terça-feira, 30 de novembro de 2010



30 de novembro de 2010 | N° 16535AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

De homens e livros

Mario Quintana escreveu que “o livro traz vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”. E já que mencionei um de meus autores preferidos, peço licença para citar mais dois. Somerset

Maugham confessou que “quando leio um livro, tenho a impressão de lê-lo somente com os olhos, mas de vez em quando topo com uma frase que tem uma significação especial para mim, e ela se torna parte de mim”. Já Ernest Hemingway dizia que “todos os bons livros se parecem, por serem mais verdadeiros do que se tivessem acontecido realmente”.

Mergulhei nesses pensamentos o outro dia, ao fazer uma investida sobre minha própria biblioteca. De novo, era preciso separar um punhado de volumes para doação, já que o espaço de meu gabinete estava outra vez tomado por mais lombadas do que poderia suportar.

Me dediquei a esse exercício com um certo temor íntimo na alma. Explico: a literatura é ocupante bem-vinda de duas peças de minha casa. Mas e se eu estivesse descartando obras cujo valor não havia sabido reconhecer? E se eu estivesse me separando da criação de um gênio ainda desconhecido? E se eu estivesse expulsando um poeta de altíssimos méritos, ou um romancista de rútila imaginação?

O que mais receava era estar me desfazendo de um livro completo. Não um com duas capas e o recheio competente. Me refiro a um outro, que procuro desde sempre, e que traz a anatomia completa da condição humana. Não falo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Ana Karenina ou de qualquer das tragédias de Shakespeare. Esses são o zênite, até hoje conhecido, da trajetória do homem sobre a Terra.

Me reporto a uma obra que não foi até aqui descoberta, que sintetiza toda a amargura e o esplendor da raça humana. Algo de absolutamente único e inimitável, que se componha de amor e de ódio, de fé e descrença, de esperança e de mistério, de certeza e incertitude.

Enquanto separava os livros que iam ser doados, me perguntava se esse título realmente existe. E me assaltava a convicção de que está entre nós, talvez em minha biblioteca, talvez na fantasia da adolescente que lê sua novela inaugural.

Uma excelente terça-feira. Aproveite o dia

sábado, 27 de novembro de 2010



28 de novembro de 2010 | N° 16533
MARTHA MEDEIROS


Atração pelo apocalipse

Ainda é grande o número de pessoas que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção

Faz um tempo que estou querendo falar sobre isso, mas não sabia como, e pra falar a verdade ainda não sei. Tem a ver com a expressão todo mundo. Quem é esse tal de todo mundo?

Todo mundo está obcecado por sexo, todo mundo só dá valor ao dinheiro, todo mundo está deprimido e finge que é feliz. Será mesmo que a gente eu, você, nós todos, todo mundo caiu nessa cilada de viver de aparências?

Temos essa mania de generalizar, de passar adiante coisas que escutamos aqui e ali, de reforçar um pensamento que não é tão universal assim.

Eu mesma, às vezes, coloco tudo no mesmo saco para justificar uma ideia, mas façamos uma investigação mais minuciosa: todas as mulheres que você conhece são obcecadas por rejuvenescimento, vivem aplicando toxinas no rosto, não possuem nenhuma vida interior, nadinha? Inteligência zero?

Convivo com muitas mulheres cultas e inteligentes que são vaidosas com parcimônia e que não se rendem a métodos violentos para fingirem ser mais jovens do que são. E com homens igualmente cultos e inteligentes que são viris sem serem cafajestes. Esse “todo mundo” é uma fraude. Ainda é grande o número de pessoas que não perdeu os critérios, que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção e dos sem personalidade.

O que eu estou querendo dizer, caso ainda não tenha ficado claro, é que tem muita gente por aí que privilegia as coisas simples e naturais, que não faz plástica como quem faz depilação, que não transa com qualquer um só para ser moderno.

Tem muita gente que não investe todo seu salário em grifes, tem muita gente que nunca foi entrevistada, nem consultada, nem faz parte dessas estatísticas duvidosas que dizem que está “todo mundo” considerando que ser bonito e sarado é o passaporte para a felicidade.

