sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
NILSON SOUZA


Fábulas de 2010

Acabei de ler A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston, que começa com a instigante pergunta de uma presidiária à escritora canadense: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”. A resposta é o livro – e é imperdível. Não vou estragar o prazer de ninguém revelando o seu conteúdo.

Só peguei a pergunta como gancho para repassar nesta crônica o ano extraordinário que está terminando. Basta uma revisão superficial para constatarmos acontecimentos mais fantásticos do que em qualquer ficção.

Os terremotos também matam anjos, descobrimos logo nos primeiros dias, quando a terra tremeu no Haiti e os prédios desabaram sobre a nossa missionária da paz e das crianças desnutridas, a catarinense Zilda Arns. Depois, o Chile também tentou sair do lugar, sepultando centenas de pessoas.

Em seguida, aquele vulcão islandês que consome no nome todas as consoantes do alfabeto cobriu a Europa de fuligem, interrompendo as estradas do céu. Tão logo foram desobstruídas, um avião com 104 passageiros estatelou-se no Líbano – e dos destroços de ferro e fogo ressuscitou um menino holandês de nove anos, único sobrevivente deste enredo fantástico escrito pela realidade. E era só o começo.

É segredo, cantou a Unidos da Tijuca em seu enredo – e, num passo de mágica, em plena passarela, sem que a multidão percebesse, trocou a roupa das meninas bailarinas.

Enquanto a Espanha dava show de bola na terra de Mandela, mister WikiLeaks contava ao mundo que as tropas americanas não só detonaram civis no Afeganistão como também deixaram tudo registrado em documentos secretos. De repente, todos nos demos conta de uma nova realidade: não há mais segredo na era do iPad.

Mas ainda há muita intolerância. O Prêmio Nobel da Paz vai para... o chinês Xiaobo, inofensivo poeta, que apodrece numa prisão da ditadura porque ousou assinar um manifesto em favor de reformas democráticas em seu país.

Ano de contrastes, este: enquanto uma mulher é condenada à morte por apedrejamento, outra sai da clandestinidade para entrar na História do Brasil, pela rampa do Palácio do Planalto. Há, sim, luz no fim do túnel do obscurantismo.

A ela chegaram, depois de 77 dias de sepultamento em vida, 33 mineiros chilenos, protagonistas do mais emocionante resgate dos nossos dias e, provavelmente, de todos os tempos.

Chega ou precisa mais?

O ano confirmou a dúvida da presidiária: para que inventar histórias?

Well, chegamos ao último dia de 2010. FELLIZ ANO NOVO. Que em 2011, aconteça a realização de todos os seus sonhos.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010



29 de dezembro de 2010 | N° 16564
MARTHA MEDEIROS


Que raios estou fazendo aqui?

Não há revista ou jornal que não traga matérias sobre lugares encantadores para se conhecer. Viajar deixou de ser um luxo para se tornar quase obrigatório. São tantas promoções e pacotes, que fica mesmo difícil resistir.

Adoro viajar e adoro livros de viagem, incluindo os de ficção. Geralmente, as narrativas confirmam a ideia de que viajar abre horizontes, traz novos conhecimentos e nos aperfeiçoa como seres humanos. Compensa suportar voos atrasados, cansaço e imprevistos, pois receberemos o Éden em troca. Quanto às roubadas, ninguém dá um pio. É proibido falar “antipatizei com Paris” ou “achei o Caribe um tédio”. É de bom-tom gostar de tudo e, se a viagem for para um destino exótico, convém gostar mais ainda, para não passar recibo de preconceituoso.

Deve ser por isso que me diverti com o livro Eu, Minha (Quase) Namorada e o Guru Dela, do inglês William Sutcliffe. O livro conta a história de um garoto de 19 anos que é pressionado pelos amigos a sair de Londres para fazer uma viagem de aventura em seu período de férias.

Por quê? Ora, porque todo mundo faz. Bem que ele gostaria de passar as férias em casa se empanturrando de porcaria em frente à TV, mas acaba conhecendo uma guria que está de partida para a Índia e, muito refinado, pensa: “Essa mina está me dando mole, vou viajar com ela e me dar bem”.

A “mina” quer encontrar o próprio eu, enquanto que o garoto, nos primeiros cinco minutos em Délhi, quer encontrar uma pousada com ar condicionado. A moça encara todas as privações com enlevo, já que está num tour espiritual, enquanto nosso amigo inicia um tour pelo inferno, e cabe a nós, leitores, não ligar para o fato de não estarmos com um Balzac ou Tchekhov nas mãos.

Ler as aventuras de um estudante que declara ódio à Índia assim que aterrissa, e que odeia todos os mochileiros que lá estão, e também todos os viajantes sem dinheiro que escolhem ir para lugares insalubres com o intuito de procurar o próprio eu, nos faz viajar com ele para o adorável mundo do politicamente incorreto, que hoje é quase um ponto esquecido do mapa.

O livro é engraçadíssimo. Certamente já entramos em alguma roubada que nos fez lamentar ter nascido, porém, muito ponderados que somos, catalogamos o incidente como “uma experiência de vida”. Mas o personagem não tem essa condescendência. Ele quer cortar os pulsos e engolir três caixas de veneno pra rato. E tem motivo.

Nunca embarquei numa fria colossal, mas já passei alguns maus momentos em viagens, quase sempre por falta de informação. Mas quando sobra humor e presença de espírito, mesmo a mais medonha das viagens rende algumas risadas na volta. Ou inspira um livro cômico e despretensioso para ser lido numa tarde de verão.

Em tempo: não conheço a Índia. Me atrai mais ou menos. Sei de pessoas que veneram a cultura e as peculiaridades locais. E de pessoas que não voltariam a colocar os pés lá nem para salvar um filho. Por ora, ainda não incluí o país na lista dos “100 lugares que não posso morrer sem conhecer”, mas vá saber. Tudo é uma experiência de vida.

Aproveite o dia. Uma linda quarta-feira para você.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010



28 de dezembro de 2010 | N° 16563
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Como um romance

Às duas e meia da tarde de 24 de setembro de 1834 morreu um homem jovem em Lisboa. A autópsia revelou que a tuberculose tinha consumido quase todo o seu pulmão esquerdo. O coração e o fígado estavam hipertrofiados, os rins e o baço não gozavam de melhor saúde.

Esse homem tinha 35 anos e era D. Pedro I, Imperador do Brasil e Rei de Portugal, e acabava de vencer uma sangrenta guerra civil contra D. Miguel, seu irmão, absolutista, enquanto ele era liberal.

Esse é apenas um fragmento do livro 1822, de Laurentino Gomes, que há semanas lidera as listas dos best-sellers e promete manter-se nelas por muito tempo mais. Trata-se de um biografia do criador do Brasil, mas lê-se como um romance, aliás como 1808, a obra anterior do autor.

Até certa altura do livro, o que se vê é um personagem mais preocupado em levantar saias e levar damas para a cama – a começar pela Marquesa de Santos – do que um estadista mais preocupado em construir uma nação.

