quarta-feira, 30 de março de 2011



30 de março de 2011 | N° 16655AlertaVoltar para a edição de hoje
MARTHA MEDEIROS

A arte de perguntar

Parece simples entrevistar alguém: basta fazer algumas perguntas e torcer para que o entrevistado não seja uma gaveta emperrada. Só que de simples não tem nada. Acabo de passar por uma experiência devastadora e inédita em minha vida: com um gravador na mão e o coração na outra, fui entrevistar a atriz Patricia Pillar, a pedido de uma revista, que achou que uma escritora faria algo diferente. Ah, essa mania de inventar moda.

Uma mulher que já passou por um câncer de mama, que é casada com um presidenciável, que já protagonizou um filme que concorreu ao Oscar, que fez inúmeras novelas de sucesso e dirigiu um documentário sobre a carreira de um ídolo esquecido como Waldick Soriano, essa mulher – belíssima em seus 47 anos – deve ter muito para contar, presume-se.

Teria, claro, se ela duelasse com um jornalista de fato, um profissional astuto. Não é o meu caso. Jornalistas sabem fazer as perguntas certas, e fazem muitas. Já eu nasci acreditando que fazer muitas perguntas é bisbilhotice.

Não há nada mais contraproducente do que um entrevistador discreto, com receio de invadir a privacidade do entrevistado. Eu sabia que não estava em frente a uma mulher fruta: se estivesse, bastaria ligar o gravador e a intimidade me seria ofertada em doses generosas.

Mas Patricia não se entrega fácil e eu não seduzo o suficiente. Estávamos condenadas a comer biscoitinhos e falar trivialidades, como duas amigas de colégio. Foi o que fizemos e nos tornamos. Que tarde adorável. Que tarde perdida.

Patricia teve um câncer há 10 anos. Superou. Hoje esbanja saúde. Será que alguém tem vontade de lembrar maus momentos? Toquei no assunto muito rapidamente e ela rapidamente falou qualquer coisa, e logo estávamos comentando o dia lindo lá fora. Patricia vive há muitos anos com o deputado federal Ciro Gomes e jamais vi o casal no castelo de Caras.

Se eu não pergunto nem sobre o casamento das minhas amigas, como é que vou xeretar a relação preservadíssima de alguém que conheço há cinco minutos? Patricia queria ter tido filhos, mas o destino a fez adiar os planos até um ponto sem volta. Vou eu perguntar como ela se sente tendo desistido da maternidade? Eu? Eu que não pergunto pra namorado onde ele esteve sexta-feira à noite que não me ligou?

Passei duas horas na casa da Patricia Pillar e ainda ganhei uma carona de volta até o hotel. Atravessamos as ruas do Rio de Janeiro rindo à toa. Já estamos trocando e-mails. Amor à primeira vista.

Ganhei uma amiga e a revista ganhou uma matéria meia-boca. Que Patricia tenha mais sorte na próxima vez, que mereça a visita de um jornalista arrojado, que tenha desenvoltura, cara de pau, audácia. Pensei em sugerir o Luis Fernando Verissimo.

terça-feira, 29 de março de 2011



29 de março de 2011 | N° 16654
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Por falar em chatos

Foi Guilherme de Figueiredo quem escreveu um livro divertido, irônico e sábio. Chama-se Tratado Geral dos Chatos.

É, pois, com algum receio de soar recorrente que deixo aqui uma modesta porém sincera contribuição ao tema.

Revi, há séculos, uma deusa que, milhares de anos antes, me havia enfermado de paixão. Como se, em verdade, desde nosso comum desencontro, tivessem transcorrido nada mais de cinco minutos, ela reinaugurou uma doce intimidade, na qual mergulhamos cúmplices e aprazidos, até que adentrasse, sem licença, na conversa, um conhecido ocasional.

Esse tipo adorava o som da própria voz e pontificou sobre política, finanças e reumatismo. Classifico esse sujeito, que matou na hora instantes de enlevo, na categoria dos Chatos Interrompentes.

Entrevistava um gênio da sociologia, numa de suas raras visitas a Porto Alegre. Arrancava dele recordações e confissões inéditas. Eis quando surge, inconvidado, um amigo desse luminar da ciência, que se elegeu o polo das atenções, com minúcias tolas e desimportantes. Será preciso dizer que o intrometido atalhou pela metade um diálogo que prometia converter-se no testemunho de toda uma vida? Esse cara pode ser incluído com honras no elenco dos Chatos Autocentrados.

Andava em Madri e, mal me acomodara no hotel, recebi uma mensagem: o professor Tamarindo me aguardava na portaria. Desci, curioso, e topei com um tipo que era a imagem da prontidão. Oferecia-se para guiar-me por museus, igrejas, palácios da belíssima capital. Recusei polidamente, mas o professor Tamarindo converteu-se em minha sombra.

Para mal dos pecados, era cordial, prestativo e enciclopédico. Mas quando engrenou numa canhestra interpretação de As Meninas, de Velázquez, enchi as medidas. Despachei-o com um punhado de dólares e lá se foi ele, feliz, extorquir novos incautos. Era o modelo pronto e acabado do Chato Mordedor.

Não foram, claro, os únicos representantes da amoladora espécie que encontrei em Pindorama ou sob céus distantes. Mas hoje penso que teria me livrado de todos eles se pusesse por uns instantes a boa educação de lado.