Programas de tevê, imprensa sensacionalista, novelas, tudo isso diverte, mas nem sempre é uma amostra fidedigna do universo. Representam uma pequena parcela da sociedade que se sustenta no egocentrismo, porém por trás dos holofotes há uma imensidão de pessoas livres de pressões estéticas.

O verdadeiro “todo mundo” é amplo, imenso. Não se reduz a criaturas que dizem amém a meia-dúzia de regrinhas de revista, que seguem padrões estereotipados para se sentirem alguém. A autenticidade morreu? Morreu nada. Me recuso a acreditar que está todo mundo burro. Não estou idealizando uma sociedade heterogênea: ela é heterogênea de fato.

Chega de insistir nessa ideia de que todos são fúteis, que a sociedade apodreceu. Há muita gente por aí, uma infinidade de cabeças boas que curtem um por-do-sol, que estão se lixando para prazeres falsificados e que valorizam a paz de espírito antes de qualquer coisa.

Chega desses desenganos públicos que viram pauta jornalística, chega desse apocalipse moral vendido como regra. Há muitos estúpidos entre nós, mas eles ainda não são “todo mundo”.

Um gostoso domingo. Bom final de semana

quarta-feira, 24 de novembro de 2010



24 de novembro de 2010 | N° 16529
MARTHA MEDEIROS


Fator de descarte

Estávamos, eu e uma amiga, conversando sobre antigos namorados, quando ela me contou uma história engraçada que havia acontecido com ela há muito tempo. Estava saindo com um cara que já demonstrara não ser exatamente um príncipe encantado, mas vá lá, ela seguia tentando, até que um dia estavam dentro do carro e o rádio começou a tocar uma música do Tom Jobim.

Ele disse: “Não suporto esse xarope” e trocou de estação. Ela não teve dúvida: trocou de namorado. Não gostar de Tom Jobim foi o que ela chama de “fator de descarte”. Me assegurou que todos nós, homens e mulheres, temos pelo menos um fator que faz com que paremos de investir numa paquera. Um fator que é intransponível. E então ela me perguntou: qual é o teu?

Fiz um rápido retrospecto da minha vida amorosa – rápido mesmo, porque o elenco é pequeno – e cheguei à conclusão de que meu único fator de descarte seria a violência e a canalhice. Eu não me relacionaria com ninguém que ameaçasse minha integridade física e também com ninguém que não tivesse princípios éticos.

Fora isso, não me importo que o candidato a príncipe não goste de Tom Jobim ou que seja gremista, baixinho, caolho e manque de uma perna, desde que possua o meu “fator de exigência”, que é único, subjetivo e não vou revelar qual é.

Essa história de “fator de descarte” explica a existência de tantos desencontros amorosos, de tanta gente continuar comendo mosca quando poderia estar vivendo uma relação, no mínimo, surpreendente. A longa lista de “isso não tolero” é praticamente um passaporte para a solidão.

As pessoas não dão chance para os diferentes, para os que não têm o mesmo nível cultural ou o mesmo padrão econômico. Desejam alguém que pense igual, se comporte igual, tenha os mesmos gostos, o mesmo tipo de amigos, preferências idênticas.

No entanto, quem garante que um fã de Tom Jobim não possa ser um buldogue no convívio diário? E quem garante que um fã do padre Fábio de Melo não possa levar uma mulher às alturas? Hosana nas alturas!

Eu prefiro Tom Jobim a qualquer padre, pagodeiro ou sertanejo, e acredito que ter afinidades é decisivo para o sucesso de uma relação a dois, mas às vezes um prefere Paris e outro prefere acampar em Rolante, e aí, como faz?

Relacionar-se é a oportunidade suprema de invadir universos desconhecidos e extrair diversão das indiadas. Claro que há grande chance de virar um deus nos acuda, mas não se pode cultivar ideias imutáveis, tipo “jamais trocarei uma noite no Cafe de la Musique por um churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro”.

Exagerei, né? Churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro, francamente. Só se o cara – ou a fulana – cumprir muito à risca seu fator de exigência. No que diz respeito ao meu, é algo subjetivo, já falei. Altamente psicológico.

