sábado, 25 de abril de 2020



25 DE ABRIL DE 2020
LYA LUFT

O dia em que fui xingada

É normal para quem escreve e publica, sobretudo em revista e jornal, ter experiência com elogios e estímulo, e alguma vez um xingamento.

Há vários anos, publiquei uma coluna em revista sobre cuidados da população com uma baleia encalhada numa praia do Rio, contrastando com a indiferença com relação a um menino que pouco antes tinha morrido numa calçada ali perto. Reclamações choveram, dizendo que eu não gostava de animais. Paciência, porque esses mal-entendidos não adianta explicar.

Naturalmente em criança às vezes eu era xingada por alguma malcriação: botar a língua pra avó (que eu, aliás, adorava), subir de novo na jabuticabeira e não conseguir descer, obrigando o jardineiro a vir com escada e me tirar de lá, chamar a mãe de "chata" quando era hora do banho e eu queria brincar no pátio um pouco mais.

Mas eis que outro dia fui xingada em Gramado, minha cidade adotiva, que frequento há décadas, onde criamos um pequeno paraíso particular: saindo do supermercado que frequento, guardei as compras no porta-malas e, quando estava entrando no meu carro, metade do corpo já lá dentro, vi passar na calçadinha em frente um casal de uns 50 anos, de máscara, sacolinhas do súper na mão.

Então ele indica a placa do meu carro pra mulher e diz: "Ó, Porto Alegre". Eu, geralmente gentil, começo a abrir um sorriso, quando ele me aponta a mão e vocifera: "Porto Alegre, né? Volta pra lá, e não vem mais pra cá pra trazer doença!!".

Em geral minha coragem é menor do que meu tamanho, mas fiquei furiosa e respondi: "Eu tenho casa aqui, seu grosso, e devo pagar mais imposto do que tu!!!". A mulher puxou o herói pelo braço e eu entrei no carro, seguimos nossos caminhos.

Primeiro fiquei atônita; depois chateada; chegando em casa, já estava rindo sozinha: ainda bem que o Vicentão não estava junto. Mas me ficou a preocupação: esse vírus não só nos faz adoecer de uma terrível doença que está transformando o mundo - sobre o qual se estende como uma sombra densa e pegajosa -, ele também ataca economia, convívio, projetos e sonhos, e além disso nos faz adoecer psicológica e moralmente.

Virão - estão vindo - ondas de medo e paranoia, desinformação e raiva, bairrismo e xenofobia.

Cidades se temendo, países se odiando, pessoas caluniando e desprezando umas às outras.

Nesse sentido, a pandemia coronada não vai terminar tão cedo: pode estar havendo solidariedade e afetos reencontrados, reinvenção de muita coisa boa, mas talvez ele nos deixe com feias sequelas morais. O xingamento em Gramado me fez pensar nisso - com tristeza.

LYA LUFT

25 DE ABRIL DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Você não pode ter sempre o que quer


A quarentena surpreendeu a todos. Havíamos recém entrado em março, quando 2020 começaria pra valer, mas em vez de dar início ao cumprimento das resoluções de fim de ano, fomos condenados à prisão domiciliar, mesmo não tendo cometido crime algum. Paciência: ser livre se tornou um delito. Parece injusto, mas chegou a hora de entender que não podemos ter sempre o que queremos.

Gostaríamos muito de rever os amigos e parentes, fazer a viagem planejada, torcer pelo nosso time, ir ao pilates, ao cabeleireiro, tomar uma caipirinha com o crush, comparecer a formaturas e casamentos. Gostaríamos de ver as lojas abertas, o comércio aquecido, os índices da bolsa subindo, o dólar baixando.

Gostaríamos de acreditar que todos os líderes do mundo estão errados e só o nosso presidente está certo. Gostaríamos de ter alguém lúcido e responsável no comando do país. Mas, infelizmente, You Can´t Always Get What You Want. Não por acaso, foi essa a música escolhida pelos Rolling Stones em sua participação no comovente One World/Together at Home, evento transmitido ao vivo em 18 de abril, em que diversos artistas, personalidades e profissionais da saúde uniram-se online, cada um em sua casa, para lembrar que somos todos absolutamente iguais diante de uma ameaça, e que o distanciamento social é a saída, mesmo que não seja o que a gente quer.

Seu desejo é uma ordem? Não mesmo. Frase cancelada, como canceladas foram as peças de teatro, os jogos de futebol, as liquidações, o happy hour depois do expediente - e o próprio expediente. Aposentadoria antes da hora, por tempo indefinido. Qual será o legado, o que aprenderemos desta experiência?

Que consumir por consumir é uma doença também. Que o céu está mais azul, a vegetação mais verde e o ar mais puro: não somos tão imprescindíveis, a natureza agradece nossa reclusão. Que há muitas maneiras de se comemorar um aniversário, mesmo sozinho em casa: vizinhos cantam em janelas próximas, amigos deixam flores na portaria do prédio, organiza-se uma reunião por aplicativo. Emoção genuína, festa inimitável. E pensar que há quem gaste uma fortuna com decoração de ambiente, DJ da moda e champanhe francês para 500 convidados, e ainda assim não consegue se sentir amado.

Já tivemos, poucos anos atrás, uma greve de caminhoneiros que serviu de ensaio do apocalipse. Pois já não é mais ensaio, é apocalipse now. Não desperdicemos a chance de amadurecer, simplificar, mudar de atitude. De valorizar o coletivo em detrimento do individual. De praticar um novo método de convívio: uns pelos outros, sempre, e não só na hora do aperto. De fazer deste imenso país uma nação mais homogênea, em prol de uma existência menos metida a besta.

MARTHA MEDEIROS

25 DE ABRIL DE 2020
CARPINEJAR

Os restos deliciosos


O que mais me encantava na infância era o direito a receber as sobras da panela. Só ganhava o privilégio o filho que permanecia na cozinha durante toda a preparação. Aquele que não aguentava o tempo inteiro perdia o desjejum.

Eu escorava os braços na mesinha de pedra, aguardando pacientemente o fim dos trabalhos. Azar das minhas brincadeiras e dos jogos no pátio, da bola de futebol e da pandorga, consumia a manhã sonhando com o sabor ainda quente dos doces e dos salgados. Nem me importava em queimar a língua, meu desejo crescia pela exclusividade, por ser o primeiro a provar a comida materna.

Parecia um cão esfomeado raspando o fundo da forma de brigadeiro, lambendo o chantilly da colher da batedeira, mastigando as crostas douradas do bolo, quebrando os cristais de açúcar do pudim. Eu avançava sobre a louça. Até facilitava enormemente a sua lavagem. Não queria perder nenhum restinho do meu lugar de destaque.

Eu me cortava com orgulho ao enfiar os dedos na lata de leite condensado aberta pela metade. Não reclamava de qualquer cicatriz que viesse do atrito temerário. A glicose recompensava o sangue.

A mãe pedia calma, dizia para não ter pressa, que nada iria sumir, sem saber como amansar a minha ansiedade festiva. Mas temia que um espertinho aparecesse na última hora exigindo a divisão dos bens, sem pagar com a contrapartida da vigília.

Nos aniversários dos irmãos, eu que me sentia mudando a idade, pegando, na nascente do óleo, os risoles e os enroladinhos de salsicha abraseados, antes de serem postos nas vasilhas forradas de guardanapos.

Tratava-se de um apetite próprio da felicidade, e apenas dela. Saciava a alegria de viver antes mesmo de forrar o estômago. O que explica o fato de, até hoje, a panqueca ser a minha refeição predileta. Porque ela permite a exuberância de massinhas extras, de separar o material que não será recheado de carne e queijo.

Ao filho que fica comigo perto do fogo da criação, merece o prazer do macio e delicioso excedente. Ele me repete quando pequeno, eu reencarno a minha mãe de avental e touca, e a linhagem se sucede nos segredos das receitas de família.

CARPINEJAR


25 DE ABRIL DE 2020
LEANDRO KARNAL

CANETA AZUL, AZUL CANETA

A humanidade usou muitas coisas para escrever. Escribas egípcios empunhavam um cálamo, um pedaço de cana ou junco afiado em uma ponta. Escreveu-se por mais séculos com cálamos do que com canetas. Muitos romanos empregavam uma pequena haste, o estilo, que acabou contaminando a palavra para denominar o jeito de cada um escrever. A pena teve longa história e batizou, muito depois do seu domínio, os muitos pen clubs do mundo. Quase tudo o que o padre Vieira escreveu foi com o sacrifício de gansos, patos e cisnes. Com o tempo, foram feitas pequenas peças de metal que eram molhadas na tinta e duravam mais do que as derivadas de aves. Os primeiros aparos de aço, a ponta de metal para colocar na tinta e adaptada em uma haste de madeira ou metal, foram difundidos na Inglaterra do fim do século 18. Dali foi um salto para a caneta-tinteiro, que nada mais é do que o aparo de metal com depósito de tinta próprio.

