sábado, 28 de abril de 2018



28 DE ABRIL DE 2018

LYA LUFT

A luz da vida


Impressionante como somos vulneráveis às más notícias, aos horrores do mundo, que se derramam em nossa casa, em nossa vida, em nossa alma, o tempo inteiro. Quase esquecemos as coisas boas, belas e felizes, que também existem.

No meu tempo de Escola Normal, as freirinhas do colégio diziam que "o bem murmura, o mal grita". Ou que "na outra vida veremos o verdadeiro risco do bordado, aqui só vemos o lado avesso, cheio de fios cruzados e nós e imperfeições".

Certamente, alguma coisa dessas cândidas lições ficou e floresceu em mim, pois, apesar de tudo, do mundo lá fora e das rasteiras da vida, da sorte, da morte, acho que sou uma otimista. Acredito que a vida vale a pena. Acredito que o amor ilumina. Acredito que boas amizades são ótimas porque amizade não conhece ciúme, competição, cobrança, nem precisa de assiduidade para durar.

Enfim, acredito no bom e no bem, mesmo que eu também saiba, veja, sinta, observe que somos animais. Animais não muito bons: não passarinhos, borboletas, golfinhos, cachorrinhos amorosos ou gatos indolentes, mas bichos predadores mesmo.

Assim nem preciso escrever, como comentei na coluna passada, sobre a animalização dos humanos. Está aí, exposta e escrachada, na violência, na maldade, na futilidade criminosa, na insanidade geral e na irresponsabilidade mortal. Também nas pequenas picuinhas e maldades cotidianas, com que às vezes, tantas vezes, tratamos os outros. Na irresponsabilidade com que muitos governantes manejam seu país e sua gente. Na indigência (Vicente gosta dessa palavra...) mental e moral de tantos líderes, até em setores antes sagrados. Tudo isso que nos deixa perplexos, embasbacados, impotentes, inseguros e desamparados.

De modo que, sim, nos falta encontrar, cultivar, manter e curtir aquelas coisas, às vezes simplíssimas, que são a luz da vida. Um olhar de afeto, um sorriso alegre, um gesto de entendimento, um WhatsApp dando coragem, ou uma visita que nos anime, seja o que for, nos ilumina se nos abrirmos para isso tudo, que parece pouco, mas é tudo. Borboletas azuis no jardim do bosque na Serra, o tucano pousado bem baixinho, os bugios com filhote nas costas saltando nas árvores, as paineiras diante da janela aqui em Porto Alegre e, nestes dias, a minúscula cachorrinha, nossa nova bebê, que ia se chamar Pandora, mas rebatizei de Penélope: melhor de pronunciar, e sou fã da Penelope Garcia do Criminal Minds. (Ou vocês achavam que só assisto a filme cult e só leio Goethe?) 

Ainda tem quem se espante de me encontrar em lugares normais como caixa de supermercado: "Nunca imaginei ver a senhora num supermercado!". "Ué", respondo pela centésima vez, "minha família também come...".

Fim para as ilusões, que venha a real luz da vida, rara e essencial.

LYA LUFT


28 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Que coisa é essa?


É a palavra mais poderosa da língua portuguesa: coisa. Cinco letras que, unidas, englobam significados variados e misteriosos. Dentro dela, a imensidão do intraduzível. Lembro a diretora Irene Brietzke, que dirigiu minha primeira peça, Trem-Bala, em Porto Alegre. É a elegância em pessoa, mas quem a conhecia há mais tempo me prevenia: alguns dias antes da estreia, ela terá a coisa, prepare-se. Minha imaginação orbitava. O que seria essa coisa que ela teria? Um ataque de estupidez, uma mudez insistente, um sumiço, uma alergia, um troço? Tudo isso. Eu é que quase tive uma coisa na véspera, mas no dia seguinte a peça estreou com sucesso.

Desde então, respeito a coisa que dá nos outros.

Quando alguém diz que não irá desistir de seu objetivo porque há muita coisa em jogo, meu suor escorre pela testa e faz um desvio até chegar atrás do pescoço e alcançar a lombar. Está na cara que esse alguém será capaz de roubar, matar, arrancar os dentes do inimigo que se interpuser entre ele e essa coisa desconhecida e tão valiosa. Imagino que a tal coisa seja sinônimo de reputação, dinheiro, poder, sexo, enfim, aquela coisa toda.

Quando eu ainda era bem pequena, caí na asneira de dar conversa para um vizinho mais velho que eu - ele devia ter uns nove anos. Pois fui proibida de falar com ele porque seu pai era Fulano, notório sujeito que não era grande coisa. Eu, com imenso esforço, raciocinei: se o pai do meu amiguinho, um Garibaldo com quase dois metros de altura e uma barriga gigantesca, não era grande coisa, a nossa família de gente magra e miúda seria o quê? Fui descobrindo que essa coisa de julgar os outros não era para principiantes.

Na minha santa ingenuidade, desejava que as relações fossem mais claras, objetivas, sem tantos pontos nebulosos, mas a coisa não era bem assim, diziam, e aí me sentia ainda mais perdida, porque às vezes achava que sabia das coisas e sabia era nada, como até hoje não sei. Se não é bem assim a coisa, posso imaginar que ela seja muito pior, mais aterrorizante - uma coisa de outro mundo. Que, aliás, é coisa que nunca entendi também - que outro mundo é este onde as coisas são tão diferentes?

Se alguém tivesse tido a paciência de me explicar o que eu não entendia naquela época, já seria alguma coisa, mas as pessoas estavam sempre muito ocupadas e achavam que certos assuntos não eram coisa pra criança, então cresci pensando por minha conta, e devo ter pensado coisas fabulosas, pois, quando me atrevia a revelar meus pensamentos, achavam que aquilo não podia ser coisa minha, e sim de alguém que estava colocando coisa na minha cabeça.

Que palavra teria potência semelhante e seria tão absoluta para definir o inqualificável? Não encontro outra. Fala-se por aí que a coisa está feia, mas eu a considero até bonitinha diante de tantas outras palavras que não servem pra nada. Ao menos a coisa funciona.

MARTHA MEDEIROS

28 DE ABRIL DE 2018

PIANGERS

Um texto irresponsável


Esta é uma história real. O telefone tocou no escritório. Um garoto quer falar com você, me disse um colega. Transfere. Alô. ? Alô. ?É o Marcos Piangers? Sim. Não acredito que estou falando com o Marcos Piangers. Está. Meu Deus, não acredito! Como é fácil falar com o Marcos Piangers. Ok, cara. Era isso? Não! ?Eu quero saber uma coisa: eu trabalho em algo que eu odeio. Eu odeio meu emprego. Meu sonho é trabalhar com produção de vídeos. Você acha que eu devo pedir demissão?

Abre parênteses. Acho que naquele dia eu devia estar muito inconsequente. Fecha parênteses. Você odeia seu emprego? Sim. Você quer fazer outra coisa? Sim. Você é novo e tem família pra te ajudar? Sim, moro com meus pais. Então, acho que você deve pedir demissão hoje mesmo e ir atrás do seu sonho. Sério? Sério. Ok? Ok. Obrigado. De nada. Tchau. Tchau.

Oito meses depois. Recebo um e-mail do garoto que me ligou. Dizia, em outras palavras, o seguinte: "Piangers, depois daquela ligação cheguei no meu emprego e realmente pedi demissão. Fui o herói de mim mesmo. Saí de forma gloriosa por aquela porta, para qualquer coisa que a vida me reservaria. Durante meses, entreguei meu currículo em agências e produtoras de vídeo. 

Nenhuma me respondeu. Por um tempo, ia a entrevistas de emprego apenas para comer a bolacha e tomar o café que oferecem nesses lugares. Comecei a ficar meio desesperado. Até que um dia uma produtora me ligou. Comecei a trabalhar com o que eu amo, aprendi técnicas, com meu primeiro salário fiz um curso online. Em algum tempo, estava pegando trabalhos mais legais, ganhando mais dinheiro. Hoje, trabalho com o que eu amo. Estou muito feliz. Obrigado por ter atendido aquela ligação".

