e não é impossível que entre um apartamento e o seguinte ela se tenha extraviado.

Não me queixo. Já perdi outras coisas, aí incluído um exemplar de Os Lusíadas que comprei num sebo. Era para ter arrematado uma coleção de romances portugueses, começando, é claro, por Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. Só que veio junto, de contrabando, uma estropiada cópia da obra de Camões.

Creio que foi a primeira vez que li com gosto a narrativa inteira, me demorando no episódio de Inês de Castro. E então veio outra mudança e sumiram Os Lusíadas, sumiu a linda Inês posta em sossego.

Desde que dei noção de mim mesmo, ouvia meu avô dizendo: “Este relógio será de meu neto mais velho”. Meu avô era um senhor cumpridor da palavra, de modo que ganhei a joia ao completar oito anos.

Minha mãe entendeu que eu não tinha ainda a idade para portar semelhante raridade, de modo que a guardou numa gaveta de sua cômoda. Sucedeu que morávamos no térreo de um edifício – e não demorou fomos visitados por amigos do alheio. Resultado: me levaram o relógio, de que nunca mais tive remota notícia.

A vida é assim. Como falei no início, tem coisas que só são achadas para serem perdidas. É como o amor: você jura que durará uma eternidade, momentaneamente esquecido de que ela é construída de mínimos segundos.

Uma excelente terça-feira pra você. Quem te conhece sabe...

sábado, 11 de julho de 2009



12 de julho de 2009
N° 16028 - MARTHA MEDEIROS


A caricatura do primeiro casamento

TEnho muito interesse por relações amorosas e tudo o que as envolve. Essas relações não precisam ser necessariamente românticas também adoro histórias de pais e filhos, assim como histórias sobre fortes amizades mas o conflito gerado por um homem e uma mulher que convivem intimamente sempre me pareceu digno da maior atenção.

No entanto, de um tempo pra cá, algo vem me inquietando. Essa febre de filmes, peças e livros retratando as dificuldades de relacionamento estarão sendo realistas de fato? O público se identifica, ri das pequenas tragédias que experimenta em sua vida pessoal, mas não está na hora de abrir espaço para o que não é nem tão trágico, nem tão cômico?

Mulheres são de um planeta, homens de outro. Elas se sobrecarregam no papel de esposa e mãe, eles se atrapalham com seu excesso de testosterona e eterna meninice. Elas querem mais romance.

Eles querem mais liberdade. Elas são doces, eles são rudes. Todos querem amar, mas ninguém se entende. Esse é o quadro, o resto são variações sobre o mesmo tema. Fascinante, mas pode estar se transformando numa caricatura avalizada por todos nós.

Contrariando a regra, existem homens doces e mulheres rudes. Morar em casas separadas é uma saída que vem sendo considerada. Ter filhos já não é uma meta soberana. O “pra sempre” deixou de ser prazo irrevogável do amor.

Nem todo homem procura a própria mãe na mulher por quem se apaixona. Nem toda mulher sonha com um protetor. Casar é algo que pode acontecer na vida de alguém, ou pode não acontecer. Há casais que vivem às turras, mas também há os que se entendem bem.

Ou seja, há quem não se sinta representado por essa natureza esquizoide que virou padrão de relacionamento: se marido e mulher querem se matar, ufa, são normais.

Na peça A História de Nós Dois, que assisti recentemente no Rio e que, com talento e graça, retrata o ciclo de começo-meio-e-fim da maioria das relações atuais, me fez perceber que, das três fases do amor, nenhuma é original: a originalidade está na quarta fase, da qual se fala tão pouco.

Se a fase inicial da paixão tem um fim, se a fase do “durante” (quando os filhos nascem e as complicações aparecem) também tem um fim, então a ruptura do relacionamento, com quebra-quebra e dor intensa, também pode ter um fim, gerando a partir daí uma relação menos paranoica e mais madura, mais afetuosa e mais tolerante.

Só que poucos tentam essa quarta fase com a mesma pessoa com quem viveram as três anteriores. O que é compreensível, mas nada alentador.

“Quero casar de uma vez para separar logo e aí, sim, ter uma relação bacana de verdade”.

Parece piada, mas é o pensamento secreto de muitos. As pessoas estão querendo vivenciar rapidamente um destino que lhes parece inevitável (uma relação familiar com começo, meio e fim) para que possam entrar, depois, numa outra relação que possa ser curtida sem amadorismo, sem amarras, sem prazos, sem um roteiro previamente estipulado.

O segundo casamento é que passou a ser o grande sonho de consumo, porque ainda não foi caricaturizado. Por enquanto.

Um ótimo domingo especialmente a você minha amiga.

Cinema - Isabela Boscov

A CHEFE DE JOELHOS

Em A Proposta, Sandra Bullock é uma editora infernal que, por causa de um erro, vai ser colocada no seu devido lugar pelo assistente que sempre escravizou. Surpresa: no final, a sua versão megera é a que deixa saudade

A BRUXA DESCE DO SALTO



Reynolds faz o que todos os que conhecem sua chefe gostariam de fazer: obriga-a a reconhecer quem manda ali – e diante de testemunhas

Em A Proposta (The Proposal, Estados Unidos, 2009), desde sexta-feira em cartaz, Sandra Bullock é uma chefe tão infernal que, quando circula pelo escritório da editora de livros em que é mandachuva, os funcionários vão avisando uns aos outros sobre seus movimentos: ser flagrado distraído é garantia de humilhação pública.

Margaret Tate, a personagem de Sandra, lê relatórios enquanto se exercita, não devolve o bom-dia de subalternos, marcha, em vez de caminhar, e nunca avisa que uma conversa terminou – apenas passa a ignorar o interlocutor.

Até a maneira como se arruma, com tailleurs em que nada sobra nem falta e rabos de cavalo esticados, parece ser calculada para torná-la mais aerodinâmica e otimizar seu tempo. Margaret é particularmente impiedosa com Andrew, seu assistente, que há três anos a suporta porque espera que um dia a chefe faça justiça e o promova a editor. Andrew odeia Margaret.

Mas vai ter de se casar com ela, porque ela assim determinou: a chefe é canadense, deixou seu visto expirar e será deportada a menos que se case com um cidadão americano.

Numa cena antológica, Andrew, que acaba de descobrir que ficará sujeito a cinco anos de prisão caso se descubra que a união é uma fraude, faz o que todos os que conhecem Margaret desejariam fazer: obriga-a a ficar de joelhos diante dele – para pedi-lo em falso casamento, que seja, mas de joelhos.