A caneta-tinteiro (e suas inovações) dominou o mundo da escrita. Chegou a virar peça de joalheria, com materiais nobres e trabalhos artísticos rebuscados. Guardava sempre alguns problemas: borrões, tinta instável, dedos sujos, etc. A caneta com tinta permanente surgiu no século 19, e o pioneiro batiza marca até hoje: Lewis Edson Waterman.

Chegamos perto da Segunda Guerra Mundial. Um húngaro surge com uma invenção que chamou pouca atenção na Europa em crise fratricida. Trabalhando em tipografias, László Biró chegou à ideia de uma caneta com uma bolinha que, automaticamente, transferisse a tinta do corpo da caneta para o papel. Estava criada a caneta esferográfica. Ao emigrar para a Argentina, levou sua ideia e lá começou o sucesso estrondoso do novo instrumento de registro escrito. O inventor genial faleceu em Buenos Aires, em 1985.

Vamos focar no período dos anos de 1950 a 1960. Havia um duelo entre a mais cara e elegante caneta-tinteiro e a cada vez mais popular esferográfica. Uma caneta-tinteiro era um presente comum de formatura. Tal como eu, muitos herdaram as canetas dos pais, guardando a peça que poderia ser mais comum (Parker 51) até obras-primas de valor incalculável. Ter, como eu tenho, pequena coleção de canetas-tinteiro é sinal insofismável de idade.

Os bancos resistiram à inovação. Consideravam a escrita esferográfica pouco confiável. Escolas continuaram alfabetizando com canetas-tinteiro, obrigando alunos a desenhar mais a letra. Até hoje, a bela arte da caligrafia que sobrevive em sofisticados convites de casamento evitará a plebeia caneta esferográfica. A caneta-tinteiro é uma rainha destronada, majestosa e com súditos leais e cada vez mais idosos, entre eles, este cronista.

Emprestei muitas canetas-tinteiro para alunos assinarem uma lista de presença. Sendo jovens, o resultado era não conseguir ou entortar a ponta metálica da peça. É uma habilidade motora específica e, claro, implica certa motricidade que as esferográficas e os teclados erodiram.

Toda novidade causa entusiastas e luditas (quebradores de máquinas) ou, segundo o falecido Umberto Eco, apocalípticos e integrados. Na resistência técnica, está um esforço de reconstruir um mundo perfeito. A caneta-tinteiro implicava letras mais bonitas, pessoas mais educadas, um mundo de chapéus e salamaleques que a esferográfica acabaria por destruir. O instrumento de escrita simboliza o passamento, o mundo extinto e irrecuperável que, claro, sempre será mais perfeito na memória do que era ao vivo.

Sim, não precisamos de muitos estudos para perceber que escrever com uma caneta-tinteiro tem um ritmo mais lento do que digitar em um teclado do computador, como faço neste instante. O texto à mão com caneta-tinteiro deve pensar mais na palavra a seguir. A digitação segue um fluxo em que o automático quase nos possui. Mais: como tantos que estão lendo agora, quando sou obrigado a fazer minha simples assinatura, tenho imensa dificuldade, pois a técnica da escrita com caneta está fraquejando em algum lugar do meu cérebro e da minha coordenação. Tenho de tentar "imitar" minha assinatura, estelionato de mim mesmo é constrangedor. Há alguns anos, além de escrever muito à mão, ainda havia cheques, infindáveis, diários e repetitivos. Qual foi a última vez que você fez um cheque?

Após séculos de uso de instrumentos de escrita, chegamos ao ponto da música "caneta azul, azul caneta". Qualquer julgamento musical é sempre uma expressão subjetiva que fala mais de quem escreve do que do objeto analisado. Assim, falando só do meu ponto de vista, a música é escassa em recursos sonoros e de léxico rarefeito. Se não confia no meu julgamento, escute, mas insisto: eu avisei. Eu indicaria a bela música Aquarela (Toquinho, Vinicius, Maurizio Fabrizio e Guido Morra), de linha melódica suave e letra poética. Nem sempre o momento atual é o ápice da civilização em alguns pontos.

O instrumento de escrita é menos relevante do que o ato de escrever em si. Ler e escrever são as grandes revoluções do mundo. O analfabetismo total diminui, porém resiste no Brasil. O analfabetismo funcional, com Bic ou computador, parece até crescer. De vez em quando, temos de lutar para manter a esperança.

LEANDRO KARNAL

25 DE ABRIL DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

PRÓLOGO MÓRBIDO

O prólogo (primeira cena) da tragédia Édipo Tirano, de Sófocles, mostra uma cidade sendo consumida por peste devastadora. É Tebas gemendo, tomada pela fumaça das oferendas, onde o Velho Sacerdote de Zeus suplica ao soberano, Édipo, e descreve a crise: "Pois a cidade, tal como a vês, já/ muito sacode, e não consegue erguer/ a cabeça dos abismos do mar de sangue,/ perecendo nos casulos frutuosos da terra,/ perecendo nos rebanhos bovinos e nos partos/ estéreis das mulheres." (v. 22-27). Imagem assombrosa: mulheres grávidas dão à luz e nada geram. 

No mundo representado nesta obra-prima, natureza e história estão conectados; é o cenário em que se analisa a relação entre a chaga que devora a cidade e o estado do poder na pátria em crise. Édipo é tragédia política por excelência, criada para comentar tramas como a que ora vivemos, enfrentando simultaneamente a morbidez da pandemia e a de um líder perturbado e nocivo, em uma nação gravemente enferma.

Quando Sófocles produziu seu primeiro Édipo, por volta de 425 a.C., Atenas ainda se erguia, combalida, de uma grande peste, ocorrida no segundo ano da Guerra do Peloponeso, em 430 a.C.. Os malefícios remanescentes da peste eram agravados por decisões desastrosas, promovidas por líderes que fingiam ter um saber que de fato não tinham e iludiam o povo. Todos pagavam por tais erros, e a pólis, outrora próspera, logo conheceria um golpe de Estado violentíssimo (em 411 a.C.) e, a seguir, a derrota definitiva (404 a.C.). Peste e crise política foram forças coadjuvantes do colapso de Atenas. Estamos ainda no prólogo de um drama que sabemos não ser comédia.

A pandemia do coronavírus é uma das forças mais letais já enfrentadas pela humanidade. Temos hoje ciência e riqueza suficientes para encarar esta esfinge, mas nos acossa, simultaneamente, o pior dos flagelos: a ignorância e seus frutos podres, o ódio, o egoísmo e a imprudência. De nada valerão os poderes da ciência e as reservas de riqueza nacionais e internacionais se não formos conduzidos pelos princípios que nos constituem como espécie: o saber e a solidariedade. Sem o primado do saber, ou guiados por saber falso, rompe-se o pacto da vida moderna, e triunfa tenebroso mundo de abutres cevados por crendices religiosas e pela insensatez de líderes ignorantes.

Quando a violência agressiva se volta contra a sociedade, a energia sanguínea e colérica, que pode ajudar a impelir avante e vencer guerras, torna-se fonte da morte. Já vivemos isso na longa história de uma nação escravocrata, acomodada na iniquidade, leniente com farsas, violenta e suicida. Ora esse passado assombra presente e futuro com a força de um totem capaz de magnetizar o poder da morte e fazer a ignorância e a peste ceifarem a nação: um presidente mórbido, tolerado por autoridades prevaricadoras.

No êxodo (epílogo) da tragédia de Sófocles, Édipo, evidenciado em sua ignorância e como causador dos males de Tebas, parte para o exílio, cegado e conduzido por sua prole. A nossa tragédia será atenuada quando nos livrarmos de nosso miasma, o inimigo da vida e da nação.

FRANCISCO MARSHALL



25 DE ABRIL DE 2020
COM A PALAVRA

O CUIDADO COM A SAÚDE SERÁ A MARCA DAS EMPRESAS NA RETOMADA.