Pouco a pouco, no entanto, o marido perpetuamente infiel de D. Leopoldina assume um caráter que se sobrepõe à sua época, candidatando-o a um lugar na História. É assim especialmente quando a trajetória de sua vida se confunde com a do Império que fundou.

Foi graças em grande parte devido a ele que o Brasil se manteve íntegro – um território, um povo, uma língua –, enquanto seus vizinhos latino-americanos se decompunham em dezenas de repúblicas.

Foi assim quando soube tratar as lutas internas com isenção e sabedoria. Foi ainda assim quando entregou a guarda de seus filhos a José Bonifácio. A propósito: o capítulo que trata de sua correspondência com o futuro D. Pedro II é, no mínimo, comovedor.

O excelente Laurentino Gomes acena com um próximo volume – 1889.

A História deste país é grande demais para ficar entregue aos arquivos e fichários.

Lindo dia para você. Aproveite a terça-feira.

domingo, 26 de dezembro de 2010



26 de dezembro de 2010 | N° 16561
MARTHA MEDEIROS


A vida em um flash

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega

O ano passado passou tão apressado/eu sei que foi um corre-corre-corre danado.... E pensar que Rita Lee gravou esta música, Corre-Corre, há 30 anos, quando nem corríamos tanto assim. Ou será que esta impressão de vivermos com pressa vem desde sempre?

Tudo do que reclamamos hoje já foi reclamado um século atrás, e não duvido que daqui a cem anos as pessoas digam: “No início dos anos 2000 a vida era tranquila, não havia esta urgência de hoje”.

Eu não sei quais serão as urgências futuras, mas conheço bem as nossas. Temos relógios digitais espalhados pela cidade nos lembrando que faltam 10 minutos para a reunião começar, sete minutos para o banco fechar, dois minutos para a aula do seu caçula terminar: o que você ainda faz aí, no meio da rua? Corra.

Se não são os relógios, são os espelhos. Impiedosos, avisam: você não tem mais 15 anos. Nem 20. Nem 30. Se quiser ter um filho, apresse-se. Não importa que ainda não tenha encontrado um amor estável, arranje qualquer pessoa, mas, simplesmente, apresse-se.

E o espelho segue avisando: você não tem mais 35. Nem 40. Nem 45. O futuro está encolhendo a sua frente. O que está fazendo aí parado no mesmo casamento, parado no mesmo emprego, parado em frente à tevê? Reparou como todo mundo se diverte lá fora? Não sabe que vai morrer um dia?

Sim, sabemos que não somos eternos. Os telejornais não fazem outra coisa a não ser nos lembrar disso, mostrando cenas sortidas de violência e cultivando nosso medo dia após dia. Ou então são os manuais de autoajuda e matérias de revistas que ordenam: aproveite o momento, aproveite a vida! E aproveitar a vida passou a ser sinônimo de algo que tem que ser feito emergencialmente, ou você estará jogando a vida fora.

Calma.

Nem sempre é rentável esta economia de tempo: chegar mais rápido, fazer mais rápido, consumir mais rápido. O que sobra em nossas mãos? Coisa nenhuma. Nem mesmo a lembrança do que foi realizado, só uma vaga sensação do dever cumprido, como se fôssemos soldados a serviço do calendário.

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega. E entrega requer um certo relaxamento. Tempo para falar, para ouvir, para fazer, para desfazer, e fazer de novo, até acertar. Tempo para si, para o outro e para o nada.

Fazer nada virou a tarefa mais angustiante para o ser humano esquizofrênico de hoje. Não é à toa que há um bom número de pessoas que prefere não tirar férias: como preencher um dia livre? Nesta cultura atual do “não desperdício”, pobre daquele que deitar o corpo no sofá, colocar uma música para tocar e desligar o telefone. Terá que se entender com a culpa.

Dedicação, cuidado, foco, tudo isso demanda uma certa introspecção. Um pouco de resguardo. Conectar-se com os próprios pensamentos e emoções é exercício dos mais produtivos. É quando a gente, em silêncio, encontra as respostas para nossas inquietações e descobre os melhores caminhos para atingir nossos objetivos.

Pressa exige atenção para o lado de fora, apenas. E o lado de dentro? Neste corre-corre danado, talvez o que mais estejamos fazendo é justamente perder tempo.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010



24/12/2010 e 25/12/2010 | N° 16559
NILSON SOUZA


Vidas presentes

George Lucas, um dos magos do cinema, tem um projeto para ressuscitar atores falecidos, recuperando suas imagens por meio da tecnologia digital e recolocando-as na tela ao lado de personagens atuais. Tudo é possível no admirável mundo novo da computação gráfica. Quem sabe em breve não veremos Marilyn Monroe competindo em charme e beleza com Charlize Theron ou um duelo de capa e espada entre Errol Flynn e Johnny Depp?

Mas, quando se trata de reencarnação, a vida real continua sendo mais fantástica do que a ficção. Eu mesmo tenho uma história dessas para contar. Por muitos anos, olhei com desdém uma foto de meus bisavós, os quais não conheci. No álbum da família, eram apenas dois velhos sentados diante de uma casa de madeira humilde – o homem com uma perna cruzada sobre a outra, barba branca e olhar fixo num futuro que também não conheceria. Pois agora acho que ele olhava para mim.

Quando me tornei adulto e comecei a deixar a barba crescer, modismo dos anos 70, ouvi várias vezes um comentário de minha mãe:

– Estás cada vez mais parecido com o meu avô.

Como só sabia do homem pela foto antiga, nunca levei muito a sério a comparação. Na semana passada, porém, sentei-me distraidamente numa cadeira da casa, cruzei a perna e olhei sem querer para um espelho que refletia a minha imagem. Levei um susto: lá estava o bisa da foto, me olhando serenamente, sem refletir o meu sobressalto. Ao menos na aparência, meu bisavô voltou em mim.

Mas um dos casos mais espantosos de ressurreição por semelhança é o da conterrânea Elis Regina, que saiu do IAPI, transformou-se numa estrela e voltou pela voz afinada de Maria Rita. Elis, na minha adolescência, era uma foto colorida pendurada na parede do meu quarto. Meu amigo Tetelo, que também já virou estrela e ainda não retornou, foi quem me ensinou a amá-la.

Se ainda estivesse por aqui, tenho certeza de que ele choraria de emoção ao ouvir Maria Rita interpretando a canção símbolo da RBS, que coincidentemente enaltece a vida. As pessoas voltam, sim, às vezes num olhar, às vezes num gesto, outras vezes num timbre vocal característico.

Para quem ouviu Elis cantando, é um presente de Natal maravilhoso ouvir Maria Rita reviver a mãe numa canção tão nossa. Basta a gente fechar os olhos e lá está Elis, balançando os braços e encantando multidões com sua voz do mais precioso cristal:

– É mentira, é verdade... E quem sabe a vida é da vida a razão...

