sábado, 31 de janeiro de 2015


01 de fevereiro de 2015 | N° 18060
MARTHA MEDEIROS

INVERSO

Ela me contou que morou durante toda a infância bem no centro da cidade, num apartamento pequeno de uma grande avenida, e cresceu escutando as conversas e gritos dos transeuntes lá embaixo, os motores dos ônibus, as portas do comércio abrindo e fechando, as brigas entre os camelôs, e nem à noite esse zumzumzum sossegava, pois havia os cinemas, as boates, os botecos, as prostitutas, um quartel com ininterrupto entra e sai de soldados e uma igreja ao lado cujo sino não conhecia descanso.

Se dava para dormir? Feito um anjo. Cada barulho específico da zona central era como se fosse um instrumento musical, e juntos eles compuseram sua cantiga de ninar. A tudo se acostuma.

Até que ela virou mulher, casou e foi morar num bairro tão distante do centro que era praticamente uma granja, e quem dizia que conseguia dormir? O silêncio, ali, era barulhento além da conta.

Um cachorro latindo ao longe, no meio da madrugada, bastava para lhe despertar. O farfalhar das folhas ao vento, numa árvore próxima à janela, a deixava em estado de alerta. Podia até ouvir uma estrela cadente se prestasse bem atenção. Como pegar no sono estando envolvida por tantas quietudes secretas, por tanta discrição?

Não foi bem com essas palavras que ela me contou sobre essa situação invertida, mas foi desse jeito que a escutei, com essa prosa e poesia, e também com algum espanto. Se barulho virou silêncio através do costume, e se silêncio virou barulho pelo mesmo motivo, então está tudo mesmo de cabeça para baixo?

O que mais era pra ser que não é?

A pessoa muito calada, com um sorriso fixo no rosto, pacienciosa com todos em volta, relaxada num corpo em repouso, estará mesmo calma? Pode ser que por baixo de sua pele o barulho seja infernal, a dor lateje, o coração grite e ela apenas esteja inerte para não chacoalhar ainda mais o desespero que leva dentro. Enquanto que aquela pessoa que dança, corre, abraça, ama, gargalha, viaja e se joga na vida é o quê? Budista.

A pessoa que anda sumida é uma ermitã ou será que está muito bem acompanhada por si mesma? E quem não desgruda de grupos será mesmo sociável ou carente ao extremo?

Acho que eu gostava mais da vida quando ela era como era, exata, e não como é agora, quando traz em si o seu contrário, nos obrigando a ler nas entrelinhas, entender os subentendidos, perceber o abstrato e desprezar o concreto – eu preferia o óbvio a tanta charada, eu preferia o cristalino ao lusco-fusco, eu gostava quando era mais fácil e as coisas e as pessoas cumpriam o prometido.


Quando foi isso? Nunca. Nunca foi como eu queria. Sempre foi o inverso.

01 de fevereiro de 2015 | N° 18060
LUÍS AUGUSTO FISCHER

O terrorismo quer o terror

Na França, segue o debate sobre o que fazer depois dos atentados terroristas. Não sei se já há consensos, talvez não haja nunca, ainda mais que neste país a opinião política é dividida de modo evidente, e os vários modos de pensar e agir contam com partidos e veículos de comunicação específicos – é uma festa para um brasileiro como eu acompanhar essa variedade nas bancas. (Também aqui o jornalismo impresso anda tendo dificuldades, perdendo leitores e tal. O pós-7 de janeiro, porém, está apresentando uma retomada da presença de jornais e revistas no cenário da opinião pública, com sensível aumento de vendas.)

Um exemplo: debate promovido pelo jornal Libération, com a participação de várias representações (um religioso muçulmano não radical, um procurador de justiça e uma diretora de escola pública de um dos bairros mais dramáticos na questão da imigração árabe/muçulmana), começou a conversa falando dos 17 mortos, coisa e tal, até que a professora tomou a palavra para refazer a conta. Vinte mortos, disse ela.

Os três terroristas, com quem ela evidentemente não compartilhava nada em matéria política, deviam porém, para ela, entrar na conta. Eram franceses, que terão passado por talvez uns 50 professores cada, em sua trajetória escolar. Quero crer que a professora não fez essa nova conta por gosto retórico, e sim por convicção republicana.

