quarta-feira, 31 de outubro de 2012



31 de outubro de 2012 | N° 17239
MARTHA MEDEIROS

Poesia e cerveja

Inspirada pelos ares que sopram da Praça da Alfândega, lembrei de um e-mail que recebi. Um rapaz contou que estava num churrasco com amigos quando acabou a cerveja. Foi escalado para ir ao supermercado buscar mais. Meia hora depois, retornou sem nenhuma latinha, mas com um livro de poemas meu. “Fui quase linchado.” Pô, trocar cerveja por poesia, até eu lhe daria uns beliscões.

Mas não posso negar que fiquei toda boba por meus versos terem seduzido um garoto de 20 anos em plena sexta à noite num corredor do Zaffari. Na verdade, não sei se ele tinha 20 anos, se era uma sexta e se foi no Zaffari, mas não resisti em formatar aqui um cenário mais completo. A cena é boa demais para ficar sem detalhes.

Aproveitando a Feira, uma dica: abrace os poetas. A começar pelo nosso patrono, Luiz Coronel, e mais Ferreira Gullar, Alice Ruiz, Antonio Cícero, Fabrício Carpinejar, Adélia Prado, Armindo Trevisan, Celso Gutfreind, Elisa Lucinda, Affonso Romano de Sant’Ana, Thiago de Mello, Viviane Mosé, todos em atividade. Não, Stella Artois não é uma poeta. Querendo prestigiar um talento novo, anote: Gatos Bravos Morrem pelo Chute, do gaúcho Tiago Ferrari.

Afora a poesia, selecionei 11 títulos entre os muitos que li este ano, entre romances, crônicas e ensaios:

Por Favor, Cuide da Mamãe, de Kyung-Sook Chin. Os segredos e sentimentos de uma família sul-coreana, numa história universal e belamente escrita.

O Caderno de Maya, de Isabel Allende. A autora escreveu uma história contemporânea e impressionante, inspirada na barra-pesada vivida por seus enteados.

Sunset Park, de Paul Auster. Após um acidente familiar ocorrido na adolescência, um garoto procura colar seus cacos junto a outros desgarrados que moram em uma casa abandonada. Excelente.

A Borra do Café, de Mario Benedetti. Relançamento de uma de suas obras mais tocantes. O autor uruguaio mescla memória e invenção ao narrar sua infância em Montevidéu.

Resposta Certa, de David Nicholls. Diálogos ótimos, do mesmo autor de Um Dia. O título poderia ser Diversão Certa.

Tempo é Dinheiro, de Lionel Shriver. Suicídio, câncer terminal, mortalidade, humor negro. Só mesmo a autora de Precisamos Falar sobre Kevin para transitar sobre esses assuntos sem nenhuma condescendência e arrebatar o leitor.

A Vida Gritando nos Cantos, de Caio Fernando Abreu. Crônicas publicadas no jornal O Estado de S. Paulo entre 1986 e 1996. O mesmo texto charmoso e provocativo que deixa saudade até hoje.

A Queda, de Diogo Mainardi. Impossível ficar indiferente. A secura convivendo com a docilidade de uma forma única e emocionante.

Como Ficar Sozinho, de Jonathan Franzen. Do mesmo autor do aclamado Liberdade. Ensaios sobre a solidão, a nicotina, a literatura, a invasão de privacidade e outros temas que ganham uma nova perspectiva sob o olhar astuto desse mestre da prosa.

Alta Ajuda, de Francisco Bosco. Ensaios de um jovem filósofo que tem o talento no DNA. Filho do músico João Bosco, é articulista do jornal O Globo, no qual escreve sobre cinema, futebol, amizade, sexo, política.

Pequenos Contos para Começar o Dia, de Leonardo Sakamoto. Breve e belo, até parece livro de poesia – olha ela, de novo. Uma palhinha: “Os professores de matemática dizem que a menor distância entre dois pontos é uma reta. Menos pro meu avô: ‘Besteira! A menor distância é aquela em que a gente se diverte mais’”.

terça-feira, 30 de outubro de 2012



30 de outubro de 2012 | N° 17238
FABRÍCIO CARPINEJAR

Quanto mais .............. pior

Meu amigo Daniel superou 40 dias de luto da separação, aguentou no osso o divórcio, chorou horrores e debulhou suas lágrimas em copos de bourbon, parou de atender ao telefone e se trancou no quarto.

No 41º dia, ele ressuscitou. E voltou a sair e se divertir. Já estava esquecendo o quanto amava sua ex. Já estava esquecendo que foi amado pela ex.

Um homem somente apaga um amor no momento em que encontra outro. Daniel se enamorou por uma bancária. Badalou vários finais de semana com Heloísa, ria com a franqueza de um adolescente.

Apaixonado? Sim, mas seria o último a saber. Todo apaixonado é o último a saber que está apaixonado. O mundo inteiro sabe, menos o próprio apaixonado. Não adiantava contar a Daniel que ele estava apaixonado, ele jamais me escutaria. O apaixonado é surdo também.

Para comemorar a nova fase de sua vida, Daniel convidou Heloísa para almoço em restaurante francês nos fundos de um casarão.

Ele pediu cordeiro com purê de beterraba; ela, filé mignon com acompanhamentos silvestres.

Ele pediu um vinho chileno; ela avisou que não poderia beber (pois ainda iria trabalhar), e se contentou com uma Coca-Cola.

– Coca-Cola light?

– Não, senhora, só temos Zero – avisou o garçom.

– Ok, não vou me desesperar por um detalhe – replicou.

O casal soltou os braços sobre a toalha para diminuir a distância das cadeiras, ambos se olhavam firme e forte numa hipnose infindável, hipnose à moda antiga, de relógio de bolso balançando.

A mesa estava sobrando entre os dois. Ele se debruçava no prato para arrancar um beijo, ela se levantava para acariciar sua testa. Nada poderia estragar aquele bem-estar. Quase nada.

Mas quando a Coca pousou na mesa, Heloísa gelou, derrubou o arranjo de flores e fugiu para o banheiro soluçando a seco.

Ele olhou a Coca com calma: Será que tinha uma barata?

Não achou coisa alguma, até que leu um nome. A marca decidiu homenagear seus consumidores nas latinhas.

Era o nome de sua abominável ex: Carolina.

“Quanto mais CAROLINA melhor”

Heloísa não aguentou a provocação, ardia de ciúme do passado dele.