MARIANA ALDRIGUI, PESQUISADORA DA ÁREA DO TURISMO, 44 anos Professora da Universidade de São Paulo (USP), foi eleita uma das cem personalidades mais influentes da área no Brasil pela Panrotas

Os milhares de turistas tentando voltar aos seus países de origem desde o início deste 2020 pandêmico, retidos em navios, hotéis e aeroportos, foram a face mais visível de um setor atingido em cheio pelo coronavírus. Responsável por 10,3% do PIB global em 2019 (US$ 8,9 trilhões) e por 330 milhões de empregos (um em cada 10 empregos no mundo, conforme o Conselho Mundial de Viagens e Turismo, WTTC), o turismo mundial, ainda em meio à crise, também tenta encontrar formas de sair desta barafunda em que estamos todos metidos. 

Quais serão os impactos nas viagens e nos empregos? Como recuperar a confiança e atrair os viajantes? São perguntas que geram debates entre especialistas como Mariana Aldrigui, pesquisadora e professora na área de Turismo na Universidade de São Paulo (USP) desde 2006 e orientadora de projetos ligados ao desenvolvimento do turismo brasileiro. Mariana também preside o Conselho de Turismo da FecomercioSP e coordena as ações da ONG Global Travel & Tourism Partnership no Brasil. A seguir, alguns desses questionamentos são comentados e respondidos por ela.

COMO DEVEM SER AS VIAGENS PÓS-PANDEMIA? O QUE PODE MUDAR?

Participo de uma série de fóruns internacionais, e um deles está focado na retomada das viagens na China, e o que já se percebe por lá é que não houve mudanças. Os chineses já voltaram a viajar de trem e de avião e a se aglomerar nos pontos turísticos da mesma forma que antes. O que, para nós, pesquisadores, era uma coisa que parecia certa, que as pessoas seriam mais cautelosas, acabou não se manifestando neste momento. Como no Brasil a gente está na terceira ou quarta onda do vírus - vieram as informações primeiro da China, depois de Europa e dos EUA -, o que estamos discutindo é o seguinte: primeiro, haverá a retomada do turismo doméstico não organizado, que não precisa de intermediação, como a visita a parentes e amigos, a realização de uma satisfação imediata, como ir ver o mar, ter contato com a natureza... 

Internacionalmente, o que os especialistas falam é sobre mudanças como uma já produzida pela Emirates (companhia aérea), por exemplo, que colocou checagem de temperatura e teste rápido para todos os passageiros do aeroporto sede deles. O cuidado com a saúde e atestar a segurança do passageiro será a marca das empresas na retomada. No Brasil, a mesma coisa: não basta colocar o recipiente de álcool gel, vai ser preciso garantir que a pessoa não está em risco. Turismo não é só a vontade de viajar, especialmente no turismo internacional. Tem a ver com a relação entre os países, e isso não vai ser retomado tão facilmente. 

Mesmo se amanhã nosso presidente liberar todo mundo para trabalhar, tendo dinheiro ou não, não adianta, os brasileiros não vão poder voar para a Europa, por exemplo. Os locais de destino precisam receber esse público. No caso do Brasil, estamos com a imagem corroída e, se formos vistos como um público consumidor que é uma ameaça para o mundo, porque não está testado o suficiente ou ainda pode haver vírus, não adianta ter a operação funcionando e ter dinheiro: não seremos bem-vindos. Uma consequência óbvia e fácil de perceber vai ser a mudança nos procedimentos, mas, num primeiro momento, os turistas não vão deixar de desejar viajar. Pode ser que aceitem pagar mais para garantir determinado acesso à segurança, restrinjam o tempo de viagem ou mudem a forma de visitar alguns lugares. A própria gestão dos locais vai evitar aglomerações.

o turismo é uma das áreas mais atingidas, com perdas bilionárias no mundo inteiro, mas não se vê muita gente falando em investimentos no setor pós-pandemia. Quem está mais preocupado?

Todos os envolvidos direta ou indiretamene com o setor estão preocupados. Dados do WTTC (Conselho Mundial de Viagens e Turismo) apontavam, até o final de 2019, que um a cada 10 empregos no mundo tinha relação com o turismo. Há uma preocupação imensa. Há países em que a dependência do turismo é grande. No Brasil, essa dependência não é tão perceptível porque aqui sempre se misturam dados: restaurantes se reportam ao setor de alimentação, carro por aplicativo ou táxi ao setor de transporte... Mas os empresários do setor estão preocupados, os empregados idem e alguns gestores que têm compreensão do efeitos. Houve um aporte significativo de recursos do governo nas companhias aéreas, até porque a manutenção da conectividade é fundamental para trocas comerciais, equipamentos de saúde, correspondências... Essa preocupação é setorial, e o futuro vai depender de como os representantes conseguirem ter seus pleitos e suas demandas ouvidos e atendidos.

Tem como estimar o prejuízo, no brasil e no mundo, com a crise? Quantos hotéis fecharão, quantas demissões haverá no setor?

As estimativas são as mais diferentes. Já se falou numa perda aproximada de R$ 4 bilhões no Brasil (dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) só nos primeiros 30 dias de isolamento. Fala-se em prejuízo menor e também maior. Mesmo que se tenha um número no Brasil, para o momento ele é subdimensionado, porque só vai levar em conta transporte e hospedagem e não vai considerar o impacto daqueles, entre outros, que viajam de carro para destinos próximos.

À medida que o comércio é reaberto, as pessoas voltarão às compras logo, mas o turismo não terá uma volta imediata: requer planejamento dos viajantes. Qual a estratégia para atraí-los?

Não se pode ignorar o quanto esse tempo de confinamento vai nos levar a repensar a alocação de gastos. No monitoramento das redes sociais, se percebe uma fala das pessoas de dar menos valor à posse e mais valor a vivências e experiências. Algo na linha de "vai que a gente morre ou vai que e isso aconteça de novo, então deixa eu aproveitar e fazer coisas legais". São sempre fotos de um momento e, talvez na hora que seja liberada a circulação, se apaguem todos esses desejos e se volte ao que era nosso consumo tradicional. Mas eu aposto, por essas falas, que teremos uma surpresa muito positiva, com o volume de pessoas interessadas em fazer turismo. Vai haver a valorização do fato de estar mais com amigos e familiares em lugares bonitos, interessantes para se guardar na memória.

Que efeito essa experiência deve ter sobre o overtourism? Será que governos terão de limitar o acesso, como já ensaiavam fazer em cidades como Barcelona, Veneza e Amsterdã?

A questão é qual turismo eles vão aceitar. Para Veneza, por exemplo, o turismo massificado dos navios é muito importante para a retomada da economia rapidamente - a cada navio descem 3 mil pessoas, enquanto de um avião são 200. A cidade é hoje praticamente um museu, mora na ilha principal só quem tem negócio, a população se mudou para outros pontos ou porque se sentiu incomodada ou porque ficou caro demais. Pode até haver o grito de ambientalistas ou de pessoas responsáveis, mas quem toma as decisões é quem está vinculado à exploração comercial. 

Eu espero que isso até mude, tendo visto a recuperação ambiental, a qualidade do ar, a possibilidade de preservação, quem sabe imbuídos de uma ideia de "vamos cobrar um pouco mais para selecionar volume, selecionar público". Mas não sei se teremos esse nível de evolução. Amsterdã e Barcelona se promoveram muito, com dinheiro público inclusive, e não mediram as consequências do que é ter essa promoção bem-sucedida. São três casos de sucesso de promoção e posicionamento sem uma política de contingência. Eu adoraria que houvesse uma reversão, mas depende de força política. Sem contar também que turista tem memória curta.

Que segmentos ou países, após a crise estar sanada, podem ser beneficiados do ponto de vista turístico? Alguns sairão com a imagem arranhada?

O que se tem falado muito é sobre quem conseguiu se ressignificar e trabalhar sua imagem. Companhias aéreas reduziram seus voos (no Brasil, em mais de 90%), com prejuízos milionários, mas estão transportando equipamentos e equipes médicas e, obviamente, fazendo uma divulgação disso. Muitas redes hoteleiras também estão dando suporte ou alojando equipes médicas, colaborando com alimentação etc. Muitos hotéis e hoteleiros que monitoro estão pressionando para a volta das atividades, mas, eu pergunto, de onde virão as pessoas para se hospedar? 