Quando li o e-mail, fiquei boquiaberto. Como eu tinha tido a irresponsabilidade de dizer pra um jovem ir atrás do seu sonho? Ele deveria ter batalhado por 65 anos em um trabalho que odeia, como todo mundo faz.

Lembrei dessa história quando perguntei pra um amigo como ele conseguiu o emprego dos sonhos: viajar o mundo fazendo imagens de surf. Ele disse que, anos atrás, estava trabalhando em um escritório, matando tempo, olhando vídeos no computador. Até que viu um vídeo de um surfista. Um vídeo de 45 segundos, mostrando as praias pelas quais aquele surfista tinha passado no último mês. Ele viu aquele vídeo de 45 segundos, se levantou, pediu demissão e foi embora. Não sei se pra cada vitorioso desses temos mil fracassados. Só sei que, sempre que um telefone tocar e alguém disser que odeia seu emprego, eu vou recomendar o enfrentamento deste medo. Esse frio na barriga. Você saindo pela porta da empresa. Vamos ver o que a vida lhe reserva.

PIANGERS

28 DE ABRIL DE 2018
DRAUZIO VARELLA

MAIS MÉDICOS


A saúde no Brasil padece de dois grandes males: falta de dinheiro e gerenciamento incompetente. Impossível levar a sério qualquer projeto que não enfrente, ao mesmo tempo, esses dois desafios. Investir apenas na organização é tão insuficiente quanto alocar mais recursos para um sistema perdulário, contaminado pela corrupção e por interesses políticos da pior espécie.

Há anos gravo programas de educação em saúde pelo interior do Brasil e na periferia das cidades maiores. Nessas andanças, aprendi que o Programa Saúde da Família (PSF) foi um grande avanço para o atendimento dos mais necessitados.

Por meio do PSF, iniciado em 1994, equipes formadas por médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários acompanham até 4 mil pessoas distribuídas em áreas geográficas delimitadas. Seus objetivos são a "promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e manutenção da saúde da comunidade".

Mais de 30 mil equipes, que contam com pelo menos 250 mil agentes comunitários, estão espalhadas pelo país. Aos olhos do visitante, é notável a diferença das condições de saúde das populações que contam com elas. Estudo conjunto das Universidades de São Paulo e de Nova York mostrou que para cada 10% de aumento da população assistida, a mortalidade infantil cai 4,6%.

Pois bem, esse programa de sucesso precisa de médicos nem sempre fáceis de atrair, mesmo com salários mais altos. Precisa também de enfermeiras, dentistas e de técnicos qualificados, mas vamos nos deter na parte médica.

Médicos forçados a passar dois anos nessas equipes antes de receber a autorização definitiva para clinicar podem dar impulso considerável em busca da universalização do programa. Se a Constituição permitir que o Estado obrigue alguém a trabalhar em local que não deseja, acho que os recém-formados poderão se beneficiar da experiência: aprenderão a exercer uma medicina que não é ensinada nas faculdades, conhecerão melhor as grandezas do país e a realidade perversa que condena à miséria, que governantes ufanistas insistem em proclamar extinta.

Essa medicina de pés descalços, no entanto, é incapaz de resolver problemas mais complexos. Estes dependem de profissionais motivados, com carreiras no serviço público bem estruturadas, unidades de saúde aparelhadas, hospitais equipados e administrados sem corrupção ou ingerências políticas.

Na Constituição de 1988, declaramos que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes teve a ousadia de fixar meta tão pretensiosa. Infelizmente, os constituintes levantaram da mesa sem indagar quem pagaria a conta.

Passados 30 anos, constatamos que 56% do investimento em saúde vem da iniciativa privada, para cobrir os gastos dos 48 milhões de brasileiros com mais recursos. Aos 150 milhões que dependem do governo, cabe menos da metade do bolo.

Como consequência, esses 48 milhões de usuários dos planos de saúde têm à disposição quatro vezes mais médicos do que os 150 milhões atendidos pelo SUS. Tal distorção acontece por uma razão óbvia: o médico procura estar no mercado que oferece salários mais altos e melhores condições de trabalho. Num sistema capitalista como o nosso, não são essas as expectativas de advogados, engenheiros, lixeiros, metalúrgicos e agricultores?

Apregoar como um grande salto na qualidade do atendimento à população a medida de obrigar recém-formados a prestar serviços em localidades desprovidas da infraestrutura mais elementar é simplificação demagógica. Sem equipes treinadas, laboratórios de análises, imagens, centros cirúrgicos, acesso a medicamentos e a hospitais de referência para encaminhar os casos mais graves, não se faz assistência médica digna desse nome.

Os especialistas calculam que no Brasil faltem 70 mil leitos hospitalares. Estamos vergonhosamente despreparados para atender à demanda das enfermidades responsáveis pela maioria dos óbitos: ataques cardíacos, câncer, diabetes, obesidade, derrames cerebrais, acidentes de trânsito, tabagismo, doenças pulmonares.

Atribuir a responsabilidade pelo descaso com o SUS à simples falta de médicos é jogar areia nos olhos do povo descontente.

drauziovarella.com.br -- DRAUZIO VARELLA

28 DE ABRIL DE 2018
PAULO GLEICH

ADEUS A UMA MESTRA


Escrevo horas após ir ao velório de uma pessoa especial, daquelas que são difíceis de qualificar. Não era uma amiga, embora um laço de amizade também nos unisse. Não era uma professora, embora eu tenha aprendido muito sobre meu ofício no convívio com ela. Não era também apenas uma colega, embora compartilhássemos da mesma profissão. Merece um título que outorgamos a poucas pessoas: era uma mestra, certeza que tive no momento de dizer adeus.

Mestres são pessoas especiais em muitos sentidos. São figuras que carregam em si uma força singular, que têm a capacidade de despertar em nós mesmos uma força às vezes adormecida. São pessoas a cuja presença não somos indiferentes, mesmo que o afeto que nos despertam oscile, por vezes, entre a admiração e o rechaço. Isso talvez porque essa mesma força que ajuda a nos por em movimento às vezes também nos inibe e atropela.

O desenvolvimento humano é impossível sem mestres. Os primeiros são nossos pais, por quem desenvolvemos essa admiração temerosa, por mera necessidade de sobrevivência. Nos sentimos pequenos diante deles, lhes atribuímos capacidades sobre-humanas, mas é graças a eles que crescemos. Aos poucos, atribuímos a outros essa função: professores que marcam a trajetória escolar, uma tia com quem desenvolvemos uma relação especial, um amigo por quem nutrimos admiração.

Em algum momento, chega a inevitável decepção: os mestres, apesar das qualidades que carregam, revelam sua falibilidade. Seja um defeito, seja uma falha, subitamente algo rompe a imagem de onipotência que até então lhes outorgávamos. A adolescência é o momento paradigmático dessa queda: saltam aos olhos os defeitos (ou seja, a humanidade) dos pais, as falhas passam a ser tudo o que neles vemos - e fazemos questão de expor. Não à toa, é na adolescência que se buscam novos mestres, pois os antigos caíram desse lugar.

Tem quem jamais atravesse esse momento e siga cultuando para sempre a imagem forjada na infância, ao preço de jamais poder se confrontar com a dimensão humana dos pais - e, por tabela, com a sua própria. Vivem presos a exigências de perfeição, e tudo que fica aquém disso é fracasso. Ao não poder humanizar os mestres, sofrem com sua própria pequenez diante de ideais inalcançáveis. O mestre passa a ser um tirano, mesmo que seja um tirano interno.

Mas há também quem fique capturado no momento adolescente da queda do mestre, não superando sua imperfeição. Atentos às mínimas falhas, seguem gritando aos quatro ventos como são mestres fajutos, por não encarnarem todas as qualidades que lhes são atribuídas. Cria-se um ciclo permanente de busca de um novo mestre, que cedo ou tarde decepcionará, levando à procura de outro. O foco nas falhas acaba deixando cego às qualidades e potencialidades - as do mestre, mas também às próprias.