(Agindo sempre em modo comparativo, me pego indagando como é que nós, no Brasil, levamos isso. Professores de escola pública fundamental, esses colegas dentre todos os mais sacrificados, são muitas vezes os primeiros e não raro os únicos representantes do Estado organizado que entabulam conversa com os pobres, abrindo um canal, fraco que seja, para que eles possam vislumbrar o que pode vir a ser uma vida de cidadão.

Talvez um médico ou um enfermeiro de posto de saúde tenha feito contato antes de chegarem à escola, e é bem provável que depois agentes da polícia e dos presídios façam contato, mas são os professores talvez os únicos a manter relação continuada, dando a cara a tapa e assumindo riscos que a rotina das classes confortáveis nem cogita.)

Sejam 17 ou 20, a conta continua a ser examinada. O presidente Hollande, que não tem lá esse prestígio todo, convocou imprensa semana passada para falar de medidas a serem tomadas. Ao lado de medidas antiterrorismo (foi revisto um corte de orçamento das Forças Armadas, por exemplo), o centro da proposta envolve justamente a escola.

Tem grana também no debate, para formação de professores e tal, mas o principal mesmo são duas diretrizes: uma, todos os alunos de escola, do elementar ao liceu, quer dizer, Ensino Fundamental e Ensino Médio, deverão discutir de modo adequado o respeito aos direitos, a solidariedade, a participação na vida democrática, a cidadania, a laicidade, etc. E outra, as escolas deverão oferecer aos alunos de todos os níveis um “ensino da mídia”, um âmbito de estudos em que aprendam como se produz e como circula a informação, numa sociedade moderna.

Tenho total simpatia pelas duas propostas. Quanto ao ensino da mídia, faz anos que postulo esta ideia singela: aula de português tem que ensinar notícia, roteiro, edição, e não apenas das palavras, mas também das imagens. Assim também o outro lado, o do civismo republicano. As duas iniciativas incidem direto na opinião pública, essa instituição inefável, decisiva e tão maltratada, no Brasil especialmente.


Conversando com um militar brasileiro que está aqui estudando, ele me lembrou que a ação do terrorismo tem como valor superior, ora, o terror, precisamente. O alvo era e não era o Charlie, o súper kosher, a policial assassinada. Tudo isso é, para o terrorista, um caminho para alcançar impacto, para atingir a opinião pública. Esta mesma opinião que a escola precisa disputar o tempo todo, com a lentidão, a força e a fragilidade que a caracterizam.

01 de fevereiro de 2015 | N° 18060
FABRÍCIO CARPINEJAR

Coitada de Eva

Não há maior solidão do que a de Eva.

Ela não tinha mãe. E não podemos considerar a costela de Adão propriamente uma madrasta.

Ela gerou uma penca de filhos sem ter onde deixá-los no final de semana para desfrutar de um cineminha e de um jantar romântico.

Não dividiu com ninguém a alegria do primeiro beijo, da menstruação chegando, dos seios crescendo, do exame positivo da maternidade.

Precisou aguentar um marido que não morria – viveu 930 anos – sem a possibilidade de desabafar os problemas do relacionamento, como quando Adão puxava seu cabelo ou se metia com a bebida ou desejava gastar todo o salário em briga de galos.

Não contou com conselho materno para esfriar a rivalidade entre Caim e Abel.

Não recebeu dica de nome para suas crianças. Sete prova que não restava mais criatividade, já recorria à numeração.

Não ganhou explicação de método anticonceptivo antes de sua primeira experiência sexual.

Jamais acertou a receita do bolo de fubá simplesmente porque não conheceu nenhuma vó.

Ficou sozinha para enfrentar a lábia da serpente. Nunca pôde usar a expressão “nem por cima do cadáver de minha mãe”.

Não se sentia ofendida quando era xingada na selva de “filha da p...”. Não teve sequer uma mãe para mentir e comer escondido o fruto proibido.

Não pôde seguir um exemplo ou ser a ovelha negra da família. Não cresceu na adversidade: não suportou pressão para se casar, prestar vestibular e seguir carreira.

Não havia graça nenhuma em fazer terapia sem uma mãe para colocar a culpa. Terminou pagando mico ao usar pele de animal para passear no Éden, pois não herdou roupa alguma.

Tombou com salto alto nas trilhas, desfalcada de um tutorial de mãe.

Uma vez por mês, explodia em TPM, chorava, arcava com cólicas, morria de vontade de chocolate, sem saber o que acontecia com seus hormônios.

Não entendia a diferença entre cócegas e orgasmo.