A partir daí, A Proposta corre atrás de um argumento de segunda mão. Andrew e Margaret viajam para a casa dos pais dele, no Alasca; em vez de caipiras que abatem alces, ela encontra a aristocracia das altas latitudes; o par que se detesta terá de fingir que se ama, dando margem a beijos artificiais, abraços duros e embaraços variados (pantomima que Sandra e Ryan Reynolds, no papel de Andrew, executam com brilhantismo);

e vai-se descobrir, como se já não fosse sabido, que no íntimo da bruxa existe uma princesa. Não obstante a falta de originalidade desses desdobramentos, A Proposta foi um sucesso nos Estados Unidos, onde rendeu quase 34 milhões de dólares no fim de semana de estreia – bilheteria de filme de ação, não de comédia romântica.

O motivo mais evidente é o apelo humano, por assim dizer, que o filme da diretora Anne Fletcher exerce: há poucas alegrias tão genuínas quanto a de ver um chefe insuportável ser colocado em seu devido lugar. E, se o chefe for uma chefe, o júbilo se multiplica.

Por razões que têm muito a ver com o chauvinismo e um tantinho a ver com o empirismo, a mulher no comando é tratada pelo cinema como a quinta praga do apocalipse – e isso desde antes que houvesse mulheres no comando. Nos anos 30 e 40, quando a então emergente "guerra dos sexos" serviu para que alguns dos diretores mais talentosos de Hollywood instituíssem o padrão-ouro da comédia romântica, a figura da mulher implacável e que não para diante de nada se fixou de maneira quase espontânea.

Num dos primeiros exemplares do gênero, Precisa-se de um Homem, de 1932, a estrela Kay Francis é a todo-poderosa editora de uma revista que faz David Manners passar pelo rebaixamento de trabalhar como seu secretário, mais ou menos como em A Proposta. Em Ninotchka, de 1939, a obra-prima de Ernst Lubitsch, Greta Garbo é uma dirigente comunista tão linha-dura que nem o esplendor do capitalismo a faz vacilar (só Melvyn Douglas é capaz disso).

E, em A Costela de Adão, de 1949, Katharine Hepburn e Spencer Tracy são um casal de advogados que se opõe no tribunal – e é ela a verdadeira litigante, para não dizer beligerante. O curioso é que essas mulheres não eram punidas pelo roteiro por serem carreiristas – nada, para elas, dos queixumes, neuroses e solidão de heroínas românticas mais recentes, como aquelas que Meg Ryan se especializou em interpretar.

Talvez seja esse o dado que tornou A Proposta um sucesso espontâneo. O filme, é verdade, obriga Margaret a amolecer. Mas só bem perto do final. Até aí, apesar das limitações do enredo esquemático, Sandra Bullock, às vésperas de fazer 45 anos, tem a chance de expor as arestas duras e cortantes de sua personalidade – as quais compõem boa parte de seu apelo, mas que ela quase sempre teve de ocultar ou contornar.

Uma mulher vista assim por inteiro pode ser fascinante, e não há dúvida de que foi esse espetáculo que fez Meryl Streep emergir de O Diabo Veste Prada, aos 57 anos e contra todos os credos da indústria, como a mais rentável estrela americana do momento.

Sandra não é uma atriz do seu calibre, mas leva para um papel como o de Margaret um elemento verossímil: por mais que faça, não consegue esconder de todo que é independente, mandona e teimosa, e que portanto baixaria mesmo a guarda com mais facilidade para um homem que conhece de antemão seus aspectos mais indóceis,

que é livre de vaidade o bastante para conviver com eles e que poderia completá-la com a acessibilidade que ela não tem – um tipo de homem que Ryan Reynolds, um ator que gosta de papéis em que o ego masculino é desafiado e que nunca joga com a aparência, apesar de ela ser excelente, faz também parecer crível e possível (pura ilusão cênica; ele é casado com Scarlett Johansson).

É pena que A Proposta não tenha coragem de deixar sua protagonista em paz.

No final, quando o filme trata de colocá-la na linha, aquela cena que uma hora antes parecera tão gratificante, de Margaret ajoelhada numa calçada, com as solas vermelhas dos sapatos Louboutin expostas ao público como um emblema da derrota feminina, acaba por perder muito da sua glória.

Não é que, na sua versão meiga, Margaret seja ruim. É que quando ela era má ela era muito melhor. E bem mais interessante.

Lya Luft

A outra epidemia

"Como de um lado nos tornamos mais abertamente corruptos e de outro estamos mais condescendentes, instalou-se entre nós uma epidemia moral"

Para mim, escrever é sempre questionar, não importa se estou escrevendo um romance, um poema, um artigo. Como ficcionista, meu espaço de trabalho é o drama humano: palco, cenário, bastidores e os mais variados personagens com os quais invento histórias de magia ou desespero. Como colunista, observo e comento a realidade. O quadro não anda muito animador, embora na crise mundial o Brasil pareça estar se saindo melhor que a maioria dos países.

De tirar o chapéu, se isso se concretizar e perdurar. Do ponto de vista da moralidade, por outro lado, até em instituições públicas que julgávamos venerandas, a cada dia há um novo espanto. Não por obra de todos os que lá foram colocados (por nós), mas o que ficamos sabendo é difícil de acreditar.

Teríamos de andar feito o velho filósofo grego Diógenes, que percorria as ruas em dia claro com uma lanterna na mão. Questionado, respondia procurar um homem honrado.

Vamos ter de sair aos bandos, aos magotes, catando essa figura, não uma, mas multidões delas, para consertar isso, que parece não ter arrumação? Se os homens nos quais confiamos, em seus cargos importantes, já não servem de modelo, devemos dizer aos nossos filhos e netos que não olhem para aquele lado nem os imitem?

O Senado da República, só para citar um caso atual, teve sua maior importância em Roma, a antiga, e se originou nos milenares conselhos de anciãos, ou homens sábios e meritórios de tempos remotos.

O Senado Romano também não era um congresso de santos: até Brutus ali tramava, ocultando nas vestes o punhal com que mataria Júlio Cesar, seu protetor. Afinal eram – e são – todos apenas humanos, e o problema sempre começa aí. A noção idealizada de um grupo de homens virtuosos liderando tornou-se mais realista, levando em conta as nossas mazelas.

E daí? – dirão os mais céticos. Toda família tem seu esqueleto no armário, todo povo também: houve papas assassinos e mulherengos, reis dementes, rainhas devassas, e alguns normaizinhos, que só buscavam cumprir seus deveres e cuidar da sua gente sem prejudicar ninguém.

Ilustração Atômica Studio

Eu queria preservar a imagem dos homens públicos como uma estirpe vagamente nobre, em cargos solenes, que lutariam pelo país ou por sua comunidade, por nós todos, buscando antes de tudo o bem dos que neles confiaram.

Em caso de dúvida ou perplexidade, a gente olharia para eles e saberia como agir. Mas, como de um lado nos tornamos mais abertamente corruptos e de outro estamos mais condescendentes, instalou-se entre nós uma epidemia moral.