Pense naquilo que é imprescindível para justificar que você se envolva com outra pessoa a ponto de abrir mão da sua liberdade. Pois então: eis o seu fator de exigência. É isso que importa. De resto, deixe pra ouvir Garota de Ipanema em casa, Tom Jobim não vai fugir.

Ainda que com chuva um lindo dia para vc. Aproveite

terça-feira, 23 de novembro de 2010



23 de novembro de 2010 | N° 16528
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Idade da Pedra

Toda essa inglória batalha em torno do Enem me faz recordar a época em que tudo era mais exato, mais prático e mais simples. Não estou falando de eras imemoriais, mas do princípio dos anos 60, quando cada faculdade aplicava provas por ela mesma elaboradas para escolher os estudantes que iriam frequentar seus cursos.

Para mim, foi uma dura luta ingressar no primeiro ano da Faculdade de Direito da UFRGS. Durante três meses, eu despertava às quatro e meia da madrugada e, às cinco, depois do banho e do café, imergia no mundo da Filosofia, do Português, do Francês e do Latim.

Me entreguei a isso com tanta seriedade que às vezes passava da hora do almoço e eu ainda estava envolvido com a análise sintática de uma estrofe de Camões, ou com uma reflexão abissal de Karl Jaspers.

Não me dediquei por inteiro a esse desafio. De tarde, depois de uma sesta reparadora, ia procurar meus amigos ou, de preferência, minhas amigas, aquelas pelas quais eu tinha particular apreço e consideração.

Os exames eram duplos. Além de você encarar as provas escritas, tinha ainda de enfrentar as orais. Quer dizer: você era chamado a sentar diante da banca e responder ao que aquelas sumidades perguntassem sobre Francês/Inglês (a escolha era sua), Português, Latim e Filosofia.

Mas aí havia lugar para um jogo de cintura. O professor Armando Câmara costumava indagar a definição de valor. E aí você rebatia: “Valor é o próprio ser, visualizado intelectualmente numa perspectiva de finalidade”. Pronto: nota 10. O professor Carlos Jorge Appel não deixava de sondar seus conhecimentos sobre Fernando Pessoa. E aí você recitava: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. Outro 10.

Só derrapei mesmo na prova de Latim. A primeira questão, que valia dois pontos, era escandir uns versos de Virgílio. Eu dominava a escansão tão inteiramente que a deixei para o final do exame, e aí me esqueci de preenchê-la. Foram os dois pontos que me faltaram para ser o primeiro lugar no vestibular.

Hoje tudo mudou. A massificada e trágica comédia de erros do Enem mostra que regredimos à Idade da Pedra na seleção de alunos para a Universidade.

Excelente terça-feira pra vc. aproveite o dia.

sábado, 20 de novembro de 2010



21 de novembro de 2010 | N° 16526
MARTHA MEDEIROS


Solitary man

Estamos sempre em dívida com a nossa juventude, e a tentação de voltar a ela é mais forte do que a nossa racionalidade

Não deveria sacrificar minha paz de espírito com bobagem, mas o fato é que ainda me irrito com as traduções de filmes feitas no Brasil. A última extravagância se deu com o recente filme de Michael Douglas, por isso mantive o título original encabeçando essa crônica, já que me nego a reproduzir O Solteirão, como está nos cartazes dos cinemas. Não se trata da história de um solteirão, mas nada como um apelo fácil para atrair público.

O filme mostra o desenrolar da vida de um homem de 60 anos que, durante um check up de rotina, descobre que talvez tenha algumas complicações cardíacas. Talvez. Não há nada confirmado. O médico pede novos exames para ter certeza, mas o paciente decide não ir adiante na investigação da sua saúde. Mesmo sem ter um resultado definitivo, resolve que é hora de aproveitar a vida. E, para ele, aproveitar a vida significa mandar às favas a ética.

Falastrão e arrogante, o personagem só faz besteira, uma atrás da outra. Passa por cima dos sentimentos alheios feito um trator. Pensa que está curtindo à beça, mas na verdade está pagando um tributo à morte. É ela que está no comando, fazendo dele um marionete dos mais patéticos.

