quarta-feira, 29 de julho de 2015



29 de julho de 2015 | N° 18241 
MARTHA MEDEIROS

Anacrônica

Não me preocupo em ficar velha (mentira). Desde que nascemos, estamos envelhecendo, cada dia com menos joelhos, visão e memória. Sabendo levar com humor, tudo certo. Mas ficar obsoleta é preocupante. Já começo a antever a solidão que me aguarda. Onde catar meus pares? Será que me transformarei naquelas malucas que zanzam pela noite falando sozinhas em busca de uma realidade que não existe mais?

O Facebook não tem culpa de tudo, só de uma parcela da minha sensação de anacronismo: leio os posts de amigos inteligentes e espirituosos, e tudo me parece tão esperto, moderno, atualizado, divertido, bem sacado e oportuno, que acabo me considerando uma personagem de filme de época que esqueceu de sair de cena.

Além do conteúdo das postagens, todos sabem corrigir defeitos em fotos, baixar vídeos complicados, colar matérias, fazer intervenções nas imagens e eu matei quase todas essas aulas. Até o Papa usou um tablet para se registrar como peregrino da próxima Jornada Mundial da Juventude. Outro dia, um amigo que é respeitado no Brasil inteiro, craque em seu ofício, um cara antenado, postou uma singela pergunta no Face: alguém me ensina como fazer parágrafos nos comentários sem enviá-los antes de terminar de digitar? Alívio para minha humilhação. Também não sei, também não sei.

Mas não estou obsoleta só nas redes sociais. É em tudo. Meus conceitos caducaram. Não espalhe, mas ainda gosto de algum romantismo, aprecio quem entra no jogo da sedução, faz seu papel, curte o flerte – nem precisa estar tão apaixonado, basta que encene, decore suas falas. Até dispenso o amor, fico com o simulacro, acho que evoluí (se bem que o fato de ainda gostar da mise-en-scène já me condena – e nem ouso confessar que, quando há amor de verdade, fico ainda mais feliz).

Feliz! Coitada de mim, que ainda arrisco trazer a público palavra tão retrô. Angustiada, medicada e vulgar, é isso que esperam de uma mulher condizente com seu tempo.

Só que não tenho mais meu tempo. Ele não é ontem, não é hoje e o amanhã se assemelha a um gigantesco aspirador de pó – o pó sou eu. Estou soando dramática? Exagerada? Pois é, até isso é antigo.

Eu apoio o casamento gay, sou a favor da descriminalização do aborto, viajo sozinha quando dá na telha, meu trabalho me sustenta e ainda assim me sinto como se recebesse mesada de marido e não pudesse votar. Música eletrônica me atordoa, ostentação me nauseia e meus heróis, em vez de morrerem de overdose, estão chegando aos cem anos. Meu sonho de consumo é encontrar outros sobreviventes nesta ilha em que estou me exilando. E uma tevê que não envergonhe minha filha diante dos amigos – sou a única terráquea que ainda não tem uma de LED.

terça-feira, 28 de julho de 2015



28 de julho de 2015 | N° 18240 
CARPINEJAR

Não deixe de ir


Vejo o enterro como uma majestosa sessão de cinema.

Cada um que entra no velório é um derradeiro espectador de uma vida.

De uma vida que não irá se repetir.

Manteremos o respeito dos trajes negros e dos gestos comedidos para homenagear um idioma que se extingue, um jeito de falar que desaparece, um modo de amar que some do convívio.

Não há como não ser inesquecível. O cenário nos remete às salas antigas de exibição: o tapete vermelho e as cadeiras ao redor do caixão. É sentar e lembrar as principais cenas de uma longa trajetória.

Não se nasce impunemente, assim como não se deve morrer no esquecimento.

A despedida não traz apenas tristeza, mas uma confusão de sentimentos envolvida no olhar profundo. Saímos da pressa do presente, ausentamo-nos das obrigações e dos compromissos para eternizar o que o outro representou em nosso passado. O ritmo lento da recordação encharca os olhos. Não é mais o rosto que carrega a lágrima, é a lágrima que carrega o rosto.

A música composta de soluços, cumprimentos e sussurros ao fundo lembrará o piano dos filmes mudos. O batimento cardíaco é o nosso pianista.

Não há superfície que nos separe da sensibilidade das coisas. Não há pele nas palavras. Não há proteção para os ouvidos.

Ficaremos leves repetindo incessantemente os pêsames.

Apesar da dor, não podemos desperdiçar o momento, não podemos renunciar à chance de falar o que sabemos e abraçar os espectadores. É acrescentar um capítulo inédito ao romance.

Não importa quem conheceu mais ou menos o falecido, quem era mais próximo ou mais distante. O fim torna qualquer um íntimo. Todos têm o ingresso para a saudade.

Trata-se de um momento fundamental, o de montar o copião de uma biografia.

Ouvir as histórias alheias e dar-se conta de que não conhecíamos tudo.

Descobriremos um novo lado, uma nova personalidade daquele que partiu.