Pois para se livrar de chatos, me convenci, é necessário um truque: ser mais chato do que eles.

Linda terça-feira para você. Aproveite o dia


29 de março de 2011 | N° 16654
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Por falar em chatos

Foi Guilherme de Figueiredo quem escreveu um livro divertido, irônico e sábio. Chama-se Tratado Geral dos Chatos.

É, pois, com algum receio de soar recorrente que deixo aqui uma modesta porém sincera contribuição ao tema.

Revi, há séculos, uma deusa que, milhares de anos antes, me havia enfermado de paixão. Como se, em verdade, desde nosso comum desencontro, tivessem transcorrido nada mais de cinco minutos, ela reinaugurou uma doce intimidade, na qual mergulhamos cúmplices e aprazidos, até que adentrasse, sem licença, na conversa, um conhecido ocasional.

Esse tipo adorava o som da própria voz e pontificou sobre política, finanças e reumatismo. Classifico esse sujeito, que matou na hora instantes de enlevo, na categoria dos Chatos Interrompentes.

Entrevistava um gênio da sociologia, numa de suas raras visitas a Porto Alegre. Arrancava dele recordações e confissões inéditas. Eis quando surge, inconvidado, um amigo desse luminar da ciência, que se elegeu o polo das atenções, com minúcias tolas e desimportantes. Será preciso dizer que o intrometido atalhou pela metade um diálogo que prometia converter-se no testemunho de toda uma vida? Esse cara pode ser incluído com honras no elenco dos Chatos Autocentrados.

Andava em Madri e, mal me acomodara no hotel, recebi uma mensagem: o professor Tamarindo me aguardava na portaria. Desci, curioso, e topei com um tipo que era a imagem da prontidão. Oferecia-se para guiar-me por museus, igrejas, palácios da belíssima capital. Recusei polidamente, mas o professor Tamarindo converteu-se em minha sombra.

Para mal dos pecados, era cordial, prestativo e enciclopédico. Mas quando engrenou numa canhestra interpretação de As Meninas, de Velázquez, enchi as medidas. Despachei-o com um punhado de dólares e lá se foi ele, feliz, extorquir novos incautos. Era o modelo pronto e acabado do Chato Mordedor.

Não foram, claro, os únicos representantes da amoladora espécie que encontrei em Pindorama ou sob céus distantes. Mas hoje penso que teria me livrado de todos eles se pusesse por uns instantes a boa educação de lado.

Pois para se livrar de chatos, me convenci, é necessário um truque: ser mais chato do que eles.

Linda terça-feira para você. Aproveite o dia

sábado, 26 de março de 2011



27 de março de 2011 | N° 16652
MARTHA MEDEIROS


Dois em um

Muito se falou sobre Cisne Negro, o filme que não venceu o Oscar mas que foi, de longe, o mais perturbador e perturbação é vital para o pensamento. Houve quem tenha prestado atenção na questão da esquizofrenia, outros ficaram atraídos pela angustiante busca da perfeição artística e outros viram ali apenas mais um filme de terror. Há outro aspecto ainda, que é o que mais me seduziu: a dificuldade de conviver com a dualidade que existe em nós.

Há na sociedade uma tendência de encaixotar as pessoas e selar uma etiqueta para defini-las. Se você é uma pessoa de cabeça aberta, não lhe perdoarão ser contra o aborto. Se é uma natureba, jamais deverá ser vista tomando uma coca-cola. Se é respeitada nos meios intelectuais como uma grande pensadora, nem se cogita ouvir de sua boca uma resposta parecida com “não sei”. Tem que saber. É obrigatório confirmar o que o seu rótulo induz a pensarem sobre você.

Ainda que tenhamos, todos, um estado de espírito predominante e um estilo de vida que dá pistas sobre o que nos é caro, a verdade é que nada nos define integralmente. Um homem pode ser conservador em suas aplicações financeiras e ao mesmo tempo um aventureiro que se arrisca em esportes radicais.

Uma mulher pode tomar seus pileques de vez em quando e ser extremamente responsável na educação dos filhos. Para a comissão julgadora, isso sugere leviandade: ou você é uma coisa, ou outra. Senão, como garantir a estabilidade que nos estrutura?

Podemos ser uma coisa, e outra, e mais outra, inclusive coisas que se contradizem (te amo, mas preciso ficar sozinho) e não há nada de frívolo nisso. Ao contrário, as pessoas verdadeiramente maduras são as que não se sentem inseguras com suas contradições e conseguem extrair delas uma sabedoria que lhes sustenta. A comissão julgadora fica meio perdida. Que nota essa criatura dual merece? Sugiro: zero em harmonia, 10 em evolução.

No filme, a dualidade se manifesta através do lado claro e escuro da bailarina que precisa interpretar dois personagens antagônicos num mesmo ballet. Ser virginal e erótica ao mesmo tempo lhe esgota e amedronta: como sobreviver a tamanha contradição?

Há muitas possibilidades de desfrutar de antagonismos sem que percamos nossa integridade, basta que a gente tenha um mínimo de bom senso para saber até onde o anjo e o demônio em nós pode se manifestar sem causar danos aos demais. Há espaço para ambos existirem, sem comprometer a nossa singularidade – ao contrário, é na ambivalência que nosso “eu” se firma e encontra a plenitude.

Se isso tudo não passar de conversa pra boi dormir, ao menos serve como argumento para justificar as inquietantes dúvidas que nunca nos abandonam.