Quando um refrigerante faz uma campanha dessas, não cogita de que existem desafetos no mundo, ódio familiar, revolta interior, tristeza reprimida, viuvez, gente que levou o fora ou foi corneado ou enganado. Imagina apenas que todos se gostam e que todos vão adorar ver seu nome ou de sua namorada na embalagem.

Daniel amaldiçoou o azar, criou teorias da conspiração, não duvidou da perseguição da megera, cogitou a hipótese de ela subornar o garçom para trazer aquele refrigerante.

– Como, entre milhares de opções, surge em minha mesa logo o nome daquela vagabunda?

Não poderia responder. Heloísa recusou carona e seguiu sozinha para o emprego. Não havia mais felicidade para ser dividida.

Do copo dela, só ficou o limão.


30 de outubro de 2012 | N° 17238
CLÁUDIO MORENO

O sol e a sombra

Dentre as inúmeras histórias, verdadeiras ou inventadas, que a Antiguidade nos legou, talvez nenhuma seja tão conhecida quanto a visita que Alexandre Magno fez a Diógenes, o filósofo maltrapilho, no ano de 336 antes de Cristo.

Nunca teremos um relato definitivo deste encontro notável, já que nem um, nem outro deixaram qualquer registro das palavras que trocaram naquele dia. Foi a partir do depoimento de algumas testemunhas que escritores, pintores e historiadores construíram, ao longo dos séculos, uma verdadeira teia de versões, que diferem no detalhe mas concordam no principal.

A divergência entre os vários relatos não conseguiu diminuir a importância da cena, pois ali se encontraram, frente a frente, um grande filósofo e um grande guerreiro. Nada podia ser mais simbólico: de um lado, um dos maiores sábios de toda a Grécia, que passou a vida demonstrando sua aversão por qualquer espécie de poder; do outro, o jovem macedônio, que seria conhecido e respeitado por todo o Mundo Antigo como o maior chefe militar de todos os tempos.

É Plutarco quem conta: tendo conquistado a Grécia, Alexandre, que já conhecia o renome de Diógenes, foi a Corinto para vê-lo. Os políticos locais receberam-no com honras de chefe de Estado, assim como os filósofos – menos Diógenes, que parecia não dar a mínima para sua presença na cidade.

Alexandre, magnânimo, não se importou em inverter o protocolo, indo ele mesmo, com uma pequena comitiva, procurar o filósofo, que tomava sol no meio da rua, num subúrbio da cidade. Ao ver o grupo que se aproximava, Diógenes soergueu-se sobre os cotovelos e fitou serenamente o rei, que o saudou polidamente e perguntou se poderia fazer alguma coisa por ele.

“Sim”, respondeu Diógenes, “sai da minha frente, que estás fazendo sombra para mim”. Alexandre ficou tão impressionado com aquele despojamento e aquela corajosa altivez que, no caminho de volta, teria confessado aos companheiros, que riam da excentricidade do filósofo: “Pois eu, se não fosse Alexandre, juro que gostaria de ser Diógenes”.

Lições como esta sempre deixaram bem claro que, para os antigos, a sabedoria na vida não significa necessariamente profundos conhecimentos teóricos, mas antes um inconfundível espírito soberano, capaz de resistir serenamente às sereias do poder e da ambição, que sempre atraem os incautos para os recifes da incerteza.

Alexandre, que, antes de ser soldado, tinha sido discípulo dileto de Aristóteles, deve ter compreendido perfeitamente o que Diógenes, à sua maneira, acabara de lembrar: o conhecimento é um sol que nos aquece; o poder, este, sempre será uma sombra.


30 de outubro de 2012 | N° 17238
PAULO SANT’ANA

Eu sou um imbecil

Resolvi parar um pouco para pensar.

Será que não estou com a razão?

Acontece que recebi cerca de 40 mensagens de leitores que afirmam categoricamente que aprovam que os presidiários gaúchos morram de doenças ou enforcados por seus colegas.

Não são poucas nem eventuais as mensagens, elas se posicionam de modo enérgico a favor do morticínio nos presídios.

Muitas dessas mensagens dizem taxativamente que “são poucos os presos que morrem nos presídios do RS” (120 por ano, segundo ZH).

Declaram que tinha de morrer muito mais pelos crimes que cometem contra a população.

Não há nenhum equívoco, elas querem que os presos sejam maltratados, que morram por doenças e sejam enforcados (a maioria dos que morrem assassinados pelos outros presos dentro da prisão é pela via do enforcamento).

Eu preciso realizar uma profunda reflexão. Certamente, essas pessoas que me escrevem desse jeito são gente de bem, trabalhadora, têm família etc.

Então eu penso: será que não sou eu que estou errado? Será que os governantes e as autoridades penitenciárias estão com razão ao permitir esse holocausto?

Sinceramente, estou duvidando dos meus princípios e de que eles não são de humanidade.

Eu devo estar errado. Essa gente toda que me escreve é que está certa, preso tem de ser escorraçado e tem de morrer.

É muita gente escrevendo com este ponto de vista. A maioria, já que escrevi que não durmo direito com essas milhares de mortes em 10 anos, respondeu-me dizendo que eu não tenho de dormir direito por causa das pessoas assaltadas e assassinadas pelos presos.

Nem sei quem são os presos que morrem nas prisões, não sei que crime cometeram, podem ter sido delitos leves.

Mas os que escrevem aprovando o genocídio não querem nem saber que crimes cometeram os presos mortos ou assassinados. Eles não só querem que eles continuem a morrer por doenças e assassinatos como também acham que são poucos, que muitos mais deveriam morrer por essas razões.

Dou-me finalmente por vencido. Eu é que estou errado e os que me escrevem estão certos.

Porque chega uma hora em que a gente, que pensa de um jeito, tem de refletir que está errado e certos são os que querem os presos torturados, doentes de morte e assassinados.

Esta gente é respeitável e sou obrigado a acatar a sua opinião.

Não adianta mandar contra a maré. Se isso é o que pensa a sociedade, é assim que tem de ser feito. Deve-se respeitar a maioria. E a maioria prega a desgraça dos presos. Eu já tinha de ter desconfiado disso quando só encontrei indiferença entre os gaúchos, durante 41 anos, quando eu defendi bons tratos para os presos, o que não queria dizer absolutamente que não tinham de pagar por seus delitos.

Ou eu fui educado erradamente, ou, então, eu estou pensando errado, o meu raciocínio não está batendo certo. Afinal, chega um dia em que a gente tem de fazer um exame de consciência e ter a humildade de considerar que se está errado.