Talvez desvendar que um homem sério também era divertido, que uma mulher introspectiva também era apaixonada.

Filhos ganham versões diferentes dos pais, esposas têm a surpresa das palavras ditas aos amigos, maridos recebem recordações antes do namoro.

Os mistérios serão solucionados, os passatempos serão denunciados, os traumas serão desfeitos.

Os familiares emendarão, em ordem cronológica, fotograma por fotograma da infância, da adolescência, da maturidade e da velhice de seu parente findo.

As festas de aniversário de uma pessoa estarão reunidas numa só celebração.

O enterro é uma ilha de edição, onde se juntam fragmentos dos contemporâneos, relatos de interessados, causos dos colegas, com o propósito de resumir e entender o significado de uma alma.

Não deixe de se despedir de um amigo. Será a última e, ao mesmo tempo, a primeira vez que assistirá a uma vida por inteiro.

sábado, 18 de julho de 2015



19 de julho de 2015 | N° 18231 
CARPINEJAR

Mexendo nas feridas

Demoro a me recuperar dos tombos. Não aguento o período de recuperação. Sempre mexo nas cascas dos machucados. Nunca a minha pele teve a chance de se regenerar naturalmente. Passo do limite, começo retirando as bordas secas e invado o úmido da purgação.

Jamais me controlo, desde a infância.

Na escola, cutucava o pisado debaixo da classe. Ao apressar o seu fim, retomava o seu início. Não me movia pela curiosidade infantil e biológica de entender o processo, e sim para me livrar do incômodo. Óbvio que a calça do uniforme vivia manchada de sangue. Eu mesmo encontrava um jeito de me ferir e ampliar a data de validade da ferida.

Esfolar o joelho representava meses de recuperação. Transformava a expectativa convencional de uma semana em longo martírio de coceira.

Minhas pernas estão depiladas involuntariamente nas canelas. De tanto mexer nas batidas, criei cicatrizes onde não deveria constar nenhum sinal. Acentuava a gravidade dos escorregões e encontrões do futebol.

Quem me dera se a minha impaciência estivesse reduzida à epiderme dos costumes.

Infelizmente, carreguei a mesma ânsia para dentro de namoros e de casamentos. Não percebia que as piores ofensas acabavam por aparecer no meio da briga (as que desencadeavam a discussão eram simbólicas, de menor gravidade).

Quando surgia uma insatisfação, não deixava esfriar. Não aceitava que cada um se aquietasse em sua solidão para sarar o ruído com silêncio e pensamento.

Não há como evitar acidentes e quedas na vida a dois, mas não realizava o simples curativo perante um revés: limpar a zona infeccionada das palavras, cobrir o assunto por dois dias e aguardar a melhora.

Já coçava com as unhas compridas. Já cavoucava a chaga. Já pretendia resolver na hora. Já pressionava a minha companhia a tomar uma decisão, a explicar seu posicionamento, a emitir uma sentença.

De algo muito tolo (uma piada no contexto errado, uma frase torta, um descontentamento com um gesto), convertia em tudo ou nada, naquele extremismo de exigir desculpa ou terminar a relação.

Não admitia a existência breve de uma pequena ferida. Não guardava as mãos. Não saía de perto.

Fixava-me no desentendimento a ponto de ampliá-lo em impasse.

O que é físico é também emocional.

Assim como no corpo, um ferimento na pele do orgulho, diante da insistência de insultos e acusações, pode dar origem a uma lesão crônica, que persistirá durante anos.


19 de julho de 2015 | N° 18231 
ANTONIO PRATA

Dormir é para os fracos

Quinze constatações a partir da paternidade: uma crônica de autoajuda para os que pretendem procriar – ou talvez, mais ainda, para os que não pretendem.

1 – Antes de ter filhos, eu era um vagabundo que ficava reclamando, sem razão, de não ter tempo pra nada.

2 – Depois de ter filhos, eu sou um pobre-diabo que fica reclamando, com razão, de não ter tempo pra nada. (Se hoje me dessem três meses com o tempo livre que eu tinha há dois anos, eu conseguiria aprender esperanto, escrever Anna Karenina e treinar pro Ironman).

3 – Se eu tivesse um minuto pra pensar a respeito da paternidade, provavelmente me daria conta de que estou vivendo um dos momentos mais gloriosos da minha breve passagem sobre a Terra: estou acompanhando o desabrochar de pequenos seres humanos feitos com metade dos meus genes e metade dos genes da mulher amada.

4 - Se eu não tenho um minuto pra pensar a respeito da paternidade é porque estou exercendo a paternidade, o que significa, entre outras coisas: tentar evitar que um desses pequenos seres humanos ponha na boca a mão que acabou de meter na fralda suja de cocô; tentar convencer o outro pequeno ser humano de que não dá para vermos o caranguejo, agora, pois o caranguejo mora em Ubatuba, nós moramos em São Paulo – e são duas e trinta e sete da manhã. Tais atividades, convenhamos, deixam pouco espaço para a contemplação.