Se fomos criados acreditando que o importante não é ter poder, mas ser uma pessoa honrada, estamos mal-arranjados. Pois, na vida pública, não malbaratar o dinheiro, não fazer jogos de poder ilícitos, não participar das tramas, ficar fora da dança dos rabos presos em que todos se protegem, virou quase uma excentricidade.

Quem sabe o jeito é engolir sapos inaceitáveis: fim para o idealismo, treinem-se um olho clínico e cínico, enchendo bolsos e esvaziando pudores na permissividade geral que questiona o velho conceito de certo-errado. Talvez ele não passe de uma ilusão envelhecida, para sobreviver em vez de afundar.

Não sei. A cada dia sei menos coisas. Antigas certezas se diluem: calejados pelas decepções, vacinados contra a indignação, não sabemos direito o que pensar. Então não pensamos.

A sorte é que apesar de tudo o país anda, a grande maioria de nós labuta na sua vidinha, trabalhando, pagando contas, construindo casas e ruas e pontes e amores e famílias legais.

Lutando para ser pessoas decentes, as que carregam nas costas o mundo de verdade. É a nós – o povo, independentemente da cor, da chamada classe, da conta bancária ou do lugar onde mora – que os ocupantes de cargos públicos devem servir.

Nós os elegemos e pagamos (coisa que nosso lado servil costuma esquecer), e não podemos ser contaminados por essa epidemia contra a qual não há vacina, mas para a qual é preciso urgentemente encontrar alguma cura. Enquanto ela não chega, mais uma vez eu digo: meus pêsames, senhores.

Lya Luft é escritora

David Cohen e Thiago Cid. Com Nádia Mariano e Rafael Pereira

Dá para ser feliz no trabalho?

Dois novos livros de filósofos redefinem a importância da atividade profissional para nossa formação como seres humanos. E ajudam a responder a uma pergunta que aflige milhões de pessoas

É possível que algum dia olhemos o trabalho, tal como ele é exercido hoje, com uma espécie de nostalgia. Talvez os estudiosos do futuro descrevam os escritórios do início do século XXI como locais de encontro e aprendizado, de uma vida social relativamente rica,

em que as pessoas eram instigadas a resolver problemas, fazer amigos, às vezes viver romances, exercitar um pouco de política, gastar algumas horas em conversas fiadas perto da máquina de café, navegar pela internet e – por que não? – até realizar algum serviço útil de quando em quando.

Para ter uma visão benevolente do mundo do trabalho, basta olhar sua evolução. Na maior parte da história da civilização, os bens que consumíamos eram feitos por escravos ou servos.

Mesmo o trabalho livre não o era tanto. Artesãos da Idade Média costumavam dormir embaixo da bancada em que trabalhavam, nas guildas europeias. No início da era industrial, a situação não era melhor: as jornadas podiam chegar a 14, 16 horas, inclusive para crianças, e não havia regulamentação de nenhuma espécie.

Pode causar algum espanto, então, que os pensadores modernos encarem a rotina trabalhista de hoje como um problema, uma questão a ser esclarecida, entendida... trabalhada. Isso acontece porque o trabalho adquiriu um significado completamente novo, como mostram dois livros recém-lançados por dois filósofos modernos. Em cada um deles, o trabalho – e seu papel em nossa vida – é totalmente redefinido.

Em The pleasures and sorrows of work (Os prazeres e tristezas do trabalho, ainda sem previsão de lançamento no Brasil), o filósofo suíço-britânico Alain de Botton afirma: “A mais notável característica do trabalho moderno talvez esteja em nossa mente, na amplamente difundida crença de que o trabalho deve nos tornar felizes. Todas as sociedades tiveram o trabalho em seu centro.

A nossa é a primeira a sugerir que ele possa ser muito mais que uma punição ou uma pena. A nossa é a primeira a sugerir que deveríamos trabalhar mesmo na ausência de um imperativo financeiro”. Tão ligado está o trabalho à definição de nossa identidade que, quando somos apresentados a uma pessoa, a pergunta mais imediata que fazemos não é de onde ela vem ou quem é sua família, mas o que ela faz.

Se o trabalho assumiu essa importância tão central em nossa vida, é natural que não nos contentemos apenas com o que ele nos traz. Nós sempre soubemos que o trabalho é a ação de transformar algo: matéria-prima em objetos, tarefas em serviços. Hoje nos preocupamos também com o que ele faz de nós, como ele nos transforma.

Para Botton, tentar extrair a felicidade do reino do trabalho – e também do amor – é pedir demais. “Não é que essas duas instâncias sejam invariavelmente incapazes de nos dar satisfação, apenas elas quase nunca o fazem”, diz.

Seu livro é uma grande reportagem que investiga o significado do trabalho, num mundo que parece ter realizado uma das profecias de Karl Marx: a alienação. “Há dois séculos, nossos antepassados sabiam a história e a origem precisa de praticamente todas as poucas coisas que comiam ou tinham, bem como das pessoas e ferramentas envolvidas em sua produção”, afirma Botton.

“Nós estamos hoje mentalmente desconectados da manufatura e distribuição de nossos bens, num processo de alienação que nos tira uma infinidade de chances de nos maravilhar, ser gratos e nos sentir culpados.”


11 de julho de 2009
N° 16027 - NILSON SOUZA


Ofícios do passado

Encontrei dia desses na minha caixa postal eletrônica uma seleção de imagens de profissões extintas, ou quase, pela modernidade e pela tecnologia.

São pinturas belíssimas, que retratam ofícios do passado e todo o cenário de nostalgia onde eles eram exercidos por homens e mulheres que habitaram o pretérito perfeito da minha infância. Reconheci-os imediatamente.

Lá estava o marceneiro alisando carinhosamente um pedaço de madeira com a sua lixa fina, como tantas vezes vi meu saudoso tio Luizinho fazer na sua oficina de trabalho, de onde saíam cadeiras e armários de acabamento perfeito.

Quando era menino, gostava de correr entre as tábuas empilhadas e de sentir o cheiro da serragem e do esmalte que caracterizavam diferentes etapas daquele artesanato.

Na tela seguinte, deparei com um ferreiro, segurando sobre o joelho a pata de um belo cavalo branco, para aplicar-lhe os cravos da ferradura nova. Também esta cena faz parte da minha memória infantil, com cheiro e tudo.

Lembro-me muito bem do ferro incandescente arrancando fumaça do casco do animal, na moldagem do local exato onde a meia-lua de aço seria pregada. Era uma operação um tanto selvagem, que me fazia admirar a coragem e a força do ferrador, ao mesmo tempo em que me despertava compaixão pelo animal.

O sapateiro à moda antiga foi outro que me fez recuar no tempo para observar, em respeitoso silêncio, aquele homem recendendo à cola, que transformava pedaços de couro bruto em solados e saltos.

O que me impressionava naquele artífice compenetrado na sua tarefa solitária era a habilidade para pregar tachinhas sem martelar os dedos, até que a ponta da minúscula cunha entortasse no pé de ferro.