Está bem, vocês venceram, os presos têm de passar fome, têm de morar em esgotos, têm de ser maltratados, têm de não ser atendidos em suas doenças e têm de ser assassinados.

E eu me declaro solenemente um imbecil.


30 de outubro de 2012 | N° 17238
DAVID COIMBRA

Um urubu na sacada

Um amigo meu tomava café da manhã, dia desses, quando viu um urubu olhando para ele. Um urubu, por Deus. Estava empoleirado na sacada do apartamento, com olhar atento, como atento é o olhar das aves, porém sereno, quase imóvel. Você já viu um urubu de perto? É um bicho de aparência ameaçadora – grande e muito feio. Não tem a fama que tem à toa. Só a torcida do Flamengo gosta de urubu.

Então, lá estava aquele urubu observando o meu amigo. O apartamento dele fica ali na Bela Vista. É novíssimo, meu amigo comprou não faz muito tempo. Ele é um homem bem postado na vida, é um ser urbano, não está acostumado com animais que não sejam convictamente domésticos, sobretudo se forem aves de rapina de bom porte. O que fazer com aquele urubu?

Se tentasse enxotá-lo, como ele reagiria? Um urubu, em situação de estresse, torna-se agressivo? Como enfrentar um urubu em fúria? O urubu o debicaria e lhe meteria as garras? Meu amigo não tinha arma em casa... Por via das dúvidas, optou pela segurança máxima. Escorregou até a porta da sacada e a fechou cuidadosamente, torcendo para que o urubu se transferisse para outra sacada ou galho de árvore, o que aconteceu mais tarde.

Mas nos dias seguintes o urubu, ou algum amigo ou parente dele muito parecido, voltou. Meu amigou tomou-se de aflição. Ele não sabia que a cidade era frequentada por urubus. Saiu pelo prédio a investigar o que estava ocorrendo. Por que um apreciador de carniça rondava seu prédio? Haveria alguma vaca morta nas vizinhanças?

Acabou descobrindo. Ocorre que aquele é um prédio realmente novo. Muitos dos proprietários demoraram meses a se mudar. Foi num desses apartamentos vazios que uma jovem família de urubus fez seu ninho. Quando o dono humano do apartamento chegou, deparou com aquele ninho de urubus instalado na sacada. Desagradável.

Muito consciencioso, o ser humano decidiu que não iria simplesmente retirar o ninho e atirá-lo no lixo, como faria um homem que não respeitasse a Natureza e os animais e a vida, toda aquela coisa. Chamou a Secretaria do Meio Ambiente para que fosse adotado o procedimento correto. Decerto as autoridades saberiam o que fazer com um ninho de urubu construído em uma sacada de apartamento.

Resultado: a secretaria o notificou. Por algum motivo, os urubus são animais protegidos pela lei ambiental. Remover seus ninhos é crime. O dono humano do apartamento terá de conviver com os urubus até que os filhotinhos cresçam, se desenvolvam, ganhem independência e se mudem de lá por vontade própria, processo que a secretaria calcula que se dará em três ou quatro meses. Seria menos grave dar um tiro no fiscal da secretaria do que remover a família de urubus da sua casa.

É justo isso com o dono do apartamento? É correta tamanha atenção com urubus? Eles, os urubus, merecem toda essa consideração? Precisam ser preservados, afinal? E o investimento do ser humano no apartamento e a sua tranquilidade e o seu dia a dia e, afinal, a sua paz, isso tudo também não deve ser preservado?

Como são delicadas essas questões legais...

No caso do gol com a mão de Barcos que a arbitragem anulou com auxílio da TV, o que vale mais: o Direito ou a Justiça? O que é legal? Ou o que é certo?

A anulação do gol foi incorreta do ponto de vista técnico, mas pelo menos serviu para corrigir uma injustiça. Talvez seja ruim para a lei do futebol, mas foi bom para o futebol.

sábado, 27 de outubro de 2012



28 de outubro de 2012 | N° 17236
MARTHA MEDEIROS

Sem medo de amadurecer

Estará chegando em breve às livrarias a nova obra do filósofo argentino Sergio Sinay, cujo título é A Sociedade que Não Quer Crescer. Tema bastante atual e que merece atenção. Não há alarmismo em afirmar que viramos uma sociedade de adolescentes vitalícios, todos preocupados em manter a juventude até os 80 anos.

Uma coisa é praticar esportes e exercícios físicos, proteger a pele, se alimentar bem, manter cuidados para garantir a saúde, investir em lazer. Outra bem diferente é se comportar de forma irresponsável, não assumir autoridade, não dar um rumo à própria vida, viver encostado nos parentes. Há quem considere mais cômodo ser criança para sempre.

De fato, é. Temos por aí uma quantidade absurda de crianções e criançonas de 40 anos, de 50 anos, até mais. O que esperar de seus descendentes?

Não é fácil lidar com desejos, fazer escolhas, sustentar decisões. Nos momentos de aperto, gostaríamos de não precisar enfrentar coisa alguma e chamar um “adulto” para resolver as questões sérias em nosso lugar. Porém, não temos mais cinco anos.

Nem 15. Não há mais justificativa para desrespeitar as leis, dirigir de forma inconsequente, se embebedar, fugir aos compromissos. Essa rebeldia juvenil até possui um certo romantismo, é a porção James Dean de cada um. Só que o ator não viveu o suficiente para virar um homem, mas você, sim.

Amadurecer é respeitar os ciclos da vida e deixar a adolescência para trás a fim de assumir seu lugar no mundo. O que não significa virar um adulto chato e prepotente. É permitido divertir-se na maturidade. Muito, inclusive. Adultos curtem a vida mais do que a garotada justamente porque não estão mais testando limites, já viraram essa página. O que fragiliza a sociedade são pessoas que, uma vez crescidas em estatura, não cresceram emocionalmente.

Um adulto de verdade é aquele que não age em busca de uma recompensa – ele faz o que tem que fazer porque é o certo.

Pra chegar a esse encontro saudável com o dever moral, é preciso que ele tenha consciência de quem é, de tudo o que viveu, de como suas experiências o moldaram, e adote uma atitude firme diante de seus filhos, de seus pares, da sociedade toda. Se considerar que isso significa “envelhecer”, que pena: seguirá sendo um garoto mimado, uma garota bobinha, sem brio para herdar o bastão de seus pais e sem consistência para passar o bastão adiante.