5 – Felizmente, devido a uma simpática trapaça cognitiva, pregada pela seleção natural, o cocô dos nossos filhos nos parece muitíssimo menos repulsivo do que os cocôs do resto da humanidade. (Infelizmente, não a ponto de nos esquecermos que aquilo na fralda, nas costas, nas pernas ou na mão do pequeno ser humano continua sendo cocô.)

7 - Depois de ter filhos, os minutos destinados ao próprio cocô se transformam num raro e beatífico momento de paz pelo qual os jovens pais anseiam como um monge por sua meditação.

8 - (Não é incomum pais neófitos simularem dores de barriga para poderem se trancar no banheiro várias vezes ao dia e: ler rótulo de creme hidratante, dar “like” na foto do gato da prima, contemplar os azulejos num torpor quase místico).

9 - Ninando um bebê, me descubro capaz de executar funções com partes do meu corpo que, até ter filhos, julgava completamente ineptas. Consigo abrir e fechar uma maçaneta com o cotovelo – sem fazer barulho. Consigo regular o dimer com a bunda. Consigo abrir e fechar o mosquiteiro com o nariz. Coço o queixo na estante de livros, as costas no armário embutido, a testa no prato da samambaia. Se tiver uma única mão livre, posso fazer o solo de bateria do John Bonham, em Moby Dick, de trás pra frente – só não faço porque iria acordar o bebê.

10 – Antes de ter filhos, eu achava o fim da picada pais que trabalhavam com: babá, biscoito recheado, televisão no carro.

11 – Hoje, procuro uma folguista pro fim de semana (pago metade do meu salário e dou meu carro como bonificação), negocio “Só mais uma, já é o terceiro pacote!” e imploro “Não chora! Olha o filme do Senhor Batata! A Menina Moleca! A Galinha Pintadinha!”.

12 – Galinha Pintadinha é a imagem da Besta.

13 – Galinha Pintadinha é uma bênção divina.

14 – Dormir é para os fracos.

15 – Eu sou fraco.


18 de julho de 2015 | N° 18230 
PALAVRA DE MÉDICO - J.J. CAMARGO

Os que não conseguem morrer

Que motivações tornam tão diferentes os indivíduos que buscam felicidade pessoal?

Morrer, literalmente, é de um primarismo e de uma pobreza que contrastam com a engenhosidade e a exuberância dos sonhos concebidos naquela fase da vida em que fantasiamos ser o que provavelmente nunca seremos. Superada essa etapa de projetos irrealizáveis e promessas falaciosas, os modelos da vida real começam a se esboçar com diferentes perspectivas. E todos, de uma maneira mais ou menos elaborada, tentam sublimar a rudeza da morte e seguir vivendo, apesar da ameaça.

Excluída a legião tristemente majoritária dos que gastam a vida tendo como único alvo a sobrevivência – e desses não se pode exigir mais do que tristeza e resignação –, emergem dois grupos de pessoas mais equipadas do ponto de vista intelectual e econômico, ou seja, aquelas que têm condições de realmente planejar o que querem ser. Evidentemente, se vão conseguir ou não dependerá de uma série imensa de fatores aleatórios, como inteligência, iniciativa, perspicácia, ambição, oportunismo, coragem e, naturalmente, uma pitada de sorte. Esses ingredientes que dão à vida o delicioso colorido do imponderável.

Mas não é dessas dificuldades e vicissitudes que quero me ocupar. Pretendo, antes, rever as motivações que tornam tão diferentes os indivíduos que, partindo do mesmo ponto de largada e com os mesmos equipamentos, escolhem caminhos tão diversos na busca da realização e da felicidade pessoal.

Há os egocêntricos, que crescem enclausurados na autossuficiência, constroem grandes fortunas, esmagam os concorrentes, odeiam qualquer Segundo Caderno, esbanjam vaidades discutíveis, casam com mulheres bonitas e fúteis, montam sofisticadas academias em casa e, ainda assim, engordam muito, morrem antes da velhice e promovem velórios silenciosos, rodeados de amigos falsos e parentes interesseiros. Alguns poucos, constrangidos pelo estigma do egoísmo, fazem doações espalhafatosas e nem tentam disfarçar a expectativa de reconhecimento. Mas, mesmo na homenagem, não conseguem dissimular a falta que faz a espontaneidade. A avareza é uma tatuagem com tinta colorida, dolorosamente irreversível. Para esse grupo, a morte é a única terapia eficaz, compreensivelmente acelerada pelo esquecimento.

No contraponto, estão as criaturas especiais que nasceram para outro tipo de façanha: a de modificar para melhor a vida dos outros. Alguns desses até ganham dinheiro, não porque o perseguiram, mas como prêmio por sua competência. Para esses tipos, não há espaço para ostentação, nem tolerância com as mediocridades laureadas. 