É somente num terceiro movimento, após a adoração e a decepção, que é possível estabelecer uma relação mais saudável - e proveitosa - com os mestres: é quando sua imperfeição não mais invalida as qualidades que têm a transmitir. Reconhece-se que sua força criativa também pode ser destrutiva, que seu destemor também oculta, como em todos nós, temores. Por isso, todo bom encontro com um mestre pressupõe um adeus: à idealização que, em um primeiro momento, fizemos dele.

À mestra Martha Brizio, gratidão por compartilhar com tantos de nós sua grande força - e sua humanidade.

PAULO GLEICH



28 DE ABRIL DE 2018
J.J. CAMARGO

NOSSA CATEDRAL DE CADA DIA

Toda empresa que hierarquiza funcionários, depreciando aqueles cuja função exige menor qualificação intelectual e menor tempo de treinamento, está ignorando um princípio básico em gestão de pessoas: não existem tarefas secundárias. Talvez merecessem essa denominação aquelas desempenhadas por pessoas azedas, que nem se dão conta do quanto é perceptível a quem se acerca a proximidade de um infeliz com o que faz.

Em uma empresa que se relacione com o público, essas criaturas amargas precisam ser escondidas, e sempre penso no almoxarifado como o depósito adequado do mau humor, e nunca a recepção ou a telefonia, como tantas vezes acontece. Inúmeras histórias famosas reportam ganhos e perdas espetaculares em função do desempenho de funcionários que inconscientemente espantaram ou atraíram clientes importantes, simplesmente pelo jeito tosco ou carinhoso com que se expuseram.

O trabalho, qualquer trabalho, para quem odeia o que faz, funcionará sempre como uma forma de sofrimento, somente comparável com a penúria de quem adoece organicamente. Todo trabalho visto como odioso pelo trabalhador se revela como uma enfermidade corrosiva e degradante. Além disso, essa forma de doença funcional, por todos os seus ingredientes, verdadeiros ou subjetivos, é altamente contagiosa e se espalha entre os circundantes com uma virulência inimaginável.

À semelhança da doença orgânica, em que cada indivíduo diante da mesma condição patológica exibe sua maneira peculiar de sofrer, no trabalho isso se repete com graus distintos de entusiasmo, resiliência ou inconformidade diante de tarefas idênticas cumpridas por pessoas desiguais em ambição, sonhos, entusiasmo ou enfaro.

A Catedral de St. Paul, em Londres, erguida em homenagem a São Paulo, no século 17, foi projetada pelo arquiteto Christopher Wren que, segundo se conta, um dia, travestido de visitante comum, percorreu o canteiro de obras para ver como os operários trabalhavam e se impressionou com a diferença de atitude de três pedreiros: o primeiro não conseguia disfarçar o desconforto e frequentemente parava para secar o suor do rosto naquela tarde de verão; o segundo, em um esforço comedido, trabalhava em silêncio resignado; o terceiro exibia um entusiasmo incomum, assobiando ou cantarolando o tempo todo. 

Perguntado ao primeiro o que fazia, a resposta foi típica: "Sofrendo aqui com este trabalho miserável, neste calor horrível!". A resposta do segundo foi a expressão do seu comportamento submisso: "Ganhando o sustento da minha família, afinal, tenho mulher e três filhos para alimentar!". O terceiro interrompeu a cantoria para responder ao cumprimento do estranho e, quando perguntado o que fazia, colocou na resposta todo seu orgulho: "Eu estou construindo a Catedral de Londres, meu cavalheiro!".

Não importa se o teu instrumento de trabalho é uma pá, um carrinho de mão, um pincel, um bisturi ou um laptop. Tua vida só será plena se te emprestar a sensação de que estás construindo, a cada dia, a tua própria catedral.

Correção: na coluna da edição de 21 e 22 de abril, a frase "Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados" foi atribuída a Millôr. Na verdade, é do Barão de Itararé.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO



28 DE ABRIL DE 2018
DAVID COIMBRA

A razão da amargura

Em qualquer discussão, seja qual for o tema, chega o momento em que alguém usa o nazismo como argumento. Funciona. Em primeiro lugar, porque o nazismo é reconhecido no Ocidente como o mal absoluto. Em segundo, porque faz parte de um contexto tão amplo, que pode ser associado ao que o argumentador bem entender. Dos neoliberais aos comunistas, passando por vegetarianos e abstêmios, todos correm o risco de, em algum momento, ter suas atitudes comparadas com o nazismo. Qualquer um, em qualquer causa, pode usar o nazismo como arma.

Já o irmão mais velho do nazismo, o fascismo, serve mais como espingarda das esquerdas. Esquerdistas adoram chamar direitistas de fascistas.

Só que as realidades se confundem nesse campo ideológico. Ontem, escrevi sobre Getúlio Vargas. A esquerda do século 21 admira Getúlio Vargas e se identifica com ele. Há uma tese de que a divisão da sociedade brasileira vem daquela época: Vargas seria a esquerda que protegia os pobres, e seus inimigos seriam os elitistas da direita que queriam explorar os pobres. Lula, inclusive, tenta emular Vargas. Em seu último discurso antes de ser preso, ele empregou várias imagens que o ligam ao Vargas da carta-testamento. Todas aquelas referências messiânicas, tipo "se meu coração parar de bater, baterá no coração de vocês" ou "não sou mais um homem, sou uma ideia", tudo isso tem o tom dramático de "saio da vida para entrar na história".

Acontece que, na verdade, Vargas foi talvez o maior perseguidor de esquerdistas da história brasileira. Colocou o PC na ilegalidade, prendeu, torturou e matou comunistas. Mais: ele simpatizava tanto com o nazismo, que vacilou até o último instante em apoiar os aliados na II Guerra.

Mas, de fato, havia algo que irmanava Vargas e Lula, Hitler e Mussolini, Stálin e Mao, Fidel e Chávez, Perón e o Marechal Tito: o populismo.

Agora chego ao ponto crucial para responder à pergunta que fiz dias atrás: por que perdemos muito da nossa doçura e da nossa alegria?

É que nós, brasileiros, historicamente nos entregamos à solução fácil do populismo, e o populismo precisa de inimigos para se justificar. Hitler, por exemplo, elegeu os judeus como inimigos internos (não disse que o nazismo sempre é usado como argumento?).

No Brasil, os populistas são pais protetores dos pobres. Para que existam e governem, eles têm de proteger os pobres de alguma ameaça. Logo, há que se apontar um agressor. Durante muito tempo, os agressores foram os políticos tradicionais. Lula e o PT eram o oposto de Maluf, Collor, Calheiros, Sarney, Delfim et caterva. Lula e o PT eram o novo.

Mas Lula e o PT perceberam que, se continuassem se opondo a esses políticos poderosos, jamais chegariam ao poder. Assim, Lula e o PT se amasiaram com eles e com eles partilharam benesses. Cada um levou a sua cota e ficou tudo certo.

Isso por cima.

Por baixo, o governo aquietou a choldra com mimos fáceis - bolsas, vagas na universidade, auxílios variados. Todo mundo parecia contente e a estrutura continuava a mesma.

Porém, a manutenção da estrutura torta pesava cada vez mais exatamente sobre quem a sustentava - o contribuinte. Ao mesmo tempo, os desvios do sistema passaram a ser descobertos. Isso enfraqueceu e expôs o governo. Exposto, o governo começou a ser atacado. Atacado, teve de se defender. Como? Com a estratégia de todo populista: alegando que ele, governo, protege os pobres e que seus inimigos são inimigos dos pobres.

Foi esse discurso, potencializado pelas redes sociais, que tornou o Brasil amargo. Mas o mais grave é que a reação de parte da população ao populismo de esquerda foi atirar-se nos braços do populismo de direita. Isto é: a amargura só aumenta.

Voltando ao exemplo onipresente do nazismo, é alvissareiro lembrar que a Alemanha, por fim, conseguiu livrar-se do populismo. Os governantes alemães das últimas décadas são sensatos, prudentes e saudavelmente monótonos. Mas, para chegar a esse nível, eles tiveram de passar por uma guerra. Resolve, mas não vale a pena. Espero que, no caso do Brasil, baste o combate virtual.