Marcela Buscato

A guerra contra o relógio biológico

Se você é mulher, é bem provável que em algum momento da sua vida (lá pelos 10 anos de idade, no caso de neuróticas como eu), você tenha começado a pensar com quantos anos gostaria de ter um filho. Sim, porque a pergunta é com que idade e não SE você gostaria de ter um filho. É o que todo mundo, aparentemente, espera de você, mocinha de família que vai estudar, fazer faculdade, casar e engravidar. Tudo assim, necessariamente nessa ordem (porque a vida é assim, milimetricamente planejada, claro). Na época da minha avó, os planos eram lá pelos 19 ou 20 anos. Na da minha mãe, lá pelos 24 ou 25 anos.

Na minha, boa pergunta. Lá pelos 28 anos, para seguir a progressão? Mas eu já estou nos 28! Meio cedo, né? Até alguns meses atrás, eu ainda perguntava para a minha mãe se ela achava que eu tinha de dormir de cobertor ou se só de manta estava bom para o frio que estava fazendo. Como é que eu vou criar uma criança? Mas as pessoas acham que não, não é cedo. Para quando você quer o seu bebê? Não vai demorar muito, não é?

Tem gente que chama esse clamor de relógio biológico. Eu já acho que é pressão social mesmo. Sim, eu sei das estatísticas. Em uma aula de biologia nos remotos tempos do Ensino Médio, eu cometi uma das maiores gafes da minha vida, o que me impede de esquecer que as estatísticas existem. O professor discorria sobre todas as anormalidades genéticas que podem acontecer na gravidez, e cujas probabilidades aumentariam depois dos 30 anos.

Descobri síndromes que não sabia que existiam. Cutuquei o colega da frente. “Imagina, deve dar muito medo de ter um filho com uma dessas síndromes!” Ele sorriu amarelo, concordando. Dias depois, descobri que a namorada dele estava grávida. Ai, os 17 anos! A gente não sabe controlar os hormônios. E nem manter a boca fechada (acho que isso eu ainda não aprendi…).

Enfim, as estatísticas podem ser reais (e não significam que um filho com algum problema será menos amado). Mas são outra fonte de pressão social, não biológica. Será mesmo que o corpo manda sinais para o nosso inconsciente do tipo “Ei, seu óvulos estão acabando. Ei, os cromossomos estão ficando velhos. Eles podem ficar meio caducos. Vai que eles se dividem errado?”.

Nem precisa. As pessoas se encarregam disso. No fim, a gente passa muito tempo pensando quando ter filhos, mas pouco tempo analisando se os quer de verdade (pronto, frase para despertar a fúria de muitos leitores, em especial de avós em potencial. Avós em potencial nunca acham que ter filhos é uma questão de escolha, mas um desdobramento absolutamente normal da existência).

A escritora britânica Kasey Edwards teve que enfrentar o dilema em menos de um ano. Em seu livro “30-Something And The Clock Is Ticking” (Mais de 30 e o relógio continua marcando), a ser lançado no Reino Unido em abril, Kasey conta como descobriu que, em um ano, suas chances de engravidar seriam remotas. Em um belo dia, ela saiu do consultório da ginecologista com a sentença. Seus problemas de útero e ovário se agravariam em 12 meses a ponto de tornar uma gravidez inviável. Kasey se deu conta de que teria de decidir se queria ou não ter filhos.

Assim, para ontem! Contou naquela mesma noite para o namorado, com quem estava há um ano. Ele amaria uma mulher infértil? Ele disse que sim, mas que não custava tentar encomendar um herdeiro (parece mais um não). Seis meses se passaram e os testes de gravidez não se manifestavam. Não positivamente, pelo menos. A médica de Kasey recomendou que eles partissem direto para a fertilização in-vitro, quando o óvulo é fecundado com o espermatozóide em laboratório e depois implantado no útero da mãe. O procedimento deu certo. Nove meses depois, Kasey e o marido deram boas-vindas à Violet, hoje com dois anos.

A alegria de ter uma filha não fez que Kasey se esquecesse dos sentimentos que viveu quando acreditava ser infértil. “Vazia”, “inadequada” e “culpada” são as palavras que ela usa para descrever seu estado de espírito na época. São as mesmas sensações relatadas com frequência por mulheres com dificuldades para engravidar. Não duvido que elas queiram um bebê mais do que tudo.

Mas as palavras usadas para descrever a angústia mostram que boa parte do sofrimento vem da impossibilidade de viver o papel esperado para a mulher e não pelo pesar de não ter um filho e acompanhar seu desenvolvimento, suas alegrias e conquistas pelo resto da vida. Nenhuma mulher pode se sentir menos valiosa do que outra por não engravidar. O papel de mãe pode ser um dos mais sublimes que recebemos na vida. Mas não é o único.

quinta-feira, 24 de março de 2011


24 de março de 2011 | N° 16649

MORRE UM MITO

Quem tem medo de Liz Taylor? A atriz inglesa foi estrela aos 12 anos, divorciada aos 18, viúva aos 26 e musa a vida inteira

Ao se apagar a luz dos olhos violetas de Elizabeth Taylor, boa parte do brilho da época de ouro de Hollywood também se extinguiu. A última grande diva do cinema americano despede-se deixando uma filmografia que comprova o casamento de beleza e talento da atriz. No escuro da sala de projeção, a aparição cintilante de Liz hipnotizava as plateias de um jeito mágico que o cinema não possui mais.