Não basta acabar com a quarentena. Quem se destaca neste momento é quem consegue dar sentido a sua operação mesmo fazendo um ajuste, como as fábricas que se ajustaram para fazer respiradores ou máscaras. Há muitos destinos e muitos produtos pensando em campanhas para além do "não cancele, adie". Já existem campanhas promocionais para o final do ano, para o ano que vem. Ninguém se arrisca a promover junho e julho, porque está tudo muito incerto, mas, a partir de setembro, há muita propaganda de viagens com preços convidativos. Quem sair do isolamento com recursos disponíveis vai ter chance de fazer viagens mais baratas do que fez nos últimos anos. Os preços vão começar bem baixos, para depois ir subindo e retomando um ponto de equilíbrio razoável.

Haverá consequências diferentes sobre o turista comum e sobre aquele que busca experiências diferentes ou lugares inusitados?

Não dá para pensar no turista comum como um tipo só. O turismo foi o setor mais afetado nessa crise não só pela questão financeira, mas por conta da conectividade e da globalização. Uma consequência imediata pós-pandemia é que, na retração da renda familiar, uma primeira despesa eliminada vai ser a despesa com turismo. Ninguém vai colocar como prioridade, numa família, gastar em férias se alguém perdeu o emprego. O turismo organizado, esse que se pode pagar parcelado e que tem hotel-avião, esse talvez se ressinta das consequências econômicas da pandemia. 

O turista deve migrar para alternativas mais baratas, para plataformas de aluguel, mais em conta do que hotel, onde se pode controlar melhor a higiene, preparar a própria comida e viajar em veículo próprio, alugado ou de ônibus. Não se elimina a prática, mas muda-se o padrão de gastos. Pode ser que se tenha como consequência que o brasileiro mais abastado, que não vai poder viajar para fora, alimente nossas estruturas mais caras. Mas o maior volume de fato deve ser num raio de cem a 200 quilômetros da residência das pessoas, com os maiores gastos em alimentação e combustível. Curiosamente, esse não é um turismo metrificado no Brasil, ninguém nunca o mediu.

Durante o isolamento, centenas de museus, monumentos e cidades colocaram à disposição das pessoas passeios virtuais. É uma tendência a se consolidar? Muita gente vai se satisfazer com essas visitas e dispensar o conhecimento in loco?

Muitos se interessam, participam das mostras virtuais e, ao contrário do que se imagina, muitas das que fazem a visita virtual têm relatado o desejo ampliado de conhecer o lugar. É claro, vai depender muito do seu foco e de como se estruturarão para visitá-los. Vivemos a década das redes sociais e dos destinos instagramáveis. Há um grupo muito grande de pessoas que visita atrativos para dizer que visitou, para um certo exibicionismo. Não acredito que isso vá mudar. Possivelmente a gente vá ter mais posts com pessoas de máscara, por exemplo, mas não creio que as visitas virtuais venham a competir com as visitas reais. Ao contrário: posso até apostar que muitos atrativos, depois da crise, vão cobrar um valor simbólico pelas visitas virtuais e conseguir ter uma fonte de renda extra.

Como a pandemia vai impactar o comportamento dos turistas in loco? Vão evitar feiras populares e ambientes fechados?

Não consigo ter certeza. Museus e igrejas vão determinar as aglomerações possíveis ou não. Mas o turista médio não vai se furtar da aglomeração. Acho que pode haver mais responsabilidade do atrativo, mas não do turista. Não é esse confinamento que vai mudar o comportamento coletivo, cultural. A aglomeração típica do brasileiro, das praias, das feirinhas, dos shows, só pelas lives, já se vê que não vai mudar. Talvez o turismo de família, de pais com crianças, talvez isso se demore a ser retomado.

as viagens em excursão tendem a ser menos ou mais buscadas?

Não dá para vaticinar agora, vai de novo depender do público. A excursão, a viagem em grupo, com 30, 40 pessoas, tem um aspecto cultural e divertido que muita gente valoriza. Ela é viável economicamente, interessante culturalmente. Vai demorar mais a voltar, mas não vai desaparecer.

Imagina-se que as autoridades vão exigir medidas sanitárias rigorosas de hotéis, pousadas e meios de hospedagem tradicionais, mas como será com os aluguéis por temporada, já que não se sabe que tipo de cuidados seus donos terão?

Por mais que a gente tente ver o coletivo, essas relações são sempre um a um. Você pode fazer um comunicado amplo para 5 mil pessoas, mas são indivíduos que estão lendo isso. O poder de comunicação de plataformas como Airbnb, Expedia, HomeAway etc. é muito grande e eles têm se articulado, internacionalmente, não só para dar suporte aos seus hosts, mas a compartilhar informações. O segredo vai estar na comunicação e na percepção do consumidor, se aquele é um lugar seguro para estar ou não. É o que vai garantir a sobrevivência de cada negócio.

os brasileiros terão mais medo de sair do país ou os estrangeiros de vir ao Brasil?

Se não houver restrição na mobilidade dos brasileiros para ir ao Exterior, não haverá redução no volume. E não porque eles não vão ter medo, mas porque já terão sido alvo de campanhas mostrando que tipo de riscos que se corre.

De que forma o Brasil pode aproveitar o atual momento?

Não há uma compreensão política, e nem no senso comum, de como o turismo funciona de verdade. Às vezes se põe tudo numa conta só, e talvez agora fique mais clara a separação. Houve uma live do ministro do Turismo em que ele falou que manteria todas as verbas de promoção internacional do país assim que a pandemia fosse administrada. Ele usou o exemplo do México, como se fosse uma variável 1 e 1: o México investe X milhões de dólares e recebe X milhões de turistas, sem considerar que o México está do lado dos EUA e que é um destino barato para os norte-americanos. Ele fala isso descolado da realidade. O Brasil hoje se alinha a países na insanidade de quem chegou a negar a pandemia. 

Já vínhamos com a imagem corroída, especialmente com a questão ambiental, desde a posse do atual presidente, ocupando manchetes internacionais sempre com notas negativas, e o turista internacional que visita o Brasil é mais esclarecido, não é um turista massificado. Os dados pré-pandemia mostram que só de 5% a 6% do nosso turismo é internacional, o restante é turismo doméstico. A imagem do Brasil está corroída e não tem verba de promoção suficiente para descolar isso do que o governo está fazendo com o país. A sensação que tenho é de que, a menos que a gente consiga chegar a algo comparável com o que se chama de normalidade, o nosso turismo receptivo estrangeiro vai ficar muito comprometido.

Há como medir se isso vai levar a um aumento do turismo nacional?

Por enquanto, são só exercícios, não se chega a um número final. Cidades como Gramado e Canela, por exemplo, vão ter de analisar quanto custa fazer promoções, convidar as pessoas. Quem estiver mais perto, consegue enxergar melhor isso. Se você estiver a uma hora e meia, se chegar ao destino e alguma coisa der errado, não custa voltar para casa, o nível de frustração fica reduzido. No Brasil, as viagens vão recomeçar 100% com turismo de cem quilômetros, até setembro e outubro, e só então o turismo regional aéreo irá voltando aos patamares anteriores. 

Até lá, eu descarto o internacional. O aéreo no Brasil só começará a ser retomado em junho. Há de se pensar também na situação socioeconômica das pessoas. Hotéis mais caros de Gramado, provavelmente, vão ter de voltar ao patamar das tarifas de 2015. No Brasil, 2014 foi o nosso melhor ano, de receita e ocupação. E 2020 era o ano em que se ia retomar o patamar de 2014. O ano de 2020 ainda não está perdido, porque janeiro e fevereiro foram espetaculares para o turismo nacional, no mínimo 20% melhores do que 2019. Havia uma previsão de crescimento de 8% em 2020 em relação a 2019, pelos dados oficiais.

Onde devem ser gastos os poucos recursos públicos para o turismo pós-crise no Brasil?

Já deveriam estar sendo gastos ou pelo menos direcionados para uma orientação de sobrevivência: maior comunicação sobre as linhas de crédito e sobre adiamento ou suspensão de impostos, todo empenho na manutenção dos empregos. Vi pouquíssimo disso.

O TURISMO NUNCA FOI UMA POLÍTICA DE ESTADO NO BRASIL E, COM A ATUAL ESTRUTURA DO MINISTÉRIO DO TURISMO, QUE ABARCA TAMBÉM A CULTURA, PODE SER AINDA MAIS DIFÍCIL SAIR DESSA CRISE?