Um afiador de facas deu som e luz às minhas lembranças. Esse homem, que ainda desfila pelas periferias das grandes cidades tocando o seu instrumento ancestral, atraía a atenção da criançada como um flautista de Hamelim.

Depois, instalava-se diante de um esmeril e fazia sair faíscas dos facões e machadinhas que lhe alcançavam as donas de casa. O afiador era uma espécie de gladiador da minha infância.

Outros personagens igualmente embaciados pelo tempo completam o mosaico de saudade: um tecelão, um tipógrafo, um sineiro, um queijeiro, uma costureira, uma rendeira, todos com seus instrumentos antigos. É curioso pensar que o mundo que conhecemos hoje, incluindo este computador capaz de ligar passado e futuro, foi lapidado pelas mãos desses trabalhadores.

quarta-feira, 8 de julho de 2009



08 de julho de 2009
N° 16024 - MARTHA MEDEIROS


O escândalo da sinceridade

Pode parecer apenas mais uma frase de efeito, mas eu a tomo como filosófica. É do dramaturgo, ator e escritor Domingos Oliveira, a quem tanto admiro. Ele diz: “A única coisa que ainda escandaliza hoje em dia é a sinceridade”.

Abro o jornal e leio sobre supostos escândalos políticos (federais, estaduais) que me mantêm apática, pois é tanta enrolação, disputa de poder e trocas de favores, que o máximo que consigo sentir é desprezo e desinteresse. Escandalizada, não fico. O escândalo pressupõe uma novidade.

E, hoje, a única novidade está em ser sincero. O vice-presidente José Alencar, em função de suas inúmeras cirurgias, passou a ser a avis rara da política nacional, conquistando simpatia não por seus atributos profissionais, que já nem costumam ser avaliados, mas por ser um sujeito que parece real.

A sinceridade não é anestésica, não estimula reticências, não teatraliza as relações humanas, não debocha da credulidade alheia, não falsifica impressões. A sinceridade é de vanguarda. É tão soberana, que emudece a todos. É tão inesperada, que impede retaliações. A sinceridade é o ponto final de qualquer discussão.

Quer deixar alguém perplexo? Fale a verdade. Aja com verdade.

Saindo da esfera política e passando para o reino do entretenimento: o velório de Michael Jackson se transformou num show por uma questão de coerência com a vida espetaculosa do cantor. Tudo relacionado a Michael virava um fenômeno midiático. O que ele tinha de mais sincero era seu extraordinário talento musical, que nos últimos tempos foi ofuscado por um rosto de mentira e uma vida pateticamente construída em um parque de diversões. Os fãs de Michael Jackson estão sofrendo de verdade?

Não se sofre pela ausência daqueles com quem não tivemos relação pessoal. Sentimos compaixão, sentimos respeito pela trajetória artística, homenageamos quem fez a trilha sonora de uma fase da nossa vida, mas sofrimento mesmo devem ter sentido aqueles que adquiriram ingressos para o funeral e depois tentaram revendê-los pela internet por um valor superfaturado. São os cambistas da tristeza showbiz.

A dramatização de certas atitudes virou a normalidade operante. Ninguém mais acredita no que os outros dizem, tenta-se apenas ler as entrelinhas, que é por onde pode escapar algo verdadeiro.

Por outro lado, enquanto tantos se esforçam para parecer o que não são, as pessoas consideradas sábias admitem serenamente que de nada sabem. O “não sei” passou a ser uma comovente surpresa. Os melhores filmes, as melhores peças, os melhores livros tratam sobre a nossa ignorância, não sobre a nossa genialidade.

Admitir fraquezas, reconhecer erros, viver de acordo com a própria essência, buscar ajuda nas horas difíceis, voltar atrás, sentir apenas o que se sente de fato, valorizar a discrição, conviver bem com a relatividade de tudo. Extra, extra! Eis aí os escândalos deste novo século.

Ótima quarta-feira, aproveite o dia

terça-feira, 7 de julho de 2009



07 de julho de 2009
N° 16023 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Receita de domingo

Desculpem se hoje é terça-feira, pois vou responder a uma pergunta de dois dias atrás, o que talvez não importe tanto, pois cada hora pode ser uma brevíssima eternidade. Uma leitora escreveu querendo saber qual é a minha ideia sobre um domingo perfeito.

A resposta comporta um carrossel de probabilidades. Razão bastante para que me limite ao resumo do que não pode faltar.

Antes de tudo, uma branda sensação de paz. Um domingo deve ser uma síntese de serenidade, um encontro com o que de mais íntimo temos, um resumo de nossos sonhos.

Mas um domingo deve ser também um reencontro com a música. Já nem falo da clássica, mas as pessoas deveriam reservar ao menos meia hora para ouvir Felicità, Crazy, The Way you Look Tonight, Contigo em la Distancia, Stella by Starlight, Lara’s Theme, Eternally, mais tudo o que lhe sugerissem a fantasia e a imaginação. Essas melodias fazem bem à alma e não têm nenhuma contraindicação.

O que mais se espera de um domingo? Eu me atreveria a declarar que livros. Há pessoas que são felizes e não sabem. Não leram ainda Memórias Póstumas de Brás Cubas e podem guardar um lugar para elas em seu futuro. Para deixar as coisas bem claras, estou falando de um romance de Machado de Assis que poderia figurar como obra-prima em qualquer literatura do universo.

E o que dizer das artes plásticas? Não é preciso percorrer os maiores museus do mundo para ter presentes as imagens da Vênus de Milo, da Vitória de Samotrácia ou da Mona Lisa. Já nem falo de As Meninas, de todo o Van Gogh, de Georges de la Tour ou de uma única, solitária bailarina de Degas.

Se ainda houver tempo, recomendaria uma revisitação de cenas de Luzes da Cidade, Cidadão Kane, O Conformista, Nós que nos Amávamos Tanto, daquele imenso Amarcord, ou qualquer dos filmes de Fellini, sem esquecer naturalmente A Estrada da Vida.

É assim minha receita de domingo.

Que não estará contudo jamais completa sem uma reflexão sobre quem somos e o que queremos. Um diálogo íntimo que tente responder ao menos de que profundezas viemos e qual será nosso incerto destino.

Ótima terça-feira, aproveite o dia e para quem está de folga uma folga merecida.

sábado, 4 de julho de 2009



05 de julho de 2009
N° 16021 - MARTHA MEDEIROS


Achamos que sabemos

Outro dia assisti a um filme no DVD do qual nunca tinha ouvido falar – talvez porque nem chegou a passar nos cinemas. Chama-se Vida de Casado, um drama enxuto, com apenas 90 minutos de duração e jeito de clássico. Gostei bastante.

Um homem casado há muitos anos se apaixona por uma bela garota e com ela quer viver, mas não sabe como terminar seu casamento sem que isso humilhe a venerável esposa, então decide que é melhor matá-la para que ela não sofra: não é uma solução amorosa?

