sábado, 27 de junho de 2020



Bela Sem Alma


 Antonio Marcos - Linda e Sem Alma


Bella Senz'anima Riccardo Cocciante 


27 DE JUNHO DE 2020
LYA LUFT

Difícil ser feliz

Nestes dias sombrios, nestes tempos escuros, confusos, politicamente insanos e quanto à saúde do mundo mais confusos ainda, perigosos, assustadores - ou somos todos uns bobos manipulados??? -, parece até coisa de Pollyanna falar em ser feliz.

Parece mais um insulto, como dizer ao quase enforcado no cadafalso que assobie um sambinha. Está difícil. Estamos nervosos, irritados, assustados, ou fingindo não ser nada de mais e saindo às ruas sem máscara nem cuidado, todo mundo se contaminando, a covid piorando por quase toda parte, e a gente fazendo de conta que não é nada.

Ando cansada dessa loucura. Cansada do nosso mau humor, irritação, medo e agressividade ou falsa alegria porque temos medo. Me faltam palavras boas, bonitas, tranquilizadoras, porque está tudo muito ruim mesmo, e nem bandeira vermelha ou preta ou dos infernos convence muita gente a se cuidar. A ficar em casa se puder, a usar máscara e álcool gel, a não se amontoar. A não encher a paciência alheia com medos, sustos, fragilidades e humores péssimos.

Está difícil, sim. Nem pensar em ser "feliz", ou alegrinho, ou dançar e cantar, porque ficar meio calminho já é muito.

Além do mais, a política no país está um lixo, uma confusão, uma brincadeira de maus palhaços que nos submetem a caprichos, mentiras, horrores mil, e nem sabemos como reagir ou a quem reclamar.

O que está acontecendo neste país? Neste mundo em que o presidente do dito maior país do mundo brinca de modo sinistro com a peste do século 21? Não sei o que dizer nem a quem reclamar, mas, por favor, vamos procurar um pouco de calma e bom senso.

Meu pai, velho e brilhante advogado, dizia que a lei tem pouco a ver com bom senso. Pode até ser, ele sabia das coisas. A lei não garante a justiça, ok. Mas alguma sensatez, alguma grandeza, alguma bondade (be kind), algum respeito podem nos ajudar a passar por este tempo infernal, no qual talvez não muitos sobrevivam, mas os que sobreviverem terão de ser fortes, justos, iluminados e capazes de levar adiante este mundo em pandemia de doença e de inteligência, de calma, de grandeza.

Sim, hoje não estou boazinha. Eu não sou boazinha. Hoje não estou calma, não quero estar calma, nem parecer madura, ou velha e experiente, ou superior, com todos esses atributos que colocam em cima da figura de alguém velho, maduro, experiente e tudo o mais.

Não sei o que estamos fazendo conosco, nem uns aos outros. Sei que precisamos de solidariedade, camaradagem, rigor nos cuidados e seriedade no modo de encarar essa Peste que assola a humanidade inteira e não está de brincadeira, ah não.

Para que, tudo passado, a gente seja uma humanidade razoável, não um bando de trogloditas agressivos, grosseiros e cruéis.

LYA LUFT


27 DE JUNHO DE 2020
ENTREVISTA - CAROLINA CIMENTI, Correspondente da Globo em Nova York

"É uma honra estar aqui para testemunhar e reportar tudo"

Repórter da Globo desde 2013, a porto-alegrense Carolina Cimenti, 41 anos, é correspondente internacional da emissora em Nova York desde 2016. Presente na cobertura de diversos acontecimentos importantes na América e na Europa, a jornalista estava cobrindo intensamente as eleições norte-americanas quando a pandemia e os protestos antirracistas começaram a se alastrar pelos Estados Unidos.

Neste bate-papo, Carol, que é mãe da pequena Frida e casada com o músico gaúcho Josué Caceres, conta como é estar na linha de frente da informação em um momento como esse.

Nova York já foi considerada o epicentro da pandemia de coronavírus e, nas últimas semanas, foi palco de inúmeros protestos contra o racismo. Como é estar na linha de frente da informação em um momento histórico e sem precedentes como o atual?

São dois sentimentos conflitantes. O repórter sempre quer estar onde as coisas estão acontecendo. Mas quando se trata de uma pandemia, também dá um arrepio na espinha. Estar na cidade onde morreram mais pessoas no mundo com covid-19 chegou a ser assustador. Dava a sensação de que nunca ia acabar. Mas, hoje, dois meses depois, dá para dizer: acreditem, vai passar. Em relação às passeatas e aos protestos antirracistas, depois de cobrir dezenas de assassinatos de homens e mulheres negros desarmados nos últimos anos pela polícia norte-americana, parece ser um momento de despertar. 

Protestos gigantescos, pacíficos e muito bem organizados tomaram conta da cidade. E para quem acha que protesto pacífico não leva a lugar nenhum, essas pessoas, milhares de pessoas, estão transformando a polícia. Há discussão e reforma em vários Estados e, em Minneapolis, onde George Floyd foi assassinado, a polícia vai dar lugar a um novo sistema de segurança público. É um alívio, um respiro, um despertar contra o racismo e contra a violência policial. É uma honra estar aqui para testemunhar e reportar tudo.

Como foi o início da sua trajetória profissional, ainda aqui no Estado?

Eu saí de Porto Alegre com 23 anos, recém-formada (cursou Jornalismo na UFRGS), rumo a Roma, na Itália, para aprender italiano. Era para ser uma viagem de três meses. Se transformou em 12 anos morando fora: em Roma, em Bruxelas, Londres e Nova York. Antes de ir para a Europa, eu tinha trabalhado na (extinta) Rádio Ipanema, na Gazeta Mercantil e no portal Terra. Mas a maior parte da minha formação profissional foi como jornalista freelancer pela Europa e, depois, como correspondente do canal de economia e finanças norteamericano CNBC. Trabalhar como repórter de TV em inglês, aos 20 e poucos anos, me fez abrir os olhos para o seguinte: a gente se impõe muitos limites que não existem formalmente. Nada é fácil, mas nada é impossível também.

Qual é a maior dificuldade de estar longe da sua terra natal?

Neste momento, estar longe da minha família em meio à pandemia. Eu estou fazendo o que amo e onde quero estar. Mas o medo de não estar em Porto Alegre se a minha mãe precisar de mim é aterrador. Eu tento nem pensar muito nisso.

Estando em um país diferente, como o público local lhe recebe para uma entrevista?

Às vezes, com curiosidade e abertura. Outras vezes, com desconfiança. Depende muito da pauta, do momento e da pessoa.

E como é quando os brasileiros lhe reconhecem?

É uma delícia, uma alegria. Mas acontece muito pouco (risos). Esses tempos, uma senhora me reconheceu e me cobrou: "Carolina Cimenti, mas você parece alta na TV!". Eu me desculpei por ser baixinha (risos). Mas olha só, entrevistei a Lady Gaga, em março, e ela tem exatamente a minha altura (1m55cm). Nós temos potencial, apesar de tudo.

Como correspondente, qual reportagem foi a mais difícil de fazer? E qual marcou mais?