Tenho consumido notícias avidamente e vejo quase nenhuma ação para produtores culturais, atores, músicos. Minha expectativa era de que ao menos houvesse informações sobre como conseguir acesso aos créditos, como manter as empresas ativas e sobrevivendo ao período de crise, seja por isenção, por financiamento de longo prazo. O turismo não tem protagonismo e a cultura, menos ainda, no atual governo. É preciso que os gestores públicos lembrem-se de que o setor é um grande empregador e é fundamental para a qualidade de vida. Sinto que retrocedemos muitos anos. As estratégias que têm saído do Turismo são arcaicas, de uma visão próxima da dos anos 1970. Não consigo esperar absolutamente nada. 

ROSANE TREMEA


25 DE ABRIL DE 2020
DRAUZIO VARELLA

CORONAVIRUS ENCARCERADO

Em uma prisão de Ohio, nos Estados Unidos, 75% dos presos foram infectados. Com cerca de 800 mil aprisionados, o Brasil tem a terceira população carcerária do mundo. Em números absolutos, perdemos apenas para os Estados Unidos e a China. Temos mais gente atrás das grades do que a Índia, país com mais de 1,2 bilhão de habitantes.

Décadas de descaso e de ausência de uma política penitenciária que se aproxime desse nome deram origem a prisões superlotadas em que os homens são empilhados como nas latas de sardinha. Cadeias em que o número de presos ultrapassa o dobro ou o triplo da capacidade das instalações são a regra. Visitei um presídio na Grande Recife com 4.100 homens acotovelados num espaço programado para menos de 800. O diretor e eu só conseguimos nos esgueirar no meio deles graças aos préstimos de dois presos que abriram caminho.

A sociedade convive com essa insanidade com a sabedoria dos avestruzes. A filosofia do "eles têm que sofrer para aprender" e a do "bandido bom é bandido morto" conta com multidões de adeptos fervorosos. A principal consequência desse aprisionamento em massa foi o surgimento do crime organizado, praga que se alastrou pelos quatro cantos do país.

Agora, o coronavírus vem cobrar a conta. Como evitar que ele se dissemine nas celas em que os presos dormem no chão, os pés de uns quase colados à cabeça dos outros?

Vejam o que acontece nos Estados Unidos. Uma prisão estadual de Ohio - Marion Correctional Institute - que alberga cerca de 2.400 homens encontrou 1.828 infectados pelo coronavírus, ou seja, três quartos do total. Os testes mostraram que 103 funcionários foram positivos, dos quais um veio a óbito. Não houve mortes entre os condenados.

Essa cadeia é considerada a maior das fontes de infecção já documentadas no país. Atualmente, de cada cinco casos existentes em Ohio, um está ligado ao sistema penitenciário.

De acordo com o Times Tracking Data, nos Estados Unidos, os homens mantidos em cadeias ocupam o quarto lugar entre as 10 fontes mais importantes de infecção. Esses números provavelmente subestimam o total, uma vez que a maior parte das penitenciárias não testa os detentos, ao contrário do que faz o Estado de Ohio.

O British Medical Journal, uma das revistas médicas mais importantes, publicou um editorial com o título: "Libertação segura de prisioneiros poderia reduzir a transmissão para a comunidade", no qual aconselha a adoção das medidas recomendadas pela OMS, para avaliar risco, adotar medidas de prevenção e de controle da infecção nas prisões. O editorial diz que: "Além das medidas para melhorar as condições de higiene, testagem e isolamento dos prisioneiros infectados, estratégias de libertação deveriam ser consideradas prioritárias, dada a evidência de que a disseminação em espaços confinados está associada à transmissão comunitária ampliada".

E acrescenta: "O Irã libertou 85 mil prisioneiros, dando prioridade àqueles com comorbidades, e países como Afeganistão, Austrália Etiópia, Canadá, Alemanha, Polônia e Reino Unido estudam medidas semelhantes".

DRAUZIO VARELLA


25 DE ABRIL DE 2020

MONJA COEN


MOSTEIRO ZEN


Isolamento social pode ser uma ação voluntária ou pode ser uma obrigação desagradável. Você escolhe! Durante 12 anos, morei no Japão. Oito anos em um mosteiro zen feminino, na cidade de Nagoya. O mosteiro está localizado em uma ladeira estreita, onde mal cabem dois carros simultaneamente. Há casas e edifícios residenciais. Há três templos budistas. O terceiro é o mosteiro.

Residi cinco anos em sistema de internato e três em semi-internato. Durante o semi, só ia ao mosteiro para retiros e atividades específicas. O resto do tempo morava em um templo nas proximidades do Monte Fuji. Lá era eu e eu mesma. Eu e eu mesma era toda a vida da Terra: pássaros, rochas, árvores, frutos e flores, animais silvestres, cobras, sapos, lagartos, ratos e a imensidão do céu.

O silêncio! Trabalhava muito em faxinas e cortando, podando árvores, orando e meditando. Estudava, lia textos sagrados e escrevia minhas teses finais do mestrado.

Sentava-me em Zen, meditação silenciosa, muitas vezes ao dia. Antes e depois de estudar, além dos períodos regulares de um mosteiro zen: O primeiro, antes do amanhecer. O segundo, antes de almoçar. O terceiro, antes do jantar.

O quarto e o quinto períodos, antes de dormir. Quando conseguimos viver dessa maneira, tudo se torna claro e se encaixa de forma tão precisa, que fluímos com o fluir da vida. Seguir o curso da natureza é uma das maneiras mais saudáveis de viver. Relacionamentos humanos são difíceis de serem mantidos em harmonia e respeito. Ficamos ofendidas, tristes, magoadas, bravas, impacientes, intolerantes.

Estou há cinco semanas no templo em São Paulo. Faz-me lembrar o mosteiro e também o templo da montanha, pelo silêncio e pelas práticas de zazen. Uma casa comum, com um jardim na frente e outro atrás. Oro todas as manhãs para que as drogas certas sejam descobertas e haja cura e recuperação. Agradeço à vida e a cada instante de vida.

Fique em casa e faça de sua casa um local sagrado. Não que isso tornará os relacionamentos mais fáceis, mas você poderá se tornar mais consciente de si mesma. Como fala? Como anda? Como pensa? Está sendo acolhedora, sábia, gentil e compassiva com todos? Ou há alguns que você privilegia e outros não?

Perceba como podemos nos tornar intolerantes com o mundo, a vida, personagens da política, até mesmo com pessoas próximas e queridas.

De repente, pare e faça nada. Olhe para o céu. Ouça os pássaros, respire consciente e profundamente, sem pressa. Saboreie o ar que entra e sai. Deixe de lado as preocupações. Esteja presente no agora. Sem apegos e sem aversões, o Caminho é livre.

Fique em casa e evite contaminar ou ser contaminada. O sistema de saúde agradece - médicas e médicos, enfermeiras e enfermeiros, fisioterapeutas, o pessoal da administração, da faxina, da alimentação, do transporte... Vamos participar oferecendo o que temos: a quietude, o ficar em casa, o lavar as mãos e uma ternura por todos os seres.

Quando chegar a hora de voltarmos às ruas, ao trabalho, às aulas, lembre-se dos cuidados necessários. Sem beijos e sem abraços, como budas e bodisatvas, seres sagrados, vamos nos cumprimentar com as mãos unidas, palma com palma e reverenciar quem encontrarmos, à distância, todos usando máscaras. Mãos em prece

MONJA COEN


25 DE ABRIL DE 2020
DAVID COIMBRA

Bolsonaro precisa se afastar

Há menos de duas semanas, escrevi uma crônica debaixo do seguinte título: "Bolsonaro acabou".

Esperava que a confirmação da minha análise se desse em alguns meses, possivelmente até o fim do ano. Mas Bolsonaro não cessa de nos surpreender com sua fúria autodestrutiva. Primeiro, demitiu o ministro da Saúde em meio à maior crise sanitária da história da humanidade nos últimos cem anos. Depois, forçou a demissão do seu ministro mais popular, Sergio Moro, por motivos, no mínimo, escusos. Bem.

Quando Moro aceitou o cargo na pasta da Justiça, há cerca de um ano e meio, tomou uma decisão muito ruim para ele, mas muito boa para Bolsonaro. Na sexta, ao deixar o cargo, Moro tomou uma decisão ótima para ele e péssima para Bolsonaro.

Moro saiu de forma impoluta, de queixo erguido, reafirmando sua independência e, de certa maneira, reconquistando um prestígio profissional que havia arranhado ao ombrear-se a um político polêmico como Bolsonaro. Moro, ao se demitir, se consagrou. Se quiser continuar na política, será, pelo menos no momento, o mais forte nome na campanha à Presidência da República.