Não tem o brilhantismo de um Woody Allen, mas o roteiro possui certo parentesco com Crimes e Pecados. Se fosse possível resumir o filme numa única frase, seria: “Ninguém sabe o que está se passando pela cabeça da pessoa que está dormindo ao nosso lado”.

Será que nós sabemos, de verdade, o que acontece a nossa volta? Achamos que sabemos.

Achamos que sabemos quais são as ambições de nossos filhos, o que eles planejam para suas vidas, esquecendo que a complexidade humana também é atributo dos que nasceram do nosso ventre, e que, por mais íntimos e abertos que eles sejam conosco, jamais teremos noção exata de seus desejos mais secretos.

Achamos que sabemos o que o amor da nossa vida sente por nós, baseados em suas declarações afetuosas, seus olhares ternos, suas gentilezas intermináveis e sua permanência, mas isso diz tudo mesmo? Nem sempre temos conhecimento das carências mais profundas daquele que vive sob o nosso teto, e não porque ele esteja sonegando alguns de seus sentimentos, mas porque nem ele consegue explicar para si mesmo o que lhe dói e o que ainda lhe falta.

Achamos que sabemos quais são as melhores escolhas para nossa vida, e é verdade que alguma intuição temos mesmo, mas certeza, nenhuma. Achamos que sabemos como será envelhecer, como será ter consciência de que se está vivendo os últimos anos que nos restam, como será perder a rigidez e a saúde do corpo, achamos que sabemos como se deve enfrentar tudo isso, mas que susto levaremos quando chegar a hora.

Achamos que sabemos o que pensam as pessoas que nos fazem confidências, aceitamos cada palavra dita e nos sentimos honrados pelas informações recebidas, sem levar em conta que muito do que está sendo dito pode ser da boca pra fora, uma encenação que pretende justamente mascarar a verdade, aquela verdade que só sobrevive no silêncio de cada um.

Achamos que sabemos decodificar sinais, perceber humores, adivinhar pensamentos, e às vezes acertamos, mas erramos tanto.

Achamos que sabemos o que as pessoas pensam de nós. Achamos que sabemos amar, achamos que sabemos conviver e achamos que sabemos quem de fato somos, até que somos pegos de surpresa por nossas próprias reações.

Achar é o mais longe que podemos ir nesse universo repleto de segredos, sussurros, incompreensões, traumas, sombras, urgências, saudades, desordens emocionais, sentimentos velados, todas essas abstrações que não podemos tocar, pegar nem compreender com exatidão. Mas nos conforta achar que sabemos.

Um excelente domingo, especialmente para você minha amiga.

Cláudio de Moura Castro

Os meninos-lobo

"Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo"

Ilustração Atômica Studio

No velho conto de Rudyard Kipling Mogli, o Menino-Lobo, o autor descreve uma criança que, adotada por uma loba, cresce sem jamais haver usado uma só palavra humana, até ser encontrada e se integrar à sociedade. O conto é atraente, mas cientificamente absurdo. Porém, houve outros casos, supostamente reais, de crianças criadas por animais. E também casos reais (até recentes) de crianças que cresceram isoladas e sem oportunidades de aprender a falar.

Faz tempo, meninos-lobo e outros jovens criados sem interação humana despertaram o interesse da psicologia cognitiva e da linguística. A razão é que seriam um experimento natural que permitiria responder a uma pergunta crucial: esses jovens, sem conhecer palavras, poderiam pensar como os demais humanos?

A questão em pauta era decidir se pensamos porque temos palavras ou se seria possível pensar sem elas. Como os meninos-lobo não conheciam palavras, se podiam pensar, teria de ser sem elas. Nos diferentes casos de crianças criadas em isolamento, ficou clara a enorme dificuldade de ajustamento que elas encontraram ao ser reabsorvidas pela sociedade. Muitas jamais se ajustaram, fosse pelo trauma do isolamento, fosse pela impossibilidade de pensar humanamente sem palavras. Mas o fato é que não desenvolveram um raciocínio (abstrato) classicamente humano.

O interesse pelos meninos-lobo feneceu. Mas se aprendeu muito desde então, e hoje não se acredita que o pensamento sem palavras seja possível – pelo menos, o pensamento simbólico que é a marca dos seres humanos. Ou seja, Mogli não seria capaz de pensar.

"Vivemos em um mundo de palavras", diz o celebrado antropólogo Richard Leakey. "Nossos pensamentos, o mundo de nossa imaginação, nossas comunicações e nossa rica cultura são tecidos nos teares da linguagem... A linguagem é o nosso meio... É a linguagem que separa os humanos do resto da natureza." Para o neuropaleontólogo Harry Jerison, precisamos de um cérebro grande (três vezes maior do que o de outros primatas) para lidar com as exigências da linguagem.

Portanto, se pensamos com palavras e com as conexões entre elas, a nossa capacidade de usar palavras tem muito a ver com a nossa capacidade de pensar. Dito de outra forma, pensar bem é o resultado de saber lidar com palavras e com a sintaxe que conecta uma com a outra.

O psicólogo Howard Gardner, com sua tese sobre as múltiplas inteligências, talvez diga que Garrincha tinha uma "inteligência futebolística" que não transitava por palavras. Mas grande parte do nosso mundo moderno requer a inteligência que se estrutura por intermédio das palavras. Quem não aprendeu bem a usar palavras não sabe pensar. No limite, quem sabe poucas palavras ou as usa mal tem um pensamento encolhido.

Talvez veredicto mais brutal sobre o assunto tenha sido oferecido pelo filósofo Ludwig Wittgenstein: "Os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento".

Simplificando um pouco, o bem pensar quase que se confunde com a competência de bem usar as palavras. Nesse particular não temos dúvidas: a educação tem muitíssimo a ver com o desenvolvimento da nossa capacidade de usar a linguagem. Portanto, o bom ensino tem como alvo número 1 a competência linguística.

Pelos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), na 4ª série 50% dos brasileiros são funcionalmente analfabetos. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), a capacidade linguística do aluno brasileiro corresponde à de um europeu com quatro anos a menos de escolaridade. Sendo assim, o nosso processo educativo deve se preocupar centralmente com as falhas na capacidade de compreensão e expressão verbal dos alunos.

Ao estudar a Inconfidência Mineira, a teoria da evolução das espécies ou os afluentes do Amazonas, o aprendizado mais importante se dá no manejo da língua. É ler com fluência e entender o que está escrito. É expressar-se por escrito com precisão e elegância. É transitar na relação rigorosa entre palavras e significados.

No conto, Mogli se ajustou à vida civilizada. Infelizmente para nós, Kipling estava cientificamente errado. Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo.