Até sua última participação no cinema em Os Flintstones (1994), Elizabeth Taylor atuou em 54 longas-metragens. Sua trajetória nas telas, iniciada aos 10 anos com There’s One Born Every Minute (1942), foi tão rumorosa quanto sua vida pessoal.

Os maridos e amantes, a dependência de bebida e drogas, os distúrbios alimentares que a fizeram engordar em excesso, a série de doenças, o apoio a atores amigos problemáticos, as causas humanitárias, a paixão pelos diamantes – o perfume de glamour e escândalo sempre brigou pelos holofotes na carreira de Liz com o sucesso ou o fracasso de seus filmes.

Nascida em Londres em 1932, filha de americanos, Elizabeth Rosemond Taylor mudou-se para os Estados Unidos aos sete anos, fugindo da iminente II Guerra.

Depois de uma discreta estreia no cinema, a jovem atriz despontou em Lassie – A Força do Coração (1943), conquistando o público nos anos seguintes em papéis que destacavam sua beleza excepcional e seu porte gracioso. As interpretações de Liz ganharam relevo em O Pai da Noiva (1950) e O Netinho do Papai (1951), filmes que marcaram a transição de adolescente a adulta. A namoradinha da América revelou-se então mulher de personalidade forte em dramas como Um Lugar ao Sol (1951),

No Caminho dos Elefantes (1954), A Última Vez que Vi Paris (1954) e A Árvore da Vida (1957). A década de 1950, no entanto, também marcou o início da infindável série de polêmicos relacionamentos da artista: Liz se casou pela primeira aos 18 anos, com o playboy Nicky Hilton, matrimônio que durou 203 dias e terminou com agressões físicas e verbais, depois uma lua de mel de três meses na Europa.

No enterro de seu terceiro marido, o produtor Michael Todd, ela foi acompanhada por Eddie Fisher, melhor amigo do falecido – e logo a viúva roubaria o cantor de sua esposa, a atriz Debbie Reynolds.

Ao mesmo tempo, Elizabeth Taylor tornava-se amiga e confidente de jovens astros em ascensão com problemas emocionais e sexuais: James Dean, Rock Hudson – com quem contracenou no clássico melodrama Assim Caminha a Humanidade (1958) – e, principalmente, Montgomery Clift, seu parceiro em filmes como Tarde Demais (1949) e De Repente, no Último Verão (1959).

Se alguns colegas enxergam Liz como uma figura materna, outros como Richard Burton viam uma linda e envolvente mulher: o ator galês conheceu a estrela durante a filmagem da superprodução Cleópatra (1963), casando-se no ano seguinte com a intérprete da sedutora rainha do Egito.

O saldo do tumultuado envolvimento com Burton foram dois matrimônios, duas separações e 11 longas – como Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e A Megera Domada (1967), filmes em que ambos vivem relacionamentos violentos e passionais.

O desempenho impressionante de Liz como a neurótica esposa no excelente Quem Tem Medo... – dirigido por Mike Nichols a partir de uma peça de Edward Albee – rendeu o segundo Oscar da carreira da atriz. A primeira estatueta veio com o fraco Disque Butterfield 8 (1960) – a Academia teria premiado Liz por conta de sua saúde frágil, que quase a matou na época e a obrigou a fazer uma traqueostomia às vésperas da cerimônia.

Em 1993, ela ainda receberia um Oscar honorário por sua militância por causas humanitárias, como a luta contra a Aids.

A partir dos anos 1970, Elizabeth Taylor começou a aparecer na imprensa mais como celebridade do que como atriz em atividade. A artista enfrentou uma longa história de mais de 30 anos de abuso de álcool e drogas. Além de ter sido internada diversas vezes em clínicas de desintoxicação, sofreu com distúrbios alimentares e por algumas vezes tentou suicídio.

A atriz ainda tomava aspirinas e analgésicos para livrar-se das dores ocasionadas por uma queda de cavalo aos 12 anos – ela fraturou três vértebras e passou a depender de remédios desde então. Nos últimos anos de vida, Liz foi internada diversas vezes por problemas de saúde, que incluíram um tumor benigno no cérebro e complicações cardíacas.

A imagem de Elizabeth Taylor que vai ficar para a eternidade, porém, é a da jovem de sorriso encantador e olhar faiscante, da morena de corpo curvilíneo e voluptuoso, da musa de temperamento sanguíneo, da diva como não existe mais – na definição do cineasta italiano Franco Zeffirelli, que a dirigiu em A Megera Domada.
ROGER LERINA

terça-feira, 22 de março de 2011



22 de março de 2011 | N° 16647e
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Da arte de viajar

Solidamente ancorado em Porto Alegre por mais tempo do que julgo merecer, repasso na memória viagens que fiz em melhores épocas. A melhor de todas foi como um trecho de céu azul inaugurado sem aviso em meio a uma tormenta de inverno.

Em um telefonema, o adido de Imprensa da Embaixada da Alemanha perguntava se eu estava disposto a estudar Jornalismo Avançado por alguns meses em Berlim. Eu estava. Só lhe indaguei: quando embarco? Ao que ele esclareceu: ontem, se possível. Acabei chegando menos de uma semana depois, praticamente em cima do início das aulas e de um dos mais belos e fascinantes períodos de minha vida.