Os ataques a tiros, infelizmente muito comuns nos Estados Unidos, são sempre muito difíceis. Agora que sou mãe, então, fico muito mal. Mas acho que a cobertura mais difícil foram os ataques terroristas simultâneos em Paris, em 2015, quando eu estava lá de férias. Só eu, meu telefone e uma história gigante. Deu certo, por isso, estou aqui. As cinco vezes que cobri o Fórum Econômico Mundial foram muito marcantes. É um fórum muito curioso, onde estão os mais ricos e mais poderosos do mundo. Parece outro planeta. Lembro que, no mesmo mês, eu cobri o Fórum, na Suíça, e uma manifestação popular no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O mundo seria um lugar bem melhor se esses dois grupos tivessem mais contato.

Já trabalhou na Europa e, atualmente, está nos Estados Unidos. Tem o sonho de atuar em outro lugar?

Adoraria trabalhar na África do Sul ou na Índia, países que eu gostaria de conhecer e onde poderia aprender. Mas também adoraria voltar para a Itália um dia.

Como concilia a rotina jornalística com a maternidade?

A Frida (que nasceu em Nova York e está com um ano e meio) é uma menina muito paciente.

Ainda mantém laços com o Rio Grande do Sul? Tem algum familiar aqui ainda?

Muitos laços. Minha mãe, meu irmão e toda a minha família moram aí. Somos três gaúchos no Brooklyn, em Nova York.

AMANDA KHAL DE SOUZA


27 DE JUNHO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

E se não passar?

Estamos há quase quatro meses mergulhados numa pandemia que mudou nossos hábitos, nos impôs restrições, nos distanciou fisicamente e nos colocou frente a frente com nossas fragilidades. Vai ficar por isso mesmo?

Quando iniciou, parecia apenas uma onda gigante e repentina. Se soubéssemos nos manter à tona, boiando sobre ela, obedientes e respeitosos diante do seu tamanho, nada de muito ruim iria nos acontecer e logo reencontraríamos a calmaria.

É o que vem acontecendo nos países europeus, que estão retomando as atividades cotidianas, dando um passo de cada vez. O Brasil, caótico por natureza, vai levar mais tempo, nenhuma novidade. Três, seis, 10 meses? Quando teremos nossa vida de volta?

Talvez nunca, não como era antes. É provável que tenhamos que assimilar que a nossa atual precariedade determinará novos modelos de conduta daqui para frente.

Lavar as mãos, usar máscaras e evitar aglomerações: já estamos nos acostumando. Poderíamos nos acostumar agora com o desprestígio da ostentação e do consumismo delirante. Continuaremos comprando comida, roupas e remédios, precisaremos de um bom teto como sempre precisamos, mas nossos luxos talvez mudem - tomara que mudem. Hora de privilegiar as questões humanas, se soubermos aproveitar a oportunidade.

Não chego a falar de um renascimento espiritual, que soaria pomposo, mas acredito, sim, que a tendência é reavaliarmos nosso estilo de vida. As grandes metrópoles se tornaram zonas de contágio, e um êxodo urbano não seria má ideia: sair em busca de desintoxicação, mais atividades ao ar livre, cidades menores, menos concentração populacional.

A arte também se beneficiará desta pandemia. Não só por sua valorização evidente (o que teria sido de nós sem livros, música e filmes nesse longo confinamento?), mas também pelo surgimento de talentos até então desconhecidos: as pessoas foram obrigadas a descobrir em si algum dom - artes manuais, gastronomia, desenho digital, colagens, fotografia, vá saber quantos outros. A expressão artística poderá ser nossa grande contribuição à humanidade: não voltaremos a ser apenas consumidores de cultura, mas fornecedores também.

Não é se apegando a símbolos de status que prestaremos homenagem à nossa sobrevivência, e sim expandindo nossa criatividade, encontrando os amigos, bebendo e comendo com eles, namorando, celebrando as sensações, não as aquisições. Utilidades práticas seguirão bem-vindas, mas as utilidades emocionais é que definirão nosso bem-estar: meditação para dormir melhor, leitura para mais autoconhecimento, empatia a fim de reduzir desigualdades etc.

Já que esta crise é inevitável, que a gente ao menos transforme nosso espanto em sabedoria.

MARTHA MEDEIROS


27 DE JUNHO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Que saudade do Brasil da Tieta

Se tem coisa que todo mundo concorda é que não há como sofrer de tédio no Brasil de hoje. E isso em tempos de se fechar em casa por conta da pandemia. Bem verdade que, se as pessoas saíssem menos, os números da contaminação não teriam subido tanto. Só para reforçar: fique em casa. E, se precisar sair, não se esqueça da máscara. Incrível a quantidade de criaturas que andam por aí com a cara ao vento, como se estivesse tudo normal.

Não está. E vai doer menos se a gente se resignar a aceitar esse novo anormal.

Voltando ao Brasil e à completa ausência de tédio que vivemos. Em um dia desentocam o Queiroz, escondido há mais de um ano na casa do advogado de você-sabe-quem. No outro, o ex-ministro da educação, com caixa baixa mesmo, que xingava e ameaçava geral, sai covardemente fugido do país. Resta esperar que não assuma o cargo no Banco Mundial com um salário de US$ 250 mil ao ano. Incompetência premiada em dólares, os brasileiros não merecem isso. Até a entrega desta coluna, a senhora Queiroz não havia sido localizada. Talento para se esconder é com o clã. E segue o baile. Tem muita coisa para acontecer nos próximos capítulos.

Em uma das zapeadas de um noticiário para outro, que o vício em notícias é outra marca desta época, acabei parando em uma cena de Tieta, a novela de 1989 que está bombando no streaming. É incrível como o Brasil de ontem era bem mais avançado do que o de agora. Se a Globo ou qualquer emissora exibissem no horário nobre de 2020 um programa com os temas tratados em Tieta, o mínimo que a gente veria era a fúria das redes sociais. Tudo em defesa dos valores da família, defendidos na novela por Perpétua, a irmã tão moralista quanto hipócrita da protagonista. Tieta, a novela, assim como o romance de Jorge Amado que a inspirou, fala de aceitação, solidariedade, generosidade, empatia, essas coisas todas que muitos pararam de praticar e, não contentes, passaram a condenar. Tudo em defesa dos valores da família.

Por coincidência, no final de semana passado, a atriz Betty Faria, hoje com 79 anos, deu uma entrevista falando sobre a reprise da novela que estrelou e sobre esse nosso momento de pouca humanidade, para dizer o mínimo. "Penso muito nesse Brasil que estou desconhecendo, com as pessoas divididas, se xingando. O Brasil da dona de casa que botou o filho da empregada no elevador para se livrar dele. O Brasil de um ?homem de bem? que não respeita a dor de um pobre homenageando o filho morto pela peste e derruba cruzes com raiva. O país andou para trás, as pessoas estão doentes para além da pandemia, inseguras, com medo. Por que tanto ódio? Esse Brasil atual me assusta".