Além de jogar toda uma carreira profissional no lixo, o homem não pode ver alguém usando saia que se transforma num predador incontrolável, mesmo que haja um alerta de “perigo” piscando a sua frente. Pouco importa se a presa for a filha adolescente da sua namorada ou o grande amor do seu melhor amigo. A morte está à espreita, é a última chance de ser jovem de novo. Atacar!

Michael Douglas interpreta o papel com muita dignidade, e é irônico que ele próprio, hoje, esteja gravemente doente. Brincando numa entrevista, ele disse que nunca pensou em ir tão longe na divulgação de um filme. Mas o fato é que a morte ronda a todos, personagens reais ou fictícios, e cabe a nós combatê-la com maturidade em vez de se deixar levar pelo descontrole.

O bom senso recomendaria que, na perspectiva de se estar vivendo os últimos anos, privilegiássemos o que de fato possui valor: os amores conquistados e essenciais. Mas estamos sempre em dívida com a nossa juventude, e a tentação de voltar a ela para incrementar nossa biografia é mais forte que nossa racionalidade. Daí para a patetice é um pulo.

Mesmo inescrupuloso, simpatizamos com o personagem de Michael Douglas porque, de certa forma, somos todos um bando de assustados tentando vencer o invencível. Há um pouco dele em nós, e “um pouco” é medida tolerável, não compromete nossas atitudes. Mas o personagem, ao contrário, perde totalmente os critérios e dá bandeira da sua enorme fragilidade.

Ora, vamos todos morrer, mas isso não é desculpa para não se respeitar as regras do jogo. E a regra do jogo é clara: o que nos fará feliz na iminência do fim é exatamente o que já nos fazia feliz antes. O resto é pânico, só.

Um lindo domingo pra vc. Aproveite

quarta-feira, 17 de novembro de 2010



17 de novembro de 2010 | N° 16522
MARTHA MEDEIROS


A cabeça dos outros

A revista Veja desta semana traz uma reportagem perturbadora sobre os motivos que levam alguém a matar outra pessoa. Foram entrevistados mais de 90 homicidas, e as respostas, quase todas, coincidiram. Eles sentem medo ao assaltar. Estabelecem um roteiro prévio e ficam em pânico quando algo ameaça sair errado. Qualquer movimento não previsto é razão para atirar. E atiram.

Nada de novo: todo mundo sabe que reagir a um assalto é o caminho mais curto para uma tragédia. Nunca passei por isso e espero ter o sangue-frio necessário quando chegar minha vez, mas como deter o impulso de puxar um freio de mão, abrir um vidro, soltar o cinto de segurança, tudo o que pode ser considerado “imprevisto” pelos delinquentes?

Eu, por exemplo, quando passo por um susto violento, travo, fico sem voz. Ela não sai de jeito nenhum. Se acaso me perguntarem alguma coisa, como provar que meu silêncio não é uma provocação, e sim uma reação fora do meu controle?

Melhor nem pensar.

O que me ficou disso tudo é que somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros também, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.

Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.

O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.

A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.

Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos.

Bem só queria pedir perdão pelo horário da postagem, mas estou em um Congresso Internacional sobre Inovação aqui em Porto alegre e ai sinceramente não deu para postar antes. Bom soninho para vocês e os votos de uma linda quinta-feira.

terça-feira, 16 de novembro de 2010



16 de novembro de 2010 | N° 16521
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Raízes da alma

Quando eu frequentava o Clássico – que era um curso de três anos que tinha antes do vestibular – estudei as tragédias gregas. Aprendi então que elas costumavam terminar mal, que o destino jogava um papel importante na trama e que o papel dos heróis tinha características fatídicas. Me ensinaram ainda que o gênero foi imitado através dos séculos, sem maior êxito, em especial pelo teatro francês.

Alguém poderá perguntar por que assunto tão complexo era parte do cardápio da escola média. A resposta é simples. Édipo, Jocasta, Antígona e companhia integravam o currículo porque o curso se atrevia a mergulhar nas raízes da alma humana.