Não foi a única intimação do gênero. Voltei várias vezes a uma cidade então dividida contra si mesma, tornei a reencontrá-la depois da queda do Muro, percorri os Estados Unidos de Costa a Costa e de Norte a Sul, com direito a uma esticada no Canadá, andei pela França, a Inglaterra, a Espanha, a Bélgica, o Báltico, o Pacífico de norte a sul, a Áustria, a Suíça, a Itália, as ilhas gregas e a Turquia, a bordo de gentis convites que pousavam em minha sorte praticamente às vésperas da partida.

Não foi diverso nas incursões acima e abaixo da linha do Equador bancadas por minha própria conta e risco: sempre me decidi por impulso, o combustível perfeito para vencer largas milhagens.

Conheço pessoas que planejam demoradamente suas decolagens para terras distantes. Ouso supor no entanto que minhas experiências são mais intensas.

Segundo uma receita que observo há bem mais de 30 anos, no primeiro dia de uma viagem interpreto o papel do turista clássico: empreendo um city tour. É o momento em que elejo cinco ou seis lugares que me falaram direto ao coração ou à fantasia.

Todo o mais é acidental. É o andar ao acaso, sem compromisso nem hora, como se fosse um homem perdido na multidão. Foi assim que descobri em Paris um quiosque dotado de sucessivas camadas que imergiam até uma adega do século 13; a verdadeira gruta em que São João escreveu o Apocalipse, em Patmos; o pub londrino em que um tal de William Shakespeare empurrava umas que outras.

Nada contra os que armam uma viagem como quem desvenda um teorema. Já eu acho que a verdadeira sedução, em longínquas latitudes, é o encontro com o inesperado.

segunda-feira, 21 de março de 2011



21 de março de 2011 | N° 16646
FABRÍCIO CARPINEJAR


O mais extremo ódio com o mais extremo amor

A vingança encharca a literatura e a música, mas seus mistérios jamais serão esgotados.

Vingança é uma arte, o refinamento da carência. Quem procura se vingar do ex ou da ex, na verdade, não cansou de brigar. Não terminou de argumentar. Vingança é discutir o relacionamento sozinho, é discutir o relacionamento à distância, é dedicar o dia inteiro, às vezes a vida inteira, a arquitetar uma forma de chamar a atenção do amante que negou o ouvido.

O luto é destinado aos que amam amar. Vinga-se a pessoa que odeia amar, odeia continuar amando. É o encontro do mais extremo ódio com o mais extremo amor. A união de dois terrorismos.

Vinga-se aquele que acredita que deu mais do que recebeu e que se enxerga ludibriado. Aquele que, durante a relação, cobrava em segredo tudo o que oferecia, listava presentes e gestos. A vingança é o juízo final do avarento amoroso.

Indica também prepotência. O vingador se enxerga superior ao vingado, mais experiente e sábio. Acha que está ensinando seu antigo par. Encarna a figura de professor repreendendo o erro do aluno. Assim como não sofre em vão, somente se humilha para humilhar o outro. Todo sofrimento é arrogante, debitado na conta do desafeto.

O vingador cobiça a última palavra pois não aceita que alguém pense o pior dele. Planeja castigar as supostas distorções e intimidar as possíveis confissões de sua intimidade. O vingador vive por hipóteses. Não entendeu que a última palavra não existe, é uma desculpa para mandar.

A vingança é o mais paradoxal dos atos: um sentimento inteligente em mãos burras e desgovernadas; uma pressa que exige longa paciência e dissimulação. Requer as mais contraditórias atitudes: sangue frio de alguém com sangue quente; calar-se apesar da exagerada vontade de falar.

A vingança fracassa pela ânsia de fama do seu autor. Quem busca se vingar pretende que o outro saiba que foi ele, que não tenha nenhuma dúvida. Deseja dar o troco beijando a boca, olhando nos olhos. Conclui que não adianta nada uma vingança sem remetente.

E peca pela ambição, erra ao se expor, porque a represália aguda e exitosa esconde o criminoso para a perfeição do crime; deve ser anônima, gerando a desconfiança, mas não entregando totalmente o seu mentor.

Não conheço vingança perfeita. Não se vingar talvez seja a melhor vingança. Fazer esperar uma resposta que nunca virá.

sábado, 19 de março de 2011



20 de março de 2011 | N° 16645
MARTHA MEDEIROS


Diversão de adulto

A vida mundana, ela mesma, tem que ser uma farra diária

Uma leitora que assistiu à entrevista que dei recentemente para Marilia Gabriela diz não ter entendido eu ter sido enfática sobre a importância de se valorizar a diversão num relacionamento, já que no primeiro bloco eu afirmei que não era de balada e preferia encontros mais privados. A ela, isso soou como uma contradição.

A leitora, que vou chamar de Carmem, não disse a idade, mas deduzi que ainda estivesse naquela fase em que diversão é sinônimo de festa – uns 19 anos, no máximo. Em tempo: eu gosto de festa. Um aniversário, um casamento, uma comemoração especial. Uma aqui, outra acolá, com algum espaçamento entre elas. Gosto.

Só que, quando falei em diversão, Carmem, falei antes de tudo num estado de espírito. Existe uma frase ótima, que não lembro de quem é, que diz que rir não é uma forma de desprezar a vida, e sim de homenageá-la. Mas atenção pra sutileza: isso não significa passar os dias feito uma boba alegre, dando bom dia pra poste. Trata-se de rir por dentro. De achar graça nas coisas. Mesmo as que não dão muito certo. A essa altura você já deve ter descoberto que nem tudo dá certo.