Não desfrutava da opção de se separar do marido e voltar para a casa da mãe.


Eva foi, sem dúvida, a mulher que mais sofreu no mundo.

sábado, 24 de janeiro de 2015


25 de janeiro de 2015 | N° 18053
MARTHA MEDEIROS

Encrencas domésticas

O chuveiro está esquentando demais. A pia da cozinha não para de pingar. A porta do armário não está fechando direito. A geladeira está fazendo um barulho estranho. O interruptor de luz está com mau contato. Os azulejos da área de serviço estão descolando da parede. Escorre água por baixo da máquina de lavar. A vizinha do andar de baixo está reclamando de uma infiltração no teto do banheiro dela, e adivinhe de quem é a culpa.

Está tudo 100% com seu doce lar? Nada quebrado, nada precisando de reparos, nenhuma necessidade de chamar o eletricista, o bombeiro hidráulico, um faz-tudo? Permita que eu abrace você, vá que sua sorte seja contagiosa.

Não moro num prédio em ruínas, mas mesmo jovens edifícios aprontam das suas. Não importa a idade, em que bairro, qual a situação do imóvel: sempre tem uma coisinha para consertar. E, assim que ela for resolvida, outra coisinha virá reclamar seus direitos. A umidade deixou manchas na parede. A basculante do banheiro está com o vidro trincado. O forno está custando para acender. O liquidificador está dando choque, não estará na hora de trocar?

Sempre está na hora de trocar, pintar, arrumar, dar um jeito. Sua casa deve ser que nem a minha, um ser vivo que pede atenção constante. Ou estarei pagando por erros cometidos em encarnações anteriores?

Na classificação das tragédias, consertos domésticos nem contam. Não tenho dúvida de que sou uma abençoada por ter, numa única semana, apenas trocado a bandeja do ar-condicionado, ficado sem internet por 24 horas por pane no modem e ter chamado meu fiel socorrista para reforçar alguns rejuntes. E nem estou considerando o barulho de uma furadeira vindo do apartamento ao lado, que isso já não faz parte do meu universo e não sou eu que pago a conta.

Melhor pular essa parte, a conta.

Está tudo bem e estou calma – mas entrou agora um e-mail pedindo para que eu imprima um documento e o assine. Isso significa que deverei utilizar minha impressora. Você tem uma impressora caseira? Diga que a sua não trava no meio da impressão, que não engole a folha de papel, que cumpre sua função como se fosse uma eficiente impressora de escritório. Me convença de que impressoras caseiras não fazem complôs e de que estou aqui, quase histérica, sem motivo.

Liguei a geringonça. Ela fez alguns barulhos similares ao início de uma batucada e depois silenciou. A luz que deveria ficar permanentemente acesa está piscando como quem alerta para uma explosão em 30 segundos. Tem sido assim nas últimas semanas. Clico em imprimir e nada acontece. Impressoras não fazem complôs, você me convenceu. Está tudo bem, estou calma e agora meu gato se dependurou na cortina, abrindo um rasgão. Adoro trabalhar em casa.


LINDO FINAL DE SEMANA


sexta-feira, 23 de janeiro de 2015



Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
desfrutar desse amor sem fraudes, nunca será
perda de tempo. O essencial faz a vida
valer a pena.

_Rubens Alves_

Um lindo final de Semana

Abração

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015


21 de janeiro de 2015 | N° 18049
MARTHA MEDEIROS

O parto ideal

O governo está preocupado com a quantidade excessiva de cesarianas feitas no Brasil (mais de 55%, quando a OMS recomenda que não passe dos 15%) e está tomando providências para desestimular o procedimento. A intenção é boa.

Tive duas filhas de parto normal. Impossível descrever a sensação. Se doeu? A anestesia peridural doeu um pouco, mas o resto foi um passeio. Ou assim me pareceu, pois a potência emocional do momento é tanta, que a dor se dilui no êxtase. É muito diferente de entrar no hospital para operar uma perna ou levar pontos na cabeça. Entrar num hospital para ter um filho é sublime, e o sublime sempre atenua desconfortos.

Esta sou eu falando, não você. Cada qual com sua experiência.

Seria ótimo se as mulheres tivessem essa visão desestressada do parto, assim não se assustariam à toa e não programariam cesarianas a torto e a direito. No entanto, apesar de eu ser uma militante do parto normal, algo me incomodou ao saber que os planos de saúde poderão negar pagamento a médicos e hospitais se eles não provarem que a cesariana foi realmente necessária. Humm. Entrou dinheiro no assunto.