Pessoas maduras também têm incertezas, vacilam, fraquejam. Porém sabem a hora de cortar o laço com suas carências infantis e de interagir com o mundo a fim de torná-lo melhor, mais digno.

São agentes de transformação, e não de estagnação. Quando se tornarem idosos, poderão olhar pra trás com a consciência de ter dado um sentido à sua vida, em vez de terem percorrido anos e anos inúteis, acreditando que poderiam ser jovens para sempre só pelo fato de andarem com a aba do boné virada pra trás.



28 de outubro de 2012 | N° 17236
QUASE PERFEITO | Fabrício Carpinejar

A guilhotina é o ioiô da tragédia

“Boa tarde! Há 4 meses me envolvi sexualmente com um homem comprometido, desde então tem sido um relacionamento ioiô, sempre peço um tempo pra ele quando vejo que meus sentimentos estão me dominando. Não me abro com ninguém a respeito disso. Agravantes: é meu chefe, 30 anos mais velho, meu primeiro envolvimento sexual foi com ele, trabalho com sua namorada. Grande abraço. Yasmin”

Querida Yasmin,

Quem dera fosse uma relação ioiô, seria um elogio, é um caso guilhotina, feita para sua cabeça rolar. Juntou todas as adversidades numa só pessoa, todas as proibições num único tirano.

Mistura a cena profissional com a amorosa, cria situações de chantagem (da parte dele, de sua parte), não se abre porque não tem ninguém como expor os personagens da novela, ainda convive com a namorada dele e vê o romance dos dois se desenrolar na sua frente.

Sua trama produz ciúme, inveja, prepotência e humilhação, o lado pantanoso do amor. Não há sentimentos nobres, destinados à escolha e à independência.

Como vai crescer numa relação dessas?

O inferno nem mais a cumprimenta: procurou alguém que pudesse ser seu pai (trinta anos mais velho), seu chefe, seu professor, anulando por completo seu discernimento crítico. É uma filha, uma escrava, uma aluna da tortura.

São tantos complexos que somente comprando um divã parcelado em suaves prestações.

Sofre um excesso de dependência que leva à paralisia. Você pede um tempo para não pressionar de propósito. Estabelece um falso limite, pois prevê o mais drástico dos desfechos.

O que deve ocorrer é perder o emprego, acabar sozinha e reduzir a pó seu grupo de amigos, já que seus colegas suspeitam de suas vantagens e benefícios pela proximidade com o patrão. Ainda que não fale nada do que vem ocorrendo, é o centro da mais famosa fofoca no expediente. Ao ganhar uma promoção, mesmo que mereça, será alvo de piadas e do descrédito. Nunca saberá se a namorada do amante descobriu o triângulo amoroso e puxa conversa por hipocrisia ou amizade.

O carimbo de sua carteira profissional é uma lágrima azul. Sua alegria é ser infeliz. Seu projeto de vida é acumular culpa. Nem percebeu que não deseja o melhor para sua vida, mas o pior.

Optou por ser leal a um ditador, apagar sua personalidade, frustrar planos de ascensão na carreira e no plano emocional.

Quem você deseja superar com tamanha tristeza? Sua mãe?


28 de outubro de 2012 | N° 17236
ARTIGOS - Diana Lichtenstein Corso *

Maduros, não caindo

Manchetes aleatórias de jornal: “Idoso(a) é atacado por ladrões”, ou “Idoso morre num acidente”, “Idoso é suspeito de assassinato”. Para minha surpresa, lendo a matéria descubro que o idoso em questão tem ao redor de 60 anos! Não estou pronta para me considerar uma idosa em 10 anos.

Para um jovem repórter de 20 anos, tudo depois dos 50 é a antecâmara do fim, então tanto faz. Não o recrimino, todos ficamos confusos para entender o que é mesmo um velho. Há o preconceito social, velhice é aquilo cujo nome não se deve mencionar, como se invocasse um mal.

Mas também a confusão é propiciada porque a fase considerada “terceira idade” (quais são mesmo as duas primeiras, não há muito mais?) tornou-se muito longa e as pessoas amadurecem e fenecem de formas díspares.

É similar ao que ocorre na infância. Existem crianças de todos os tamanhos e diferentes graus de amadurecimento respondendo pela mesma idade. O crescimento passa por épocas de aceleração, outras de estagnação. Uns funcionam aos trancos, por arranques, outros numa linha contínua, há ainda os que desabrocham do dia para a noite.

A juventude e a idade adulta são as épocas mais uniformes da vida em termos de imagem corporal. Desde que se “bota corpo” até que os “enta” começam a se empilhar, somos muito parecidos. É difícil saber se alguém tem 20 ou 30 e tantos. Depois disso, ficamos desiguais como as crianças.

Existem sexagenários, septuagenários e octogenários de todos os matizes. Tirando um que outro achaque e alguns médicos a mais na rotina, há hoje nessa fase muita gente produtiva, independente, bonita. De mesma idade, há os que cedo se acovardam, se isolam, comem e dormem frente à televisão, vivem para a doença e esperam a morte.

Em respeito a esses cidadãos vividos e vivazes, e a nós mesmos, talvez devêssemos criar uma nomenclatura mais complexa para a dita terceira idade. Gostaria do direito às etapas. Começaria, aos 60, por “adultos tardios” (assim como existem os “jovens adultos”, em inglês usam “older adults”). “Maduros” também é bacana, dá ideia de finalmente estar no ponto.

Depois, talvez “septuagenários”, ou “idosos principiantes”? Aos 80, finalmente aceitaria ser considerada idosa, para que as limitações do meu corpo fossem respeitadas com direito à acessibilidade e uma rotina mais pausada. Os argentinos têm palavras simpáticas: “maduros” para os que recém começam a sentir o pior da idade, “gente grande” para os que já chegaram lá. Aceito sugestões.

A infância, cuja valorização social tem poucas centenas de anos, já possui uma série de palavras para descrever seus processos. O mundo nunca esteve tão velho, mas a maturidade ainda não recebeu a mesma consideração. Viver mirando-se numa patética juventude eterna nos impede de usufruir da experiência. Nomear, classificar, estudar, servem para aceitar e, quem sabe, usufruir da sabedoria daqueles que talvez tenham aprendido algo com a vida.

dianamcorso@gmail.com

*PSICANALISTA


28 de outubro de 2012 | N° 17236
PAULO SANT’ANA

Sadismo exagerado

Zero Hora publicou na última semana uma notícia muito estranha: um médico, aqui em Porto Alegre, prendia em casa sua namorada, uma enfermeira, e a torturava com agulhas, cortador de unhas e relho.