Aproveite o dia. FELIZ NATAL...Que o Papai Noel seja generoso com vc e realize, senão todos, a maioria dos seus sonhos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



21 de dezembro de 2010 | N° 16556AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

O Caso Kliemann

Sou obrigado a declarar-me meio parceiro do último livro de Celito De Grandi. Acompanhei, aos 17, 18 anos, toda a formidável teia de tragédias que abalou não apenas um homem e sua família, mas toda a sociedade do Rio Grande do Sul.

Nos países do Primeiro Mundo, lá onde fica a Cultura, são naturais as investigações, pesquisas e depoimentos sobre os grandes fatos que atentaram contra a convivência civilizada. Mais do que isso, são correntes as análises a respeito das pessoas que protagonizaram esses acontecimentos. Agora, um autor gaúcho captou ambas as vertentes, para compor uma clara síntese dos dois crimes e sua circunstância.

E o mais relevante: o fez com extraordinária honestidade, com serena precisão e justo equilíbrio, com aquela isenção que é privilégio dos jornalistas que merecem o nome.

Não vou contar aqui a trama da obra, mesmo porque ela se explica por si mesma. Mas como foi um notável best-seller, ouvi diversas versões acerca de quem foi o verdadeiro assassino da bela Margit Kliemann. Isso hoje faz parte da História.

Mas é o próprio escritor que, ao descrever os traços da tragédia do palacete da Rua Barão de Santo Ângelo, desenha o retrato sem retoque do assassino, que está longe de ser o deputado Euclydes Kliemann.

Outros tempos, outros usos. Se não se houvesse formado, em setores da imprensa gaúcha, o circo ao redor do bárbaro assassinato, com a invenção de personagens, a multiplicidade de versões, a alquimia de autores, o crime dos Moinhos de Vento não se sustentaria nas manchetes mais do que umas semanas.

Mas como tudo era permitido, a começar pela Repartição Central de Polícia e as mesas das Redações, formou-se uma fabulosa trama, que arrombou a privacidade de dezenas de pessoas.

Foi exemplar, a esse respeito, a atitude superior e límpida das filhas do deputado Kliemann, respondendo com sensatez e tranquilidade as perguntas que lhes foram dirigidas agora. E modelar a forma com que Celito De Grandi abriu a porta dos guardados, para que, com ética e sensibilidade, fizesse entrar ar puro em um território que há muito clamava por claridade.

Precisamos de outros livros assim. E não apenas por reporem o sentido e o norte do real jornalismo investigativo, mas por comprovarem que o gênero é irmão da boa literatura.

Um lindo dia pra você. Saudades da Primavera, mas a partir de hoje é o verão que está ai a pleno vapor. Um gostoso Verão pra você.

sábado, 18 de dezembro de 2010



19 de dezembro de 2010 | N° 16554
MARTHA MEDEIROS


Carta ao Papai Noel

Meu sonho é um mundo classudo e isso não tem nada a ver com roupas, carros ou joias

Se você ainda não aderiu à campanha promovida pelos Correios, de buscar uma cartinha escrita por uma criança carente e ser seu Papai Noel, largue tudo o que está fazendo e trate de colocar o gorro e vestir as botas.

Nada pode ser mais gratificante nesta época do ano do que atender ao pedido de meninos e meninas cujo sonho é ter o uniforme do seu time, ter uma casinha de bonecas, ter material escolar, ter uma bola, ter um skate. Eles não pedem novos iPods e iPhones, não pedem notebooks, games ou viagens de intercâmbio, eles pedem a nostalgia dos nossos desejos infantis. Um passo a frente para eles, um resgate importante para nós, que temos tudo, menos a lembrança de um tempo em que também sonhávamos com o prosaico.

Se eu acreditasse em Papai Noel, escreveria para ele solicitando que essas crianças sejam também atendidas naquilo que elas nem pedem: afeto, cuidado, educação e acesso ao lado onírico da vida. Que essas crianças consigam assistir aos comerciais de tevê sem se sentirem excluídas desse universo megaconsumista e tecnológico, que elas continuem sonhando com casinhas de bonecas e carrinhos, sem desmerecer o que é de plástico.

E pediria também, Papai Noel, que essas crianças tenham um pai, uma mãe, um avô, uma avó, um tio, um irmão mais velho, algum familiar que lhes dê um foco, que passe adiante um valor maior, que saiba ensiná-los a distinguir entre o fútil e o primordial, lembrando que o primordial é imaterial: valorização da música, da arte, do esporte, da saúde, dos bons modos, da elegância de atitude. Ser elegante não é coisa de gente rica.

Tem muita gente rica que nem é. Ser elegante é não poluir a cidade, não ser arrogante, não ver como inimigos os que pensam e agem de forma diferente. Papai Noel, meu sonho é um mundo classudo, e isso não tem nada a ver com roupa, carros ou joias.

Ver as pessoas se comportando com mais cortesia e amabilidade me encantaria tanto quanto apreciar uma vitrine de bonecos em Nova York, tanto quanto um desfile no Natal Luz de Gramado, seria como me transportar para aquelas bolas de vidro que a gente vira de cabeça pra baixo para fazer nevar. Não tenho nada contra a pieguice da inocência.

Pra mim, Papai Noel, queria mais compreensão. Não dos outros, mas de mim mesma. Queria entender melhor meus medos, minhas carências, minha criancice tão dissimulada em meio a afazeres pretensamente adultos. Queria escutar a menina que ainda sou, entendê-la e satisfazê-la em suas travessuras. A menina em mim esperou eu crescer para se rebelar. Hoje ela me dá ordens: vai viver, deixa de pensar!

Papai Noel, me faz parar de pensar tanto. Se eu continuar pensando tanto, ponderando tanto, deixarei de ouvir a menina em mim e de acreditar na felicidade contida nas coisas simples, como casinhas de boneca e autinhos de plástico.

Gostoso domingo para você. Bom início de semana.

Ruth de Aquino - raquino@edglobo.com.br

A mente de nossos filhos

“Uma refeição por dia em família pode diminuir em até 80% o consumo de drogas entre os filhos – e também ajuda a combater a violência na rua, na escola e em casa.” A afirmação é do psiquiatra infantil Fábio Barbirato, autor do livro A mente do seu filho. Se as crianças aprendem por imitação, que modelos nós, os pais e mães modernos do século XXI, fornecemos em casa? O que ensinamos a nossos filhos? Temos tempo de transmitir algum valor ou de escutá-los?

Nunca foi fácil educar. A fronteira entre a autoridade e a compreensão é um aprendizado. Impor regras pode descambar para a repressão, a violência verbal, moral e física. Ser amigo pode descambar para a condescendência, a tolerância excessiva, a falta de limites.

Qualquer dos extremos ajuda a formar crianças e adolescentes desequilibrados, inseguros, arrogantes e antissociais. Jovens batem nos colegas da escola, matam a pauladas torcedores de times de futebol adversários, espancam prostitutas, agridem homossexuais com lâmpadas fluorescentes, incendeiam mendigos, suicidam-se no trânsito.