Todo parto é emergencial. Pode ter corrido tudo bem durante o pré-natal e na hora H surgir um contratempo relacionado ao bem-estar do bebê (tornando a cesariana indicada) ou relacionado ao bem-estar da mãe: sabe-se que ela está com os nervos à flor da pele na sala cirúrgica, vivendo uma experiência inédita.

Nada impede que se acovarde e que seu coração salte pela boca antes de o filho vir ao mundo. Toda gestante, principalmente as de primeira viagem, tem uma pequena chance de surtar. Não existe nenhum motivo para isso, mas vá quê.

Logo, não me tranquiliza a ideia de um médico, em hora tão delicada, ter como primeira preocupação se irá ou não receber os honorários caso opte por uma cesárea difícil de justificar. A simples vontade da mãe será desconsiderada como argumento, então, ou ele fraudará o partograma (documento em que se registra o histórico da gestação e as razões para os procedimentos adotados), ou irá aguardar que o parto aconteça de forma natural, a despeito da angústia materna. Angústia não é o clima ideal para o momento, convenhamos.

O ideal seria que as mulheres encarassem o parto como uma ocasião mágica, sem ficarem assombradas por uma dor que pode ser aliviada com anestésicos. Ideal seria que a opção da cesariana não obedecesse a critérios supérfluos, como definir o mapa astral do bebê ou dar à mãe a chance de ir ao cabeleireiro antes de rumar para a maternidade.

Ideal seria que os médicos dividissem a tarefa com parteiros e assistentes bem treinados, para não terem que fazer cesáreas em escala industrial a fim de dar conta da demanda. Mudança de mentalidade é sempre o ideal, mas como não rola, salta aí uma medida do governo para tentar mudar os índices a fórceps.


sábado, 17 de janeiro de 2015


18 de janeiro de 2015 | N° 18046
MARTHA MEDEIROS

Atemporal

Acima das Nuvens foi o primeiro filme a que assisti em 2015, com a sempre ótima Juliette Binoche e a enjoadinha da Kristen Stewart, que reverteu minha má vontade com ela: está muito bem como a secretária pessoal da diva interpretada por Binoche. A história aqui resumida: uma atriz na faixa dos 40/50 anos é convidada a atuar no remake de uma peça que ela havia feito 20 anos antes, só que agora ela ficará com o papel da mulher mais velha do elenco e terá que contracenar com uma jovem atriz em ascensão que fará o papel que foi dela no passado.

Este é o conflito da personagem de Juliette Binoche. Ela é uma atriz que voltará a atuar na peça que lhe consagrou e onde há uma forte tensão sexual entre duas mulheres: uma jovem audaciosa e irreverente que manipula uma mulher madura. Pois agora a atriz que deslumbrou o mundo 20 anos antes, interpretando a jovem, foi escalada para fazer a madura. Naturalmente, há uma relutância em se render a esse novo papel, pois lhe parece a confirmação de sua decadência. Mas não há decadência nenhuma, apenas medo de enfrentar as mudanças que a passagem do tempo provoca.

É um filme de pouca ação, porém de muitas nuances. O ritmo do filme é tranquilo, só ganha certa agitação com a entrada em cena da jovem atriz que dividirá o palco com a atriz consagrada, quando fica claro que já não se fazem mais divas como antigamente. As duas jantam num restaurante com o diretor da peça, e este só dá atenção para a garota que é perseguida por paparazzi, que está envolvida numa relação de amor clandestina, que vive cercada por seguranças. É a parte atraente do seu currículo: o alvoroço que provoca em volta. Enquanto isso, a atriz veterana descobre que se tornou invisível.

Será mesmo que estamos todos condenados a um final melancólico? É inegável que temos que abrir passagem aos que vêm atrás. Eles chegam com um frescor que já não temos, com um código de comunicação que não dominamos, com uma urgência que para nós não faz mais sentido.

Tornamo-nos seletivos e serenos com o passar dos anos, mas ainda há estrada pela frente e temos que dividi-la com aqueles que têm menos bagagem e que correm mais ligeiro. Inevitavelmente, seremos ultrapassados por eles, mas não há razão para interrompermos nossa viagem e nos exilarmos em nossas memórias.

Há uma forma de resistir ileso às diversas etapas da vida: não nos restringindo a nenhuma delas. Não nos catalogando como jovem ou como velho. Sendo atemporal.