Claudio de Moura Castro é economista

Cláudio de Moura Castro

Os meninos-lobo

"Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo"

Ilustração Atômica Studio

No velho conto de Rudyard Kipling Mogli, o Menino-Lobo, o autor descreve uma criança que, adotada por uma loba, cresce sem jamais haver usado uma só palavra humana, até ser encontrada e se integrar à sociedade. O conto é atraente, mas cientificamente absurdo. Porém, houve outros casos, supostamente reais, de crianças criadas por animais. E também casos reais (até recentes) de crianças que cresceram isoladas e sem oportunidades de aprender a falar.

Faz tempo, meninos-lobo e outros jovens criados sem interação humana despertaram o interesse da psicologia cognitiva e da linguística. A razão é que seriam um experimento natural que permitiria responder a uma pergunta crucial: esses jovens, sem conhecer palavras, poderiam pensar como os demais humanos?

A questão em pauta era decidir se pensamos porque temos palavras ou se seria possível pensar sem elas. Como os meninos-lobo não conheciam palavras, se podiam pensar, teria de ser sem elas. Nos diferentes casos de crianças criadas em isolamento, ficou clara a enorme dificuldade de ajustamento que elas encontraram ao ser reabsorvidas pela sociedade. Muitas jamais se ajustaram, fosse pelo trauma do isolamento, fosse pela impossibilidade de pensar humanamente sem palavras. Mas o fato é que não desenvolveram um raciocínio (abstrato) classicamente humano.

O interesse pelos meninos-lobo feneceu. Mas se aprendeu muito desde então, e hoje não se acredita que o pensamento sem palavras seja possível – pelo menos, o pensamento simbólico que é a marca dos seres humanos. Ou seja, Mogli não seria capaz de pensar.

"Vivemos em um mundo de palavras", diz o celebrado antropólogo Richard Leakey. "Nossos pensamentos, o mundo de nossa imaginação, nossas comunicações e nossa rica cultura são tecidos nos teares da linguagem... A linguagem é o nosso meio... É a linguagem que separa os humanos do resto da natureza." Para o neuropaleontólogo Harry Jerison, precisamos de um cérebro grande (três vezes maior do que o de outros primatas) para lidar com as exigências da linguagem.

Portanto, se pensamos com palavras e com as conexões entre elas, a nossa capacidade de usar palavras tem muito a ver com a nossa capacidade de pensar. Dito de outra forma, pensar bem é o resultado de saber lidar com palavras e com a sintaxe que conecta uma com a outra.

O psicólogo Howard Gardner, com sua tese sobre as múltiplas inteligências, talvez diga que Garrincha tinha uma "inteligência futebolística" que não transitava por palavras. Mas grande parte do nosso mundo moderno requer a inteligência que se estrutura por intermédio das palavras. Quem não aprendeu bem a usar palavras não sabe pensar. No limite, quem sabe poucas palavras ou as usa mal tem um pensamento encolhido.

Talvez veredicto mais brutal sobre o assunto tenha sido oferecido pelo filósofo Ludwig Wittgenstein: "Os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento".

Simplificando um pouco, o bem pensar quase que se confunde com a competência de bem usar as palavras. Nesse particular não temos dúvidas: a educação tem muitíssimo a ver com o desenvolvimento da nossa capacidade de usar a linguagem. Portanto, o bom ensino tem como alvo número 1 a competência linguística.

Pelos testes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), na 4ª série 50% dos brasileiros são funcionalmente analfabetos. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), a capacidade linguística do aluno brasileiro corresponde à de um europeu com quatro anos a menos de escolaridade. Sendo assim, o nosso processo educativo deve se preocupar centralmente com as falhas na capacidade de compreensão e expressão verbal dos alunos.

Ao estudar a Inconfidência Mineira, a teoria da evolução das espécies ou os afluentes do Amazonas, o aprendizado mais importante se dá no manejo da língua. É ler com fluência e entender o que está escrito. É expressar-se por escrito com precisão e elegância. É transitar na relação rigorosa entre palavras e significados.

No conto, Mogli se ajustou à vida civilizada. Infelizmente para nós, Kipling estava cientificamente errado. Nossa juventude estará mal preparada para a sociedade civilizada se insistirmos em uma educação que produz uma competência linguística pouco melhor do que a de meninos-lobo.

Claudio de Moura Castro é economista

Diogo Schelp

Nos laços (fracos) da internet

Em nenhum outro país as redes sociais on-line têm alcance tão grande quanto no Brasil, com uma audiência mensal de 29 milhões de pessoas. Mas ter milhares de amigos virtuais não deixa ninguém menos solitário

Montagem com foto de Otavio Dias de Oliveira
O preço da superexposição

A produtora cultural Liliane Ferrari, de 34 anos, é uma fanática confessa pelas redes sociais on-line. Seu perfil está em nada menos que 21 comunidades virtuais. Há dois anos, Liliane precisava contratar, em menos de uma semana, quarenta educadores para duas exposições no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Atrás de indicações, enviou um e-mail para os amigos.

A mensagem se alastrou e sua vida passou a ser vasculhada em seu blog, no Facebook, no Orkut e no Twitter por candidatos às vagas. No Orkut, Liliane começou a receber 300 recados por hora. Descobriram até o número do seu celular. "A operadora de telefonia ligou perguntando o porquê de tantas ligações – tive de trocar o número", conta.

O pior foi fazer as entrevistas: como sabiam tudo sobre ela, os candidatos se achavam íntimos. "Eles perguntavam da minha filha e do meu passeio de fim de semana na praia. Foi horrível", diz Liliane, que agora toma mais cuidado com suas informações na internet. Contatos virtuais 2 800 - Conhece pessoalmente 150


As redes sociais na internet congregam 29 milhões de brasileiros por mês. Nada menos que oito em cada dez pessoas conectadas no Bra-sil têm o seu perfil estampado em algum site de relacionamentos. Elas usam essas redes para manter contato com os amigos, conhecer pessoas – e paquerar, é claro, ou bem mais do que isso. No mês passado, uma pesquisa do Ministério da Saúde revelou que 7,3% dos adultos com acesso à internet fizeram sexo com alguém que conheceram on-line.

Os brasileiros já dominam o Orkut e, agora, avançam sobre o Twitter e o Facebook. A audiência do primeiro quintuplicou neste ano e a do segundo dobrou. Juntos, esses dois sites foram visitados por 6 milhões de usuários em maio, um quarto da audiência do Orkut.

Para cada quatro minutos na rede, os brasileiros dedicam um a atualizar seu perfil e bisbilhotar o dos amigos, segundo dados do Ibope Nielsen Online. Em nenhum outro país existe um entusiasmo tão grande pelas amizades virtuais. Qual é o impacto de tais sites na maneira como as pessoas se relacionam? Eles, de fato, diminuem a solidão? Recentemente, sociólogos, psicólogos e antropólogos passaram a buscar uma resposta para essas perguntas.