Betty Faria foi uma mulher livre, que fez da sua história o que bem quis. Então, aos 72 anos, de biquíni na praia, sofreu um linchamento virtual nas redes. "Quem fez isso é atrasado, sem noção! Todo mundo envelhece. Falaram: ?Olha a velha?. São uns babacas, tenho até pena de quem pensa assim." Coerente com a própria biografia, e muito a propósito desse mês de junho que promove o orgulho da diversidade para tentar arejar certas cabeças, falou do papel que gostaria de interpretar: "A mãe de uma travesti ou transexual. Como são, psicologicamente e emocionalmente, as mães de filhos que passam por tanto sofrimento, preconceito e violência?".

Betty, que continua Tieta na forma de ver o mundo, disse que "a sociedade precisa gostar mais das mulheres". Fato. E também precisa gostar mais das bichas, das sapatonas, dos meninos que preferem balé a futebol, das meninas que preferem futebol a balé. De quem não é branco, de quem é índio, de quem tem deficiência, de quem não nasceu no centro. Das pessoas mais velhas, das pessoas doentes. Será que a gente consegue voltar a 1989?

Uma coisa é certa. No Brasil de 2020, o nome da novela não seria Tieta. Seria Perpétua.

CLAUDIA TAJES



27 DE JUNHO DE 2020
CAPA

Amor maior do que os medos

No final de semana em que se celebra o Orgulho LGBT+, mães contam como enfrentam lado a lado com seus filhos o preconceito e se dão as mãos em uma rede de afeto

A primeira vez que o Mães pela Diversidade abriu a Parada Livre de Porto Alegre foi em 2015. Eram apenas três mulheres, que enchiam os pulmões para gritar por seus filhos: Tire seu preconceito do caminho, porque vamos passar com nosso amor. O ano também marcou o nascimento do grupo no Estado, inspirado no mesmo movimento que vinha fazendo barulho no centro do país.

Uma daquelas mães era Renata dos Anjos, que segue à frente da vertente gaúcha da organização até hoje. Com orgulho, ela contabiliza, neste final de semana em que é comemorado o Dia do Orgulho LGBT+, o crescimento do projeto cinco anos depois. São mais de 150 mulheres participantes por todo o Rio Grande do Sul:

- Costumo dizer que somos uma enorme rede de afeto. Estamos dispostas a mudar a sociedade e avançamos, mas temos muito trabalho ainda. Somos ambiciosas.

O grupo reúne mães com filhos LGBT+ e opera como apoio e conexão para aproximar quem tem histórias semelhantes e acolhe famílias que precisam de suporte emocional. No caso de Renata, a sexualidade da filha nunca foi tabu dentro de casa. Aos 14 anos, Flora, hoje com 25, contou que estava apaixonada por uma menina. E nada mudou entre elas. Mas a geógrafa se deu conta de que esse tipo de relação estava longe de ser regra - e o choque veio quando viu amigas da filha serem expulsas de casa por se assumirem lésbicas.

Renata sentiu-se impelida a fazer algo para ajudar as famílias. Em uma busca na internet, deparou com o movimento Mães pela Diversidade de São Paulo. Estreitou laços com as paulistas e, na sequência, foi desafiada a trazer a iniciativa para o Rio Grande do Sul.

- Para a sociedade, a culpa sempre é da mãe. Há mulheres que chegam para nós sangrando, com filhos sofrendo, a família destruída. O marido costuma fazer muita pressão, não aceita. Por isso, há muitas separações de casais. Seguimos a linha de que a informação vai quebrar o preconceito, inclusive, usando termos corretos. É orientação sexual, não opção. Não é uma opção deles - explica Renata.

Pelo menos uma vez por mês, o grupo promove encontros presenciais - devido à pandemia, toda a programação está online. Elas também se mantêm conectadas diariamente via grupos no WhatsApp e no Facebook. Como uma grande família, compartilham anseios e medos, principalmente com a segurança de seus filhos. Com razão: o Brasil registra uma morte por LGBTfobia a cada 26 horas, segundo dados do Grupo Gay da Bahia, uma das maiores entidades pelos direitos LGBT do país. E há também a violência que não está nas estatísticas: as piadas, o preconceito dentro e fora de casa e o bullying. Por isso, a rede conta também com os serviços de psicólogos que atendem a baixo custo e estão disponíveis para emergências.

- Todo mundo chama de viadinho, disso, daquilo, e ninguém pensa que afeta a vida da criança e da família. Depois que a Flora me contou que gostava de uma menina, eu chorei no banheiro não porque ela era lésbica, mas porque a vida dela seria mais difícil. Sabia que ela sofreria mais, e eu precisava estar preparada para acolher - diz Renata.

O amor dessas mães se transforma em ação. Elas trabalham para ocupar espaços e impactar diferentes públicos. Fazem palestras em universidades, escolas, empresas, para profissionais de saúde e pressionam o poder público pela igualdade de direitos. Um dos maiores desafios, avalia Renata, é transformar o sistema de ensino para acolher crianças e adolescentes LGBT+:

- Escola é um lugar opressor para as minorias de uma forma geral. Estamos abrindo linhas de frente para a informação chegar a pedagogas, psicólogas e professores desde a formação. Diversidade é inclusão, não é favor.

A seguir, conheça a história de duas mulheres que encontraram no Mães pela Diversidade o apoio para abraçar seus filhos com ainda mais afeto e recobrar as energias para seguir lutando por eles.

NATHÁLIA CARAPEÇOS


27 DE JUNHO DE 2020
LEANDRO KARNAL

A TRINCHEIRA DO FAROL

As grandes corporações possuem departamentos de marketing, gestores de estratégia, pensadores sofisticados que acompanham as mais recentes Ted Talks sobre tendências estudadas em Harvard e Yale. Por vezes, imagino, deveriam abrir mais o vidro do carro parado em um sinal na esquina das grandes cidades do Brasil. Nonsense?

O vendedor dos cruzamentos é um termômetro rápido que causaria inveja a muitos especialistas. Ele mede com precisão o "humor" do mercado e do consumidor. O tempo nublou? Nuvens pesadas anunciam tormenta? Capas de plástico e guarda-chuvas surgem nas mãos laboriosas do ambulante. Choveu e os mosquitos se multiplicaram? Raquetes elétricas serpenteiam entre os espelhos retrovisores. Joga o Corinthians? Preto e branco se espalham entre bandeiras, camisetas e bolas customizadas. O homem talvez tenha time em casa, o vendedor da rua tem público e mercado: pode estar de verde no dia seguinte.

O dia termina e os carros voltam da sua jornada. O ágil mercador identifica veículos dirigidos por homens. Chega e oferece um buquê de rosas pronto e bonito. Sugere levar algo para a esposa. O empresário pensa na boa ideia e, por amor ou culpa, compra em rápida negociação. O tempo é curto. Não é a barganha elaborada e ritualística de um tapete no Grande Bazar de Istambul. A leitura do rosto e da intenção do comprador deve ser mais ágil do que o diligente turco com o kilim nas mãos. Tudo deve ser resolvido no prazo máximo de um minuto. Terminado o tempo, o sinal abre e o cliente foge.

Horários de fome do meio da tarde? "Larica" espalhando sua influência na metrópole? Surgem frutas em bandejas e até casquinhas crocantes acompanhadas de um sorriso. Cajus enfileirados causam impacto visual. O notável é que as comidas são oferecidas pelo mesmo ambulante que, uma hora antes, empunhava mapas. Sim, vendem-se peças cartográficas nas esquinas! Enrolados ou abertos, apelam a pessoas mais velhas que os usaram na escola. Talvez aquele senhor septuagenário compre para dar ao neto. Também provável que o adolescente presenteado agradeça com educação e pense que tem um aplicativo mais prático no seu celular para aprender geografia.