Leio agora na Veja que tramitam hoje no Congresso Nacional 76 projetos de lei que visam a incluir novas matérias na grade letiva. Se forem aprovados, os estudantes terão aulas sobre cooperativismo, para orientá-los a refutar o capitalismo.

Ora, uma cooperativa é uma sociedade que objetiva desenvolver a economia de seus membros através do apoio mútuo. Não se destina a rebater o capitalismo, hoje presente até na China.

Os alunos absorverão também algo chamado de educação para as mídias, uma espécie de olhar crítico sobre o noticiário. Será esforço perdido. A melhor educação para as mídias é proporcionada todos os dias pelos jornais, rádios e emissoras de TV. Baseia-se num pressuposto elementar: a veracidade, a exatidão, a isenção e a honestidade de cada linha difundida.

E sobrou ainda lugar para o esperanto. A língua auxiliar internacional criada por Zamenhof promoveria a comunicação entre sociedades distantes, quando não antípodas. Esse papel é hoje do inglês, como já foi do francês e do latim.

Não tenho absolutamente nada contra o cooperativismo, a leitura crítica das mídias ou o esperanto. Bem ao contrário. O que me preocupa é a real prioridade de todas essas propostas para os adolescentes brasileiros.

No Clássico, estudei filosofia, latim, francês, sociologia, espanhol, sem esquecer matemática, química e física. Uma reforma do ensino mal aplicada e pior digerida baniu todas essas disciplinas dos currículos de formação humanística. Toda a educação se empobreceu com isso.

A hora é de resgatá-las, com a importância a elas devida, já que vem aí um novo governo.

Ótima terça-feira e uma gostosa semana pra vc

sábado, 13 de novembro de 2010



14 de novembro de 2010 | N° 16519
MARTHA MEDEIROS


Um universo chamado aeroporto

Talvez o fascínio seja este: quando viajamos, nunca parecemos muito conosco

Ainda não me decidi sobre o que sinto a respeito de aeroportos. Atualmente me provocam impaciência e cansaço, mas afora os momentos de estresse causados por atrasos, eles também exercem sobre mim um certo fascínio.

E eu não devo ser a única, caso contrário o escritor Alain de Botton não teria aceito a proposta que lhe fizeram de passar uma semana morando em Heathrow, principal aeroporto de Londres, para escrever um livro sobre o assunto.

O livro traz muitas fotos e alguns comentários sobre esse microcosmo que serve de cenário para despedidas, reencontros, esperas, angústias e êxtases. Não é leitura obrigatória, longe disso. Há uma certa encheção de linguiça, como todo livro encomendado, mas ele desperta em nós um olhar mais atento sobre o que se passa nos terminais aéreos.

Todo mundo tem uma história de aeroporto pra contar. Eu tenho algumas que até já transformei em crônicas, como da vez em que um cidadão quase sentou em cima do meu colo na sala de embarque, me revelando um poder que eu desconhecia que tinha, o da invisibilidade.

Ou da minha surpresa ao ver que alguns executivos costumam ter dificuldade de se separar de seus travesseiros, levando-os embaixo do braço quando partem para suas reuniões em São Paulo.

Já vi um adolescente tentar abrir a porta da aeronave em pleno voo – eu sei que não há como ter sucesso na empreitada, mas não queira assistir à cena. Já passei pela desolação de ver todas as bagagens serem retiradas da esteira e a minha não chegar, me obrigando a ir para um hotel em Barcelona só com a roupa do corpo.

E nunca esqueci de quando eu estava aguardando a chamada de um voo justamente em Heathrow, quando um cavalheiro vagamente familiar sentou ao meu lado. Harrison Ford, apenas. Por que não foi ele que tentou sentar no meu colo é algo que a Justiça divina ainda tem que me explicar.

Bom, esses casos estariam no meu livro sobre aeroportos, caso eu tivesse escrito um. No de Alain de Botton, o que mais curti foi a parte em que ele fala sobre como nos sentimos ao ser revistados. Abrir a bagagem, descalçar os sapatos, tirar o cinto, passar pelo detector de metais, tudo isso gera em nós uma inexplicável sensação de culpa, por mais inocentes que sejamos.