Eles concluíram que essa comunicação não consegue suprir as necessidades afetivas mais profundas dos indivíduos. A internet tornou-se um vasto ponto de encontro de contatos superficiais. É o oposto do que, segundo escreveu o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), de fato aproxima os amigos: "Eles precisam de tempo e de intimidade; como diz o ditado, não podem se conhecer sem que tenham comido juntos a quantidade necessária de sal".

Por definição, uma rede social on-line é uma página na rede em que se pode publicar um perfil público de si mesmo – com fotos e dados pessoais – e montar uma lista de amigos que também integram o mesmo site.

Como em uma praça, um clube ou um bar, esse é o espaço no qual as pessoas trocam informações sobre as novidades cotidianas de sua vida, mostram as fotos dos filhos, comentam os vídeos caseiros uns dos outros, compartilham suas músicas preferidas e até descobrem novas oportunidades de trabalho. Tudo como as relações sociais devem ser, mas com uma grande diferença: a ausência quase total de contato pessoal.

Os sites de relacionamentos, como qualquer tecnologia, são neutros. São bons ou ruins dependendo do que se faz com eles. E nem todo mundo aprendeu a usá-los a seu próprio favor. Os sites podem ser úteis para manter amizades separadas pela distância ou pelo tempo e para unir pessoas com interesses comuns.

Nas últimas semanas, por exemplo, o Twitter foi acionado pelos iranianos para denunciar, em mensagens curtas e tempo real, a violência contra os manifestantes que reclamavam de fraudes nas eleições presidenciais. Em excesso, porém, o uso dos sites de relacionamentos pode ter um efeito negativo: as pessoas se isolam e tornam-se dependentes de um mundo de faz de conta, em que só se sentem à vontade para interagir com os outros protegidas pelo véu da impessoalidade.

O sociólogo americano Robert Weiss escreveu, na década de 70, que existem dois tipos de solidão: a emocional e a social. Segundo Weiss, "a solidão emocional é o sentimento de vazio e inquietação causado pela falta de relacionamentos profundos. A solidão social é o sentimento de tédio e marginalidade causado pela falta de amizades ou de um sentimento de pertencer a uma comunidade".

Vários estudos têm reforçado a tese de que os sites de relacionamentos diminuem a solidão social, mas aumentam significativamente a solidão emocional. É como se os participantes dessas páginas na internet estivessem sempre rodeados de pessoas, mas não pudessem contar com nenhuma delas para uma relação mais próxima.

A associação entre a sensação de isolamento e o uso compulsivo de comunidades virtuais foi observada em pesquisas com jovens na Índia, na Turquia, na Itália e nos Estados Unidos. Na Austrália, um estudo da Universidade de Sydney com idosos mostrou que aqueles que usam a internet principalmente como uma ferramenta de comunicação tinham um nível menor de solidão social. Já os entrevistados que preferiam usar os computadores para fazer amigos apresentaram um alto grau de solidão emocional.

Ao contrário do e-mail, sites como Orkut, Facebook e Twitter, por sua instantaneidade, criaram esse novo tipo de ansiedade: a de ficar sempre plugado para evitar a impressão de que se está perdendo algo. Lev Grossman, colunista de tecnologia da revista americana Time, revelou há pouco ter decidido cancelar sua conta no Twitter porque percebeu que estava ficando mais interessado na vida alheia do que na própria.

A produtora cultural Liliane Ferrari, de São Paulo, é extrovertida e comunicativa. No entanto, como trabalha em casa e tem uma filha pequena, considera ter pouco tempo para se encontrar pessoalmente com os amigos. Em compensação, passa duas horas por dia atualizando e conferindo os 21 sites de relacionamentos e blogs dos quais faz parte. Mas já está ficando apreensiva. "Quando fico conectada com um monte de gente por muito tempo, tenho a impressão de que, no fundo, não conheço ninguém.

É uma coisa meio esquizofrênica, parece que estou ficando louca", diz Liliane. Ela não tem dúvida de que, em relação aos amigos mais íntimos, nada substitui o contato pessoal. "Quando se desabafa com um amigo pela internet, alguns sinais de afetividade são deixados de lado, como o olhar, a expressão corporal e o tom de voz", diz a psicóloga Rita Khater, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

As amizades na internet não são sequer mais numerosas do que na vida real. De nada adianta ter 500 ou 1 000 contatos no Orkut. É impossível dar conta de todos eles, porque o limite das relações humanas é estabelecido pela biologia.

O número máximo de pessoas com quem cada um de nós consegue manter uma relação social estável é, em média, de 150, segundo o antropólogo inglês Robin Dunbar, um dos mais conceituados estudiosos da psicologia evolutiva. Dunbar observou que o tamanho médio dos conjuntos de diferentes espécies de primata depende do tamanho do seu cérebro. Extrapolando a lógica para o Homo sapiens, o pesquisador chegou ao seu número mágico, confirmado pela análise de diversos grupos humanos ao longo da história.

Sua teoria é que, desde o paleolítico, nossos ancestrais foram desenvolvendo a linguagem ao mesmo tempo em que ampliavam o seu círculo social – ou seja, aqueles indivíduos com quem se acasalavam, faziam alianças, fofocavam, cooperavam e, eventualmente, brigavam. Amigos, numa versão mais rudimentar. Há cerca de 10 000 anos, chegou-se ao limite calculado por Dunbar, estabelecido pela impossibilidade de o ser humano aumentar a sua capacidade cognitiva, o que inclui as habilidades de comunicação.

Dunbar começou a estudar o assunto na década de 90 e, agora, o seu cálculo está sendo confirmado nos sites de relacionamentos. Em média, o número de contatos nos perfis do Facebook e de seguidores no Twitter é de 120 pessoas.

No Orkut, cada brasileiro tem cerca de 100 amigos. Mesmo quem foge do padrão e consegue amealhar alguns milhares de companheiros virtuais não conhece, de fato, muito mais do que uma centena. A cantora Marina de la Riva tem, entre Orkut, Facebook e MySpace, 4 700 contatos. "Mas não me comunico com mais do que 100 deles", diz Marina. O número de Dunbar, 150, não é uma unanimidade entre os cientistas.

Valendo-se de uma metodologia diferente, um grupo de antropólogos americanos, entre os quais Russell Bernard, da Universidade da Flórida, concluiu que, nos Estados Unidos, os laços de amizade de uma pessoa podem chegar a 290. Cento e cinquenta ou 290 pessoas: não importa qual seja a cifra, ainda está muito longe do número de amigos que os mais ativos apregoam ter na rede eletrônica. "A internet é muito boa para administrar amizades já existentes, garantindo sua continuidade mesmo a grandes distâncias, mas é ruim para criar do zero relações de qualidade", disse Dunbar à revista.

Existem diferentes níveis de amizade, é lógico. As mais distantes são mais abundantes. É o que se chama, em sociologia, de "laços fracos". Relações sociais estáveis como as estudadas por Dunbar e Bernard são chamadas, por sua vez, de "laços fortes". Dentro dessa categoria há um núcleo reduzido de confidentes, que não costumam passar de cinco. Esses são os amigos do peito, com quem podemos contar sempre, mesmo nos piores momentos.