Quando é seguro, deixo o vidro aberto nas esquinas. Escuto e aprendo. Sou chamado de "doutor", "campeão", "grande", "bacana" e recebo um sorriso embebido em treino de palco urbano. Vender é esbanjar simpatia. Frases de impacto, gestos marcados e eficazes: tudo ajuda naquela luta instantânea. Um autônomo de farol poderia dar cursos muito instrutivos para uma pós-graduação em técnicas de venda.

Há espaço para a criatividade empreendedora. As pessoas comuns vendem garrafas plásticas de água. O empreendedor original se veste de garçom. Por quê? A camisa branca, a calça preta, a gravata-borboleta e a pochete com dinheiro trocado (ok, ninguém é perfeito) agregam rápida identificação com uma personagem confiável. Quem faz propaganda na televisão ou foto publicitária sabe que o consumidor necessita identificar uma enfermeira ou professora em segundos rápidos. O estereótipo é eficaz. O público precisa conhecer em um olhar quem é e o que vende. A personagem vende muito mais.

Todo trabalho honesto é digno. Eu substituí meu azedume de outrora pela tentativa de ver e aprender. Ali andam, rápidos, seres humanos lutando para sobreviver, como eu. Apenas algumas coisas me irritam muito: crianças usadas para esse fim. Sabendo que somos mais simpáticos ao vendedor mirim, constato, em pleno horário escolar, os pequenos passando entre os carros. Em geral, mais adiante, gordos progenitores descansam sob uma sombra. Nunca compro de menores e ainda reafirmo forte: "Você deveria estar na escola". Uma única vez parei o carro e fui vociferar contra um senhor (pai?) que colocava três meninas a vender. É perigoso fazer o que fiz, mas o fato me tira do cercadinho da razão.

Há mais ambiguidades no comércio que estou tratando além da exploração do mundo infantil. Há produtos sem nota fiscal, contrabando frequente, controle de qualidade inexistente, condições sanitárias claudicantes com a comida oferecida, falta de licenças ou alvarás e uma concorrência com aquele comerciante que, na sua loja, paga impostos altos para ter o direito que o da rua obteve gratuitamente. A concorrência é real e marcada pela desigualdade. A informalidade é um imperativo que deve crescer ainda mais na crise atual.

Aprendi algo novo conversando com vendedores. Nem sempre, ao lado do seu carro, está um autônomo que vende seus produtos. Por vezes, há um chefe por detrás dele. Alguém que tem capital para comprar mais, organizar, trazer o vendedor e constituir um novo tipo de empresário. Assim, sem nenhum amparo trabalhista, surgem formas de ocupação que geram recursos para alguém bem distante daquele sorridente ser humano ali presente.

Por fim, com suas genialidades e ambiguidades, temos algo a aprender observando mais e conversando mais. Independentemente de tudo, um ser humano merece sempre nossa simpatia por estar ali, de pé, lutando. Para mim ou para você, muitas vezes, chama-se importunação. Para ele, sempre, intitula-se sobrevivência. Compro pouco, mas tento ver que existe alguém. Ser invisível é um castigo enorme para quem tem pressa em comer. O farol é a trincheira de uma guerra difícil e sorridente. É preciso ter esperança e um pouco de empatia em momentos bicudos como o atual.



27 DE JUNHO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

SEQUELAS DA DEPRESSÃO E DA ANSIEDADE PESARÃO MAIS DO QUE O CORONAVÍRUS

O que explica o crescimento desses transtornos na sociedade?

Depressão é transtorno traiçoeiro que transforma a vida num fardo difícil de suportar. Mesmo antes do coronavírus, já era considerada "o mal do século". Segundo a Organização Mundial da Saúde, a partir desta década será a principal causa de absenteísmo, isto é, faltas no trabalho. Já o é, entre os que trabalham no mercado financeiro de São Paulo.

Parece paradoxal, porque a partir da Segunda Guerra centenas de milhões de pessoas tiveram acesso a alimentos de qualidade, serviços de saúde e níveis de conforto com os quais nossos antepassados não ousavam sonhar. Embora a pobreza possa aumentar a prevalência de pessoas deprimidas nas sociedades, por que razões tantos que desfrutam de melhores condições financeiras desenvolvem um transtorno que lhes subtrai o prazer de viver?

Nas últimas décadas, a ênfase foi dada à biologia dos neurotransmissores, os sinais químicos que os neurônios trocam nas sinapses. A descrição das alterações na produção, na concentração e nas atividades desses mediadores envolvidos na fisiopatologia da doença levaram às sínteses de medicamentos antidepressivos para corrigir os desequilíbrios neuroquímicos associados a ela.

A despeito desses avanços, desarranjos na "química cerebral" não são suficientes para explicar o crescimento dessa prevalência na sociedade moderna. Sem invadir a seara dos especialistas, tomo a liberdade de enumerar dois dos fatores que talvez nos ajudem a entender.

O primeiro tem raízes evolutivas. Nossos antepassados mais remotos desceram das árvores, nas savanas da África, há cerca de 6 milhões de anos. Naqueles tempos, tínhamos perto de um metro de altura e quase nenhuma gordura no corpo, dada a dificuldade de obter alimentos. Qual a chance de sobrevivência de um primata tão franzino, no meio das feras que o espreitavam dia e noite?

A solução foi formar bandos. O agrupamento foi essencial à sobrevivência dos ancestrais do Homo sapiens, aqueles incapazes de organizar coalizões não deixaram descendentes. Desde então, a sensação de isolamento nos torna tão frágeis, que mal conseguimos suportar um sábado à noite, sozinhos, em casa.

Até a metade do século passado - um milionésimo de segundo em 6 milhões de anos - vivíamos em famílias numerosas que nasciam e se mantinham nos mesmos grupos, nas mesmas tribos ou em casas próximas, pelo resto da vida. De uma hora para outra, o progresso e a complexidade dos centros urbanos nos afastou uns dos outros. A solidão se tornou endêmica.

O segundo é a busca incessante da felicidade em ações, ambientes e relacionamentos que nos distanciam dela. Desperdiçamos energia para adquirir status, bens, galgar posições sociais e exibir no Instagram e no Facebook fotos e comentários fúteis, para mostrar aos nossos seguidores como somos inteligentes, espirituosos, importantes e, sobretudo, felizes.

Superação, palavra insuportavelmente na moda, virou o mandamento supremo. Nada mais justifica a tristeza e o fracasso, a ordem é triunfar o tempo todo, para não sermos acusados de fracos, deprimidos e perdedores, portanto desprezíveis. A expectativa de uma existência cor-de-rosa não estava no horizonte dos nossos antepassados, ocupados com o ganha-pão, as doenças, as guerras e as epidemias de fome.