A enfermeira – sempre é bom recordar que era namorada do médico – apresentava marcas visíveis das agressões no rosto, no resto do corpo e, ao queixar-se à polícia, mostrava-se inteiramente lesionada e praticamente incapacitada de andar.

Sei de casos e a literatura registra a existência de sadismo e masoquismo em jogos sexuais. Não quero crer que tenha acontecido isso nesse episódio, embora ele deixe margem a essa suspeita.

Tudo isso está no meu imaginário, que se baseia no relato da notícia.

Ainda mais: o médico, depois de causar danos físicos à namorada pela tortura, a curava das lesões para que pudesse prosseguir com os maus-tratos.

Isso chega a ser fantástico: causava as lesões e depois as medicava. Que história intrigantemente contada.

Trinta anos atrás, criei uma frase aqui na minha coluna, depois muito usada nos meios de comunicação: “A maldade humana não tem limites”.

Um médico usar de relho, agulhas e cortador de unhas para torturar durante meses a sua namorada, uma enfermeira. Gostaria de conhecer melhor os detalhes dessa relação.

Há casos frequentes de sadomasoquismo em que é empregado o relho como instrumento de maus-tratos. No caso em tela, há o relho.

Diz a notícia que o médico namorava há tempos a enfermeira mas nunca tinha adotado o cárcere privado, só ultimamente.

Ou seja, maltratava-a ou torturava-a, mas não tolhia a sua liberdade. Quando passou a tolhê-la, a enfermeira foi queixar-se à polícia.

Não quero crer que ela aceitava a tortura, só não concordou com a privação da liberdade. Muito estranho tudo isso, que notícia intrigante.

Eu não teria dúvida de que o sexo está por trás disso.

Mas o médico acabou preso preventivamente e foi recolhido ao Presídio Central.

No sexo, um tapinha, um puxão nos cabelos, uma mordidinha, tudo isso são primícias que algumas pessoas consideram normais e quem sabe aceitáveis entre os parceiros.

Só que, quando essa prática descamba para a sanha doentia, corre o risco de transformar-se em tortura física.

De qualquer forma, é lamentável que um médico esteja debaixo dessa acusação. O eixo vocacional e ideal da profissão de médico é a salvação, a cura, a proteção física das pessoas. Nesse caso, contraditoriamente, o médico partiu para a tortura da namorada enfermeira.

Nunca vi dois profissionais tão deslocadas na vida como nesse episódio triste: um médico e uma enfermeira envolvidos, como autor e vítima, num episódio que, se não for de perversidade sexual, é de maldade deplorável.


28 de outubro de 2012 | N° 17236
O CÓDIGO DAVID

O casamento dos séculos

Há 500 anos, um casamento mudou a SUA vida.

Direi por quê.

Esse casamento ocorreu num 28 de outubro como o deste domingo, por coincidência o dia em que, às margens da feérica Avenida Paulista, no peito pulsante das finanças do Brasil, realiza-se um não menos pulsante Festival de Noivas. Li sobre o Festival esta semana, e imagino as noivas em festa na Pauliceia. Porém, nenhuma das futuras esposas que alegres circularão por São Paulo neste domingo haverá de protagonizar cerimônia semelhante à do casamento a que me refiro: o de Catarina de Médicis com Henrique II, mais tarde consagrados rei e rainha da França.

Primeiro vamos falar da cerimônia. Naquele tempo, os padres não presidiam casamentos, mas o de Catarina teve a presença de ninguém menos do que o chefe de todos os padres, o papa, que era seu tio. A festa durou dois dias. No segundo, uma bela cortesã de Marselha resolveu temperar o vinho dos convidados mergulhando seus seios nas taças cheias. As outras mulheres presentes gostaram da ideia e imitaram a marselhesa. Em alguns minutos, a festa virou orgia e como orgia seguiu madrugada afora.

A essa altura, no entanto, os noivos já haviam sido conduzidos pelo pai de Henrique, o rei, para o quarto nupcial. O próprio rei os orientou como proceder.

E eles procederam.

No dia seguinte, o papa visitou o quarto para conferir se haviam procedido. De fato, consummatun est. Ansioso para que a sobrinha engravidasse, ele permaneceu em Paris mais alguns dias, mas... nada. Muito prático, o santo padre sugeriu que ela experimentasse a fertilidade de outros homens, só que Catarina já estava apaixonada por Henrique e manteve-se fiel a ele, como continuaria por toda a vida. Mesmo um casamento por encomenda pode gerar amor verdadeiro.

A grande invenção de Catarina

A cerimônia pôde ser considerada no mínimo alegre, já sabemos, mas, afinal, por que aquele casamento foi tão importante? Arrá! Porque, transformada em rainha, Catarina transformou os franceses, que transformaram o mundo.

Catarina não era francesa; era florentina. Na época, Florença era a cidade mais sofisticada do mundo. Os franceses, em comparação com os florentinos, não passavam de grosseirões. Foi Catarina quem os ensinou modos à mesa. Hoje, você come com garfo por causa dela. Catarina, aliás, gostava bastante de comida. Depois dos 40 anos, engordou a tal ponto que, um dia, uma égua não suportou seu peso, desabou com ela sobre o lombo e faleceu.

E aí está outro gosto de Catarina: cavalgar. O problema é que, na época, as mulheres não usavam nada sob os amplos vestidos. Assim, quando elas iam montar, os homens em volta se divertiam com a paisagem de suas intimidades. Catarina, engenhosa, inventou algo para solucionar a questão: a calcinha, um pequeno pedaço de tecido para a região pudenda, mas um grande passo para a Humanidade.

Catarina também instituiu o 1º de janeiro como primeiro dia do ano civil entre os franceses – antes dela, a Páscoa era comemorada nessa data. Um de seus filhos foi o disseminador do emocionante jogo de bilboquê. E a outra inspirou um bom romance de Dumas, que inspirou um bom filme com a ótima Isabelle Adjani: a Rainha Margot.

Não são motivos suficientes para comemorar a data do casamento de Catarina?

A gangorra

Um importante juiz de direito amigo meu disse outro dia uma frase que me ficou latejando no cérebro:

– Liberdade e segurança estão numa gangorra: quanto mais se tem uma, menos se tem a outra.

Perfeito. Uma sociedade madura, sabedora desta verdade, tem de buscar o equilíbrio, tem de compreender o momento em que uma tábua da gangorra deve estar mais alta e a outra mais baixa, e as razões disso.