Ou mergulham em drogas que incapacitam para sempre, como o crack. “Infelizmente, de duas décadas para cá, os pais, para tentar se aproximar dos filhos, resolveram se tornar amiguinhos. Saem para a noite com os filhos, sentam em uma mesa de bar e bebem todas com eles”, diz Barbirato. Mães se vestem e falam como se tivessem a idade das filhas.

Você é daqueles que ensinam a seu filho que só os fortes sobrevivem? Quando seu filho é irresponsável, você suborna o policial que o flagrou? Minimiza e diz “Tadinho dele, não queria fazer aquilo”, ou pior, “Os outros mereciam mesmo”? Ser amigo é uma coisa. Ser cúmplice é outra.

O bullying é apenas uma expressão de violência juvenil. O nome vem de bully, algo como valentão, na tradução do inglês. Nos episódios de bullying, há sempre um desequilíbrio de poder, que pode ter começado em casa, com a sensação de impunidade.

Por que dar um carro superpotente a alguém que acaba de fazer 18 anos? Sua prudência ainda está se desenvolvendo, diz Barbirato. “O menino pensa: meu pai bebe um pouquinho quando saímos e dirige – por que eu também não posso beber um pouquinho, como ele?” Nos anos 60, o jovem buscava nas drogas ilícitas algo para transcender.

Hoje, sem causa ou ideologia, o jovem quer é ficar doidão para reduzir a ansiedade ou a melancolia, e por isso submerge no crack. É a crença da onipotência. E ele não consegue mais sair. Se as crianças aprendem por imitação, que modelo os pais e mães modernos fornecem em casa?

Culpar o aumento de divórcios é uma saída simplista e preconceituosa. “Não são as separações amigáveis que concorrem para a violência. Falo sempre dos filhos daqueles casais que não sabem mais conversar, numa casa onde tudo acontece aos berros ou agressões. Atribuir a culpa à mãe que hoje precisa trabalhar fora é outra visão ultrapassada e machista demais.” Construir um senso de família vai além. Para educar, é preciso ter educação.

Já se tornou clichê valorizar a qualidade, e não a quantidade, de tempo com os filhos. Não há base estritamente científica para se afirmar que uma refeição por dia em família contribua para reduzir o desajuste dos filhos. Mas tendo a concordar com Barbirato. O convívio perdido à mesa é irreparável.

Sou mãe de dois filhos, separada, e lembro quando o mais velho, aos 18 anos, reclamou abertamente: “Mãe, nós não fazemos juntos nenhuma refeição por dia durante a semana”. Isso foi há uma década. Tive sorte, porque ele me chamou a atenção e porque desejava a minha companhia.

Antecipei a hora de chegar do trabalho para poder jantar com os dois. É um momento para conversar sobre o dia. Confidências emergem. O diálogo se mantém olho no olho, e não por SMS ou e-mail.

Temas polêmicos são discutidos. É hora de falar de valores, compartilhar verdades, mesmo incômodas. De preferência, com o celular desligado! Sem tuitar, sem dispersar. A indiferença com o outro me parece hoje um grande desagregador familiar. O vício da conexão nos desconecta uns dos outros dentro do que um dia se chamou de lar.

Em 2011, jante ou almoce com seus filhos em casa – e não só aos domingos.


18 de dezembro de 2010 | N° 16553
NILSON SOUZA


Num piscar de olhos

Frequentadora assídua e involuntária deste comentário semanal, a Menina dos Meus Olhos acaba de virar um ciclo de sua vida – a passagem do Ensino Médio para a universidade. Está com 17 anos. Num piscar de olhos, a garotinha que queria sempre ser a primeira da fila pelo privilégio de pegar a mão da professora salta da infância para o mundo adulto em busca de uma profissão, de um lugar ao sol no mercado de trabalho e de seu próprio destino.

O coração aperta, sinto a areia escorrer entre os dedos, mas sei muito bem que é hora de soltar as amarras do afeto para que o barco da individualidade encontre seu rumo.

Durante os 11 anos de sua vida escolar, que acompanhei com atenção e curiosidade, procurei compartilhar com os leitores muitas de suas descobertas, sempre mantendo-a no anonimato do apelido carinhoso. Fi-lo, como diria aquele ilustre gramático, por intuir que cada leitor e cada leitora têm os seus meninos e as suas meninas dos olhos, as crianças que amamos incondicionalmente porque são a luz da nossa existência.

Sempre com o cuidado de preservar sua identidade e sua intimidade, relatei aqui algumas aventuras e desventuras dessa viagem coletiva chamada adolescência. Pelos retornos que recebi, tenho certeza de que muita gente pegou carona nos meus relatos. Uma leitora amiga e querida, inclusive, já me sugeriu que transforme em livro a passagem da Menina dos Meus Olhos por estas crônicas. Nunca tive tal pretensão, mas, por cortesia, prometi pensar no assunto.

Meu propósito sempre foi mais singelo: capturar retalhos do cotidiano da menina que vi crescer e costurá-los em textos que desafiem outras pessoas a prestar atenção nas infâncias e adolescências que as cercam.

Estou convencido de que os habitantes destes mundos de dúvidas e encantos têm muito a nos ensinar, porque são criativos, espontâneos, alegres, sinceros e carinhosos – embora, às vezes, também possam ser carentes e inseguros. Não é incomum que corram para a frente da fila apenas porque querem segurar a nossa mão.

A Menina dos Meus Olhos deixou a escola para trás, também ela com a alma dolorida por se separar de amigos e professores com quem dividiu mais da metade de sua vida. Com eles, tenho certeza, aprendeu lições importantes para encarar o futuro.

Mas a principal, a que mais me gratifica e me dá certeza de que tudo valeu a pena, é exatamente a valorização de suas amizades e de seus afetos. Se ela aprendeu a amar como é amada, tenho certeza de que nada lhe faltará.

Boa sorte, Daniele.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010



15 de dezembro de 2010 | N° 16550
MARTHA MEDEIROS


Uma casa

Nesta época do ano, fico mais observadora do que de costume. Cada pessoa que vejo passar pela rua me inspira uma história: quem será que ela ama, por quem sofre, em que trabalha, onde passou a infância? Todos nós temos uma casa da infância. Uma casa que provavelmente não existe mais porque em seu lugar foi construído um edifício. O passado morre de terraplenagem.

Hoje há apenas duas maneiras de se manter uma casa em pé, sobrevivente em meio às cidades altas. A primeira: ter gente dentro. Os moradores ainda estarem vivos e não só vivos, mas apegados às suas recordações, respeitosos do lugar onde criaram seus filhos, onde foram felizes secretamente.

Tenho uma tia que mora num casarão no bairro Petrópolis e que recebe visitas diárias de corretores, deve ser a única da redondeza que ainda não se rendeu. Podem lhe oferecer a cobertura mais espetacular do planeta, dali ela não sai. Não se trata apenas de abrir mão de uma casa em troca de um apartamento, mas de abrir mão de cada lembrança que os aposentos guardam. Toda casa antiga é uma casa dos espíritos.