DAVID COIMBRA

quarta-feira, 25 de abril de 2018




25 DE ABRIL DE 2018
ARTIGO

O INVESTIMENTO AMOROSO


"O amor que damos é o único que preservamos." (E. Hubbard). Quando falamos de investimento e produtividade em termos concretos, fica fácil entender: dinheiro produzido colocando a serviço da sociedade nossa força de trabalho, tempo e comprometimento.

Investimos no que pensamos ser o mais importante, e cada um sabe de si. Cada atividade tem sua finalidade e sua remuneração, sendo que nossa sociedade não é exatamente exemplo de justiça.

Mas existe um investimento que é mais sofisticado e difícil de ser mensurado, embora imprescindível em uma sociedade digna, o amoroso. Se formos buscar significados para "amor", encontraremos: afeição viva; sentimento que faz com que uma pessoa queira estar com outra, protegendo, cuidando e conservando sua companhia; gosto vivo por alguma coisa; zelo e dedicação.

Para que se produza uma sociedade zelosa, amorosa, aquela na qual gostaríamos de viver, é necessário que se invista nela, nas crianças, nos bebês. E investir em bebês é, primeiro, investir em quem cuida deles, mas principalmente valorizar aquela pessoa que geralmente tem o maior e mais íntimo contato com o bebê, sua mãe.

Importantes psicanalistas propõem que é a mãe (ou a pessoa investida da função materna), quando suficientemente dedicada ao bebê, quem consegue fundar os alicerces de sua saúde mental. O afeto, o zelo, o cuidado, o amor, enfim, que ela consegue investir no filho é que vai fazer com que este bebê consiga constituir-se como uma pessoa psiquicamente saudável, inteira e também amorosa. Este cuidado funda no bebê um sentimento de inteireza psíquica, de ser alguém, ser único e especial. Autoestima e autoconfiança vêm com o tempo.

O estado de extrema vulnerabilidade do bebê desperta na mãe, por empatia, um modo de funcionar em que ela procura preservá-lo do mundo até que sinta que ele pode, pouco a pouco, dar conta da realidade. Dizemos que a mãe filtra e apresenta o mundo em pedacinhos que o bebê consegue aproveitar.

E o pai, parceiro cuidador, quando capaz de dar suporte à mãe, torna este ambiente mais favorável ainda.

Cuidado, este é o investimento sofisticado e imensurável que produz aquilo que uma sociedade precisa realmente produzir, a verdadeira riqueza: gente. O resto é consequência.

Psicóloga hpaulsenlarissa@gmail.com - LARISSA HILLESHEIM PAULSEN

25 DE ABRIL DE 2018
PEDRO GONZAGA

CNTP


E se a crônica literária pudesse ser como a crônica esportiva: analisar um livro como se analisa um jogo, cuidando menos do resultado e mais de cabulosas polêmicas. Semanas discutindo o impedimento não marcado naquele lance em que um personagem, depois de sonhos intranquilos, acordou metamorfoseado num inseto monstruoso. 

Ah, poder apelar para cabotinices como, narrador bom é aquele que não aparece, ou, se o Drummond tivesse me ouvido e apostado no Luís e não no José o placar seria outro, ou mesmo usar uma coluna inteira para debater a melhor escalação de uma obra já encerrada: o que seria de Bento Santiago caso Escobar não tivesse entrado em campo, ou de Macabea se um outro Olímpico, mais humano e paciente, saísse do reservado para salvar a partida.

Entendo. Peço muito. Mas é que já desfruto do devaneio de eleger a melhor seleção da literatura, escalada com os craques de todos os tempos. Eis meu time de detetives policiais: Dupin, Holmes, Spade, Marlowe, Poirot, Maigret, Mandrake, Miss Maple, Montalbano, Nero e Espinosa. Com divergências e considerações sobre os excluídos, quais ficariam no banco de reservas, por exemplo, eu teria material no mínimo até dezembro.

Mas admito. Futebol é paixão, e muito toleramos dos afetos, muito escrutinados em bares e assembleias de amigos. Fiquemos com coisas mais chãs. Então por que a crônica literária não pode ter ao menos as licenças poéticas da física e da química? 

Quem não se lembra daqueles velhos triângulos servindo de rampa para quadrados, a simbolizar um cubo descendo por um plano inclinado? Alguém já tentou fazer isso em casa? A porcaria do cubo trava, quando não rola, sem falar que um cubo em geral guarda diversas coisas, de todo perdidas ou espatifadas ao fim do movimento. Mas sim, claro, no problema transformado em questão no caderno há que desprezar a força do atrito. 

Mas desde quando se pode suprimir de um evento um item capital? Seria como tratar de Crime e Castigo sem os assassinatos de Raskolnikov, ou simplificar a Emma Bovary a ponto de até seu marido Charles ser capaz de compreendê-la. Agora acertemos que nada pode ser mais inverossímil do que a química e suas condições normais de temperatura e pressão. Quando houve isso em Porto Alegre? Combinemos o seguinte: enquanto não tivermos por aqui CNTP qualquer compromisso com uma crônica literária séria fica à espera de uma tarde de outono perfeita.

PEDRO GONZAGA

25 DE ABRIL DE 2018
DAVID COIMBRA

A força da noite estrelada


Lá estava eu, bem em frente a Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, pendurada em uma parede nobre do quinto andar do MoMA, de Nova York. Meu filho, entusiasmado com a pintura, fazia perguntas, e eu tentava respondê-las. Fui falando sem tirar os olhos do quadro, esforçando-me para me lembrar do que havia lido sobre Van Gogh. Mas não foi disso que mais falei. O que mais falei foi do que estava vendo naquele exato instante, e do que estava sentindo.

Olha, disse para ele, olha bem: esse quadro é uma janela. É a janela de um hospício do interior da França, onde Van Gogh se internou depois de ter cortado um pedaço da própria orelha. Imagina o sofrimento dele, para decidir se internar em um manicômio. O desespero para encontrar ajuda. Esse sofrimento todo ele despejou muitas vezes na tela branca. Muitos quadros de Van Gogh gritam de dor. Mas, neste caso, não. Neste caso, não houve dor, e sim deslumbramento.

Ele escreveu uma carta para o irmão Theo contando que, em uma madrugada de verão, acordou e ficou olhando pela janela do seu quarto no sanatório. Permaneceu ali durante muito tempo, até o amanhecer, e foi essa a noite estrelada.

Lembrei-me de uma madrugada do meu passado, quando tinha vinte e poucos anos e acordei sozinho, deitado em um colchonete que me servia de cama. A luz da lua entrava por uma grande janela francesa sem cortinas. Ao meu lado, no chão, havia um radinho de pilhas, e o liguei, e um pedaço de Paralelas, do Belchior, saiu limpo do aparelho e começou a flutuar pelo quarto. "Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão". A melodia suave e a poesia precisa de Belchior me tocaram, e senti a grandeza do mundo e a pressa da juventude, que só se move pela paixão. Foi algo que me estourou no peito, porque entendi que aquilo não se podia controlar.

Supus que era o que sentia Van Gogh naquela madrugada, em um quarto de hospício, vendo o dia amanhecer. A luz revolta das estrelas, a lua resplandecendo amarela, o céu azul redemoinhado, a paisagem inteira subalterna ao poder da natureza e da vida.

Olha, disse, e pensa que, há cento e trinta anos, num vilarejo desconhecido do interior da França, um homem estava olhando para essa cena pela janela de um hospício. Ele não tinha praticamente ninguém no mundo, ele não tinha sucesso, nem dinheiro, nem mesmo alegria. Ele se achava insignificante, mas era grande. Tanto que, agora, tanto tempo depois, nós estamos olhando para o que ele viu, e tentando entender o que ele sentiu. Não é a realização de uma vida?

Não sei se meu filho entendeu. Mas ele pediu uma reprodução do quadro de Van Gogh e, agora, na parede do seu quarto, abre-se uma pequena janela para um vilarejo da Provence do século 19, e para o coração de um homem que se sentia solitário e pequeno, como todos nós, muitas vezes, nos sentimos. E somos.