O atemporal não reproduz comportamentos padrão. Não coleciona slogans nem certezas. Não vira as costas para o novo nem para o antigo. Não é assombrado por datas e idades: ele plana pela vida sem referências limitadoras, portanto, nunca é inadequado.

Sempre haverá um papel para ele.



18 de janeiro de 2015 | N° 18046
L. F. VERISSIMO

Sorrisos

É uma convenção jornalística, não é uma norma, mas todas as pessoas cujas fotos aparecem em crônicas sociais têm que estar sorrindo. Você já notou? As pessoas fotografadas não precisam ser bonitas, se bem que isto ajuda. Não precisam ser muito importantes – notáveis sim, mas não necessariamente importantes. Mas têm que estar felizes.

A convenção se justifica. Quem quer ver caras fechadas numa crônica social, a seção do jornal em que se comemora o bom convívio humano? As crônicas sociais não tratam apenas de amenidades. Não são só fofoca e badalação. Podem ser informativas, podem até, às vezes, dar furos. Enfim, podem ser sérias. Mas nas fotos ninguém pode ser sério. Nas fotos todos sorriem. Todos.

Coisa engraçada, o sorriso. Você já parou para pensar no sorriso? O ser humano faz o contrário de outros bichos, que mostram os dentes para assustar um inimigo ou repelir uma ameaça. Nós mostramos os dentes para provar que não representamos ameaça alguma, que somos pacíficos e simpáticos. Nossos dentes – como os dos bichos – são nossas armas mais evidentes, sem trocadilho. Se a evolução fizesse algum sentido, nós hoje estaríamos mostrando os dentes como fazem os outros primatas, como reação ao perigo ou prenúncio de ataque.

Mas em algum estágio da evolução nossos dentes deixaram de ser armas escondidas e se tornaram convites ao diálogo, à amizade e, talvez, ao amor. Só revertemos à nossa origem ao nos atracarmos com uma costela, daquelas de comer grunhindo.

Pequeno interlúdio tipo nada a ver. No outro dia, revi na televisão o filme Cinderela em Paris (Funny Face). E confirmei: a Audrey Hepburn tinha o sorriso mais bonito da história do cinema, possivelmente da história do mundo.

Nestes dias que nos assolam, é importante encontrar um abrigo das más notícias. Só a cara dos netos não basta como escape e lembrança de que nem tudo escurece e se degringola. A proverbial ilha deserta com meus livros e meus discos é uma possibilidade remota. E, mesmo, não haveria tomada para o som e eu odeio praia. Um retiro espiritual no Tibete? Certo, desde que tivesse um cinema e um bom restaurante por perto. Já que a fuga da realidade é difícil e o longo hábito de ler os jornais não nos abandona, decidi me concentrar no noticiário esportivo. No futebol, apenas o futebol e dane-se a vida. Mas o futebol está em recesso. E quando voltar será o mesmo futebol do ano passado, um martírio e não um esporte. E ainda por cima o Botafogo em recesso permanente! Agora, como o futebol não é refúgio, faço o seguinte: leio as manchetes da primeira página, o suficiente para me desesperar, e vou direto para a crônica social.

Entende? Peço asilo na crônica social. Sei que lá só encontrarei gente alegre, que possivelmente nem sabe o que está acontecendo no resto do jornal e do mundo, ou sabe e não se importa. E continua sorrindo. É fácil fazer amigos na crônica social. A conversa flui, todos se entendem, todos se gostam. Todos têm histórias para contar: de viagens feitas, de livros lidos e filmes vistos, de afetos e desafetos, de bons negócios. Todos são felizes na crônica social! E todos sorriem. Sorriem sem parar.


É nesse país que eu quero morar.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015


07 de janeiro de 2015 | N° 18035
MARTHA MEDEIROS

Ela, a incorruptível

Terminamos 2014 sentindo vergonha do país e, ao mesmo tempo, com esperança. Vergonha pela roubalheira que veio à tona como nunca antes, mas, por outro lado, com esperança de que as acusações e punições amedrontem os que simpatizam com a prática de pagar por benefícios ilegais e de embolsar dinheiro indevido. Esperança de que essa exposição espalhafatosa dos podres do governo e de outras camadas da sociedade intimide os audazes corruptores da nação e que eles pensem duas vezes antes de continuar metendo a mão no que não lhes pertence, como fazem há séculos.