O indivíduo também precisa ter essa consciência. Na infância, a criança bem cuidada passa os dias obedecendo ordens dos adultos. Ela não tem liberdade, mas está protegida – tem segurança. Na adolescência, ela se rebela, ela cai no mundo, ela busca liberdade – e corre riscos, e tem menos segurança. O adulto, à medida que o tempo passa, vai lidando com essa gangorra. Ou, pelo menos, deveria saber lidar com ela.

Em seu livro de viagens, a Martha Medeiros diz: “A liberdade é uma ilusão, eu sei. Ninguém é inteiramente livre, a não ser que não possua vínculos”. Exatamente: vínculos são laços afetivos, e laços prendem.

O casamento tem essa função, de ser um laço, de unir. Donde, seu símbolo é uma aliança, que nada mais é do que um elo. Uma pessoa casada é menos livre, mas é mais segura. Você é que decide em que lado da gangorra vai sentar.

O QUE LER - Um lugar na janela

Li o novo livro da Martha Medeiros, Um lugar na janela – relatos de viagem, e depois fui conversar com ela. Então, a Martha, modesta como é, disse, com intenção de se menoscabar, que o texto do livro às vezes parece-lhe ter sido escrito por uma menina de 13 anos de idade. Dei um tapa na testa. Mas é isso mesmo!

O livro é tão genuíno, tão puro, que dá a impressão de ser obra de uma menina. E é justamente por isso que “Um lugar na janela” é encantador. Esta é, precisamente, a palavra: encantador.

Trata-se de um livro sem dissimulações, como todas as pessoas deveriam ser. Martha não esconde o seu deslumbramento com os lugares que visita e, assim, deslumbra o leitor. Mais do que isso: faz com que o leitor se sinta jovem, talvez com 13 anos. Uma bela idade para se ter.


28 de outubro de 2012 | N° 17236
VERISSIMO

O princípio da incerteza

O professor tinha uma tática para lidar com a Sandrinha e não explodir

O professor virou-se e viu que a Sandrinha não estava escrevendo. Todos na aula copiavam o que o professor tinha escrito no quadro-negro, menos a Sandrinha. A Sandrinha estava dobrando e alisando um pedaço de papel.

– Dona Sandra, o que a senhora está fazendo? – perguntou o professor.

– Um aviãozinho, professor.

– Dona Sandra, eu pedi para copiarem o que eu estou escrevendo no quadro-negro sobre a teoria da incerteza de Heisenberg.

– Eu sei, professor. Mas eu estou preparando uma experiência prática sobre o mesmo assunto.

– Nossa aula hoje é sobre física quântica, dona Sandra.

– A minha experiência também.

O professor tinha desenvolvido uma tática para lidar com a Sandrinha. Para não explodir, contava até três. Desta vez contou até seis. Depois perguntou:

– E que a sua experiência tem a ver com o princípio da incerteza de Heisenberg, dona Sandra?

– Quando o aviãozinho ficar pronto, vou atirar para o alto, sem saber onde ele vai cair. Se bater em alguém, ou cair próximo de alguém, é a pessoa que eu vou namorar neste trimestre.

Por um momento, o único ruído ouvido na sala foi o do riso abafado. Desta vez, pensaram todos, a Sandrinha conseguiria. O professor perderia o controle. Atiraria a Sandrinha pela janela. Ou ele se atiraria pela janela. De qualquer maneira, haveria uma explosão. Mas o professor manteve o controle, depois de contar até dez.

– E se cair perto de uma pessoa do sexo feminino, dona Sandra?

– Não tenho preconceito, professor.

– Só não entendi o que seu aviãozinho tem a ver com a teoria de Heisenberg.

– A incerteza. Ninguém sabe onde ele vai cair.

– Não, dona Sandra. É muito mais complexo do que isso. É...

– A teoria não diz que a ação humana interfere na observação das partículas subatômicas? Que por isso a medição dos seus movimentos é sempre incerta?

Pois eu posso direcionar meu aviãozinho para um lado que me interessa. Ele vai dar voltas no ar, mas sua trajetória não será inteiramente aleatória. Minha vontade vai influir no seu destino. Pronto. Uma aula prática, professor.

O professor fechou os olhos. Um, dois, três, quatro...

– Faça o que quiser, dona Sandra. Vou continuar dando a minha aula. Voltou para o quadro-negro e continuou a escrever. Dali a pouco, ouviu uma agitação às suas costas. O aviãozinho da Sandrinha tinha decolado. Virou-se a tempo de receber o aviãozinho no peito. E ouvir a voz da Sandrinha:

– O senhor é casado, professor?

Publicada em 3/1/2010

quarta-feira, 24 de outubro de 2012



24 de outubro de 2012 | N° 17232
MARTHA MEDEIROS

Para que serve uma crônica?

Como trabalho em casa, não costumo trocar ideias com meus colegas de jornal a respeito da nossa atividade, mas desconfio de que nossos pensamentos sejam parecidos. Talvez eles também se perguntem “por que logo eu tenho um espaço para escrever o que me dá na telha, enquanto tantas outras pessoas que escrevem bem e teriam algo a dizer se expressam apenas nas redes sociais e olhe lá?”. Por reconhecer que é um privilégio ter conquistado esta coluna, busco dar-lhe alguma utilidade pública de vez em quando. Mas adianta?

Respondendo à pergunta do título: para que serve uma crônica? Serve para estimular o gosto pela leitura, já que é um texto rápido e cotidiano, que atrai os que têm pouco ânimo para ensaios mais complexos. Serve para conhecer pontos de vista diferentes e assim sentir-se convocado a refletir sobre o assunto proposto. Serve para divertir, já que muitos cronistas aproveitam sua liberdade autoral para olhar o mundo com alguma graça.

Serve para estabelecer um contato mais estreito com os leitores, que acabam vendo o cronista não como um jornalista distante, mas como um amigo de bar, tal o coloquialismo do gênero. Serve para emocionar, dependendo do tema e do tom. Mas não serve para mudar o que está errado. Essa é a pretensiosa utilidade pública que eu, vez que outra, gostaria de alcançar.

Sobre o que escrever nesta quarta-feira? Cogitei questionar o número incrível de mortes no trânsito que são contabilizadas a cada final de semana, quase todas por imprudência dos motoristas, que seguem bebendo e correndo, a despeito de todas as crônicas, matérias na imprensa e campanhas de esclarecimento que buscam despertar consciências.