São modestos e austeros, detestam exibicionismo e estão sempre inconformados por terem feito menos do que conceberam realizável. Não se queixam de fracassos eventuais e até usam deles para se fortalecerem ainda mais e esticar a corda do possível. São estoicos na doença e comovem seus pares pela bravura e pela resiliência. Quando a morte física chega, parece que não. Há tanto para relembrar e tantos projetos energizados pela contagiante gana de viver, que eles serão perpetuados, pelo menos até que morra o último felizardo agraciado pela ternura do convívio.

Li o obituário do Silvio Antonio Zanini com a leveza de quem tinha convivido e testemunhado, pela vida afora, a doce passagem de um desses tipos imortais. E, depois que chorei, senti vontade de melhorar.


18 de julho de 2015 | N° 18230 
NÍLSON SOUZA

PÉS NA LAMA

Somos mesmo criaturas contraditórias.

Devíamos amar essa chuva que desabriga pessoas, inunda vilas e cidades, umedece as roupas, as paredes e as almas dos vivos. Mas não. Ficamos todos entristecidos pelas famílias expulsas de suas casas, com suas crianças chorosas e seus animais de estimação. Também me comovo com isso. Mas a culpa não é da chuva nem de São Pedro e tampouco dessa pobre gente que mora em áreas suscetíveis de alagamentos, na maioria dos casos por não ter para onde ir. Fácil demais, também, é responsabilizar as autoridades e os próprios cidadãos, pelo mau hábito de lançar lixo em qualquer lugar, o que causa entupimento de esgotos e o assoreamento dos rios.

Então, de quem é a responsabilidade?

Da natureza é que não é. Chove desde o início dos tempos e é essa bênção que mantém a vida sobre o planeta. A chuva deveria ser sempre bem-vinda. O problema somos nós, todos nós, não apenas os moradores de áreas de risco. Não queremos mais sujar os pés. Isso mesmo, os alagamentos nas cidades – asseguram geólogos e urbanistas – devem-se principalmente à impermeabilização de extensas áreas. 

É bom trafegar pelo asfalto, é ótimo caminhar em dia de chuva sem pisar na lama, é confortável não ter que varrer as folhas de árvores dos pátios e das calçadas. Mas o preço é este: quando a água chega, não tem como se infiltrar no solo, não tem raízes que a conduzam ao interior da terra. Então, se acumula, provoca deslizamentos, invade ruas, praças e casas. Não há sistema de drenagem que dê conta.

Nossas cidades impermeáveis são um convite às inundações.

Nem é preciso chover durante quatro anos, onze meses e dois dias, como ocorreu na emblemática Macondo de García Márquez. Basta uma semana de tempo feio, como esta que está terminando, para todos amaldiçoarmos a bendita chuva.

O papa Francisco, esse surpreendente argentino que conjuga humildade e sabedoria, divulgou há poucos dias uma encíclica sobre o meio ambiente e alertou para a iminência de guerras pela água. Se continuarmos a consumi-la irresponsavelmente, em breve estaremos brigando por ela.

Concluo, pois, esta pregação no molhado com aquele provérbio chinês que manda acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão. Pise na lama, mas bendiga a chuva.


RUTH DE AQUINO
17/07/2015 - 22h35 - Atualizado 17/07/2015 22h39

Um dia da caça, outro do caçador

A democracia brasileira vive um momento de ouro, porque não poupa ninguém

A cena dos três carros de luxo, uma Ferrari, um Lamborghini e um Porsche, apreendidos da casa do ex-caçador de marajás e ex-presidente impedido Fernando Collor, é um bálsamo para todos que sempre se sentiram meio quixotes neste país, em luta contra moinhos de vento.

É compreensível que empresários bilionários ostentem brinquedos assim e se sintam mais machos enfileirando na garagem suas máquinas potentes e incompatíveis com o trânsito brasileiro. Mas, e quando se trata de políticos? Só muita cara de pau, complexo de inferioridade e problemas de caráter explicam essa obsessão em um congressista ou homem público, num país com tantos desafios básicos e graves.

O valor total dos três carros, estimado em cerca de R$ 5 milhões, é detalhe. Milhões e bilhões são jogados pelo ralo da corrupção todo dia. Ninguém consegue acompanhar o montante das propinas na Operação Lava Jato. Mais reveladora é a dívida de Collor com o IPVA das três máquinas, R$ 343.480,48. Quem caiu por um Fiat Elba sujismundo deveria ter virado colecionador de tudo, menos de carros. Sempre faltou visão a esse político afeito a surtos arrogantes e a golpes baixos.

Collor reagiu como... Collor. Com bravatas e chiliques. O senador se disse “ultrajado” com a apreensão em sua propriedade, a Casa da Dinda. “Estamos no terreno do vale-tudo!” Chamou os investigadores de “facínoras que se dizem democratas”.

Policiais federais, com mandados de busca e apreensão assinados por ministros do Supremo Tribunal Federal, levaram também material da emissora de TV do senador, em Maceió, repetidora da Globo. Era madrugada de terça-feira. A ação, acatada pelo STF a pedido do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi batizada de Politeia, que seria uma república grega, caracterizada pelos direitos civis, pela ética e pela virtude.