Parece um insulto falar de diversão com quem, aos 19 anos, deve ser expert no assunto, mas minha tese de mestrado, se eu tivesse que defender uma, seria: gente madura é que sabe se divertir. A verdadeira liberdade está em já ter feito vestibular, já ter terminado a faculdade, já ter casado, já ter tido filhos, já ter conquistado estabilidade profissional, já ter separado (é facultativo) e, surpreendentemente, ainda não ter virado um fóssil.

Com o resto de vida que se tem pela frente, sem precisar provar mais nada pra ninguém, muito menos pra si mesmo, é hora de arrumar a mochila e conhecer lugares que você sempre sonhou conhecer (Fernando de Noronha, quem sabe) e alguns que você nunca imaginou colocar os pés (Mongólia, digamos).

Aprender um idioma só pela paixão por sua sonoridade: italiano, claro. Aprender a jogar pôquer ou ter umas aulas de sinuca. Aprender a cozinhar. Caso já saiba, aprender a cozinhar com intenção de abrir um restaurante um dia.

Você deve estar se perguntando: isso diverte um relacionamento? Ô.

Óbvio que é preciso trabalhar feito um escravo para custear toda essa programação, mas nada melhor para um casal do que se manter ocupado em seus ofícios e depois realizar juntos atividades desestressantes e hiperprazerosas, que deixarão ambos mais leves e, não duvide, mais jovens.

Carmem, se divertir é dormir cedo, acordar cedo, trabalhar, suar e arriscar. Pareço louca? Se divertir é isso também, enlouquecer. Festa é bom de vez em quando. E festa toda noite é coisa de gente triste. A vida mundana, ela mesma, é que tem que ser uma farra diária.

Ruth de Aquino

Militantes, “go home”

Qualquer um tem o direito de ser contra os EUA, mas não há nada mais ridículo que o ato anti-Obama

Nada mais ridículo que a convocação de uma manifestação na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, “em repúdio” à primeira visita de Barack Obama ao Brasil. Quem convocou foram os “movimentos sociais”. Leia-se CUT, MST, UNE e vários outros grupos com complexo de minoria colonizada.

“Obama é persona non grata”, dizia o texto, endossado por líderes do PT. A presidente Dilma Rousseff se irritou e enquadrou a militância petista. O governador do Rio, Sérgio Cabral, perguntou: “O que é isso? Piraram?”.

Não é o protesto em si que incomoda. Qualquer um tem direito de ser contra os Estados Unidos e seu presidente, mesmo que ele não seja mais George W. Bush. Mas o texto dos sindicalistas petistas é pretensioso e ultrapassado: “Os movimentos sociais brasileiros rechaçam a presença de Obama em nosso país”. Com que autoridade essas organizações se intitulam representantes do povo brasileiro?

As 11 entidades que assinam a convocação acusam Obama de “manter a orientação belicista de ocupar países e agredir povos em nome da ‘luta ao terrorismo’”. Trata-se de uma defesa velada da autonomia da Líbia e de seu ditador, Muammar Khadafi, há 42 anos no poder.

Continua assim a convocação: “Obama chega ao Brasil num momento em que os EUA e seus aliados, principalmente os europeus, preparam-se, sob falsos pretextos, para perpetrar novas intervenções militares... e assegurar o domínio sobre o petróleo”.

Esta é a primeira visita do presidente Obama à América Latina. Vem acompanhado da mulher, Michelle, e das filhas, Sasha e Malia. Não perceber as diferenças entre Obama e Bush e continuar com o discurso anti-imperialista é aprisionar-se ao passado e ir contra os interesses do país. No almoço previsto para este sábado no Itamaraty, em homenagem ao convidado, dificilmente alguém sentirá a ausência da Central de Trabalhadores do Brasil, ligada ao PCdoB. Eles alegaram “incompatibilidade ideológica” para recusar o convite ao almoço.

O Brasil pode não conseguir nada com a visita de Obama. Nem acordos comerciais vantajosos nem um gesto de boa vontade dos Estados Unidos à pretensão brasileira de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Mas Dilma está empenhada numa reaproximação Norte-Sul.

E Obama sabe que vai encontrar uma líder que não posará rindo e aos abraços com o apedrejador de direitos humanos Mahmoud Ahmadinejad.
Qualquer um tem o direito de ser contra os EUA, mas não há nada mais ridículo que o ato anti-Obama

Os militantes enraivecidos com Obama devem ser os mesmos que aplaudiram a aproximação entre o Brasil “do cara” e a ditadura do Irã, sob o argumento do pragmatismo. Não irão jamais às ruas protestar contra Khadafi, que massacra quem discorda. São os mesmos que idolatram o fanfarrão do Chávez e defendem qualquer regime autocrático e populista latino-americano, desde que seja contra os ianques.

Entre eles está o secretário de Movimentos Populares do PT-RJ, Indalécio Wanderley Silva. Ele enviou e-mails convocando para o protesto anti-Obama, e foi a uma reunião no Sindicato dos Petroleiros do Rio. Indalécio é filiado a um diretório presidido até o ano passado pelo ministro de Relações Institucionais, Luiz Sérgio, articulador político de Dilma.