Cogitei escrever sobre a absurda violência urbana, que faz com que um homem roube carros na companhia dos filhos pequenos, que uma garota de 15 anos seja assassinada na saída de uma festa ou que delinquentes sejam presos e soltos no mesmo dia, como bem relatou ontem em ZH a médica que foi atacada perto da Redenção, mas crônica alguma consegue fazer com que as autoridades coloquem mais policiais nas ruas, essa medida tão vergonhosamente adiada.

Cogitei chamar a atenção sobre a negligência do nosso sistema de saúde, que possibilita que doentes recebam injeções de sopa, injeções de café com leite, um escândalo que deixa o país de calças arriadas, nossa incompetência é indecente e risível. Mas uma simples crônica muda alguma coisa?

De vez em quando, um leitor confidencia que minhas palavras o ajudaram a destravar um sentimento, outra me escreve dizendo que consegui estimular seu filho a ler um livro pela primeira vez, alguém me conta que finalmente agendou uma mamografia depois de ler o que escrevi, e me gratifico: crônicas não precisam servir para nada, mas às vezes servem, individualmente. Só resta seguir confiando em que fazer diferença para uns possa significar a diferença para muitos.

sábado, 20 de outubro de 2012




21 de outubro de 2012 | N° 17229 
MARTHA MEDEIROS

Quando termina a novela

Pegar a estrada é o primeiro pensamento de quem encerra uma etapa da vida

A atriz havia passado os últimos meses na pele de uma personagem atormentada, vulcânica, daquelas que não tem um dia de sossego. Era de se supor que ela estivesse dando o sangue pra interpretar uma mulher tão diferente dela mesma, ela que na vida real parecia ser bem tranquila.

Foi então, na festa de encerramento, quando o elenco se reuniu para assistir ao último capítulo juntos, que o repórter se aproximou da estrela e perguntou: Para onde você irá viajar quando terminar a novela?.

Ele não perguntou “se” ela iria viajar. Perguntou direto “para onde”, sem a menor dúvida de que essa era a única opção após tanto empenho – nem passou pela cabeça do jornalista que ela poderia emendar um personagem no outro. E de fato, ela não emendaria. Respondeu que pretendia passar um mês em alguma praia deslumbrante e secreta, sem especificar em que lugar exatamente.

Quando termina a novela, a primeira providência é preparar a mala e se mandar.

O mesmo se dá nas novelas particulares, fora da tela. O que não falta é dramalhão no nosso cotidiano. A pessoa se doa, se escabela, chafurda em lamentações, quase enlouquece, até que o desgaste se confirma (seja o de uma relação, de um drama familiar, de um projeto profissional) e chega-se ao último capítulo, pois sempre há um fim.

E entre o fim e um novo começo, há que se recuperar a energia, abandonar o “personagem” e marcar um encontro consigo próprio, de preferência bem longe do cenário onde foram vividas as agruras. Pegar a estrada é o primeiro pensamento de quem encerra uma etapa da vida.

Viajar tem essa função terapêutica – também. Pretende-se que seja um divisor de águas, um momento de desconexão com o passado e de preparo para um futuro que promete ser mais promissor. E como tudo que foi intenso exaure nossas forças, espera-se que uma viagem (para um local paradisíaco, de preferência), acelere o reestabelecimento.

Claro, pode ser também para um lugar lúgubre, abandonado, sem energia elétrica. Há quem não queira ver ninguém, não queira ser interrompido em sua introspecção, e se embrenha num lugarejo fora do mapa, na esquina de Deus nos Acuda com o Fim do Mundo.

Mas geralmente procura-se o belo e o alegre – desde que se conte com um bom pé-de-meia. Separou? Itália. Encerrou um tratamento quimioterápico com sucesso? Porto de Galinhas. Pediu demissão depois de 23 anos na mesma empresa? Um cruzeiro pelo Caribe. Passou no vestibular? Garopaba. É preciso comemorar. Terminou a novela.

Algumas pessoas carrancudas não sabem o que se ganha com uma viagem. Chamam de fuga, e uma fuga bem cara. Gasta-se uma nota preta para trazer de volta apenas fotografias. Qual o retorno de se comprar um bem imaterial? Não é melhor investir num carro, renovar o guarda-roupa, trocar de computador?

Quando acaba a novela, nem carro, nem guarda-roupa, nem iniciar outra novela na sequência. Hora de sair de cena para recuperar o fôlego até que a próxima inicie – porque sempre haverá outra.

terça-feira, 16 de outubro de 2012



16 de outubro de 2012 | N° 17224
FABRÍCIO CARPINEJAR

Meu sonho de casamento

Meu sonho é subir ao altar. E uma mulher alucinada gritar do fundo da igreja:

– Não, ele me pertence, eu ainda o amo.

Seria o máximo. O pianista buscaria despistar o pânico tocando Princesa Diana, de Elton John, haveria uma agitação febril no átrio, burburinho e gemidos frenéticos entre os convidados, o padre se manteria de boca aberta, a noiva iria me fuzilar:

– Quem é ela?

Explicaria baixinho no ouvido que é uma antiga namorada sem importância.

Todos os olhos estariam voltados para minha boca, eu roubaria a cena. Finalmente veriam que meu terno preto era Armani, que custou tão caro quanto o véu e a grinalda.

Para manter o suspense, não responderia no ato, giraria o rosto indeciso para o lado esquerdo e direito, como torcedor em partida de tênis. Até emitir a sentença:

– Eu amo minha noiva. Você é passado. Some daqui!

Depois do susto, garantiríamos nosso futuro. Nenhum incidente poderia nos separar de novo.

Ela completaria bodas de ouro comigo, jamais cogitaria a distância, permaneceria fiel vida adentro.

Nada como o pânico para renovar os votos de felicidade. Nada como um dilema para fortalecer decisões.

A reconciliação necessita acontecer antes mesmo da briga. É o medo de perder o par que reforça nossa entrega.

Orgulharia sua família e amigos ao descartar publicamente uma rival, ao mandá-la embora desprovido de piedade.

Aquilo seria a maior prova de amor. Muito melhor do que ser casto em festa de solteiro.

Receberia a confiança eterna de sua aliança, a cumplicidade delicada de sua fé.

Mostraria que sou o tipo ideal, sério e devotado: não estraguei a festa, não humilhei seu vestido, venci as tentações egoístas.

Deveria existir um serviço para contratar “loucos da igreja”. Senhoritas e senhores, disponíveis em books nas agências de publicidade, preparados para protestar no casório.