Já Bolsonaro sofreu um abalo irrecuperável. Em sua despedida, Moro fez revelações que devem, nos próximos dias, gerar graves processos judiciais contra o presidente. Afinal, o ex-ministro disse, entre outras coisas, que Bolsonaro está promovendo mudanças na Polícia Federal para interferir em investigações que estão apontando seus filhos como praticantes de ilícitos. Há aí, no mínimo, prevaricação, tráfico de influência e obstrução de justiça. Ou seja: sérios crimes de responsabilidade, passíveis de impeachment. São acusações muito mais pesadas do que as que removeram Collor e Dilma do poder.

Como vão reagir as instituições diante dessas denúncias? Como vão reagir os eleitores de Bolsonaro? Não há como ficar indiferente a tamanho escândalo.

O cidadão brasileiro que se indignou com a corrupção das gestões do PT, que saiu às ruas para gritar fora Dilma, que não aguentava mais um governo que se apropriava do Estado em benefício próprio, esse cidadão tem, agora, o dever de repudiar um presidente que usa o governo como um tacape institucional a fim de proteger seus filhos.

Bolsonaro governa como se administrasse uma quitanda, não como presidente de uma nação traumatizada pela instabilidade econômica, pelas ameaças à saúde e pelo caos político. Não bastasse tudo isso, ele foi à TV, no fim da tarde de sexta, e cometeu um pronunciamento destrambelhado na forma e inconsistente no conteúdo, sem conseguir responder a uma só denúncia feita por Moro e fazendo uma salada verbal de tal maneira ilógica, que desperta preocupações acerca de sua sanidade emocional.

Trata-se, talvez, do momento mais dramático de tantos momentos dramáticos que o Brasil enfrentou nos últimos 10 anos. Estamos em meio a uma pandemia, sofrendo com uma explosão de desemprego e de falências, estamos inseguros e incertos a respeito do futuro. Não é hora para conflitos políticos. Não é hora de desagregar. Bolsonaro, se for realmente o patriota que alega ser, deveria licenciar-se do cargo, deveria se afastar até que a crise seja solucionada. Em nome da união. Em nome da paz. Em nome do Brasil.

DAVID COIMBRA


25 DE ABRIL DE 2020
MÁRIO CORSO

As metas para a quarentena

Já é possível encontrar mil dicas de como levar a quarentena. E são bem-vindas, estamos todos tristes, abatidos. Sem falar no medo por si e seus queridos e na contabilidade das perdas econômicas, que até de Buda tiraria o sono.

Queria deter-me em uma dica: a que coloca metas de aproveitar o tempo livre para fazer coisas que não se consegue fazer usualmente. Essas que sugerem ler clássicos, fazer um curso a distância, estudar uma nova língua, e outras coisas nessa direção.

Primeira questão, o tempo livre para a maioria das pessoas é zero. São poucos os privilegiados. Quem tem filho pequeno está ainda mais exigido.

Segunda questão, temo que esse conselho passe a ideia de que estamos em férias, ainda que forçadas. Ora, é impossível não se dar conta de que passamos por uma situação duríssima. Assistimos ao túnel do tempo. O morticínio que está acontecendo agora na Europa e nos EUA viveremos daqui uns dias.

Ainda não há remédio para covid-19. Não há horizonte de vacina, nem sabemos se é possível fazê-la. Por exemplo, para o HIV - que causa a aids - nunca se conseguiu. Não há nem a certeza de que se saia imunizado depois da doença.

Pode mudar tudo amanhã, mas ainda não chegou esse amanhã. Aliada à pandemia, temos a politização delirante de um problema de saúde pública, que polariza até o uso de medicamentos, tornando pior o que já é difícil. Viver essa angústia consome parte da nossa energia psíquica. Sentimos o cansaço típico do estresse de dias difíceis.

A ideia de enriquecimento intelectual durante a quarentena parece boa, mas não seria uma exigência de seguir produzindo? Ultimamente nos tornamos o inclemente patrão de nós mesmos. A doença símbolo do nosso tempo é a síndrome de burnout: pessoas demasiado duras consigo, que se levam ao esgotamento físico, não raro, autoimposto. Excelência de rendimento durante a pandemia só faz sentido nessa lógica.

Estabelecer essas metas não seria mais uma forma de negação de que todos vamos perder com a quarentena? Ninguém está tão com o boi na sombra que não vá sentir o golpe de pagar a conta da pandemia. Essa vontade de emergir maior desse período não seria uma maneira de dizer: "Eu não vou perder, vou sair mais rico dessa experiência"?

Na prática, provavelmente será o contrário, vamos sair empobrecidos. A meta razoável é sobreviver com saúde e especialmente saúde mental. Isso já é pedir muito. Portanto, tem cuidado para as metas serem sensatas. E, se alcançares algo a mais, parabéns.

A maior cobiça que nos cabe é garantir a sobrevivência e a manutenção dos laços. Os vínculos têm sido postos à prova: as famílias vão sair desgastadas, os casais machucados e as relações com os filhos avariadas. Esse é o maior desafio. Não penses alto, pensa em manter o que tens e cuidar dos mais frágeis.

MÁRIO CORSO

25 DE ABRIL DE 2020
DUAS VISÕES

Soube que conversei com Deus

Sou grato pela vida. Agradeço por minha família, amigos e, desde o mês passado, pelos médicos, enfermeiros e técnicos que, expostos ao risco de contágio por um vírus que mata milhares, me seguraram aqui.

Posso dizer que duas tossidas ao telefone salvaram a minha vida. Foi em 18 de março. O amigo e infectologista Fábio Pedro havia me ligado para agradecer o apoio que prestei à fundação do Lauduz, serviço gratuito com atendimento médico por telefone em Santa Maria, quando tossi. Fábio me mandou procurar a Unimed. Liguei, desconfiado, e outro amigo atendeu, o médico Alberto Riesgo. Ele pediu que eu fizesse, naquela noite, o teste para o coronavírus.

Enquanto aguardava o resultado, que sairia em oito dias, fiquei isolado em casa. Na tarde de domingo, dor de cabeça e febre alta me levaram ao hospital da Unimed. Sou grato por ter caído nas mãos de médicos competentíssimos: Fábio, Jane Costa, Ivana Cassol e Thiego Cavalheiro.

Um exame no tórax mostrou lesão no pulmão. Resultado: nove longos e dificílimos dias no hospital. Na terça-feira, a febre foi a 40 graus e o pulmão piorou. Angústia ter uma doença sem tratamento comprovado. Você toma remédios - no meu caso um coquetel que incluiu a hidroxicloroquina - sem saber se funcionarão. Agradeço a competência dos médicos.

Ainda naquela terça, o boletim foi terrível. Minha esposa, Sandra, e filhas pediram orações por mim. Recebi centenas de mensagens. Nunca imaginei ter tantos amigos.

Na sexta-feira, eu me sentia melhor, ainda sem entender o que havia acontecido. Depois, soube que conversei com Deus. Não era a minha hora. Continuei o tratamento, as enfermeiras e enfermeiros foram fantásticos e prestativos. No domingo, após uma semana de internação, uma surpresa. Vi a Sandra na porta do quarto.

- O que fazes aqui?

- Vim te acompanhar - respondeu ela, que ficou cinco dias hospitalizada com covid-19.

Desconfio que peguei o vírus em uma feira em São Paulo ou no Gre-Nal da Libertadores. Minha mãe, Walkíria, 85 anos, teve sintomas compatíveis com a covid-19, mas depois de dois dias internada o exame deu negativo. Um alívio. Agora, estamos todos em casa e melhorando.

Devagar, voltei a pedalar. Preciso pegar leve, mas foi tanta gente rezando pela minha saúde, que precisei ir ao san- tuário agradecer à Mãe Rainha de Schoenstatt. Tenho certeza de que a santa, junto às orações, ajudou a equipe do hospital a me trazer de volta. Não canso de repetir: a vida é bela.

Empresário Valnei@walterbeltrame.com.br

25 DE ABRIL DE 2020
ARTIGOS

O MINISTRO QUE CITAVA PLATÃO


De tudo o que escutei na pandemia, a citação do "mito da caverna" pelo ministro foi a melhor. Alude ao presidente e sua corte, que insistem em interpretar eventos sanitários como miasmas a serem enfrentados com alquimia.

O ministro refere-se aos seres acorrentados na escuridão da caverna, tendo como fonte de conhecimento apenas sombras projetadas nas paredes pelos clarões das fogueiras. Eles vivem nas trevas, impossibilitados de ver a luz que há do lado de fora.