Aí começa o constrangimento da presidente, comandante máxima do país e integrante do Partido dos Trabalhadores. Imediatamente, o PT do Rio desautorizou qualquer protesto, “em nome de toda a Executiva Partidária”.

O mundo das patrulhas ideológicas é muito chato. Convicções se tornam dogmas. Há um ranço nesses grupos que cheira a mofo e não tem mais lugar em nosso país. Militante de esquerda se parece demais com militante de direita. Na Europa, especialmente na França, comunistas desiludidos acabam aderindo a candidatos de extrema direita, racistas, moralistas e xenófobos. Entoam palavras de ordem nacionalistas. Temem por seus empregos e por isso odeiam imigrantes.

O mesmo pode-se dizer dos radicais sociais: são chatos os militantes gays, as militantes feministas, os militantes afrodescendentes, os militantes religiosos, os militantes intelectuais. Não escutam nem debatem, só protestam ou aclamam. Please, go home.


19 de março de 2011 | N° 16644
NILSON SOUZA


Grizotti e o gordinho

Utilizando o seu próprio pardal (uma câmera oculta), o repórter Giovani Grizotti flagrou tenebrosas transações entre representantes de empresas fornecedoras de controladores de trânsito para prefeituras e servidores públicos que desservem ao país. O escândalo, potencializado pelo Fantástico, está provocando o afastamento de funcionários suspeitos, a suspensão de licitações e a mobilização das autoridades.

Um dos vídeos que fez mais sucesso esta semana no mundo virtual mostra um estudante gordinho sendo provocado e agredido por um menino menor, estimulado pela sua turminha, num evidente caso de bullying. Em determinado momento, porém, o garoto pacífico reage, ergue o agressor nos braços e o lança com violência no chão, acabando abruptamente com a provocação.

Esses episódios, diferentes e distantes, têm muitos pontos em comum. Nos dois casos, os observadores aplaudem os protagonistas travestidos de justiceiros, porque o público está cansado de ser ludibriado e de conviver com a impunidade. Grizotti, numa legítima ação jornalística, fez o que os órgãos públicos encarregados de proteger a sociedade raramente fazem: investigar, denunciar os abusos, identificar fraudes, expor corruptores e corruptos, e puni-los na forma da lei.

O estudante com sobrepeso redimiu os oprimidos, usando a própria força para se livrar da opressão. Talvez tenha exagerado, pois o outro menino deve ter dado trabalho para o posto médico depois da contenda, mas como não considerar legítima defesa a reação de alguém que está quieto e passa a ser agredido gratuitamente?

É compreensível, portanto, que as pessoas decentes se sintam representadas por quem age e reage na busca de justiça. As imagens dos dois episódios não deixam dúvidas e invariavelmente arrancam dos espectadores o mesmo pensamento:

– Bem feito!

Este é outro ponto comum: hoje tem as imagens para tudo. O tsunami não ocorre mais apenas do outro lado do mundo, passa ao vivo na nossa sala. O deputado que pega dinheiro ilícito o faz diante dos nossos olhos. O propineiro sugere os 10% de sacanagem na nossa cara. Todas as maldades do mundo estão gravadas para quem quiser ver, a qualquer hora e em qualquer lugar.

E como este filme de horrores passa a todo momento na tevê e na tela do computador, fica difícil de conter a indignação. Pena que tanta safadeza documentada nem sempre resulta na devida punição. Mesmo para os pacíficos, como este escriba sabático, às vezes dá vontade de incorporar o espírito do gordinho.

terça-feira, 15 de março de 2011



15 de março de 2011 | N° 16640
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Luz de março

E de repente o ar da manhã de verão é rasgado pelos sinos da Catedral. Convivo há tantos anos com sua música que não deveria mais me impressionar com ela. E contudo me surpreeendo em cada nota, como se fosse a primeira vez que a ouvisse.

O sino chama para a missa em meio à luz de março, e eu fico imaginando que pessoas atendem ao seu chamado. O pecador que vai se aliviar de suas culpas no confessionário? A menina que se prepara para a primeira comunhão? A dama que participa da cerimônia apenas porque este é o seu hábito?

Conheci a Catedral quando menino. Não estava ainda completa. As paredes eram expostas por tijolos rústicos. Não havia ainda as tumbas de bispos e arcebispos. No lugar onde hoje está a cúpula, uma cobertura branca e provisória atraía pássaros – e sua música se confundia com a do coral.

Outra lembrança inesquecível é a das solenidades da Semana Santa. A liturgia era cantada em latim – o bom e velho latim que eu aprendia no Colégio Anchieta. Mas havia algo mais do que um idioma. Havia o aroma do incenso, a litania entoada a capricho, o diálogo sagrado que se estabelecia entre os cantores.

Singularmente, no entanto, a maior sensação de paz que eu vivia, na missa de domingo das 9h, a minha preferida, era a da tranquilidade emanada do dever cumprido. Era obrigatório ir à missa? Era. Era se provável participar dos cantos e orações coletivos? Era. E tudo isso me transmitia um sentimento de serenidade e de dever cumprido que não tinha preço.

Não pensem que eu não me distraía com as comemorações eventuais. Não creiam que não me chamava a atenção um palminho de rosto bonito. Não acreditem que eu me postasse alheio a um belo corpo de mulher.

Mas tudo isso fazia parte do espetáculo – a ópera sagrada que se desenrolava à minha frente. Era uma ópera, com seus rituais e seus dogmas – e era preciso apreciá-la com unção.