DAVID COIMBRA


25 DE ABRIL DE 2018
OPINIÃO DA RBS

REGULAÇÃO POLITIZADA


É dever do Congresso resgatar os objetivos iniciais das agências reguladoras, o que só tende a ocorrer mediante pressão da sociedade, devido aos fortes interesses políticos em jogo

Diante da demora do Congresso em aprovar projeto de lei criando regras objetivas para o comando das agências de regulação, a politização numa área que deveria atuar essencialmente de forma técnica tende a se acirrar ainda mais a partir de agora. Neste momento, há 11 vagas abertas sendo disputadas, numa estratégia que mobiliza representantes do governo federal e líderes de sua base partidária. Até o final da gestão Michel Temer, haverá ainda mais seis, conforme reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, o que contribui para distorcer ainda mais os objetivos desses mecanismos.

Criadas para substituir órgãos ministeriais com o avanço das privatizações, essas agências teriam o dever de zelar para que o mercado funcionasse adequadamente. Na prática, vêm tendo seus objetivos continuamente desvirtuados. O problema agravou-se nos governos petistas, que se manifestavam contrários a uma maior atuação do setor privado e ampliaram as indicações políticas em diferentes áreas de atuação do poder público.

A situação não difere muito da registrada nas estatais, que historicamente vinham sendo usadas para abrigar afilhados políticos, até essa deformação ser corrigida por lei específica. No caso das agências reguladoras, os dois únicos pressupostos para indicação são formação superior e conduta ilibada. Falta, no mínimo, a exigência de experiência na área, tão óbvia, que nem precisaria ser respaldada por lei.

É dever do Congresso resgatar os objetivos iniciais das agências reguladoras, o que só tende a ocorrer mediante pressão da sociedade, devido aos fortes interesses políticos em jogo. O comando desses mecanismos não pode ficar atrelado às pretensões de quem busca poder, que se reforçam ainda mais em anos eleitorais.

25 DE ABRIL DE 2018
ARTIGO

MUITO ALÉM DE UM PROBLEMA DE GESTÃO


"Saúde é direito de todos e dever do Estado." É o que diz a Constituição Federal brasileira de 1988 quando criou o Sistema Único de Saúde (SUS). A partir dessa data, começaram a ser construídos seus princípios norteadores: integralidade, equidade, acessibilidade, universalidade. Atualmente, 150 milhões de brasileiros dependem exclusivamente do SUS para o atendimento e, mesmo assim, há dúvidas sobre sua relevância para a sociedade.

Acontece que o SUS foi estruturado a partir de um modelo de gestão que evidenciava a falta de profissionalismo e um sucateamento, no sentido empírico de dizer, em relação aos gastos abusivos. Com o passar dos anos, houve uma evolução na padronização dos estudos de custo e efetividade na medicina, fazendo com que em três décadas de sistema ocorressem alguns desperdícios vulgarmente chamados de falta de gestão, porém, vai muito além disso, é um problema de cultura dentro das organizações. Hoje já existe um sistema de controle de custeio que mostra fielmente o que se gasta e qual é a margem que se deve ganhar em determinados procedimentos.

É inegável que o SUS deve ser reestruturado, mas jamais ser suprimido em um país como o nosso, em que quase 80% da população é dependente do programa. Porto Alegre ainda é beneficiada, indo contra a realidade do restante do Brasil, já que aqui 50% o utilizam. Precisamos rediscutir o SUS na perspectiva de gerar melhorias em financiamento, modernização, mão de obra qualificada e, sobretudo, ferramentas de gestão. É necessário ter profissionais multidisciplinares para desenvolver-se a cultura de controladoria e análise e, assim, o administrador terá conhecimento sobre o melhor custo-benefício em sua decisão.

Falta consciência sobre o que realmente é necessário em um hospital. O sistema de saúde é dividido entre atenção primária, secundária e terciária e refere-se a um conjunto de elementos hierarquizados que demanda por educação em saúde. Só sendo visto como um sistema com sintonia entre as partes, será possível ter eficiência no processo ou, do contrário, com a sua não manutenção, teremos um profundo retrocesso afrontando a população e tratando o cidadão como indigente.

CLAUDIA ABREU

sábado, 21 de abril de 2018


21 DE ABRIL DE 2018
ABRÃO SLAVUTZKY

AINDA ASSIM EU ME LEVANTO


Há poucos meses, conheci Maya Angelou e foi amor à primeira vista. Há um documentário na Netflix sobre a vida dela que vale a pena ver. E foi vendo esse filme que fiquei fascinado com o seu exemplo de vida. O seu poema mais famoso é Ainda Assim Eu me Levanto (Still I Rise), que começa assim: "Você pode me inscrever na História / com as mentiras amargas que contar / Você pode me arrastar no pó, mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar".

Maya Angelou (1928-2014) foi uma poeta americana, jornalista, cozinheira, condutora de bondes, cantora, bailarina, diretora de cinema, entre outras atividades. Ativista dos direitos humanos na defesa dos negros e das mulheres, viveu também na África, conviveu com Martin Luther King, conheceu Nelson Mandela. Foi escolhida pelo presidente americano Bill Clinton para ler um poema seu na posse dele. 

Talvez hoje escrevo em homenagem a mulheres negras como ela e Marielle Franco, assassinada há um mês e nada ainda sobre os suspeitos do crime. Também porque lembro o impacto do que disse a cantora Elza Soares: "A carne mais barata no Brasil é a carne da mulher negra". O Brasil foi o último país a terminar com a escravidão negra no mundo ocidental. Os escravos não tinham direito a nada, a não ser servir aos brancos da casa grande. Os negros e os sofredores do mundo lutam para se levantar.

Ainda Assim Eu me Levanto é um canto ético para todos. Negros, brancos, pobres ou não, enfim, todos que vivem ou viveram quedas e perdas. Não conheci, até hoje, quem não tenha caído e sentido o chão se abrir e afundar ou quase. Admirável quem, após uma derrota, uma perda afetiva, consegue reunir forças para se levantar. Já vivi e convivo com traumas dolorosos dentro e fora do consultório. Lembro, por exemplo, de um casal que tinha vários filhos jovens e um deles, com pouco mais de 20 anos, estava muito doente. 

Ele tinha câncer e, ao longo dos meses, foi piorando e terminou morrendo. Nunca os esqueci, pois as consultas eram quase sempre com choros e muitas vezes tive vontade de abraçá-los e chorar junto. Os anos passaram e, um dia, nos vimos num supermercado. Fiquei, por segundos, parado, pois não sabia se desejariam conversar. E terminou sendo um encontro inesquecível; emocionante foi escutar como se levantaram, lentamente, diante da tragédia que viveram. Escrevo para agradecer.

A história social e a individual se encontram, convivem, são histórias que se cruzam no tempo e no espaço. Gosto de recordar que vivemos tempos contrastantes. Há os tempos de chuva e de sol, tempos de alegria e de tristeza, tempos de plantar e de colher, tempos democráticos e autoritários. Alguns afirmam que os ventos seguirão trazendo tempos de ódio e violência. Diante das tempestades, é importante não se isolar nem se desesperar. Há forças criativas e construtivas germinando.

É possível viver melhor quando se mantém a virtude do espanto. Do espanto, nasce o conhecimento, já ensinaram os filósofos da Grécia. As crianças vivem espantadas, tudo é novidade para elas. Reaprender as possibilidades de surpreender-se com frases, sentimentos, músicas, são graças diante das desgraças. Como foram os momentos de espanto com o diálogo no supermercado ou uma poesia como Ainda Assim Eu me Levanto.

ABRÃO SLAVUTZKY


21 DE ABRIL DE 2018
PIANGERS

Falta referência

Notei minha idade um dia desses quando citei a Marília Gabriela, e todo mundo me olhou como se citasse uma pessoa desconhecida. Era uma daquelas entrevistas em que falam uma frase curta e querem que você responda com uma frase curta também, o tipo de entrevista que me deixa profundamente desconfortável porque tenho sempre que pensar em algo muito inteligente e curto e, como todos sabemos, prolixidade é o refúgio do medíocre. 

Alguém já disse: Se eu tivesse mais tempo poderia escrever uma carta mais curta. Leva tempo ser sucinto. Pois, na minha época, essas entrevistas eram chamadas de pingue-pongue. Os mais velhos, como eu, lembrarão da Marília Gabriela fazendo este tipo de coisa, os de meia-idade terão na Xuxa sua referência de entrevista pingue-pongue. Os realmente novos não terão referência alguma, como é típico.