É o que nos resta: contar com a covardia deles. Estando a impunidade menos garantida, talvez já não arrisquem tanto em suas gatunagens. E deduzam o óbvio: por mais que roubem, nunca poderão subornar a morte.

Ela está logo ali em frente, aguardando seres humanos de todos os escalões, tanto os donos de jatinhos quanto os que puxam carroças. Com ela, não tem carteiraço. A morte não apresenta tabela de preço. Não premia delatores. Não adianta trazer dinheiro grudado ao corpo com fita crepe, o vexame será inútil.

Se ela encasquetar que chegou sua hora, vai pegá-lo pelo colarinho branco e arrastá-lo à força, amarrotando seu terno Armani sem dar a mínima para quanto custou. E fará o serviço sem se anunciar antes para suas secretárias, assessores, guarda-costas. Ela não trata com intermediários.

A morte não embolsa agradinhos. Não recebe propina. Não negocia prazo. Não beneficia quem paga mais. Então, de que vale o risco de sujar o próprio nome, envergonhar a família, virar dedo-duro de colegas e ser transportado em camburão, algemado como um pivete? Toda a riqueza acumulada com transações ilícitas nem mesmo leva o golpista para a morte em classe executiva.

A morte é incorruptível.

Deve ser por isso que se diz que o crime não compensa. O crime forra os bolsos da criatura temporariamente, mas tira dele o privilégio de fazer alguma diferença benéfica na vida dos outros – o sujeito passa a ser um rico que não vale nada. E morre de qualquer jeito.

Você pode, claro, usar seu tempo aqui na terra para superfaturar tudo o que vê pela frente sem se importar com as consequências indignas dessa ganância. Ao nascer, você encontra o mundo de um jeito e decide se comportar de forma a deixá-lo bem pior ao partir. É uma escolha.

Ou você pode utilizar seu tempo aqui na terra colaborando, fazendo um trabalho que beneficie a coletividade e gozando a sensação reconfortante de que abandonará o mundo deixando-o um pouquinho melhor do que quando chegou. Dessa forma, não terá vivido à toa e não se sentirá tão desesperado quando tudo terminar.


Porque vai terminar, máfia. Para todos. Sem acordão.

07 de janeiro de 2015 | N° 18035
PEDRO GONZAGA

O COMPLEXO

Não ouviremos a voz divina se erguer da sarça ardente, ainda que recebamos ordens de nossos superiores aqui neste mundo. Não libertaremos o povo escolhido de seu cativeiro, ainda que possamos livrar uma ou duas pessoas de seus grilhões cotidianos. Não veremos o mar se abrir aos nossos pés, ainda que alguns caminhos nos sejam revelados por nosso próprio esforço. Como Moisés, no entanto, não fraquejaremos ao peso das tábuas, nem diante do longo deserto, nem às desavenças a nossa volta. Seguiremos, feito ele, independentemente de termos compreendido nossa missão.

E por isso teremos feito tudo certo, tantas vezes ignorantes, tantas vezes sábios, movidos por vago mérito, errando os erros erráveis, equilibradas as contas entre os golpes do azar e os da sorte, até divisarmos a terra de onde mana leite e mel. Mas esta terra não haverá de nos pertencer. Essa terra nos estará vedada porque não temos mais uma vida para lá chegar, uma vida para ser jogada, de verdade, ao fim do percurso.

Dez anos mais novos, duas vidas mais fortes talvez conhecêssemos o que seria de fato estar (não em fantasia) ao lado daquela mulher, daquele homem, vivendo em outra cidade, em outro país. Mas veremos tudo desde cima do monte, onde restarão nossos corpos. Tendo feito o que devia ter sido feito, virá o preço da travessia. Como Moisés, não chegaremos a Canaã. À diferença de Moisés, no entanto, perderemos não uma, mas muitas terras prometidas. Feito um complexo, ignorado pelo patriarca.

Porque apesar de nossas vidas tão mais curtas, seguimos tentando recomeçar naquele berço às margens do Nilo, para depois voltar a trilhar o dificultoso destino, vislumbrar o prêmio, não poder alcançá-lo, êxodo após êxodo, sempre um instante mais tarde do que deveríamos.

Perceber-se pela primeira vez vítima desse complexo tem um gosto de velhice. Espero que não o sintam, meus leitores, malgrado seja um gosto humano.


Se Moisés o sentiu, as escrituras não o registram.