A tecnologia que nos trouxe computadores, celulares e a internet foi a pá de cal. Entretidos com as telas dos telefones, perdemos contato com os familiares e os amigos. O trabalho derrubou as fronteiras entre o escritório e a privacidade de nossas casas. Onde quer que estejamos, seremos bombardeados por mensagens de email, WhatsApp, Instagram, Twitter e o diabo que nos carregue.

A seleção natural não preparou o cérebro para lidar com tamanha variedade de estímulos e solicitações concomitantes. A incapacidade de atender à demanda gera sensação de incompetência, frustração e estresse. A vida moderna se transformou numa engrenagem impiedosa que nos afasta dos valores essenciais à condição humana.

A dificuldade de lidar com a solidão é um enorme desafio nestes dias de distanciamento social. Manter o equilíbrio psicológico dentro de limites razoáveis, trancados em casa, amedrontados pelo vírus, longe das pessoas de quem gostamos, é privilégio de poucos. A depressão e os transtornos de ansiedade deixarão sequelas mais duradouras do que a passagem do vírus.

DRAUZIO VARELLA


27 DE JUNHO DE 2020
BRUNA LOMBARDI

VOCÊ ACREDITA NA PAZ?

Já existiram muitas formas de dinheiro através dos tempos. Começou com trocas de bens, serviços, mercadorias, sem equiparar valores. Cacau, chocolate, tabaco e até sal, que deu origem à palavra salário, foram algumas das coisas usadas como dinheiro, até que foi descoberto o metal e surgiram as moedas.

O papel só apareceu na Idade Média, como recibo dos metais penhorados e assim as cédulas valiam dinheiro. E aí está a origem do nosso sistema financeiro. Hoje somos regidos por números digitais armazenados nas nuvens que determinam nossas vidas.

O sistema econômico mundial foi inventado por um pequeno grupo, que se sucede na regência do mundo. Riquezas incomensuráveis são controladas por poucos. A manutenção desse sistema exige a criação constante de novos produtos de valor: bonds, papéis de crédito, debêntures, títulos, LCI, LCA, RDB, ações, letras, certificados, fundos, uma parafernália de coisas que sobe e desce numa montanha russa acelerada e perigosa, capaz de arrebentar o coração dos jogadores da bolsa e criar crises terríveis e pânico coletivo.

Essa macroeconomia reflete nos nossos pequenos microcosmos. Somos vítimas de dívidas, salários, boletos, aflições, preocupações, desespero. Dizem que dinheiro não traz felicidade, mas a falta dele também não ajuda ninguém. E a gente precisa aprender a gerenciar dinheiro.

Participei de uma palestra com alguns grandes investidores mundiais e ouvi um deles dizer que a dívida dos gigantes está paga e que o mundo caminha para um período de paz. A cúpula agora quer paz. O encontro dos EUA e Coreia do Norte é prova disso.

Mudou o foco. A luta agora é contra o grande abismo das desigualdades.

Se a proposta for conquistar a paz, superar guerras e violência, vamos ver surgir um novo pensamento, uma nova consciência. Não é o sistema que está em jogo, é a vida no planeta.

O acúmulo de lixo indestrutível formando gigantes ilhas de plástico nos oceanos. A camada de ozônio, o degelo, as drásticas temperaturas da mudança climática, o aumento de nível das águas dos mares e ao mesmo tempo a seca, aridez e a escassez de água.

A extrema ganância, o desmatamento e a distorção do que acreditamos riqueza, está trazendo a extinção de incontáveis espécies e colocando tantos biomas em risco exponencial.

Sem mudança teremos inevitáveis desastres ecológicos, dramáticos cataclismos e muitas outras pandemias como essa que estamos enfrentando.

Parece ficção ver o mundo parado e tão vulnerável, com todas as suas duras realidades vindo à tona. O sistema econômico, para sobreviver, precisa de mais igualdade social, de um planeta saudável e do despertar de uma conscientização espiritual. A busca espiritual hoje se tornou necessária e imprescindível.

Há uma junção da espiritualidade e da tecnologia na busca da cura das pessoas e da paz no planeta. Cada uma, a seu modo, visualiza um mundo melhor e quer descobrir a menor partícula, a mais leve e poderosa: a partícula divina.

Como disse Einstein, um cientista que estudava a espiritualidade: "Eu quero entender a mente de Deus".

BRUNA LOMBARDI


27 DE JUNHO DE 2020
J.J. CAMARGO

HISTÓRIAS SOLTAS POR AÍ (À ESPERA DE ALGUÉM)

O meu reencontro com seu Juventino, 25 anos depois das primeiras consultas. Claro que viver em sociedade é bom, desafiador e estimulante, mas o lado negativo é que a vida, na grande urbe, corrompe a pureza. E não há nada mais comovente do que um velhinho carregando inocência de criança.

Conheci o Juventino, na meia idade, nos anos 1990, quando operou um câncer de pulmão e, depois de cinco anos de consultas periódicas, desapareceu. A sua história de vida é clichê desta grande legião de colonos imigrantes que vive no interior dos municípios do interior: ele nasceu, cresceu, casou e teve cinco filhos, com a dimensão de mundo moldada pelos limites sociais da roça.

A sua prole, certamente sufocada pela falta de perspectivas, debandou. Três de seus filhos ele não via há mais de 10 anos. Repartiu com a esposa a solidão de filhos dispersos, mas ela, depois de 55 anos de casamento, morreu de um tumor de mama.

Foi então resgatado pelo filho caçula ("Este guri sempre foi o mais apegado") para viver com ele em Porto Alegre. Tocante vê-lo contar a história do filho que saiu da grota aos 16 anos e que agora tinha até uma casinha dele "uma dessas casas empilhadas da cidade grande" e que lhe colocava no olho aquele brilho inconfundível de orgulho paterno.

Nosso reencontro ocorreu depois de uns 25 anos, quando, já morador da Capital, agendou uma consulta. Tinha sido trazido pelo tal filho que o deixou no consultório com a promessa de apanhá-lo mais tarde. Demorei a reconhecê-lo, tão velho me pareceu. Tudo por culpa do encurvamento que lhe roubou sete centímetros e a cara sulcada, carregando muitos dias de sol na lavoura, que nem a máscara escondia completamente.

Quando quis saber no que podia lhe ajudar, ele logo avisou que desta vez não havia nada para operar, mas tinha um problema muito sério que precisava se aconselhar comigo. Desde que mudara pra cidade grande, tinha muito pouco o que fazer. Acordava cedo, arrumava as camas, limpava tudo, e no final da tarde preparava uma jantinha que "aprendera com a patroa velha," esperando o filho chegar.

E então a parte que ele mais gostava: as histórias que o filho lhe contava durante o jantar.

- Doutor, era como se eu tivesse andado com ele o dia inteiro, um colosso!

Acontece que, um dia desses, ele resolveu encarar a cidade grande e se deu muito mal.

- Eu só queria ter alguma coisa pra contar na hora do jantar, e acabei dando um baita susto no menino, que até a polícia chamou para me encontrar! Preciso que o senhor me ajude a convencê-lo de que não foi culpa minha. O pior é que eu não posso contar que já saí outras vezes, e que nunca tive problema porque eu sempre andava em linha reta, pra facilitar a volta!

Perguntei o que aconteceu dessa vez, que não deu certo.