A outra maneira de se manter uma casa em pé, frente à ausência de seus moradores, é transformá-la num centro cultural.

Sim, há quem as transforme em restaurantes, e não vejo mal algum nisso, mas um país precisa mais de centros culturais do que de restaurantes, ao menos o jovem Brasil, tão precário de memória.

Quem conheceu Caio Fernando Abreu sabe que a casa em que moravam seus pais, e em que ele próprio morou por alguns anos, a casa em que ele viveu seus derradeiros dias, a casa em que ele era dono de um quarto, a casa onde havia um jardim por ele vigiado, a casa do Menino Deus, essa casa era um personagem da sua história pessoal.

Essa casa hoje está à deriva e, se nada for feito, não demorará para virar mais um prédio de apartamentos. A casa onde Caio sonhou, viveu e escreveu poderá vir abaixo, a não ser que abaixo assinemos.

A Associação dos Amigos de Caio Fernando Abreu está liderando um movimento a fim de transformar a casa do Menino Deus num centro cultural que possa abrigar a extensa obra do escritor e servir de espaço para saraus, lançamentos de livros e demais manifestações artísticas.

Para isso, precisa de apoio, de boa vontade e da interferência do governo municipal, estadual e, por que não, federal, já que Caio Fernando era de Santiago do Boqueirão tanto quanto de Porto Alegre, São Paulo, Rio e, vamos além, também de Londres e Berlim. O tal cidadão do mundo.

Os amigos do Caio estão mobilizados, mas sem incentivo público e privado pouco se poderá fazer. E o que há para fazer? Comprar a casa e reformá-la. E entregá-la a uma administração eficiente e afetiva, que saiba preservar a obra de um gaúcho que tanto contribuiu para nossa cultura.

Informações: salveacasadocaio@gmail.com; amigosdocaiof@gmail.com e Liana Farias: (61) 8502-0590.

O intrépido Caio F. ficaria louco de faceiro.

Uma gostosa quarta-feira pra você. Aproveite.

domingo, 12 de dezembro de 2010


DANUZA LEÃO

Vamos combinar?

Gostaríamos de saber por que a primeira entrevista da Dilma Rousseff foi dada a um jornal americano


EM TRÊS SEMANAS, Dilma toma posse. Até lá, quem manda, ela ou Lula?

A presidente eleita se pronunciou sobre a condenação de Sakineh, a iraniana condenada à morte, e a favor dos direitos humanos (só não ficou claro se essa posição vale para todos os países); posição diferente da de Lula, que afirmou que na época disse que não iria se intrometer nos negócios internos do Irã, pois isso seria uma "avacalhação".

Como pegou mal, ofereceu asilo político à iraniana -uma piada-, e depois da declaração de Dilma, ficou calado.

Parecia que Dilma começava a se libertar, mas o novo ministério é praticamente o mesmo, apenas as peças mudaram de lugar; soube-se que ela daria quatro ministérios ao PMDB, mas acabou dando cinco, como queria o partido.

O ministro Mantega declarou que ia desacelerar as obras do PAC, Lula disse que não acredita que Dilma corte um centavo dessas obras, das quais ela é a "mãe".

Alguma coisa está errada, e não ouso dizer que estamos à beira de uma "avacalhação" porque essa palavra não deve ser pronunciada em público nem escrita.

Aliás, todos gostaríamos de saber por que razão a primeira entrevista de Dilma foi dada a um jornal americano, e não à imprensa do país que a elegeu. Já pensou se Obama, logo depois de eleito, escolhesse falar apenas a um jornal, e brasileiro?

Dilma disse que escolheria um ministério fundamentalmente técnico e que nele as mulheres teriam muito espaço; não é o que está acontecendo. Até agora, o melhor que Dilma fez foi mudar o cabelo, que em vez de ser escovado em direção às estrelas e só se manter com a ajuda de muito laquê, está mais natural, pois nenhum cabelo cresce para cima. E vamos esperar pelo vestido da posse -vermelho, claro, como é de praxe no partido.

Se um finlandês chegasse ao Brasil, ficaria muito curioso para saber a razão de tanta pressão dos partidos por ministérios, sobretudo pelos com grande orçamento para fazer grandes obras, e perguntaria o por quê. Nunca ninguém fez essa pergunta a Michel Temer, por exemplo, porque toda a população brasileira está cansada de saber a resposta, e tão acostumada com isso que acha normal.

Esse finlandês teria dificuldade também para entender o costume brasileiro de dar cargos importantes aos políticos que não foram eleitos.

A senadora Ideli Salvatti, por exemplo, candidata derrotada ao governo de Santa Catarina, vai para o pitoresco Ministério da Pesca; tudo indica que Mercadante será ministro de Ciência e Tecnologia, e o ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que para que o desempenho dos alunos brasileiros seja melhor, precisa de mais verbas. E agora?

As exibições finais de Lula nos estertores do seu mandato estão passando da conta, mas ainda vão piorar, como aliás já se sabia que ia ser; o "cacarejo", como bem definiu o WikiLeaks, está muito além da conta e a grande curiosidade é saber o que vai fazer Lula quando acordar, dia 2 de janeiro.
Podia bem ler um livro.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 11 de dezembro de 2010



12 de dezembro de 2010 | N° 16547
MARTHA MEDEIROS


A interferência do destino

Alguém consegue ter 100% de certeza sobre as escolhas que deve fazer?

Nunca as pessoas procuraram tantas fórmulas para buscar serenidade e compreensão diante dos dilemas emocionais da vida. Muitos fazem terapia, outros se apoiam em medicamentos, há os que consomem literatura filosófica, psicanalítica ou de autoajuda, há quem busque respostas na astrologia, os que se consolam na religião, mas ainda que tudo isso (ou algo disso) ajude a lidar com os questionamentos que nos perturbam, nada parece convincente o bastante.

Alguém consegue ter 100% de certeza sobre as escolhas que deve fazer? Vai ou fica? Arrisca ou espera? Aceita ou recusa?

Todos os dias tomamos decisões, a maioria delas corriqueiras, mas há momentos em que nos sentimos paralisados pela dúvida. O tão propagado autoconhecimento nos dá uma pista sobre o caminho a seguir, mas decidir é sempre tenso e desgastante. Nessas horas de extrema fragilidade é que a gente torce para que não seja preciso decidir nada: tudo o que se quer é que o destino interfira.

E ele interfere. Um telefonema que toca, um e-mail que chega, um convite que é feito, uma pessoa que nos é apresentada. Uma trivialidade qualquer pode dar a você as respostas que não tinha. Ou simplesmente aniquilar com suas perguntas, o que é ainda melhor. Tudo o que se espera do destino é que ele assuma o comando por nós.