Comigo, ao menos, se confirma. Se a averiguação é lenta, começo a suar frio e fico aguardando o momento em que encontrarão armas ou drogas nos meus pertences, e quando o meu passaporte é aberto na folha onde está minha foto, adoto minha melhor cara de terrorista e torço para que o policial não perceba que o documento é falso.

Porém, desprezando toda minha ansiedade, ele carimba e me deixa passar, sem reparar que aquela da foto não parece comigo. No fundo, o fascínio talvez seja este: quando viajamos, nunca parecemos muito conosco. Aeroportos nada mais são que embaixadas do nosso estrangeirismo latente.

Um lindo domingo pra vc. Uma gostosa semana


13 de novembro de 2010 | N° 16518
NILSON SOUZA


Parêntese

Acabou. E, se não acabou ainda, vai acabar logo, logo.

Depois de ler uma entrevista com o professor dinamarquês Thomas Pettitt, publicada pelo Globo, me convenci de que não devemos nos iludir em relação à sobrevivência da palavra impressa nos moldes em que a conhecemos atualmente.

Resumindo a tese do homem dos quatro tês: livros e jornais estão prestes a se tornar peças de museu. De acordo com sua teoria, estamos chegando ao fim do que ele batizou de Parêntese de Gutenberg – o período de cerca de 400 anos em que prevaleceu a imprensa (não apenas no sentido de jornalismo) como forma de comunicação, de divulgação de ideias e de preservação da história.

Antes de Gutenberg, ele lembra, a cultura era transmitida oralmente, por meio de canções, contação de histórias e encenações. Valia o som e o imediatismo. Com a invenção do tipo móvel, a verdade deslocou-se para o papel.

Tudo o que era impresso passou a ter valor – e assim permanecemos até hoje. Porém, o rádio, a TV e o cinema já passaram a privilegiar a oralidade. E agora, com as novas mídias, passamos a falar com os dedos. Tudo é tão imediato, que a escrita ficou muito mais próxima da fala. Logo, adverte o professor, todos os livros e jornais estarão digitalizados – e ingressaremos numa nova era, muito semelhante à que existia antes da invenção da imprensa. Daí o Parêntese de Gutenberg, o intervalo de tempo em que a palavra impressa teve o seu valor, talvez apenas um breve hiato na história da humanidade.

Vai mais longe a tese do dinamarquês. A era do livro também teria gerado uma visão de mundo que separa as coisas em categorias rígidas, segundo ele menos definidas antes de serem prensadas no papel. Pois agora, por conta da revolução digital, estaríamos voltando a um período de tolerância maior, de mais misturas e menos classificações.

Tudo porque a escrita era considerada mais verdadeira do que a fala, assim como uma encadernação de couro impõe mais respeito do que um manuscrito. Pois os e-mails fecharam este parêntese.

– E a verdade, onde fica? – perguntou o entrevistador. Fica exatamente como na Idade Média, quando as notícias chegavam aos lugares remotos por mensageiros e viajantes estrangeiros. As pessoas tinham que decidir em quem acreditar. E davam crédito a quem conquistava a fama de falar sempre a verdade. Ou seja: valia (e vai continuar valendo, se me permitem um último parêntese) a reputação do mensageiro.

Digite-se e publique-se.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010



10 de novembro de 2010 | N° 16515
MARTHA MEDEIROS


Agilidade não é a nossa praia

A morte do surfista Thiago Rufatto, que ficou preso numa rede de pesca em Capão da Canoa na semana passada, representa, além de uma tragédia pessoal para sua família e amigos, mais um exemplo da morosidade do Rio Grande do Sul. Ele não foi o primeiro, nem o segundo surfista a ser vítima da falta de sinalização: foi o 49º.

E, ainda assim, esses esportistas seguem contando apenas com placas fincadas na areia alertando sobre áreas reservadas para pesca, como se lá no meio do mar fosse possível visualizá-las e como se não houvesse correntes que nos deslocam dentro d’água sem a gente perceber.

Por que não há sinalização dentro do mar, através de boias? Provavelmente porque antes seria preciso fazer 400 reuniões, plebiscitos, pesquisas de opinião pública, orçamentos, consultas à Marinha, estudos sobre impacto ambiental e ainda ouvir o que dizem os astrólogos a respeito. Agilidade não é a nossa praia.