Contidos no princípio da cerimônia, romperiam o corredor com estardalhaço na hora em que o padre falasse: “Se alguém tem algo contra este casamento, que diga agora ou cale-se para sempre”.

Assim como as carpideiras, recrutadas para chorar em velórios, formariam uma nova categoria profissional, um time de lindos modelos provocando ciúme no noivo e na noiva e apimentando o relacionamento.

Seriam atores e atrizes dramáticos e desesperados realizando uma intervenção amorosa e criando intrigas existenciais.

Todo não pede um sim. Todo governo requer oposição.

Casamento de sucesso depende de torcida contrária.

sábado, 13 de outubro de 2012



14 de outubro de 2012 | N° 17222
MARTHA MEDEIROS

Em caso de incêndio

O alarme do prédio disparou às quatro da manhã. Não sou de entrar em pânico, mas era preciso ver o que estava acontecendo. Não estava acontecendo nada, como eu imaginava. Disparou de exaltado.

Mas e se fosse pra valer?

Não há quem não tenha se perguntado, um dia, o que salvaria em caso de incêndio. O fogo começa num determinado andar e se alastra, novos focos começam a se precipitar, os bombeiros são acionados, mas é prudente não aguardá-los sentada. Corra. O que você leva com você?

O site www.theburninghouse.com propõe esse exercício a fim de revelar se somos práticos, sentimentais ou apegados a objetos de valor. As pessoas que participam do site listam seus itens indispensáveis e postam a foto desses “não-posso-viver-sem” que não deixariam para trás de jeito nenhum. É um convite para fazermos o mesmo.

A maioria dos que entraram na brincadeira tem entre 20 e 30 anos, e é curioso como são românticos. Entre os artigos mais citados estão fotos dos pais e caixas contendo cartas e bilhetes que remetem ao passado – mesmo nessa idade, eles já têm um.

Ainda entre os objetos que não deixariam queimar, estão os livros preferidos, relógios de pulso, o passaporte, máquinas fotográficas, óculos escuros, jogos de canetas, a camiseta de estimação e, naturalmente, notebooks, iPhones e demais eletrônicos portáteis.

Excetuando a aparelhagem tecnológica, os outros objetos me surpreenderam pelo espírito nostálgico. Relógio de pulso? Livros? Canetas? Máquinas fotográficas? Muitos deles não desgrudariam da sua rolleyflex comprada numa feira de antiguidades.

Quase não aparece algo caro ou prático: na iminência de perder objetos definidores de sua identidade, o vínculo com o passado demonstra ser imprescindível para que eles consigam ir em frente – a maioria desses jovens revelou-se tão sentimental quanto seus avós.

Para quem já está longe dos 20 anos, no entanto, creio que há outras prioridades. De minha parte, seres vivos estariam no topo da lista: todos salvos? Bom, havendo ainda tempo para reunir um kit de sobrevivência básico, eu trocaria os óculos escuros pelos óculos de grau, pegaria a chave do carro, identidade, o celular, cartões de crédito e um casaco, o primeiro que visse. Seria bem prática e deixaria para lamentar pelos meus perfumes depois.

Espelho, espelho meu, quão insensível serei eu?

Não citei as dezenas de álbuns de fotografia (sou um pterodátilo, ainda amplio fotos) porque não teria mãos suficientes para carregá-los, mas é a única coisa que me faria falta no quesito material. Livros, discos, joias, roupas, tudo isso se readquire com o tempo. Afora os álbuns, não consigo destacar um único objeto indispensável da casa: toda ela é o meu universo, é onde escrevo a história da minha vida, seria perda total.

Por isso, a presteza em salvar objetos práticos que me fossem indispensáveis não pelo apego ao passado, mas que me ajudassem a construir tudo de novo. Não tenho mais tempo para nostalgia. Minha juventude ainda está em acreditar no futuro.



13 de outubro de 2012 | N° 17221
NILSON SOUZA

Psssiu!

Entre as manias que tenho, uma é baixar o som da televisão nos intervalos comerciais. Tenho hipersensibilidade a ruídos e me sinto agredido com as propagandas que gritam – quase todas. Não entendo por que os autores dos reclames insistem no som alto. Minha tese é a mesma que explica a perda de equilíbrio emocional do debatedor durante uma discussão: grita-se quando faltam argumentos. Na propaganda, o barulho quase sempre é utilizado para encobrir a mediocridade.

E não estou sozinho nesta visão – ou seria audição? As reclamações do público foram tantas, que o Ministério das Comunicações decidiu regulamentar o som dos intervalos comerciais, por meio de uma portaria que estabelece aumento de, no máximo, dois decibéis na hora da mensagem publicitária. Não sei se já está valendo, pois as emissoras ganharam um longo prazo para executar a medida. Além disso, continuo pressionando aquele bendito botãozinho do silêncio nos intervalos dos meus programas favoritos. Bela invenção, o controle remoto.

Pena que não funcione para conter o barulho alheio, especialmente o som automotivo que alguns motoristas colocam em seus veículos. É outra coisa que me desconcerta: o que leva um sujeito a instalar um verdadeiro canhão de alto-falantes na traseira do seu automóvel e sair pela rua a perturbar o sossego alheio? Sei, eles não são os únicos.

O som alto é uma das principais causas de brigas entre vizinhos. Até igrejas têm sido alvo de reclamações e de denúncias por causa dos ruídos excessivos, especialmente aquelas que utilizam instrumentos musicais e cantorias para se fazerem ouvir pelas divindades. Os incomodados argumentam que Deus não é surdo, mas quem os ouve?

E isso ocorre em todo o mundo, tanto que a Organização Mundial da Saúde colocou a poluição sonora entre as três prioridades ecológicas para a próxima década. De acordo com especialistas, a audição é o único sentido humano permanentemente ligado. Mesmo durante o sono, continuamos ouvindo. Por isso, o barulho virou questão de saúde pública. A tecnologia só agravou o problema. Os fones de ouvido até evitam o compartilhamento indesejado, mas os jovens costumam manter o volume de seus aparelhos tão elevado, que acabam ficando com a audição danificada.

Posso parecer ranzinza nesta minha pregação por silêncio, mas a verdade é que os aparelhos de som, os carros tunados e os alto-falantes (ou alto-gritantes) conferiram poder demasiado aos indivíduos. Qualquer pessoa, seja apreciador de rock ou pagode, pode infernizar a vida do próximo, especialmente quando este próximo tem que se manter nas proximidades.