Exemplo: uma amiga estava tentada a ceder às investidas do ex-marido, mesmo sabendo que a relação não tinha mais combustível. Ainda sentia algo por ele, mas temia sofrer tudo o que já havia sofrido antes. Ainda assim, pensava: por que não dar outra chance? Por outro lado, vale a pena percorrer o mesmo caminho já trilhado?

Enquanto se consumia entre o medo de voltar para um amor insatisfatório e o medo de perdê-lo para sempre, o destino resolveu o caso: ao entrar no elevador pela manhã, ela encontrou um moço que estava perdido, sem saber em que andar descer para visitar um amigo. Dias depois recebeu um e-mail desse mesmo moço, e o resto da história fica a critério da imaginação de cada um.

Outro exemplo: um homem havia recebido uma proposta para trabalhar em São Paulo, mas isso significaria ter que deixar a mulher e a filha em Porto Alegre, já que a carreira bem-sucedida dela a impedia de acompanhá-lo.

Ele, por sua vez, estava ganhando mal, se sentindo desprestigiado no emprego, e a nova oferta de emprego solucionaria essa questão, mas não tinha vontade de ir sozinho para uma cidade onde não conhecia ninguém.

Fosse qual fosse a decisão tomada, haveria um custo emocional. Foi passar um feriado no Uruguai para espairecer e pensar melhor, ganhou uma bolada no cassino e investiu o dinheiro numa pequena sociedade com um ex-colega da faculdade, mudando completamente seu rumo profissional, sem precisar se mudar.

Vai ou fica? Arrisca ou espera? Aceita ou recusa? Que o destino, de vez em quando, decida por nós. A gente merece uma trégua.


11 de dezembro de 2010 | N° 16546
NILSON SOUZA


Nunca antes

Nunca antes estivemos tão expostos ao olhar alheio. O admirável mundo novo da tecnologia digital colocou no nosso cangote o Grande Irmão que tudo vê e tudo controla. Sorria, você está sendo filmado, vigiado, cadastrado, espionado, investigado, achacado. De repente, seu telefone toca e, do outro lado, tem alguém que sabe tudo sobre a sua vida, onde você mora, quantos filhos tem, o que consome, quais são os seus hábitos de lazer.

E aquela voz simpática tem alguma coisa para lhe vender ou algum negócio para lhe propor – uma promoção imperdível que vai, no mínimo, deixá-lo ainda mais vulnerável aos interesses de terceiros, quartos e quintos, já que os cadastros de clientes são negociados no mercado como pipoca na entrada do cinema.

Nunca antes fomos tantos na superfície do planeta, nem tivemos tantos carros ou convivemos desta maneira com engarrafamentos de trânsito, filas em cinemas, bancos, restaurantes e aeroportos. O mundo está lotado, as estradas estão repletas de veículos, os shoppings e supermercados estão lotados, os ingressos para qualquer espetáculo estão sempre esgotados.

Nunca antes nos comunicamos tanto, nem tivemos tantos amigos virtuais, que só conhecemos por seus perfis nas redes sociais ou por suas ideias tuitadas em meia dúzia de palavras.

Todos conquistamos o poder de tocar o mundo com a ponta dos dedos, o indicador e o polegar abrindo infinitas janelas para que possamos, também nós, espionar a vida alheia ou compartilhar a nossa própria com quem estiver online e disponível. Acabou a privacidade. No mundo interconectado, ninguém mais tem direito ao anonimato.

Nunca antes fomos tão cosmopolitas, multinacionais, cidadãos de todos os países e de nenhum, superficialmente cultos, bilíngues ófi corse, alguns até quinquilíngues, palavra que sempre sonhei usar quando tinha três tremas, mas que infelizmente só tive a oportunidade de fazer agora, depois que os olhinhos das letras foram extraídos pela reforma ortográfica. Como agora falamos com os dedos, o idioma já não importa tanto.

Nunca antes na história da humanidade estivemos tão desafiados por uma mudança de paradigma. Vivemos uma era de transformações vertiginosas, mal dá tempo de entender uma novidade tecnológica e já surgem outras mil.

Tudo muda da noite para o dia. O que era verdade ontem pode não ser mais amanhã. Nossos sentidos parecem insuficientes para captar tanta informação. Nossos cérebros parecem despreparados para entender tantas revoluções.

Nunca antes vivemos tanto, com tantos recursos e, ao mesmo tempo, com tanta urgência.

Um sábado gostoso, bom fim de semana para você.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010



08 de dezembro de 2010 | N° 16543
MARTHA MEDEIROS


Adeus ao “em off”

Antes de o ano terminar, mais um fato explosivo: o vazamento de informações confidenciais pelo site WikiLeaks, comprometendo as relações diplomáticas de diversos países e causando muitas saias justas, inclusive no Brasil. Não tenho opinião sacramentada sobre o assunto.

Um lado meu concorda que informações de trincheira devam vir a público, já que o que é tramado por organizações governamentais interessa a todos. Mas admito que há aí um certo idealismo, pois dificilmente conseguiremos destituir o poder do “em off” no universo cavernoso da política. Já aqui fora, o “em off” desapareceu de vez.

Outro dia, assisti a uma reportagem sobre a invenção de uma touca de eletrodos que, ao ser colocada na cabeça, emite sinais ao cérebro do usuário, possibilitando que ele acione comandos através da força do pensamento. Aposto: em um piscar de olhos, será patenteado e vendido nas Americanas.

E não vai parar aí: pesquisas avançam e logo será possível ler os pensamentos de outras pessoas. Nada me parece mais invasivo. Considero um atrevimento até para com os criminosos. O pensamento é o único reduto de liberdade e privacidade que nos resta. O dia em que pudermos ler os pensamentos uns dos outros, acabou-se todo o mistério da vida.

O mercado de trabalho dos detetives não deve estar fácil. Quem precisa contratar os serviços de um profissional em plena era do Facebook e do Twitter? Ninguém faz mais nada escondido.

E, se fizer, câmeras estarão filmando a criatura desde o momento em que ela sai pela porta de casa, entra no elevador, cruza a garagem do prédio, circula pelas ruas e chega ao escritório, sem falar na fiscalização dentro de bancos, restaurantes, boates, lojas, agências lotéricas e igrejas. Igrejas, sim, não duvido.

Além disso, você pode ser filmado enquanto faz sexo e pode ser fotografado por algum celular enquanto tem um ataque epilético na rua. Vai tudo pro YouTube. Todos sabem o que você fez no verão passado e no minuto que passou também.

Ninguém mais consegue dar uma sumida. Não existem mais portas, não existem mais paredes. Alguém sabe exatamente onde você está, com quem e em que está pensando. Se não sabe, você mesmo irá contar.

Julian Assange, o criador do site WikiLeaks, justifica a revelação de documentos confidenciais com o argumento de que tem “aversão a segredos”. É uma frase que parece heroica, mas me apavora.