Esses dias, em uma conferência pra gente mais nova, utilizei o termo "microfone da Madonna" para me referir àqueles que encaixam na orelha e vem até a boca com uma haste fina. Usar o termo "microfone da Madonna" denuncia muito sua idade. A plateia me olhou sem entender, muitos deles não conheciam nem a Madonna. Agora, como podem não conhecer a Madonna? Este é o problema com os muito jovens: sua ignorância evidencia nossa velhice.

Mostrei esses dias um telefone fixo de disco para minhas filhas. "Onde estão os botões?", perguntaram. Não tinha botão. Tinha disco. Daí vem o termo "discar o telefone". Odiávamos quem tinha 9 ou 0 no número de telefone, pois tínhamos que esperar todo o disco voltar para o lugar original, para poder discar outro número. Se tinha um 9 ou um 0 a gente levava horas pra ligar pra alguém. Quando a mãe via que estávamos usando muito telefone e a conta estava vindo cara demais, ela colocava um cadeado no disco, impedindo-o de girar. Era o que se tinha de mais sofisticado em termos de segurança de sistema.

Quando fazemos o sinal da conta, no restaurante, simulando um lápis que faz um cálculo no ar, também estamos denunciando nossa idade. Hoje em dia a conta vem pronta, impressa por um computador, e a gente paga com cartão, não preenchendo um cheque. Rabiscar o ar perdeu a lógica. O mundo como conhecíamos vai pouco a pouco desaparecendo, dando espaço para novas pessoas com novas referências. Experimentarão um pouco do que sentimos quando, em alguns anos, ninguém souber o que era um smartphone.

PIANGERS

21 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Washington


Sou viciada em viajar, mas Washington não faz parte da minha wish list - implico com a capital norte-americana mesmo sem conhecê-la, ainda que saiba dos museus incríveis que há por lá. O Washington que dá título a esta crônica é o Olivetto. Fui redatora publicitária por 13 anos (inclusive fiz uma passagem supersônica pela DPZ), mas cruzei com o Washington pouquíssimas vezes, em esbarrões sem consequências. Na noite anterior à que ele foi sequestrado, conversamos por breves minutos num restaurante em Porto Alegre, sem imaginar que dali a 24 horas ele sairia de cena, a contragosto, por 53 longos dias.

Foi um período difícil para seus funcionários, que tiveram que se acostumar "com a falta de euforia, com a falta de genialidade, com a falta de um jeito de andar, de falar com as mãos, de levar a vida", segundo palavras de Tati Bernardi, que trabalhava na W/Brasil na época (2001). Agora, tantos anos depois, ele lança sua autobiografia, e o sequestro não ganhou nem mesmo um parágrafo decente, foi um "ops" em meio a uma trajetória muito maior e mais interessante.

Direto de Washington é o nome do livro que recomendo para quem tem curiosidade sobre os bastidores das agências e sobre como surgiram ideias que faziam a gente pensar "isso até eu faria", como a do garoto Bombril e a do primeiro sutiã da Valisére, sem falar naquele slogan surpreendentemente direto: "Compre Batom!". Parecia brincadeira, de tão fácil.

Estar de brincadeira foi a tarefa mais séria à que Washington Olivetto se dedicou. E aqui paro de falar de propaganda para falar de algo bem mais abrangente e que envolve não só publicitários, mas engenheiros, balconistas, vendedores de cachorro-quente, costureiras, frentistas de postos de gasolina, colunistas de jornais.

No final das contas, somos todos consumidores. Não apenas de aspiradores de pó, biscoitos e esponjas de aço, mas consumidores de fantasias, gargalhadas e declarações de amor. Somos consumidores de conversas de bar tanto quanto de cerveja, consumidores de vaidade tanto quanto de perfume, consumidores de prazer tanto quanto de vinho. Consumimos vida, não só produtos e serviços. Vida é o tal valor agregado de qualquer coisa que a gente compre.

Washington sintetizou isso com propaganda comunicativa, afetiva, divertida, musical. Fez a gente ver que, mesmo com pouca grana, o que vale é ser criativo e encontrar saídas para ser feliz. Washington é a síntese, não a complicação. É o charme, não a peruíce. É a irreverência, não a arrogância. O livro é uma egotrip, ele se vende pra burro, mas não é o que passou décadas fazendo pelos outros? Então, que o deixem livre, leve e solto para nos dar este toque: só se escabela para parecer profundo quem não tem talento para ser simples. A simplicidade continua sendo a melhor técnica de sedução.

MARTHA MEDEIROS

21 DE ABRIL DE 2018
LYA LUFT

Humanos e animais


Outro dia, falava com as netas sobre humanização de pets. O assunto me interessou, despertou minha curiosidade, pois sempre houve pets em minha casa (desde quando esse termo nem existia), embora, admito, ultimamente andem mais humanos.

Já tenho cachorrinhos (sou cachorreira) dentro de casa, coisa antigamente impensável. Meu marido, inclusive, na sua primeira casa, só tinha cachorro no pátio. Comigo, acostumou-se a esses pets meio humanos, e devo dizer que gosta deles, que, por sua vez, o veneram.

Por muitos anos, tive aqui na cobertura duas pets, uma delas a pug Meg, a Gorda sobre a qual escrevi recentemente e que, muito doentinha, aos nove anos morreu. A outra, a minha spitz míni, já dorme no nosso quarto e, confesso, às vezes sobre o nosso edredom. Perfumada e mimosa, não é mais bem um bicho, mas quase uma pessoazinha, embora eu não lhe ponha vestidinhos, porque me desagrada ver cachorros de roupa.

Só falta que, a qualquer hora, me encarando com esse seu focinhinho quando quer me dizer que falta água, falta comida, falta a Gorda, ou quer colo, comece realmente a falar. E tanto converso com ela, que às vezes receio que abra a boca e responda com sua voz de spitz algo como "Sim, mamãe", quando certamente cairei desmaiada, dando bastante trabalho a quem me socorrer.

Agora, para os próximos dias, espero um novo bebezinho, e disse isso a uma amiga ainda ontem, sob o espantado olhar do seu porteiro: "Semana que vem chega meu bebezinho". Já tem nome, Pandora, bem maior do que ela mesma, cuja foto não paro de olhar e me enternece de maneira patética. Alguém me disse que Pandora foi quem abriu a caixa soltando os males pelo mundo, de modo que seria um nome funesto. Mas respondi, com alegria, que na caixa de Pandora tinha sobrado um último elemento, o mais precioso de todos, que veio nos habitar: a esperança. E assim me sinto reconciliada com o nome, que aliás é personagem de meu livrinho mais recente, A Casa Inventada.

Pandora é uma spitz micro: será, quando adulta, quase metade da já pequena Melanie, e me divirto por antecipação com as diabruras, os mimos, os carinhos, a maternidade minha, o possível ciúme inicial da irmã.

Com minha amada amiga Nélida Pinõn, atualmente residindo por breve tempo em Lisboa, troco fotos e gracinhas das nossas filhas de quatro patas. A dela, registrada como Suzy Piñon, a minha, Pandora Luft. Rimos, as duas, no WhatsApp, com nossas inocentes maluquices ternas. Pena que não posso botar aqui uma foto da nova bebê, com seu rostinho de urso diminuto, sua graça sem nome, seus olhinhos de mil pedidos e sua quentura aninhada no meu colo... certamente junto com sua irmã Melanie.

Um dia vou pensar e escrever sobre a animalização dos humanos. Não será preciso refletir muito... Por hoje, só carinho e expectativa de um novo bebê.

LYA LUFT

sábado, 14 de abril de 2018



14 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Um leitor sem endereço

Sessão de autógrafos é um evento democrático. Anuncia-se a presença do escritor na livraria e pronto. Não tem que se inscrever, pagar ingresso, pegar senha. É só chegar e entrar na fila com o livro na mão, esperando a vez de ganhar sua dedicatória. Nem precisa comprar nada, há quem traga um exemplar que já tenha em casa. Há quem leve apenas um pedaço de papel para receber o autógrafo. Há quem entre na fila só para fazer uma selfie. Há quem aproveite a muvuca para roubar o escritor sério, já levaram uma bolsa minha durante uma sessão de autógrafos. Há o maluco de estimação, que escritor não tem o seu?