- Ah, doutor, é que eu resolvi dar uma dobradinha na esquina e marquei o carrinho do pipoqueiro para saber onde desdobrar, na volta. Foi meu erro, tinha que ter marcado uma coisa parada, e quando voltei, acho que o filho da mãe tinha ido embora! E então fui andando, andando e quando as casas foram se achicando, bateu um desespero porque me dei conta que estava perdido.

Resolvi brincar com ele:

- E o senhor o tempo todo de máscara, seu Juventino?

- Mas bah, doutor, morro de medo do tal corona, mas o senhor tem que me ajudar é a acalmar o piá que mal fala comigo há uma semana!

- Olha, Juventino, se o teu filho souber o quanto gostas de ouvir as histórias dele e que estavas só tentando retribuir, com medo que ele cansasse de falar sozinho, o coração dele vai derreter, porque o meu já derreteu!

Pela primeira vez sorrindo, ele avisou: - Se não funcionar, eu volto aqui! Dez dias depois, ainda não tinha voltado. É certo que deu certo.

J.J. CAMARGO


27 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA

Você prefere ser Caetano Veloso ou Gilberto Gil?

Gilberto Gil completou 78 anos de idade nessa sexta-feira, e o Chico Buarque lhe fez uma linda homenagem em forma de vídeo. Ele, Chico, reuniu um grande grupo de artistas e todos cantaram Andar com Fé, música que o Gil compôs nos anos 1980. "Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá".

Participaram, entre tantos, o próprio Chico, as filhas do Gil, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho e até o americano Stevie Wonder, que mandou um "Happy birthday to you" em uma belíssima voz feita de metal e mel.

Contei sobre o vídeo no Timeline, da Gaúcha, e o nosso mago da técnica, o Augusto Silveira, botou para rodar Drão. Nem ouvi mais o que o Potter e a Kelly falavam, o som do Gil me mesmerizou, me fez flutuar.

Essa Drão é uma obra-prima da música brasileira. Não só por sua beleza, mas por seu significado. Gil a compôs para sua ex-mulher Sandra quando eles estavam se separando. Drão era o apelido dela, porque Maria Bethânia a chamava de "Sandrão".

Gil fez um poema delicado para falar de um momento duro. Gil besuntou com doçura a amargura da separação. Comparou o amor dos dois com uma semente, que tem de ser enterrada para nascer e tornar-se uma planta robusta e fecunda:

"Drão, o amor da gente é como um grão. Uma semente de ilusão. Tem que morrer pra germinar".

Só por esse poema já mereceria todas as homenagens, o Gilberto Gil, mas ele produziu muito mais. Além disso, trata-se de uma pessoa afável, amorosa, obviamente boa. Seu maior amigo, Caetano Veloso, é mais agressivo, às vezes o Caetano se irrita e morde. Eu, se pudesse, queria ser como o Gil, mas sei que sou mais como o Caetano.

Aliás, tenho visto os vídeos do Caetano no Instagram. São engraçados. Quem grava é a mulher dele, Paula Lavigne, que nunca aparece, só faz perguntas ou narra o que está acontecendo. Ela é ótima nisso, porque é meio irônica, não leva a coisa muito a sério, ela provoca o Caetano e, vez em quando, caçoa dele. Caetano em geral está sentado em um sofá amarelo, não raro de pijama e chinelos. A Paula atira-lhe umas gozações, como se fosse uma rede de pescar, e ele se deixa capturar, responde com uma inocência e uma solicitude admiráveis. Outro dia ela contou que, nesse tempo de confinamento, o Caetano se distrai comendo paçoquinha. Ele adora paçoquinha. Aí o Caetano está lá, comendo paçoca no seu sofá amarelo e ela vem com o celular, brincando:

"Olha o Seu Paçoca..."

O Caetano parece incomodado no começo, mas não se abala, continua comendo a sua paçoca e respondendo às perguntas da Paula.

São as coisas boas da pandemia, isso de as pessoas que a gente aprecia a distância exporem um pouco de suas intimidades. Passei a gostar mais do Caetano depois de assistir aos vídeos da Paula. Ao vê-lo assim, terno e pacífico, no recôndito do lar, ele me pareceu ser menos o Caetano que eu supunha conhecer e mais o Gil que existe na minha imaginação. Gilberto Gil, esse homem amável, capaz de assumir de público seus erros, como fez em seu doce Drão:

"Os pecados são todos meus, Deus sabe a minha confissão", ele admitiu na música, e acrescentou: "Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão".

Mas o melhor é o fechamento da poesia, que dá o sentido ao que quer dizer o Gil: que os amores verdadeiros não morrem, eles se transformam:

"Quem poderá fazer

Aquele amor morrer

Se o amor é como um grão

Morre, nasce trigo

Vive, morre pão".

Bonito. Bem que eu queria ser mais Gil.

DAVID COIMBRA

27 DE JUNHO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

NOVOS OÁSIS

Uma semana atrás, festejamos os 50 anos do tricampeonato mundial de futebol em 1970, no México, e, ao mesmo tempo, passaram-se 16 anos da morte de Leonel Brizola, em 2004. O notório é sempre atual e, assim, as duas datas seguem vigentes.

O Mundial de 1970 deu ao Brasil a posse definitiva da Taça Jules Rimet, em ouro maciço, mas cujo valor intrínseco ia além e era o "tri". Eu estava lá, no estádio Azteca, e assisti à conquista, da qual hoje só resta nostalgia. Até o futebol (mesmo com exceções) imita o caos político.

A taça de ouro já não existe. "Desapareceu" da sede da CBF, no Rio, num roubo simbólico do próprio Brasil. Tudo em surdina, mas com a conivência de muitos. A taça foi derretida num alto-forno e sumiu até a bela ourivesaria.

Antes, no México, ao festejar o jogo, um jornalista italiano me advertiu: "Cuidado. Mussolini usou a vitória na Copa de 1939 e tornou-se mais feroz". A profecia se fez verdade aqui e, com a euforia, o general-ditador Emílio Medici aprofundou o terror.

Naquele 1970, fazia seis anos que Brizola se exilara. Saiu do país após o golpe militar de 1964, quando sua casa em Porto Alegre foi invadida e saqueada pelos golpistas. Até a roupa pessoal foi rasgada com tesoura, sob pretexto de que "podia esconder dólares".

Em 1959, Brizola começa no RS um governo inovador. Dota o Rio Grande de eletricidade, estradas e comunicação telefônica, constrói escolas, faz do magistério uma profissão digna e cria a pesquisa agrícola, como no trigo. Inicia a reforma agrária, além de ações de infraestrutura que, depois, passam ao setor privado. A cana do litoral vira usina de açúcar.

Em 1961, na renúncia do presidente Jânio Quadros, ele se agiganta: derrota o golpe de Estado dos três ministros militares, que impedia a posse do vice-presidente João Goulart. Os adeptos da ditadura jamais o perdoariam.

Ao voltar do exílio, é o único a falar da defesa do meio ambiente, das "perdas monetárias" geradas pelas multinacionais e de criticar a submissão da mulher na sociedade.

No deserto político atual, falar de Brizola leva a um oásis.