O mito, contudo, vai além. Platão descreve os "amos da caverna", que atuam na tortuosa passagem da escuridão à luz. Alguns lá estão para manter a maioria acorrentada à ignorância. Outros, por terem visto a luz, sentem a necessidade de a ela retornar, para libertar os demais. É o que chamamos "fraternidade".

É o que se lê na obra A República. Nela, Platão registra o que aprendeu com seu mestre, o grande filósofo Sócrates, que muito pensou e nada escreveu. Além da metáfora da escuridão e da luz, a ignorância e o conhecimento, há esta da fraternidade, privilégio de uma minoria capaz de transformar saber em sabedoria.

Saber é conhecimento. Sozinho, não basta. Sabedoria é usar o saber para entender o que vale realmente na vida. É reconhecer a diferença entre "ter" e "ser", ou seja, entre a busca fútil somente de bens materiais e as virtudes do encontro da vida espiritual, que vêm do amor, justiça e fraternidade.

Se a luz do sol é a metáfora do conhecimento, distinguir valores permanentes dos efêmeros é a da sabedoria. Platão diz que a felicidade das pessoas na "polis", a cidade, depende de como ela é estruturada. Ele defende que sua liderança deve ficar a cargo dos chamados "guardiões", seus melhores tipos humanos, cuja sabedoria salvaguarda a justiça e os valores mais elevados.

Ele chama os cidadãos de "politikos", termo que no grego possui a mesma raiz de "polis", cidade-estado ou sociedade organizada. "Civitas" é a tradução latina de "polis", cuja origem é a mesma de "cidade, civil e cidadão". "Civilidade" é o viver harmônico em comunidade.

O nome do ministro remete à região de Capaccio, na Campânia, sudeste da Itália. Nápoles é sua capital. Seus cidadãos, ou em grego "politikos", conhecem bem o Monte Vesúvio, que fica próximo. Sabem que, quando os deuses são contrariados, o vulcão lança à superfície as lavas das fogueiras da caverna. E é melhor não estar por perto.

Médico gilbertoschwartsmann@gmail.com - GILBERTO SCHWARTSMANN

25 DE ABRIL DE 2020
ARTIGOS

DESACELERE

A epidemiologia é uma disciplina que se ampara nas ciências sociais para a compreensão das comunidades e na matemática para noções estatísticas de probabilidades e estimativas. Mais do que nunca, nesta pandemia provocada pela covid-19, precisaremos da epidemiologia para o entendimento do que está ocorrendo e de quais as medidas mais adequadas à saúde coletiva.

É imprescindível que se faça uma análise ampla, profunda e fundamentalmente científica do que está acontecendo no Brasil e no mundo. É preciso que sejam refutadas quaisquer comparações de mortalidade ou letalidade da covid-19 com outras doenças como febre amarela, zica, dengue ou H1N1, entre outras.

A grande e decisiva importância das medidas de distanciamento social está na redução da velocidade de contaminação. Com um retardo na curva evolutiva de novos casos, poderemos nos preparar com maior eficácia, aumentando a quantidade de profissionais, leitos, equipamentos de proteção, estoques de medicamentos etc.

Aliás, essas medidas deveriam fazer parte de políticas permanentes de saúde, infelizmente, só agora muitos percebem a importância da valorização dos trabalhadores da saúde, do SUS e de como a falta de investimentos na pesquisa científica pode cobrar um preço tão elevado. É importante desacelerar o ritmo de contaminações, precisamos ter a noção de que estamos enfrentando um vírus que, até hoje, já contaminou quase 3 milhões de pessoas, matando mais de 190 mil delas. Convém ressaltar que esses são os números oficiais, certamente, subestimados.

É imperioso evitar o colapso do sistema de saúde, pois, as UTIs disponíveis não seriam suficientes para a demanda provocada pela covid-19. Corremos o risco de não oferecer tratamento à população, portanto, faça sua parte, ajude a diminuir a velocidade de transmissão do vírus, desacelere, pratique o distanciamento social.

Mestre e doutor em Epidemiologia, professor de epidemiologia da UFRGS petry.paulo@gmail.com
PAULO C. PETRY

25 DE ABRIL DE 2020
FLÁVIO TAVARES

NOSSO ROSTO


O rosto é o primeiro sinal do que somos e, assim, encobri-lo foi, até aqui, uma forma de esconder nossos desejos ou atos vergonhosos. Pelos séculos, nos mascaramos para ocultar o que os outros não deviam perceber. Só na folia do Carnaval ou na seriedade dos hospitais, a máscara não escondia alguma maldade.

A covid-19 mudou até isto. Agora, máscara tornou-se sinal de proteção à vida, ou materialização da esperança, uma boia a quem se afoga. Nenhum tratado ou pesquisa jamais imaginou que, em pleno século 21 (quando pensávamos haver dominado tudo na ciência), um vírus espalhasse terror similar ao da peste bubônica do sombrio século 14.

Por isso, não uso metáforas poéticas para transmitir paz neste momento de aflição e medo. Só o alerta em torno do perigo nos fará vencer e conquistar a paz. Um inimigo invisível nos ataca e não vamos desviá-lo com palavras floridas, mas com prevenção e cuidados.

Toda pandemia nasce da degradação do hábitat humano, seja de que tipo for. O diretor científico da Organização Mundial da Saúde (OMS) advertiu, agora, para "uma tragédia ainda maior" a ser provocada pelas mudanças climáticas em poucos anos. Mas seguimos usando combustíveis fósseis, como petróleo e carvão, sem desenvolver a energia do sol, dos ventos ou dos mares.

No Brasil, nem sequer entendemos que toda peste se propaga pelo contágio. E nos expomos ao ridículo de aguentar disparates absurdos como os do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ao inventar que o novo coronavírus é "obra dos comunistas". Esta invencionice idiotizante mostra o outro rosto do momento - o desdém de boa parte do governo federal, a começar pelo presidente, tapando os olhos no triste momento atual.

Neste cotidiano de rostos com máscaras, as aglomerações continuam na Capital, e, em muitos lugares, sem mascarados. É o caso de algumas grandes redes de supermercados ou pequenos armazéns de bairro, onde nem quem lida com dinheiro protege boca e nariz. Mas também conheci um "súper" na vizinha Eldorado onde só entram oito pessoas após se limparem, na porta, com álcool gel.

Usar máscaras no transporte coletivo é medida imprescindível e devia se estender a toda atividade pública. A tal de "flexibilização" não pode virar um carnaval de perversão sanitária. Basta já o que ocorre hoje, com o aumento de preço de certos insumos básicos, e que nem sequer se destinam aos sacrificados produtores, mas à voraz intermediação.

É absurdo esperar pela vacina, ainda em testes. Se aprovada, a produção levará meses. Restará, então - como em Manaus - que a "contingência funerária", com enterros em valas comuns, supere a "contingência sanitária". Nosso rosto, então, será fúnebre.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

25 DE ABRIL DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO

Fora do Brasil, Moro é mais popular do que Bolsonaro

Excetuando-se jogadores de futebol e estrelas do show business, Sergio Moro é o brasileiro mais conhecido atualmente no Exterior e isso se deve à maneira como ele transformou a Lava-Jato em case internacional de luta contra a corrupção.

Por conta da imagem de justiceiro, é comparado pela mídia global a Giovanne Falcone, o juiz que empreendeu uma cruzada contra a máfia siciliana até ser assassinado no início dos anos 1990 - antes inclusive da Operação Mãos Limpas, inspiração do brasileiro. Moro tornou-se estrela de eventos pelo mundo, dando palestras de Columbia, em Nova York, a Heidelberg, na Alemanha.

A demissão do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta já provocou estranhamento no mundo porque é incomum uma troca de comando de alto escalão em meio a uma crise global como uma pandemia. A saída de Moro provoca ainda maior impacto.

O ex-juiz federal, ao ser levado para o Planalto, concedeu a Bolsonaro a imagem internacional de um governo comprometido com a nacionalização da luta contra a corrupção e contra a criminalidade, infelizmente dois fenômenos pelos quais o Brasil é conhecido fora de suas fronteiras. Uma amostra do tamanho de sua projeção era o site do The Guardian, no dia em que foi indicado para a pasta, em novembro de 2018. 