O novo Teatro da Ospa não ter sido construído até hoje, a ponto de desestimular o maestro Isaac Karabtchevsky a seguir dirigindo sua orquestra, é de envergonhar. O projeto de revitalização do cais do porto já deveria ter sido concluído há no mínimo 10 anos, mas parece que temos um fascínio patológico por maquetes e plantas baixas.

Basta que haja um projeto no papel para que pareça que está tudo andando. Somos os reis dos projetos: aeromóvel, ciclovias, revitalização da orla. Que beleza de metrópole poderíamos ser, e de “poderíamos ser” vamos vivendo.

Óbvio que a Redenção já deveria ter sido cercada para preservação de seus jardins e maior segurança da população, mas oh, que disparate, e nossa liberdade de ir e vir? Ninguém pensa um segundo antes de colocar grade na basculante do banheiro, mas quando se trata do patrimônio público, todo mundo vira bicho-grilo.

O Central Park, de Nova York, o Hyde Park, de Londres, e o Jardim de Luxemburgo, de Paris, só para citar três cartões-postais universais, são cercados e nem por isso perdem seu impacto de beleza e a integração com a população. Mas aqui tudo tem que ser debatido por pelo menos 20 anos até se chegar a um consenso. Eu também adoraria que para tudo existisse um consenso, não fosse isso um contrassenso. Não é possível agradar a todos, quem não sabe?

Totalitarismo é algo que ninguém deseja, mas firmeza é outra coisa. Pense nas decisões que são tomadas na sua casa, entre quatro paredes: quando cada um tem uma opinião diferente e a conversa se estende além do razoável, alguém precisa interromper o blá-blá-blá e agir, em vez de ficar esperando que os astros se alinhem no céu e provoquem um entendimento transcendental.

É uma atitude antipática? Que seja. Sempre haverá os do contra, e, se eles ficarem desgostosos com a situação, paciência. O que não se pode é passar a vida aguardando uma aprovação absoluta. Um pouco de audácia e rapidez incrementaria bastante o nosso tão alardeado orgulho gaúcho.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010



03 de novembro de 2010 | N° 16508
MARTHA MEDEIROS


Memória musical

Sem que ninguém tenha me pedido nada, quero endossar publicamente uma iniciativa de Zero Hora que merece atenção, não por ser promovida pelo jornal para o qual escrevo, mas pela sua utilidade na formação do ser humano. Ok, soa pretensioso, mas é disso que se trata mesmo, formação.

Falo da “Discoteca Básica”, composta por 25 CDs do que de melhor já foi produzido pela música popular brasileira nas últimas décadas. Quando vi a seleção de discos, me belisquei. Quase tudo tive em vinil, e por uma bobeira indesculpável, passei adiante. É a chance que tenho de resgatar momentos preciosos da minha cultura musical.

Quando as pessoas perguntam os livros que me inspiraram na adolescência, cito alguns autores, mas nunca deixo de salientar que a música me foi igualmente inspiradora. Não sei que espécie de infância eu teria se não fosse embalada pelo som dos quatro baianos geniais, mais Jorge Ben, Rita Lee, Chico Buarque, Elis Regina e tantos outros. Pois agora tenho a chance de trazê-los de volta pra casa.

Alguns discos dessa seleção foram como pai e mãe pra mim. Fruto Proibido, de Rita Lee, me fez identificar a ovelha negra que somos todos, em alguma etapa da vida. Acabou Chorare foi a trilha sonora de um namoro da época da faculdade com um fotógrafo que me deixou de herança o amor pelos Novos Baianos.

Secos & Molhados é o disco que fez eu descobrir que meus pais não eram tão conservadores assim, pois não se assustaram com os trejeitos do invertebrado Ney Matogrosso e me levaram pela mão até o Gigantinho, quando eu tinha 12 anos, para ver toda aquela transgressão de perto. Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, foi uma espécie de iniciação à ópera. Somos todos Iguais nesta Noite, de Ivan Lins, me educou para a celebração da vida.