O doido tem certeza de que você é apaixonada por ele e que tudo o que escreve é uma mensagem cifrada (por via das dúvidas, mantenha o segurança alertado). Há os fiéis que nunca te abandonam (amamos vocês). Há os que, em vez de dizerem o nome, perguntam lembra de mim? (odiamos vocês). Vai o ex-namorado com a namorada nova, os primos em quarto grau que a gente não reconhece, um ou outro VIP pra alegria do fotógrafo, pessoas que saíram tarde do trabalho e ainda assim passaram lá só pra nos ver. É um troço que emociona.

Já fiz sessões de autógrafo por todo o país, vi de tudo, mas, na mais recente, surpresa: havia um morador de rua na fila. Destoava, claro. Barba até o umbigo, meio sujo, aquele rosto de quem não leva vida fácil e nada tem a ver com o ambiente - mas tinha. Quando ele se aproximou, apertou minha mão e se apresentou. Tinha sobrenome de família quatrocentona, uma elegância que até humilhava. Não vou identificá-lo, pois não sei qual é a história de vida dele e se lhe interessa esta exposição. Foi discreto, educado, um lorde. Quem esperava um delinquente apostou errado.

Ao término da sessão, corri atrás de informações com o pessoal da livraria. Soube que ele está próximo dos 80 anos. Escuta no rádio as entrevistas de seus autores preferidos e memoriza o dia, a hora e o local do lançamento - se tiver bate-papo antes, ele prefere. Se for livro sobre esporte, gosta mais ainda. Paga pelos livros, o que demonstra que esmolas estão valendo mais do que os salários parcelados do funcionalismo.

Não tem endereço nem profissão, vive por aí. Não se sabe onde guarda os livros que compra. Já tentaram barrá-lo na entrada de shoppings pelo seu aspecto "ameaçador" (como se bandido obedecesse a um dress code), mas, serenamente, ele argumenta que irá apenas buscar um autógrafo, qual o crime? Estar sem o banho em dia? Com a mesma roupa há seis meses? Em Porto Alegre, virou figura folclórica, ninguém o incomoda mais. E tê-lo na fila, vai dizer, é um privilégio. Um morador de rua que lê mais do que moradores de cobertura. Me dê outra definição de esperança.

MARTHA MEDEIROS

14 DE ABRIL DE 2018
CLARA AVERBUCK

Meu primeiro BLOQUEIO


Quando eu era jovem, bem jovem, escrevia em qualquer lugar. Era uma chama constante, uma urgência, quase que um chamado; toda vez que vinha uma ideia eu não hesitava em sentar onde quer que estivesse e sacar um dos meus caderninhos, sempre comigo, os meus caderninhos que hoje vivem guardados nas gavetas da sala. Escrevia sentada no meio fio, nos bares (muito nos bares), nas festas, na chuva, onde quer que fosse. Escrevia horrores e depois passava a limpo no meu computador velho. Assim escrevi meus primeiros livros. Era a única coisa que importava.

Corta pra hoje, 15, 20 anos depois. Escritora, sete livros, dois no forno, antes dos 40 direi: "Já tenho mais de 10 livros publicados" e suspirarei (já suspiro) sentindo saudades de quando era jovem e cheia de gana, pois hoje o barulho da rua me incomoda, pessoas falando tiram meu foco, música me atrapalha, qualquer coisa é distração. O telefone, o gato, o cachorro, o Facebook, eu mesma, a louça, as contas, o buço, as unhas, aquele livro, a vida.

A vida que eu sempre quis é a que eu tenho. Em casa há um escritório, na estante tenho os livros, no quarto tenho uma cama confortável e no meu peito carrego uma crise. Era isso que eu queria, agora já não sei mais. Era isso que eu queria? A vida está confortável, e a inquietação dança no meu peito. Eu também quero dançar, penso enquanto lembro da minha barra de pole dance na sala. Minha paixão virou trabalho e deixou de ser paixão por hora. Encontrei outra paixão. 

Não que escrever tenha perdido o sentido, mas os prazos fazem com que a gana fique um tanto carcomida. Ora, me estapeio, sou uma privilegiada, vivo do que gosto, do que sempre quis, enquanto minha cabeça dói e me sinto capinando num campo árido tentando encontrar um broto de vontade de seguir como está, como estou, como estamos. Comento com amigos, comento com família, todos já passaram por isso. Sinto alívio momentâneo. 

O aperto volta, a mudez diante das páginas em branco segue. Meus primeiros bloqueios criativos chegaram e trouxeram reforços. Não sai. Minhas ideias estão enfezadas. Queria férias. Não tenho férias. Nunca tive férias, minha cabeça sempre esteve no modo registrar. Queria férias. Queria sumir. Não quero mais repetir as coisas que eu já disse, as coisas que precisam ser ditas, mas precisam ser ditas. Repito. Reviro os olhos. A alma revira junto.

Olho minha conta bancária. Vale a pena isso tudo?

"É TPM", tento me convencer.

Pode ser. É a crise dos 40, pode ser. Tomara que seja os dois e que ambos passem logo.

CLARA AVERBUCK

14 DE ABRIL DE 2018
PIANGERS

Agora é com você

Gosto desta história e a repito tanto que não sei se já contei aqui. Quando eu e a Ana estávamos no hospital, após a nossa primeira filha nascer, ela com dores da cesariana e com dificuldade para amamentar, a noite chegou e, com ela, um cansaço gigantesco. A Ana me pediu: Cuida do bebê que eu preciso dormir, e eu respondi: Relaxa!, porque, obviamente, eu não sabia como era difícil cuidar de uma criança. Quando me atrapalhei com as fraldas e o choro, fui até o corredor do hospital com o bebê no colo e pedi para que a enfermeira me ajudasse. Ela disse que o trabalho dela era ajudar em caso de problema de saúde, apenas. Agora é com você, ela disse, percebendo minha cara assustada.

Essa frase virou uma espécie de mantra. "Agora é com você". É uma lembrança constante de que não posso delegar a responsabilidade da criação de um filho pra outra pessoa. Agora é comigo. Não é com os avós nem com babá, nem com a Galinha Pintadinha. Não é com sua esposa, com a professora ou com a escola. Agora é com você.

O trabalho pode ser em equipe, mas a contribuição do resto do time não pode ser motivo pra fazer corpo mole. Agora é com você. Se o avô mora perto, ótimo. Se a escola é perfeita, maravilhoso. Mas é com você. É com a gente.

Se nossos filhos vão ou não estar preparados para se comportar civilizadamente em sociedade, será nosso exemplo que dirá. São nossas conversas sobre os assuntos mais complicados que irão esclarecê-los. Será nossa participação efetiva que garantirá boas notas. Será nossa atenção em todos os sinais que eles nos passam que os protegerão dos perigos do mundo. Que são muitos.

Percebo tantos pais reclamando da escola, sem perceber que aquilo que acontece em casa tem um impacto maior no comportamento e no bem-estar da criança. Percebo tanta gente indignada com o que aparece na televisão, sem entender que ninguém é obrigado a ligar o aparelho. Percebo pais sem tempo nem paciência, querendo delegar responsabilidades que são suas. Quanto mais tempo você perde se abstendo, maior trabalho terá no futuro. Respire fundo, segure o bebê e reconheça: agora é com você.

PIANGERS

sexta-feira, 13 de abril de 2018


13 DE ABRIL DE 2018
CÚPULA DAS AMÉRICAS

Crise na Venezuela deve ficar fora de declaração oficial

O combate à corrupção vai assumir o primeiro plano em uma Cúpula das Américas sem Donald Trump, que queria transformar a reunião regional deste fim de semana, em Lima, no Peru, em ofensiva diplomática contra o regime venezuelano de Nicolás Maduro. A ausência do presidente americano tirou um pouco do brilho do encontro, já abalado por diversos problemas na região e pela difícil relação com o imprevisível governo dos EUA.