Com uma biografia pontuada de episódios ainda obscuros, Collor foi redimido por seus pares e é senador pelo Partido Trabalhista Brasileiro – o PTB fundado por Getúlio Vargas em 1945. E pensar que Collor quase foi presidente da CPI da Petrobras, indicado pelos governistas.

Lula elogiou Collor como um dos mais leais de sua base, em 2009. Abraçaram-se num palanque de Alagoas, em Palmeira dos Índios. Lula disse que tanto Collor quando Juscelino Kubitschek tinham sido presidentes que viajavam para “sentir o drama do povo”. O que Lula dirá agora? Nada. Até porque muito ainda deve surgir sobre a relação íntima de Lula com a Odebrecht.

Os que mais se comoveram com o sentimento de ultraje de Collor foram o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o presidente do Senado, Renan Calheiros. Ambos são alvos da Lava Jato, acusados de receber propinas robustas de fornecedores da Petrobras.

O show de Collor foi roubado por seus irmãos camaradas do PMDB, Cunha e Renan. Se pensássemos num filme que resumisse os protagonistas da semana, poderia ser Os três patetas, na versão mais carinhosa, ou Os irmãos metralha, na versão mais dura. Dos três, Collor é o mais inofensivo, o menos perigoso, por não passar de figurante canastrão no grande palco político.

“É tudo vingança do governo. Parece que o Executivo quer jogar sua crise no Congresso”, disse o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Cunha foi acusado pelo lobista de empreiteiras e delator da Lava Jato Júlio Camargo de receber US$ 5 milhões diretamente dele, em 2011. O Brasil assistiu ao depoimento, gravado em vídeo pela Justiça Federal. Cunha afirmou que o procurador-geral Janot “obrigou Camargo a mentir”.

Os delatores acusam Cunha de intimidação. Dizem ter medo dele. Não são os únicos. A figura messiânica, as manobras polêmicas e as posições extremamente conservadoras de Cunha mostram a face pior do PMDB. Até recentemente, Cunha era fã da delação premiada e da Lava Jato. Agora, diz que o Executivo usa a operação “para constranger o Legislativo”.

A tropa de choque do PMDB em torno de Cunha formou-se rapidamente. “Essas coisas” atrapalham o país, “abalando a natural tranquilidade que sempre permeou” o Brasil, disse o vice-presidente Michel Temer. Renan Calheiros afirmou que o país passa por “uma crise institucional”. “Vivemos um momento grave, preocupante”, porque o Brasil pode estar “ferindo de morte a própria democracia”, disse o presidente do Senado.

É curioso. O Brasil, com certeza, tem outra opinião. A democracia vive um momento de ouro porque não poupa ninguém. Não há lugar na Politeia para Collor e uma cambada de homens públicos brasileiros. Nossa República dos rabos presos precisa ser refundada e começo a crer nessa possibilidade. Você compraria um Lamborghini usado de Collor, Cunha ou Renan?

sábado, 11 de julho de 2015




12 de julho de 2015 | N° 18224 
MARTHA MEDEIROS

Inquietude pré-embarque

A cada vez que estou fechando a porta de casa para ir ao aeroporto, dou uma espiada mais demorada para a sala e penso: será que voltarei?

Julho, mês de férias. Momento de se preparar para a melhor coisa do mundo: viajar.

Na verdade, as três melhores coisas do mundo são comer, dormir e transar (coloquei em ordem alfabética, não em ordem de preferência), mas é viajando que desfrutamos para valer desses três grandes prazeres da vida. Não há rotina, não há horários, ninguém está nos apressando. O que pode ser mais excitante?

Pois estava, dias desses, conversando com quatro mulheres que vivem em trânsito pelo mundo. Ainda que sejam contumazes viajantes, elas admitiram que, a cada vez que compram uma passagem, sentem um temor incômodo que não sabem de onde vem. Estranho, tendo elas tantas milhagens acumuladas, mas não me surpreendeu. Também fico meio aflita antes de embarcar para um destino longe demais do meu quintal. Por um motivo tosco, infantil: fico achando que vou morrer.

Uma amiga que mora no Rio tem esta mesma sensação. Já somos seis (as quatro mulheres da primeira conversa, minha amiga carioca e eu). Você também? Então está na hora de a gente formar um grupo de apoio e tentar entender o que acontece.

Não é um medo racional, um medo de que o avião caia, por exemplo. As chances de ele cair são mínimas. Neste exato instante há várias centenas de aviões cruzando os céus do planeta e nenhum deles estará na matéria de abertura do Fantástico neste domingo (uma madeira, pelo amor de Deus! – toc, toc, toc).