As mulheres costumam ter um núcleo de confidentes maior que o dos homens. A característica se repete na internet. No Facebook, por exemplo, um homem com 120 contatos na lista responde com frequência aos comentários de sete amigos, em média. Entre as mulheres, esse número sobe para dez. "As mulheres têm mais facilidade para fazer amizades próximas do que os homens", diz a antropóloga Claudia Barcellos Rezende, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Já os homens se especializaram em estabelecer um número maior de relações, mas com um grau de intimidade menor. Em termos evolutivos, isso se explica pela necessidade do homem de sair para buscar o sustento, fazendo alianças temporárias com uma quantidade maior de indivíduos, enquanto as mulheres ficavam com os filhos e se juntavam às outras mães para proteger a prole.

A vida moderna, curiosamente, pode estar tornando as relações de amizade mais masculinizadas. "O tamanho médio do núcleo de amigos próximos parece estar diminuindo, enquanto a rede de contatos fracos aumenta", disse a VEJA o sociólogo Peter Marsden, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Ou seja, cresceram as relações superficiais, efêmeras, e reduziram-se as mais afetivas, profundas. A tendência é reproduzida à perfeição – e intensificada – nas redes sociais on-line. É como se a maioria das relações fosse estratégica, tal como as dos homens das cavernas. "Nesses sites, é possível manter os relacionamentos a uma distância segura.

Ou seja, aproximações e afastamentos se dão na medida do necessário", afirma Luli Radfahrer, professor de comunicação digital da Universidade de São Paulo. Um exemplo conhecido dos adeptos do Orkut no Brasil são os ex-colegas de escola que, depois de anos sem se comunicar e mesmo sem ter nenhuma afinidade pessoal, passam a engordar a lista de amigos virtuais uns dos outros. Quando conveniente, o contato é retomado para resolver questões práticas.

Esses laços fracos são muito úteis, por exemplo, para descobrir oportunidades de trabalho. Amigos próximos são menos eficientes em tal quesito porque, em geral, circulam no mesmo meio e têm acesso às mesmas informações. Uma das redes sociais com o maior crescimento de adeptos no mundo é justamente o LinkedIn, especializado em estabelecer vínculos profissionais.

Na internet, é fácil administrar uma enorme rede de contatos, com pessoas pouco conhecidas, porque estão todos ao alcance de um clique. A lista de amigos virtuais é uma espécie de agenda de telefones, com a vantagem de não ser necessário ligar para todos uma vez por ano para não ser esquecido. Basta manter o perfil atualizado e acrescentar à página comentários sobre, por exemplo, suas atividades cotidianas. Isso cria um efeito conhecido como "sensação de ambiente".

É como se cada um dos contatos de determinada pessoa estivesse fisicamente presente no momento em que ela reclama de uma coceira nas costas ou comenta sobre a música que está ouvindo. O Twitter explora esse princípio na sua forma mais crua, ao incitar os seus participantes a responder em apenas 140 caracteres à pergunta: "O que você está fazendo?". Os comentários vão de "comendo pão de queijo" a observações espirituosas sobre a vida.

O fluxo constante de informações pessoais cria um paradoxo: ao mesmo tempo que ele é necessário para cativar a atenção dos amigos virtuais, pode pôr em risco a imagem pública do indivíduo. Certamente seria embaraçoso para um candidato a um emprego que o seu futuro chefe lesse a seguinte revelação encontrada pela reportagem de VEJA em um perfil do Orkut: "No colégio, eu tinha o hábito de bater no bumbum das alunas com uma régua, quando elas passavam pela minha mesa".

Cada perfil nos sites de relacionamentos pode ser comparado a um pequeno palco. Esse exercício até certo ponto teatral é, no entanto, apresentado a uma audiência invisível.

"Como não estamos vendo nossos espectadores, somos incapazes de observar sua reação ao que estamos fazendo e, com isso, ficamos à vontade para nos expor mais do que seria prudente", disse a VEJA Barry Wellman, professor de sociologia da Universidade de Toronto, no Canadá. As táticas para driblar a superexposição nas redes sociais on-line são variadas. Há quem mantenha dois perfis no mesmo site: um para laços fracos, com informações pessoais mais contidas, e outro para laços fortes, em que se pode permitir um grau de exposição maior.

A atriz Mel Lisboa teve, durante algum tempo, um perfil com pseudônimo no Orkut, por meio do qual mantinha contato apenas com os amigos mais próximos. Quando os fãs descobriram, ela passou a receber pedidos incessantes de entrada em sua lista de amigos. "Era uma situação complicada, porque eu não estava ali para divulgar o meu trabalho", diz Mel.

"Eu ficava sem graça de recusar um pedido de autorização e acabei desistindo do Orkut." Atualmente, há uma página com o nome e a foto dela no site, mas é falsa. Alguém se passa por ela. Outra forma de manter a privacidade on-line é usar os filtros, disponíveis em muitos sites, que permitem selecionar quais amigos podem ver determinadas partes do perfil pessoal.

A necessidade de classificar os contatos virtuais na sua página do Orkut ou do Facebook segundo o grau de intimidade desafia um dos princípios da amizade verdadeira: a total reciprocidade. Na vida real, o desnível da afinidade que uma pessoa sente pela outra costuma ficar apenas implícito na relação entre elas.

Na internet, ele é escancarado. Pode-se simplesmente bloquear o acesso de certos amigos a determinadas informações. Além disso, ela não estimula aquele tipo de solidariedade que faz com que dois amigos de carne e osso aturem, mutuamente, os maus momentos de ambos. Esse grau de convivência e aceitação de azedumes ou mesmo defeitos alheios é quase inexistente nas redes sociais.

Quando alguém começa a incomodar, é ignorado ou deletado. "Se o objetivo é um vínculo afetivo maior, é preciso se encontrar pessoalmente", resume candidamente Danah Boyd, pesquisadora do Microsoft Research, um laboratório inaugurado em Massachusetts pela empresa de Bill Gates para o estudo do futuro da internet.

Ao fim e ao cabo, usar as redes sociais para fazer uma infinidade de amigos – quase sempre não muito amigos – é uma especialidade de Brasil, Hungria e Filipinas, países que têm o maior número de usuários com mais de 150 contatos virtuais. Uma pesquisa nos Estados Unidos, por exemplo, mostrou que 91% dos adolescentes usam os sites apenas para se comunicar com amigos que eles já conhecem.

Parecem saber que, como dizia Aristóteles, amigos verdadeiros precisam ter comido sal juntos. O que você está esperando? Saia um pouco da sua página virtual, pare de bisbilhotar a dos outros, dê um tempo nas conversinhas que só pontuam o vazio da existência e vá viver mais.