Segundo a Casa Branca, Trump ficará em Washington para "acompanhar a resposta americana à Síria" e "monitorar os acontecimentos em todo o mundo". Quem irá ao evento é o vice-presidente Mike Pence, que espera alcançar "de forma coletiva que os atores antidemocráticos da reunião prestem contas por suas ações". Maduro não irá à cúpula.

Mesmo assim, o tema da crise humanitária na Venezuela não deve estar na declaração final do encontro de líderes. A expectativa de que exista alguma menção mais enfática contra o regime madurista no texto de encerramento do evento está praticamente descartada, devido à falta de unanimidade dos países participantes sobre o tema.

SIP QUER AÇÃO CONTRA DITADURAS DA REGIÃO

A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) ressaltou ontem, em carta, que os governos americanos têm "obrigação histórica" de tomar medidas concretas contra os governos de Cuba e Venezuela por continuarem violando os direitos humanos.

"Estamos conscientes de que, nos últimos anos, a comunidade internacional tomou nota da deterioração do clima sociopolítico na Venezuela e que muitas nações não reconheceram a Assembleia Constituinte nem reconhecerão qualquer líder que saia de eleições fraudulentas. Por essa razão, acreditamos que esse consenso deve ser usado para promover medidas mais drásticas que não permitam que o regime tente perpetuar-se no poder, de costas ao bem-estar de seus cidadãos", diz a entidade.

13 DE ABRIL DE 2018
EDUARDO BUENO


Baile da Constituição

O deputado subiu ao plenário para dizer que as mudanças que o país tanto necessitava não seriam alcançadas por meio de uma reforma constitucional, mas só "por um ato revolucionário, embora (isso) seja um golpe de Estado". O nobre parlamentar julgava que golpes eram "lamentáveis", mas "admissíveis em casos extremos". Outro deputado, do mesmo partido, foi à tribuna para tranquilizá-lo, afirmando que não era golpe, na medida em que era "legal todo ato que satisfaz a vontade do povo". E o povo - pelo menos as 8 mil pessoas que naquele instante cercavam a Câmara - parecia estar pronto para sapatear na Constituição.

Bem que os liberais tinham tentado seguir a ordem e o regimento. Ocorre que todos os projetos apresentados por eles para alterar o maldito artigo 121 da Constituição tinham sido derrubados pelos conservadores, e por mais de três vezes, e ao longo dos últimos quatro anos.

Desde a abdicação forçada de seu pai, em abril de 1831, D. Pedro II era formalmente o imperador do Brasil. Mas a Constituição dizia que ele só poderia assumir o poder quando completasse 18 anos - e o pirralho tinha apenas 14 naquele turbulento ano de 1840. Então, os liberais deram início à campanha "maioridade já".

No começo de junho, o projeto dos chamados "maioristas" quase adquiriu um verniz de legalidade: por apenas dois votos (18 a 16), o Senado deixou de aprovar a moção do senador José de Alencar que tornaria D. Pedro II apto a assumir imediatamente o comando da nação. Depois daquela derrota aos 48 do segundo tempo, o clube da maioridade não parou mais de conspirar. O deputado Clemente Pereira então ousou usar a palavra "golpe" em plena tribuna. Seu nobre colega, o deputado Rocha Galvão, corrigiu-o: não é golpe se o povo assim o quer...

Então, em 22 de junho de 1840, os deputados liberais, liderados por Antônio Carlos de Andrada (irmão de José Bonifácio), abandonaram a "Câmara prostituída" e dirigiram-se em ruidosa passeata à sede do governo, na Quinta da Boa Vista. Lá, simplesmente passaram o poder às mãos de D. Pedro II, mandando a lei às favas. Sem maiores formalidades.

Reunido numa praça, no coração do Rio de Janeiro, o "povo" dançava, cantando:

Queremos D. Pedro II / Embora não tenha idade

A nação dispensa a lei / E viva a maioridade.

Muitas nações já dispensaram a lei. Mas quantas o fizeram de forma tão alegre - em prosa e verso, com rima e dança?

Bom, mas olhando bem para a cara do atual Supremo Tribunal Federal, acho que também já estou preferindo um bom batuque, uma gafieira, um baião, um frevo, um fandango, um xaxado, um xote, um vanerão, uma valsa, um bumba meu boi. Até um baile funk na boquinha da garrafa - que, aliás, é bem a cara do país. Qualquer tipo de bailado - menos, é claro, o partido-alto e a dança de salão...

EDUARDO BUENO


Silvio Santos, 


o maior Chacrinha foi criativo, genial, imortal e decretou "quem não se comunica, se trumbica". Mas Silvio Santos é, sem dúvida, o maior comunicador de todos os tempos. O "homem do baú", que até chegou a ser candidato a presidente da República, personifica a evolução da televisão no Brasil e se transformou numa das personalidades mais conhecidas da história recente do País.

Admirado e amado por pessoas das mais diversas gerações, Santos construiu uma relação de proximidade com o público que, provavelmente, nenhum outro astro conseguiu. Silvio Santos - A biografia (Universo dos Livros, 280 páginas), de Marcia Batista, professora e editora, e Anna

Medeiros, publicitária e escritora, biografia não autorizada, revela, por meio de relatos e documentos exclusivos, as conquistas e dificuldades do homem que segue trabalhando aos 87 anos e impactando o cotidiano brasileiro.

Generoso, simples e trabalhador, Silvio se tornou um dos empresários brasileiros mais bem-sucedidos, em inúmeros negócios, especialmente pela própria rede de televisão, que já soma mais de 36 anos. A obra começa narrando o dramático sequestro sofrido pelo apresentador, em sua própria casa, em 2001, quando esteve algumas horas de cara com a morte. Passa pela meninice, pelo conhecido faro para negócios, pela luta para concorrer com a Globo, o sucesso do Baú da Felicidade, a relação com Hebe Camargo, os dois casamentos, as aspirações políticas, os altos voos, os muitos prêmios e homenagens; e mostra, ainda, o SBT do século XXI.

O livro permite aos leitores conhecer muitas facetas desse ícone que segue se renovando. O Silvio pai de família, apresentador, gestor de negócios, descobridor de talentos, empreendedor e o "homem que enxerga com a alma" está nos capítulos do volume. Muitos consideram Santos a maior unanimidade nacional.

Apesar de ser um dos homens mais ricos do Brasil, não é de esbanjar e ostentar riquezas e, dizem, quando está com a família na residência dos Estados Unidos, faz supermercado, cozinha e lava louça. Com seis filhas e vários netos, a família cresce. Claro que Silvio Santos não é isento de críticas. Acertou e errou. Envolveu-se em polêmicas e tomou decisões questionáveis. Sua impressionante vida segue, ainda com muitos capítulos pela frente.

"Silvio Santos vem aí!", sempre com novidades e sempre imitado por mais e mais amadores e profissionais.

lançamentos 

O homem de lata (Faro Editorial, 160 páginas), da atriz e escritora inglesa Sarah Winman, é seu romance de estreia, ganhou vários prêmios e tornou-se best-seller internacional. Narra a história de Ellis e Michael, dois garotos de 12 anos que, em 1963, se tornaram grandes amigos.

Um dia, algo maior aconteceu entre eles. Dez anos depois, Ellis casou e Michael não está por perto. O que houve? Conversas de Livraria & Avulsas (Livraria Palmarinca, 240 páginas), do engenheiro, poeta e articulista Jorge Alberto Benitz, apresenta, na primeira parte, histórias que giram em torno de uma livraria e frequentadores; e, na segunda, reflexões do autor sobre temas políticos e históricos contemporâneos, bem como interessantes conversas com taxistas sobre assuntos do cotidiano.

Onde está a banda The Beatles? Encontre o quarteto mais famoso de Liverpool (Ciranda Cultural, 30 páginas) com ilustrações de Moreno Chiacchiera, no estilo Onde está Wally?, mostra os cabeludos ingleses em vários locais como Cavern Club e Abbey Road, aeroporto de Nova Iorque e outros. Yoko Ono, David Bowie e muitos outros também aparecem nos divertidos e coloridos desenhos. - Jornal do Comércio

http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2018/04/colunas/livros/621321-silvio-santos-o-maior.html