Das 20 notícias publicadas na seção de Americas do no site, pelo menos a metade falava de Bolsonaro e Moro. Do mesmo tamanho de suas vitórias, também foi a repercussão negativa quando, em 2019, vazaram as trocas de mensagens entre procuradores da Lava-Jato e o então juiz, divulgadas por The Intercept. O francês Le Monde questionou à época: "E se o maior escândalo de corrupção na história do país tivesse sido manipulado?".

Fora do governo, Moro foi destaque internacional na sexta-feira. Um dos primeiros a noticiar sua saída da Esplanada foi o Expresso, de Portugal. Na reportagem, o site destacava que, internamente, ele desfruta de popularidade maior do que Jair Bolsonaro. A repercussão lá fora, que atingia todos os continentes, indica que o agora ex-ministro é mais popular do que o próprio presidente.

RODRIGO LOPES

25 DE ABRIL DE 2020
+ ECONOMIA

O futuro do país entrou nos gráficos

Se na manhã de sexta-feira a preocupação no mercado financeiro era a sustentação do governo Bolsonaro sem um de seus principais pilares, o agora ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, no final do dia o temor passou a ser com os rumos do Brasil depois das revelações feitas pelo ex-ministro. No horizonte do mercado financeiro, também se mantém a inquietação com o desgaste imposto ao ministro da Economia, Paulo Guedes.

A bolsa de valores encerrou com queda de 5,45% em um dia no qual a principal referência, a de Nova York, fechou em alta de 1,11%. Portanto, fica claro que o mercado operou com radar voltado para a crise institucional. O risco Brasil medido pelo Credit Default Swap (CDS) subiu acima de 370 pontos, depois de ter iniciado o ano perto de cem. Moro fez acusações de tentativa de interferência do presidente em investigações da Polícia Federal.

- Independentemente se Moro está certo ou não, a atitude do governo foi muito ruim. Em 10 dias, dois ministros importantes foram desligados. Entre os investidores, ficou a sensação de que há ingerência política. É por isso que a bolsa despencou e o dólar disparou. E há preocupações de que possa haver a saída de Guedes, o principal pilar do controle fiscal - observa o economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini.

Conforme Agostini, a preocupação do mercado é haver uma guinada na "gestão do governo", porque há uma aproximação com o centrão e mudança na Polícia Federal. O analista também aponta uma troca de protagonismo na economia: o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tem falado todos os dias em lives variadas, enquanto Guedes se recolhe ao silêncio.

- Moro não é o único pilar do governo, mas o deixa mais vulnerável - avalia Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV (antes Banco Votorantim).

A "resposta" de Bolsonaro veio quando o mercado já havia fechado, mas terá impacto na próxima segunda-feira, projeta André Perfeito, economista-chefe da Necton:

- O mercado vai manter o tom pessimista e, muito provavelmente, segunda-feira será um dia de mais realizações na chave da fuga para a liquidez. O dólar deve se manter em alta testando testar os R$ 6 ao longo da próxima semana.

a nossa parte #juntoscontrao vírus

Randon reforça produção de máscaras

O projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) de produção de máscaras ganhou reforço das Empresas Randon. O grupo vai fabricar duas peças fundamentais para a montagem do equipamento de proteção individual (EPI) que será destinado a profissionais de saúde e segurança que atuam no combate ao coronavírus. Parte da área de injeção plástica da Controil, controlada pela Fras-le, foi adaptada para a produção do suporte frontal de poliamida e de elásticos de termoplástico, usados na montagem dos protetores. Localizada em São Leopoldo (RS), a unidade é a única do grupo com a tecnologia necessária para esse tipo de produção. A adaptação da linha foi feita em parceria com a empresa Imer, de Porto Alegre. As 190 mil peças finalizadas estão sendo doadas para instituições hospitalares e para a Defesa Civil.

claudio frischtak Diretor da consultoria InterB

"O governo está dando tiro no pé do Brasil"

Claudio Frischtak comanda a consultoria InterB, especializada em infraestrutura. Com grande visibilidade internacional, é interlocutor frequente de investidores estrangeiros interessados em aplicar no Brasil. O economista confessa que ainda não terminou de entender o programa de investimentos públicos anunciado pelo governo na quarta-feira e garante que existe muito interesse em investir no Brasil, mas adverte que o "ruído de Brasília" é o maior obstáculo para que a capacidade de atração do país se concretize.

Qual o papel da infraestrutura no plano de reestruturação da economia?

Não está claro o que o governo está propondo. Em infraestrutura, está até um pouco mais claro. O programa como um todo, da forma como foi apresentado, não permite fazer afirmações de caráter peremptório, não se sabe exatamente o que é o programa conceitual, exceto na infraestrutura, que é o que vem se discutindo há mais tempo. O que entendi é que há um programa de investimento em obras públicas de R$ 30 bilhões com ambição de criar 1 milhão de empregos. Há uma relação razoável entre esses números, dependendo da natureza da obra, embora números muito redondos sempre incomodem.


É um bom sinal?


Há um problema básico. Já tivemos, no passado, programas de investimento em obras públicas, e o último foi um desastre. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), gerenciado pela ex-presidente Dilma, representou um desperdício enorme de recursos. O PAC 1 foi ruim, o 2 e o 3, horríveis. Acredito que talvez não seja tão diferente com este. A questão de fundo é que investimento público não funciona bem. A governança é muito ruim, o planejamento é débil. A qualidade dos projetos propriamente ditos deixa a desejar, a obra começa sem projeto executivo e a realização também enfrenta dificuldades. Temos um problema de governança do investimento público.

Em qualquer governo?

Sim, como a governança é frágil, não importa a boa vontade e a integridade do ministro, dos funcionários do ministério ou da direção do Dnit. A economia política é muito perversa, e continua com problema de captura. Ainda mais que, agora, tudo indica que o governo vai fazer aliança com o velho centrão, é um problema adicional. Não vejo como escapar da conclusão do TCU (Tribunal de Contas da União), de que mais de metade das obras do PAC foi paralisada por problemas de planejamento. Outro problema é o tom de emergência, de querer produzir resultados rápidos. Tende a aumentar o volume de problemas, como vimos no caso das obras da Copa e da Olim­píada. As da Copa foram eivadas de corrupção.

Qual seria a alternativa? 

A construção de uma carteira de projetos para licitar ao setor privado. É por isso que continuo não entendendo a natureza do programa. O investidor continua interessado.

O setor privado nacional tem capacidade?

Tem recursos, tem capacidade, tem interesse. O problema é o enorme ruído político que estamos vivendo. Gera grande incerteza, e o o setor privado tem horror a incerteza. E o programa introduz uma variável que não havia antes: o governo que se comprometeu em atrair o setor privado para investir em infraestrutura, que tem uma experiência exitosa de duas décadas, mesmo que tenha havido modelos malucos, como a privatização de aeroportos com 49% da Infraero, também no governo Dilma.

Se o governo estabelecer regras corretas, previsíveis, e apresentar uma carteira de projetos, vai atrair investidores, tanto do setor privado nacional quanto do internacional. Por isso, introduzir um programa de obras públicas hoje confunde mais do que esclarece. Tem espaço para obras públicas, que são aquelas para as quais há projetos executivos de qualidade, análise de custo/ benefício rigorosa, cálculo da taxa social de retorno e que realmente venha a resolver algum problema, desgargalar algum processo. Mas nos nossos cálculos, isso não chega a R$ 5 bilhões, nem perto dos R$ 30 bilhões mencionados.

Haveria interesse mesmo com economia anêmica?

É um complicador, mas converso muito com investidores O interesse em infraestrutura no país é muito elevado, isso é um fato. É claro que, agora, há volatilidade no câmbio, instabilidade. Mas o que afasta os investidores hoje é a incerteza. Quanto mais ruído vier de Brasília, e muito está sendo produzido, pior. Já tivemos problemas enormes na área ambiental, que atrapalharam, diminuíram o interesse. Veio a pandemia. Mudou o foco, mas ninguém esqueceu.

Agora há outro tipo de ruído. O presidente se destaca como um ponto fora da curva na percepção da pandemia. Isso é ruído desnecessário, afeta a imagem do país. E somos nós que estamos criando isso, não os investidores. O governo está dando tiro no pé do Brasil. O populismo, tanto de esquerda quanto de direita, faz muito mal ao país.

Há um ponto positivo no programa, chamado de "ordem"?

Previsibilidade regulatória e segurança jurídica são essenciais. O ordenamento correto é crucial. Mas aí também já tivemos problemas, quando o presidente decidiu ?não taxar o sol?. Não defendo uma posição ou outra, mas isso partir da Presidência é muito ruim.

MARTA SFREDO