Trata-se de um desassossego, mais do que um medo. Viajar é abrir um parêntese na vida, escapar de um esquema já organizado, se predispor ao desconhecido – e se despedir de quem fica. A cada vez que estou fechando a porta de casa para ir ao aeroporto, dou uma espiada mais demorada para a sala e penso: será que voltarei? Nem preciso dizer o que sinto ao dar um beijo nos familiares e trocar mensagens com os amigos: por um fiapo de segundo me passa pela cabeça que é a última vez que estou falando com eles. Qual a razão dessa neura descabida, se algo tão maravilhoso está para acontecer?

Deve ser justamente isso. Dá a impressão de que não merecemos este algo tão maravilhoso, de que teremos que pagar por este extremo deleite, não em cash, mas em sofrimento.

Culpa, em outras palavras.

Já soube de gente que, ao chegar ao aeroporto, mudou de planos: deu meia-volta e retornou para casa. Ufa, me sinto menos louca diante desses casos perdidos. Eu embarco com inquietação e tudo, e assim que o avião aterrissa do outro lado, estou uma tonelada mais leve e completamente esquecida do que até então me perturbava. A inquietação se autoextravia.

Aliás, embarco hoje e volto para a coluna daqui a duas semanas. Sem despedidas, por favor.



12 de julho de 2015 | N° 18224 
CARPINEJAR

Casal brigando esquece que tem filho

Quando estou numa discussão de relacionamento ainda me pego guri, ainda me pego distraído. A mulher me pergunta algo simples e objetivo berrando e me perco no ponto de interrogação, somente presto atenção no agudo de seu timbre.

Ela questiona sim ou não, e rastejo indeciso num estado meditativo.

Com uma caneta nas mãos, faço de conta que não é comigo. Já me flagro tirando o canudo, reparando o estado da tinta, me desligo completamente das palavras. Diante da voz levantada, as palavras não são mais comigo, sou inteiro do silêncio.

É um estado de fuga que guardei da infância, no momento em que meus pais brigavam aos gritos. O palco permanece montado em minha memória: arrumados na sala, eu e os irmãos brincávamos de forte-apache enquanto esperávamos para almoçar.

Tudo ia bem, os cabelos estavam penteados e a mesa posta. De repente, a porta da frente batia, os lustres balançavam e a paz ia embora. Alguém saía de casa correndo, talvez o pai, talvez a mãe, e um seguia o outro.

A discrição não frequentava o nosso endereço, envolvia perseguição de carros, latidos desesperados no quintal, abraços histéricos e empurrões confusos.

Descobria que não teria almoço, nem sessão da tarde, muito menos tranquilidade.

A briga dava dois trabalhos: o de explicar aos vizinhos durante toda a semana o que aconteceu e o de acalmar o coração que nunca sabia ao certo o que estava acontecendo.

Eu me abstraía de propósito, recusando determinar se correspondia ao fim do casamento ou uma reiterada tentativa do papai e da mamãe de se entenderem e de serem felizes.

Os filhos desapareciam naquele instante para os pais, eles realmente esqueciam que eram pais. Casal quando briga esquece que tem filhos.

Alheios ao que escutávamos e à nossa posição vulnerável no front de batalha, retornavam para a sala, jogavam objetos nas paredes, soltavam palavrões que jamais poderíamos repetir e se xingavam mutuamente, com energia e disposição demoníacas.

Eu mexia cada vez mais no cocar de meu índio do forte-apache e em sua machadinha marrom. Fingia que não existia, diminuindo de tamanho, até me transformar num boneco e alguém me guardar na caixinha para brincar no dia seguinte.

Fixo na caneta e vejo que não me defendo do medo de gritos, apesar de adulto, apesar da paternidade.

Em vez de escrever qualquer coisa de útil, em vez de pedir socorro, vou desmontando a caneta no meio de uma nova e inesperada gritaria doméstica. 

quarta-feira, 8 de julho de 2015



08 de julho de 2015 | N° 18218 
MARTHA MEDEIROS

Sem palavras

Acabo de ser apresentada ao trabalho de John Koenig, um web designer americano que lançou uma série na internet chamada Dicionário das Dores Obscuras (Dictionary of Obscure Sorrows). A intenção é nomear emoções ainda indefinidas. Qual é o nome para aquele desejo de desaparecer que nos acomete no meio de uma quinta-feira qualquer? Como se chama aquele frisson ao fazermos um ligeiro contato visual com algum desconhecido? 

Que palavra resumiria o desconforto de perceber que estamos apenas repetindo a história já vivida por tantos? E a angústia de que o tempo está passando cada vez mais rápido? A cada semana, Koenig posta belos vídeos de cerca de três minutos apresentando uma palavra inventada para conceituar tudo isso. O texto é inteligente, melancólico e comove. Como diz uma amiga minha: como é que ninguém pensou nisso antes?

O projeto é original (vale a pena dar uma olhada, está no YouTube), mas fiquei pensando: a gente precisa mesmo nomear o inominável? Me vieram à cabeça dezenas de situações que experimento e que nunca foram batizadas. Por exemplo, algo bom me deixar inexplicavelmente triste. Lembrar cenas de um passado remoto que não sei se aconteceram mesmo ou se inventei. 