Tudo agora é rastreável: não existe mais o secreto, o particular, o reservado. Estamos dando adeus à matéria-prima da poesia, do sentimento, da introspecção, do delírio e da liberdade. Optamos por viver todos atados uns nos outros – curiosamente, com tecnologia wireless.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010



07 de dezembro de 2010 | N° 16542
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Da coleção de momentos

Soa o telefone e uma voz feminina me pergunta o que achei do e-mail. Não tenho a mais remota ideia de que e-mail seja, mas respondo educadamente que achei ok. Minha amiga então se queixa de que sou um insensível. Como posso ter achado ok um recado que era uma queixa contra a vida e o mundo? Me encho então de coragem e lhe explico que ando esquecendo muitas coisas.

Li uma reportagem esses dias que parece ter sido escrita para mim. Nunca esqueço de pagar uma conta, mas 10 dias antes já me entrego a uma tortura de exata, prévia lembrança do compromisso. Apago absolutamente da memória o nome de alguém a que acabei de ser apresentado.

E na próxima vez que o vejo o trato de doutor ou professor, em ambos os casos inominado. Dos livros que estou lendo, trato de gravar o essencial, um crime, uma cena de amor, uma gafe imperdoável. E sempre me bate uma dúvida: terei fechado a porta do apartamento na saída, terei desligado o forno de micro-ondas?

Mas tudo são detalhes, pois não esqueço alguns dos mais belos momentos de minha vida.

Paris, 1980. Eu me sentia feliz pelo simples ato de respirar, vendo passar o Rio Sena de uma das mesas do Café des Beaux-Arts. Paris, mesmo ano, mesmo outono de minha primeira juventude. À saída do Le Danton, a mais linda das francesas toma minha mão e, docemente persuasiva, me convida a desvendar os mistérios que se situam entre o céu e a terra.

Berlim, 1982. Uma esplendorosa manhã de domingo e eu vendo surgir na estação de metrô de Tempelhof, no seu vestido azul, nas suas sandálias de salto, a garota que prometera me revelar todos os segredos da cidade.

Bonn, Nuremberg, Hamburgo, em diferentes anos, os encontros com as três princesas reais que iluminaram minha vida, a última delas Lady Di, que à entrada de um teatro me presenteou por três segundos com seu olhar inesquecível.

Steamboat Springs, 1984, no alto das Montanhas Rochosas, eu mostrando da janela do hotel, à mais formosa das americanas, como o paraíso havia descido ao planeta e o havia encoberto de neve.

E mais ainda os amanheceres de Roma, as flores e os livros de Barcelona, os canais de Veneza ou de Bruges, a cor violeta do Mar Báltico, os sons de um musical em Nova York. Yes, amiga, eu fui um colecionador de momentos.

Uma linda terça-feira pra vc. Para quem está de folga, aproveite a folga...As férias estão vindo ai.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010



O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado.

Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical . O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente.

O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade.

O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

Luiz Antônio Simas - Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio.

sábado, 4 de dezembro de 2010



05 de dezembro de 2010 | N° 16540
MARTHA MEDEIROS


Traída pela memória

A pergunta desgraçada “lembra de mim?” continua a ser feita, sobretudo em sessões de autógrafos

A pior pergunta que se pode fazer para alguém é: lembra de mim? Se a pergunta precisa ser feita, está na cara que não se trata de alguém íntimo. E se você não é íntimo, a educação pede que, cordialmente, você se apresente. Oi, sou Fulana de Tal, trabalhei contigo em tal lugar, lembra? Agora sim.

Pode até ser que continuem não lembrando, mas ao menos evita-se constrangimentos. Me parece tão simples. Sempre me identifiquei antes de sair dando tapinha nas costas dos outros.

Porém, todavia, entretanto, a pergunta desgraçada continua a ser feita, principalmente em sessões de autógrafos, quando se sabe que o pobre do escritor tem dificuldade para lembrar até do nome do sogro. Eu sei, eu sei, aí é que está a graça da coisa.

Estive no Rio alguns dias atrás, lançando meu novo livro, e a fila era diabólica, saía da livraria e ia até a esquina. Havia gente estaqueada há duas horas. Foi quando uma loira surgiu na minha frente sem o papelzinho onde deveria estar escrito seu nome. Nenhum problema. Abri um sorriso e perguntei: “Como você se chama?”.

Ela: “Não lembra de mim?”. Na mesma hora, encolhi meus ombros, juntei as palmas das mãos e implorei: “Não faça isso, por favor, tenha misericórdia”. Foi um erro ter me declarado assim tão vulnerável. Ela era do tipo que gostava de chutar cachorro morto.

“Trabalhei na mesma agência que tu 20 anos atrás”. “Por favor, teu nome.” “O teu ex-marido lembraria”. Não acusei o golpe, a essa altura já havia recobrado a autoestima: “Tem 300 pessoas atrás de você loucas para sair daqui e ir jantar, dá pra facilitar?”.

Ela ainda seguiu fazendo mistério, até que o povo começou a engrossar, houve ameaça de linchamento, e ela acabou cedendo. Disse o nome que jamais esquecerei, mas que, em represália, não publicarei aqui. Esse gostinho não vou lhe dar.

Voltei para Porto Alegre. Numa tarde dessas, estava em um shopping com minha filha quando um rapaz de óculos escuros se aproximou por trás e gritou “Martha! Estava mesmo precisando falar contigo”. Desespero. Perguntei com a voz trêmula: “Quem é?”, como se ele estivesse ao telefone, e não na minha frente.

Ele tirou os óculos e abriu um sorriso que pretendia ser revelador. Desespero, desespero. Então ele me abraçou calorosamente e começou a contar que eles haviam acabado de voltar da Bahia (“Eles quem, Jesus?”) e que agora estava trabalhando com charutos (“Ele trabalhava antes com o quê, armas, drogas?”) e que pre-ci-sa-va falar comigo.

Pedi candidamente que me enviasse um e-mail, de preferência anexando um currículo e uma minibiografia. Brincadeira, pedi apenas que me escrevesse. Nos despedimos como bons velhos amigos e minha filha finalmente soltou a risada que estava presa: “Tu não tem nem ideia de quem seja, né, mãe?”.

Humildemente, imploro a todos os ex-vizinhos, ex-colegas de propaganda, ex-parceiros de academia, ex-transeuntes do mesmo parque, ex-frequentadores do mesmo salão de beleza, ex-parentes chegados, ex-parceiros de elevador e até ao meu ex-marido engraçadinho: identifiquem-se.

Não é humilhante, basta um “Sou o Fulano que foi casado contigo por 17 anos, lembra?”. Humilhação passo eu a cada dia que saio de casa. Piedade.


04 de dezembro de 2010 | N° 16539
NILSON SOUZA


Onze horas e três minutos

Tenho uma certa resistência a relógios, mas sou quase obsessivo no cumprimento de horários. Faz muito tempo que não uso relógio de pulso, nem costumo recorrer a despertador para sair da cama, mas raramente me atraso para encontros e reuniões agendadas. Veio de fábrica, acho, esse relógio interno inflexível, que me faz acordar várias vezes na véspera de viagens e outros compromissos matinais.