Mas surgem, também, novos oásis. Os presidentes dos dois maiores bancos privados do país, Cândido Bracher, do Itaú, e Octávio De Lazari, do Bradesco, alertaram sobre as terríveis consequências da degradação ambiental no Brasil.

Em reunião do setor bancário em São Paulo, Bracher advertiu que "as consequências ambientais são mais lentas do que as da covid-19, mas duram mais e são difíceis de reverter". Lembrou que 29 grandes investidores de oito países europeus ameaçam retirar-se do Brasil se o governo não mudar a política que destrói a Amazônia.

Lazari, do Bradesco, alertou que "muito se fala em aquecimento global e sustentabilidade, mas se faz pouco". O inesperado é um oásis florido.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


27 DE JUNHO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

PAZ NA EDUCAÇÃO

As primeiras entrevistas do novo ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli da Silva, permitem ter a esperança de que o obscurantismo e o conflito permanente que marcaram o primeiro ano e meio da pasta no governo Jair Bolsonaro ficaram para trás. Ao contrário principalmente de seu antecessor, Abraham Weintraub, que gastava mais horas e energia em temas ideológicos e discussões em redes sociais, Decotelli sinaliza que irá buscar a pacificação nas relações do MEC com os demais atores do ensino e fará uma gestão norteada por aspectos técnicos. Mesmo que ainda se conheça pouco sobre as ideias do novo ministro, é preciso reconhecer que as impressões iniciais são positivas.

Os últimos 18 meses foram para a educação brasileira um tempo perdido. As deficiências do ensino no país não começaram em janeiro de 2019, mas foram agravadas pela perda de foco, que deveria estar voltado a uma reflexão que levasse a uma profunda transformação em uma área em que o Brasil tem sérias deficiências, que comprometem o seu futuro. Não se espera que Decotelli tire da cartola soluções para reverter imediatamente um quadro que é resultado de décadas de desleixo. Mas a disposição ao diálogo que o novo ministro tem reiterado indica que está compromissado em construir de forma colaborativa saídas que, alguns anos à frente, melhorem o desempenho dos alunos de escolas e universidades do país.

A educação, como disse Decotelli em entrevista à Rádio Gaúcha, transforma sonhos em realidade. O poder do conhecimento é capaz de tanto proporcionar uma existência digna para os indivíduos, pela melhor compreensão do mundo e aquisição de habilidades que levem a uma vida profissional mais promissora, quanto de alterar o destino de uma nação. Não há país desenvolvido no mapa do mundo que não tenha priorizado a educação como uma base para o progresso. A rápida evolução tecnológica exige cada vez mais trabalhadores preparados para não apenas acompanhar, mas para serem protagonistas dessa transmutação constante. A demográfica, por outro lado, impõe uma mão de obra cada vez mais produtiva. Outro aspecto em que o Brasil vai mal.

Embora não se reivindiquem de Decotelli respostas para todas as carências da educação brasileira, muitas com soluções apenas de longo prazo, há problemas prementes que precisam ser atacados. Os desafios, que já seriam enormes em tempos normais, ganham um peso ainda maior com a pandemia que levou à paralisação de aulas presenciais, afetando principalmente jovens e crianças carentes, mas também traz sérias dúvidas sobre o ano letivo. Um dos mais urgentes é um cronograma para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o que prometeu para os próximos dias. 

Terá ainda que trabalhar pela aprovação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos profissionais da Educação (Fundeb) e pela implementação da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio. Ex-presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Decotelli conhece a área. Com a ajuda do currículo e da formação sólidos, da disposição ao diálogo e com superação, poderá suplantar as dificuldades que agora se apresentam para minimizar os impactos da pandemia e começar a recuperar o terreno perdido para dar a largada em um processo contínuo e consistente de melhoria da qualidade do ensino brasileiro.



27 DE JUNHO DE 2020
DESAFIOS DO MEC

Novo ministro da Educação quer visitar universidades

O novo ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli da Silva, falou na sexta-feira, em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, sobre os seus desafios à frente da pasta. O principal deles, afirmou, é "transformar a educação brasileira em um mecanismo de diálogo".

- A educação transforma sonhos em realidade. Todos que estudam têm expectativa de uma vida melhor - declarou.

Decotelli foi anunciado na quinta-feira pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele sucederá a Abraham Weintraub, que, depois de 14 meses como titular da pasta, teve a saída anunciada no último dia 18.

- Ele (Bolsonaro) pediu para arregaçar as mangas e priorizar gestão e diálogo - disse Decotelli.

Questionado sobre como será sua relação com os reitores das universidades federais, foco de tensão durante a gestão de Weintraub, o novo ministro reforçou a necessidade de conversa.

- Diálogo, gestão, integração e visita. Eu quero visitar as universidades e conversar, ponderar, criar (...). Conte comigo para dialogar, buscar o contraditório. Sou do ambiente de pesquisa, educação e ambiente acadêmico. Sala de aula é minha forma de ser, é minha forma de convicção pessoal. Irei às universidades, elas virão até mim. Vamos buscar resultados quantificáveis - afirmou.

Decotelli também foi perguntado sobre o papel da chamada "ala ideológica" do governo sobre a gestão do Ministério da Educação (MEC). O novo ministro, contudo, reforçou seu perfil técnico:

- Sou da ala técnica, acadêmica. Não tenho preparo para fazer idiossincrasias ideológicas. Sou gestor. Enquanto estiver na estrutura operacional, esse é o meu projeto. Não tenho condições de fazer além disso.

Enem

Ele prometeu apresentar até a próxima terça-feira um cronograma para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A expectativa é de que sejam anunciadas as novas datas das provas, que foram adiadas de 30 a 60 dias:

- A prioridade absoluta é estabelecer um cronograma a ser divulgado intensamente.

Inicialmente, o Enem estava previsto para 1º e 8 de novembro. Devido à pandemia, o MEC prorrogou o exame. O governo lançou consulta pública aos estudantes que vão fazer as provas, mas nenhum anúncio sobre as novas datas foi feito. A enquete segue aberta até a próxima terça-feira.

- Na segunda ou terça-feira, já terei estudado e já terei tomado pé. Sábado e domingo ficarei estudando. Então, poderei responder de maneira objetiva e com cronograma definido - disse.

Outra prioridade do ministro é o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que expira em 31 de dezembro deste ano. O fundo foi criado em 2006 e serve para garantir investimentos na Educação Básica brasileira, incluindo creches, pré-escolas, Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

- Tenho uma reunião agora (manhã de sexta-feira) sobre o novo Fundeb. Estaremos reunidos com a equipe de Fundeb, temos reunião em seguida sobre as questões envolvendo o Enem. Estou indo pela primeira vez trabalhar integralmente e tomar pé (da situação) - relatou Decotelli.

O ministro não disse se o governo vai apresentar uma proposta própria para o Fundeb. Atualmente, há propostas de parlamentares sobre o tema tramitando no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já anunciou que deve pautar para as próximas semanas uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que torna o Fundeb permanente. O Senado também discute proposições.

27 DE JUNHO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Rebeldes sem causa


Quando seu bisavô lutou contra escravocratas e os radicais da Ku Klux Klan, quando seu avô lutou contra nazistas e comunistas, e quando seu pai conseguiu prosperar por esforço próprio, deve ser muito duro constatar que sua grande "causa" é colocar um homem dentro de um banheiro feminino!