Abrir meu coração e, ainda assim, parecer que estou mentindo. Ter a súbita consciência de que não faz sentido me preocupar com o que quer que seja. Não conseguir desviar os olhos do fogo. Estar numa festa e sentir como se estivesse vendo tudo aquilo de fora, como se eu não estivesse ali de verdade. Imaginar coisas terríveis acontecendo com quem mais amo, logo com eles.

Ao entrar nesse assunto, é inevitável lembrar a palavra saudade, que não existe no vocabulário de quem fala inglês. Anglo-saxões costumam sentir falta (I miss you), mas não possuem um substantivo que defina essa sensação de ausência dolorida. 

Nós possuímos e a usamos sem parcimônia. Nas redes sociais, declaramos sentir saudade de amigos, inimigos, de tudo e de todos, da última festa, do último beijo, do último churrasco, saudade de ontem e também dos velhos tempos, saudade dos outros, de nós mesmos, saudade de quem se foi para sempre e de quem viajou semana passada, saudade de sabores, de músicas, de turmas, de épocas. É tanta saudade assim? Ou o fato de termos uma palavra à mão é que invoca tamanha nostalgia?

Como escreveu Adélia Prado: a coisa mais fina do mundo é o sentimento. Ele não se presta a banalizações. Portanto, esses inúmeros insights que me ocorrem e que ocorrem também a você, sem que haja nenhuma palavra que os especifique e conceitue, talvez sejam os últimos meios de conceder algum lirismo à nossa existência. A poesia é o verdadeiro dicionário das dores obscuras.

sábado, 4 de julho de 2015



05 de julho de 2015 | N° 18215 
MARTHA MEDEIROS 

SUTIÃS

 
Um sutiã pode ter um significado oculto. Funcionar como um abraço apertado. Uma amarração.

Minha profissão traz poucas inconveniências e muitos prazeres, o que torna o saldo altamente positivo. Uma das coisas a celebrar é o contato que tenho com pessoas que, mesmo desconhecidas, estabelecem comigo uma intimidade enriquecedora. Foi o caso de uma garota (acho que ainda posso chamar uma socióloga de 45 anos de garota) com quem tive uma adorável conversa dias atrás, no Rio de Janeiro.

Ela me contou sobre seu primeiro casamento e sua primeira separação, do quanto ficou abalada, de como fez para se reerguer, de como foi o processo todo. Fez um relato comovente de tudo o que aconteceu, mas não pude deixar de ajustar o foco num detalhe rápido que ela mencionou, daqueles que a gente costuma deixar passar batido. Em meio ao turbilhão de emoções que ela narrava, me disse: Depois do fim, eu já nem sabia direito quem era, nunca usei sutiã e de repente comecei a usar.

Encontramos metáforas onde menos se espera.

Separação: tem desamparo maior? Uma aposta que parecia estar dando certo de repente começa a fazer água, alguém que para você era a pessoa mais importante do mundo perde o protagonismo, a vida estruturada se dissolve, o amor dá lugar à mágoa, e mesmo quando não há mágoa ainda assim existe um abismo para se atravessar antes de chegar ao outro lado. Você precisa reconstruir sua identidade, não é mais a esposa de, o marido de, o amor da vida de alguém.

As declarações não se sustentaram, as promessas não vingaram, o destino foi mais forte que a idealização: fez cada um seguir carreira solo. Depois de tanta luta, tanta negociação, tantas tentativas de manter o acordo, chega a hora em que é preciso entregar os pontos, não há mais o que fazer a não ser partir e tentar de novo com outro alguém, quando as forças voltarem.

Mas, até que elas voltem, quanto medo. Da solidão, da saudade, do rumo desconhecido. Você agora é um, não dois. Já não tem quem segure sua mão. Está solto. E essa soltura assusta. E se eu cair?

Um sutiã pode ter um significado oculto. Funcionar como um abraço apertado. Uma amarração. Não usá-lo sempre foi uma atitude libertária, até que, um belo dia, você descobre que a liberdade virou um bicho-papão e você voltou a ser uma menininha assustada. O que mais deseja é se sentir presa, segura, acolhida.

O desafio das separações é fazer com que voltemos a nos sentir confortáveis com a soltura dos dias, confortáveis diante da incógnita do futuro. Não sei no que os homens se seguram quando se separam (minto: sei, sim), mas grande parte das mulheres recomeça a vida emocional se segurando nelas mesmas. Só então, aos poucos, iniciam outra revolução, uma nova queima de sutiãs, a fim de formar uma identidade mais firme que a anterior.


05 de julho de 2015 | N° 18215 
CARPINEJAR

Invasores

– Já que ele não vai ficar comigo, não vai ficar com mais ninguém.

Assim também esquece que ele jamais olhará novamente para sua cara. Tentar destruir a próxima relação de seu ex ou flerte postando mensagens ofensivas e insinuações na web ou até mesmo mandando prints de conversas antigas é atitude de recalcada. Desceu sem volta o seu espírito para o inferno mais remoto. Não há depois como salvar o respeito e a reputação. É gesto de megera, de bruxa, de burra, de psicopata, onde os fins justificam os meios.