O disco da Blitz me estimulou a ver o mundo com olhos mais divertidos. E o disco do Zé Ramalho me ensinou outro tipo de oração. Eles me fizeram ir além da cartilha dos bancos escolares.

Se eu pudesse completar a coleção, ainda haveria lugar para o disco Alucinação do Belchior, o primeiro disco da Gal, com Não Identificado, o disco do Toquinho e Vinicius de 1971, o primeiro da Angela Rô Rô com a imortal Amor, meu Grande Amor, o Fullgás da Marina, o Face a Face da Simone, o antológico disco de estreia das Frenéticas, o disco de 1970 do Tim Maia (Primavera e Azul da Cor do Mar), algum disco de Sá, Rodrix e Guarabira, os nossos Almôndegas, algum do início do Legião Urbana e, pomba, cadê o rei?

Roberto Carlos merecia entrar na lista com a trilha sonora do filme Em Ritmo de Aventura. Atenção, Zero Hora: há material suficiente para uma Discoteca Básica parte 2.

Hoje, os filhos já não ouvem música com os pais. Cada um fica no isolamento do seu quarto, baixando seus hits no computador, hipnóticos em seus fones de ouvidos. Não faltam bons nomes atuais, como Adriana Calcanhoto, Lenine e Zeca Baleiro, mas nada se compara ao assombro que caracterizou a MPB dos anos 70. Quem viveu lembra. Se não lembra, tem a chance agora.

Aproveite o dia. Uma linda quarta-feira pra vc

terça-feira, 2 de novembro de 2010



02 de novembro de 2010 | N° 16507
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Tão longe, tão perto

Eram um amigo e uma amiga, tão próximos quanto distantes. Haviam trabalhado uma vez num projeto que tinha certo parentesco com softwares, e como é impossível falar eternamente sobre softwares repartiram um verniz de segredos mútuos, e foi tudo.

Aí ambos tomaram seus rumos. Uma noite, na saída do teatro, trocaram palavras corteses. Ela estava belíssima e só. O papo foi-se alongando, pois chovia e os táxis eram raros. Havia perto um café e, num impulso, ele a convidou para um vinho. Discutiram a peça, dividiram capítulos recentes de suas biografias, recordaram conhecidos comuns. Na saída o homem disse:

“Sabe do que eu gostaria? Topar contigo mais seguido.”No dia seguinte recebeu um telefonema. Era ela:

“Me elogiaram muito esse filme do Guion. E se a gente fosse conferir?”

Não se limitaram a conferir. Escalaram num bar do shopping. Ele percebeu que os olhos dela estavam vermelhos.

“A história te comoveu tanto assim?”, perguntou. “Não, ando vivendo um período complicado.”

O homem a escutou atencioso, serviu-lhe uns palpites, que ela agradeceu observando:

“Sou mesmo uma boba sentimental.” Um mês depois, foi ele quem ligou:

“Ouvi comentarem que esse novo restaurante da Padre Chagas serve um risoto imperdível.”

“A balança vai brigar comigo”, riu ela.

O almoço se estendeu até três da tarde, mas a única briga de que trataram foi uma batalha que ele vinha travando com o seu chefe.

“Que fiz eu até hoje? Quem sou de verdade? Um executivo de certa competência. Onde foram parar meus sonhos?”

Ela tomou-lhe a mão, compreensiva e ternamente, deu-lhe uns conselhos que ele ouviu agradecido e volveram a separar-se.

Provavelmente teriam continuado amigos, próximos e distantes, um convocando o outro sempre que precisava de um ombro. Ora, ocorreu que o homem sofreu um acidente. Os médicos o consertaram, mas foi obrigado a amargar um mês sem poder abandonar o gesso.

Ela lhe surgiu com armas e bagagens e autonomeou-se sua enfermeira. Foram 30 dias em que se romperam as eclusas de confidências até então represadas. Já não eram crianças, e quando o declararam salvo ele falou:

“Por que você não fica?” Ela ficou. E já não mais distantes, senão que docemente próximos, perceberam que não há idade para o amor.

Reverencie aos que se foram. Lindo dia pra você.