O mundo é um lugar hostil, o default é a miséria e o tribalismo, o desafio é superar tal condição. A escravidão foi a regra durante séculos, e graças aos valores ocidentais chegou ao fim - mas não em todos os lugares. Ideologias totalitárias como o nazismo e o comunismo derramaram rios de sangue no século 20, e jovens foram enviados para lutar em outro continente para preservar a liberdade. Que coragem! Que sacrifício!

Aí, o sujeito de 20 anos, bancado pelo pai, estudante de uma universidade que custa os olhos da cara, descobre que é a melhor alma que já vagou pela Terra porque marcha ao lado do Black Lives Matter, grupo marxista, derrubando estátuas de Washington ou Colombo. A elite branca culpada cospe em policiais negros em nome do combate ao racismo. Seria até cômico, não fosse tão trágico.

A culpa é dos pais, que não souberam impor limites, e dos professores e da mídia, que estimularam uma narrativa invertida que faz o aluno se sentir vítima de um legado terrível e opressor do "homem branco malvado". Em vez de ser grato por viver na era mais próspera e livre da História, essa turma busca "lugar seguro" contra "microagressão", sentindo-se ofendida por tudo e demandando reparações e privilégios.

"A cultura em muitos campi universitários tornou-se mais ideologicamente uniforme, comprometendo a capacidade dos scholars de buscar a verdade e dos alunos de aprenderem com uma ampla gama de pensadores", constatam Greg Lukianoff e Jonathan Haidt em The Coddling of the American Mind. Os autores apontam a excessiva fragilidade das novas gerações, moldadas nas universidades e nas redes sociais, que criaram uma "cultura de denúncia" que serve para constranger publicamente quem não reza da mesma cartilha politicamente correta.

Em vez de aprender com a História, querem apagá-la. São mimados e ingratos em busca de um pretexto para destruir. Rebeldes, mas sem causa.

RODRIGO CONSTANTINO

27 DE JUNHO DE 2020
INFORME ESPECIAL

A Igreja e a pandemia

Se existe no Rio Grande do Sul uma instituição disciplinada e colaborativa em tempos de pandemia, é a Igreja Católica. Aos 2 mil anos de idade, está transformando limitações em oportunidades de evolução aqui no Estado.

A Arquidiocese de Porto Alegre, liderada por Dom Jaime Spengler, suspendeu a realização de missas públicas em 16 de março - a primeira capital brasileira a tomar essa atitude. Decretou o fechamento das igrejas em 20 de março e seguiu as orientações de distanciamento para o retorno, um mês depois. Novamente fechou as igrejas em 20 de junho, obedecendo à classificação de bandeira vermelha do modelo do governo do Estado. Sem reclamar. Ao contrário: sempre afirmou que a preservação da vida é a sua prioridade, apesar dos eventuais prejuízos materiais.

O Mensageiro da Caridade, por exemplo, enfrenta uma crise sem precedentes. A solução: mobilizar a comunidade, o que vem acontecendo.

Adoções no RS

Boa parte das 850 crianças e adolescentes acolhidos em abrigos e casas-lar de Porto Alegre está com sua situação jurídica indefinida e paralisada devido à pandemia, já que os processos são físicos e não há tramitação desde que a covid-19 limitou o trabalho da Justiça.

Na busca por encontrar uma solução, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga enviou ofício ao Tribunal de Justiça pedindo a implementação imediata do processo eletrônico na 2ª Vara da Infância e Juventude da Capital.

Sem a papelada em dia, as crianças e adolescentes não podem ter seus nomes incluídos no cadastro de adoção. O desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação do TJ, explica que a digitalização dos processos está sendo agilizada com recursos humanos próprios e terá o reforço de uma empresa escolhida por licitação, mas que ainda espera o final das etapas legais de contratação para iniciar o trabalho. O desembargador afirma também que a área da infância e da juventude está na lista das prioridades.

sábado, 20 de junho de 2020



20 DE JUNHO DE 2020
LYA LUFT

O amor simples

Alguém vai sorrir e dar de ombros ao ler este título: amor simples? Bah.

Se tudo na vida é complicado, o amor tende a ser isso, multiplicado e múltiplas vezes. Ou não? Depende do amor, do tempo, do casal, das circunstâncias. Hoje em dia, casais e famílias encerrados na pandemia, muitos amores se renovam, outros se veem estilhaçados, o anel que me deste se quebrou.

Não sei se tenho muitas amizades firmes e fortes hoje em dia. Algumas se foram porque a Senhora Morte as levou, e de várias nunca me recuperei. Outras, uma, duas, simplesmente sumiram sem um adeus e, depois de algum tempo de perplexidade, desisti. Muitas ficaram e outras surgiram, tenho a sorte de ter aquelas amizades da vida inteira, e algumas novas, que são sempre um refrigério, renovação e aprendizado.

Nesta fase de reclusão, que vai me cansando e enlouquecendo muita gente, nunca tanto valorizei a internet, o Whats, o Instagram, o Face, pontos de encontro, troca de recados, afetos, debates, risos e também tristezas.

Quando pequena, eu tinha poucas amigas reais: não se usava muito isso de dormir ou comer na casa dos outros, não havia praticamente vizinhas da minha idade. Mas eu tinha amigos imaginários, de que já falei: uma família inteira. Familinha, diminutos, vestidos de verde, chapeuzinho pontudo. Eu os sentava no peitoril da janela e conversava com eles. Imaginação infantil, ou de verdade gnomos benfazejos? Criança enxerga o que adultos há muito deixaram de ver.

Na escola comecei a entender amizade e coleguismo. Afinal já podia visitar amigas e elas vinham à minha casa. Sempre havia as mais ligadas em mim e as mais ligadas entre si: eu, em geral a mais novinha e maior, mais pateta para muitas coisas, ficava um pouco de fora. Mas adorava dançar de mãos dadas no pátio da escola, cantiga de roda, sobretudo - ao entardecer nos dias de calor - na calçada de casa. Outros tempos. Quando, já escurecendo, a criançada ainda corria ou girava na rua, eu tinha de entrar: banho, comer e cama. Surgiram daí minhas revoluções bobas e prematuras: "Por que tenho de entrar se as outras podem continuar brincando? Por que tenho de comer e logo dormir? Por que, por que, por quê?".

Por isso e outros motivos, sempre desejei crescer. Ser jovem, adulta, entrar na maturidade, envelhecer: cada vez ficaria mais independente, mais livre. "Ninguém é livre", me diziam. É, sim, eu teimava. Livre para ler ou caminhar quando quisesse, para dormir quando sentisse vontade, para comer algo além de purê de batata, peito de frango e canja. Para ler quando e quanto quisesse, e casar, e ter filhos, coisa que eu mais queria, e, de novo, tempo para sonhar e ler.

E para as grandes, verdadeiras amizades.

Amigo, esse que não cobra, não trai, não tem inveja nem ciúme, nem te deixa na mão - e, mesmo quando não te entende, te curte -, como eu espero ser para os meus, é esse amor simples de que falo no título. E nos salva.

LYA LUFT