Pode estar desesperada, louca, histérica, mas até o jogo da sedução é constituído de regras e etiqueta, não é um vale-tudo emocional, o que não é reciproco deixa de vigorar como realidade, cabe respeitar a decisão de sua companhia, mesmo que um dia tenha recebido juras. Nada de destituir a liberdade do outro, que tem todo o direito de reavaliar o trajeto, não querer o relacionamento e trocar de opinião. Nada de bancar a hacker e entrar em contas alheias em nome de uma dor-de-cotovelo.

Depois de perder o amor, é muito fácil perder o amor próprio e despencar para a grosseria.

Não é não, o não está a léguas de significar um charme, não é para insistir se não existe abertura, não é uma provocação, um desafio e uma oportunidade para provar o seu valor.

Se ele não quer ficar junto, não se rebaixe e, o mais grave, não busque rebaixar todo mundo. Não arraste inocentes para seu túmulo. Se está infeliz, não espalhe a infelicidade. Aceite a derrota e o fracasso com humildade. Não procure sofrer acompanhando a novela do amor recente nas redes sociais. Não fique investigando o perfil da nova namorada. Não faça comparações e conclusões distorcidas, não crie tumulto e fakes. Policial amador é criminoso.

Ele não quis permanecer a seu lado quando apresentou seu melhor, não é com o pior que mudará seu conceito. Compreensão e respeito são capazes de trazer alguém de volta, jamais mentira e invasão de privacidade. Isso serve para homens e mulheres.

Não provoque o desprezo. O desprezo é a paixão azedando, vinho virando vinagre, sem rótulo e safra para ser lembrado. Quando o sentimento acaba por uma das partes, é necessário ser amigo do tempo. O tempo cordial é a única esperança que resta.

quarta-feira, 1 de julho de 2015



01 de julho de 2015 | N° 18211 
MARTHA MEDEIROS

Ainda Cristiano Araújo

Em uma cena de Birdman, o personagem Riggan Thomson, um astro em decadência, reflete sobre o que aconteceria se ele e George Clooney estivessem no mesmo avião e ocorresse um acidente fatal. Óbvio: Clooney estamparia as páginas de todos os jornais no dia seguinte, enquanto que a Thomson restaria uma nota de rodapé.

Farrah Fawcett teve a infelicidade não só de morrer, mas de morrer no mesmo dia que Michael Jackson. O senador Antonio Carlos Magalhães morreu em julho de 2007, três dias depois de um dos maiores desastres aéreos do país, notícia que monopolizou a imprensa por semanas. As mortes de Farrah e ACM ficaram em segundo plano. Não é preciso buscar outros exemplos: existe hierarquia na tragédia.

Gaúchos apegados à sua cultura podem ter considerado desproporcional a cobertura das mortes de Nico Fagundes e Cristiano Araújo, mas, sem entrar na discussão sobre o legado de cada um, o desaparecimento do cantor sertanejo teve todos os componentes para causar comoção – era jovem, talentoso (dizem os entendidos no gênero), um ícone nacional (também só soube agora) e morreu num acidente súbito ao lado de uma linda namorada. Não é páreo para o ocaso de um tradicionalista de 80 anos que transitava dentro das fronteiras do próprio Estado. Não é páreo em termos de notícia, que fique bem claro.

Ainda assim, a cobertura televisiva da morte de Cristiano Araújo causou espanto porque evidenciou a “alienação” de quem não sabia quem ele era. Alienação ou direito de escolha? Eu não apenas desconhecia Cristiano Araújo como também desconheço a maioria de seus colegas que compareceram ao velório, e não pretendo me atualizar sobre eles.

Não sei quem são os expoentes do axé e do forró, quem domina a cena do pagode atualmente, assim como muitos brasileiros talvez não saibam quem é Adriana Calcanhotto ou Marcelo Camelo – e muito menos quem é Tulipa Ruiz, Filipe Catto, Céu, Clarice Falcão. Vai do interesse de cada um. O problema é que, se a criatura vende milhões, é promovida a fenômeno, e ai de quem não capitular. Outro dia quase fui espancada por ter feito uma pergunta inocente: quem é Ludmila?

Houve uma época em que nossos ídolos eram os mesmos e vivíamos como nossos pais. Todos sabiam quem era Caetano, quem era Rita Lee, gostassem deles ou não. Agora os gêneros musicais deram cria, as tribos se multiplicaram e a tecnologia facilitou a popularização: há sucesso para todos os paladares – tantos, que é impossível acompanhar. 

Não há nada de errado em não saber quem era Cristiano Araújo e isso não significa que sua morte é desprezada, ela apenas não causa sensação de perda em quem não escutava sua música. A hierarquia do obituário obedece a critérios midiáticos, já a importância de cada um é medida não por números, e sim pela qualidade do encantamento que provocou em vida.