Esta semana, juntamente com vários outros colegas de trabalho, fui homenageado por ter completado 25 anos de empresa. E, como em outras datas redondas do nosso programa de jubilados, ganhei o tradicional presente da casa: um relógio.

– É para a gente não chegar atrasado! – sempre tem um colega que brinca.

Por coincidência, tinha acabado de ler uma reportagem da revista Superinteressante sobre a marcação e a administração do tempo nesta nossa sociedade da pressa. Diz o texto que existe o tempo do relógio e o tempo que está em nossas cabeças, alheio às leis da física, determinado por fatores culturais, geográficos e até econômicos.

O primeiro tempo independe da nossa vontade, o segundo pode ser alterado pela nossa mente. Chamou-me especialmente a atenção, como habitante de uma metrópole nervosa, a informação de que uma cidade acelerada atrai gente acelerada e expulsa os lerdos. Como tenho feito um esforço constante para reduzir o ritmo, acho que corro sérios riscos de ser expurgado de minha cidade natal.

Mas, segundo uma teoria citada no texto, é a perspectiva temporal, resultado da nossa atitude em relação ao passado, ao presente e ao futuro, que dá significado à vida. Tem até um teste para identificar a perspectiva das pessoas, com ênfase na visão positiva ou negativa de cada uma destas três dimensões do tempo.

Você pode ver o passado com otimismo ou pessimismo, valorizando as lembranças boas ou as ruins. Pode ser fatalista ou prazenteiro em relação ao presente. E pode, ainda, viver com os olhos voltados para o futuro.

Não sei qual é a minha classificação. Preferi não fazer o teste, assim como prefiro não usar relógio. Deve ser alguma atitude psicológica de defesa. Sinto-me mal quando sou rotulado, sinto-me tolhido no meu livre-arbítrio. Ainda que seja um sujeito totalmente previsível, gosto de pensar que basta a minha vontade para sair da rotina, surpreender e viver emoções diferentes.

Mesmo assim, dei uma olhadinha desinteressada para o novo relógio e percebi que está parado. Marca exatamente 11 horas e três minutos. Será um registro do passado ou uma previsão para o futuro? São mesmo enigmáticos esses devoradores de tempo.

Um sábado gostoso para vc e um gostoso fim de semana.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010



01 de dezembro de 2010 | N° 16536
MARTHA MEDEIROS


Pacaio

Quando eu era menina, no colégio, havia uma brincadeira chamada “Pacaio”. Não lembro bem como funcionava na prática, só sei que a gente pensava no nome de seis guris que gostávamos (seis, que fartura!) e cada letra que formava a palavra Pacaio selava o nosso destino em relação a eles: Paixão, Amor, Casamento, Amizade, Ilusão e Ódio. Minha cabeça dava um nó. Como era possível sentir paixão por Flávio e amor por Guto e ainda assim casar com Edu?

Estava a caminho de me tornar uma mulher esquizofrênica, mas o que mais me intrigava era outra coisa: o destinatário da minha ilusão. Era batata: o nome mais importante dos seis caía sempre na letra “i”. Nem amor, nem paixão, nem casamento. Ilusão. Era tudo o que ele me ofereceria na vida. E a profecia se cumpriu.

O menino de quem eu gostava no colégio foi uma ilusão. E tudo o mais que desejei na adolescência foi uma ilusão também. Até que um dia cresci e me desapeguei desse estado lisérgico que pouco me ajudava a ir em frente. Troquei sonhos por objetivos e decretei que só a realidade me serviria. Me tornei viciada em realidade.

Ok, as ilusões fazem parte da realidade, mas nunca mais deixei que elas me sustentassem.

É possível que esse pragmatismo tenha contribuído para eu não me entusiasmar tanto pelo novo trabalho de Woody Allen, cineasta que é outro vício meu. Claro que é um filme agradável e inteligente, como tudo que ele faz, mas saí do cinema já ansiosa para assistir ao próximo, e sorte minha que ele produz em escala industrial.

Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos é uma colagem de situações triviais protagonizadas por pessoas comuns que se amparam em suas ilusões e só recuperam o verdadeiro “eu” quando se confrontam com a realidade dos fatos. É um filme terno, delicado, sensível, mas não tem graça. A ilusão não tem graça mesmo. Paixão e amor, têm. Casamento pode ter também.

Ódio, nem se fala. Mas a ilusão, tanto no cinema como na vida, só ganha alguma relevância quando se alia ao sobrenatural (não por acaso, a única personagem do filme que se dá bem com sua ilusão busca reforço no espiritismo). Ilusão, por si só, nunca levou ninguém a lugar algum e raramente rende um bom final.


01 de dezembro de 2010 | N° 16536
MARTHA MEDEIROS


Pacaio

Quando eu era menina, no colégio, havia uma brincadeira chamada “Pacaio”. Não lembro bem como funcionava na prática, só sei que a gente pensava no nome de seis guris que gostávamos (seis, que fartura!) e cada letra que formava a palavra Pacaio selava o nosso destino em relação a eles: Paixão, Amor, Casamento, Amizade, Ilusão e Ódio. Minha cabeça dava um nó. Como era possível sentir paixão por Flávio e amor por Guto e ainda assim casar com Edu?

Estava a caminho de me tornar uma mulher esquizofrênica, mas o que mais me intrigava era outra coisa: o destinatário da minha ilusão. Era batata: o nome mais importante dos seis caía sempre na letra “i”. Nem amor, nem paixão, nem casamento. Ilusão. Era tudo o que ele me ofereceria na vida. E a profecia se cumpriu.

O menino de quem eu gostava no colégio foi uma ilusão. E tudo o mais que desejei na adolescência foi uma ilusão também. Até que um dia cresci e me desapeguei desse estado lisérgico que pouco me ajudava a ir em frente. Troquei sonhos por objetivos e decretei que só a realidade me serviria. Me tornei viciada em realidade.

Ok, as ilusões fazem parte da realidade, mas nunca mais deixei que elas me sustentassem.

É possível que esse pragmatismo tenha contribuído para eu não me entusiasmar tanto pelo novo trabalho de Woody Allen, cineasta que é outro vício meu. Claro que é um filme agradável e inteligente, como tudo que ele faz, mas saí do cinema já ansiosa para assistir ao próximo, e sorte minha que ele produz em escala industrial.

Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos é uma colagem de situações triviais protagonizadas por pessoas comuns que se amparam em suas ilusões e só recuperam o verdadeiro “eu” quando se confrontam com a realidade dos fatos. É um filme terno, delicado, sensível, mas não tem graça. A ilusão não tem graça mesmo. Paixão e amor, têm. Casamento pode ter também.

Ódio, nem se fala. Mas a ilusão, tanto no cinema como na vida, só ganha alguma relevância quando se alia ao sobrenatural (não por acaso, a única personagem do filme que se dá bem com sua ilusão busca reforço no espiritismo). Ilusão, por si só, nunca levou ninguém a lugar algum e raramente rende um bom final.