Hoje já não vou à missa. O fim do rito latino subjugou minha fé. Como disse um filósofo, foi como se revestissem de fórmica a Catedral de Chartres. Mas não esqueço da época em que a Catedral de Porto Alegre era como a luz de março.

sábado, 12 de março de 2011



13 de março de 2011 | N° 16638
MARTHA MEDEIROS


A camareira

O que me desconcerta em hotel é a visita da camareira quando se está fora do quarto. É a evidência da nossa completa vulnerabilidade diante de uma desconhecida

Como mantenho um ritmo intenso de viagens a trabalho e também de lazer, quarto de hotel passou a ser um item frequente da minha rotina. Por um lado, um ambiente estranho ajuda a escapar da mesmice, nos presenteia com aquela sensação de estrangeirismo que sempre renova as nossas fantasias, mas faz falta a familiaridade do dia a dia, aquilo tudo que faz do nosso lar um porto permanente e não provisório. No fundo, acho que sinto falta do presunto vencido na geladeira.

Entre alguns prós (vista pro mar) e contras (o Club Sandwich raramente é saboroso), o que me desconcerta em hotel é a visita da camareira quando se está fora do quarto. Tenho por hábito deixar tudo meio ajeitado para que ela não faça mau juízo de mim, mas sei que a danada não terá complacência nenhuma com minha boa vontade. Invadirá meu universo íntimo, abrirá armários e gavetas, saberá que remédios tomo, o que estou lendo, se transei na noite passada.

Tudo isso sem saber meu nome nem eu o dela. Em princípio, não parece diferente da relação que mantemos com nossas funcionárias domésticas, mas nem se compara. É a evidência da nossa completa vulnerabilidade diante de uma desconhecida.

Não é assunto que me tire o sono, apenas fiz essa tergiversação por causa de um livro excelente que li dias atrás, cujo título é, adivinhe, A Camareira, do alemão Markus Orths.

Mais uma obra de arte que trata da esquizofrenia, essa musa inspiradora do novo século: a personagem do livro é uma compulsiva por limpeza que vive em extrema solidão e que tenta desenvolver emoções próprias pegando emprestadas as emoções dos hóspedes do hotel para o qual trabalha. Seu método: ao terminar o serviço, ela adota o estranho hábito de deitar-se embaixo da cama deles, aguardando-os.

Quando eles voltam para o quarto, ela mantém-se ali quieta durante a noite inteirinha. Lembra de quando a gente era criança e temia que houvesse um monstro respirando bem embaixo do nosso colchão? Pois o bicho-papão do livro é a moça.

O texto é curto, enxuto e envolvente, meu número. Uma prosa rápida, mas com tamanho suficiente para desvendar o amplo universo de perturbações, fetiches e manias dos seres humanos.

Na próxima vez que eu me hospedar em hotel, e não deve demorar, olharei para as camareiras com um misto de perplexidade e fascínio. Aquelas criaturas que circulam de uniforme pelos corredores saberão um pouco de mim – se levo meu próprio secador de cabelos, se deixo a calcinha pendurada no chuveiro, se trago pra casa a caneta promocional que fica sobre a mesa de cabeceira, quantos cremes eu uso – mas o que saberei eu da intimidade delas? Melhor não espiar embaixo da cama.

Ruth de Aquino

Cisne negro, uma fantasia de Carnaval

Se tivéssemos de adivinhar qual fantasia faria mais sucesso nos blocos de rua neste ano, apostaríamos no cisne branco ou no cisne negro? Nenhum dos dois, provavelmente. O filme que deu o Oscar a Natalie Portman remete muito mais ao terror e à dor que à alegria e à leveza do Carnaval.

Mas muitas moças – e rapazes – se travestiram de cisne. O preferido não foi o bonzinho. E sim o cisne maquiavélico, lascivo, misterioso. Isso quer dizer alguma coisa. O cisne negro foi escolhido por ser mais sedutor.

Acho que só eu ainda não tinha visto o filme de Darren Aronofsky que dividiu a crítica entre os que amaram, odiaram e não entenderam. Não estava preparada para o impacto que Cisne negro me causou. Dancei balé clássico sete anos.

Os dedos dos pés ficavam feridos com a sapatilha de ponta, por mais esparadrapos, plumas e truques a que eu apelasse. A música, os ensaios, a coreografia, tudo era paixão e valia a pena. Mas o Cisne negro não me sequestrou por aí.

O som hipnotizante de Tchaikovsky. A fotografia, os efeitos especiais, os closes e o uso excepcional de dublês. As exigências do coreógrafo. Os labirintos mentais de Nina (Natalie). Tudo me pareceu verossímil por retratar a dualidade de todos nós e a busca da plenitude. Por que se preocupar com o que é ou não fantasia?

O filme é genial por ser um turbilhão, belo, forte e sensual. O diretor não separa o simbólico do real. E não tem a menor importância. No fim, eu via os créditos sem enxergar, com a respiração ofegante. Não pelo sangue ou pela pergunta estéril – morreu ou não morreu? Mas pela força transformadora do roteiro, pela sombra fictícia das asas negras no palco.

Conversei com nossa prima ballerina Ana Botafogo, que assistiu ao filme duas vezes: “O diretor usou o universo do balé como apoio por ter disciplina rigorosa, egos e emoção à flor da pele. Só receio que o filme leve pais e crianças a achar que os exageros são reais, as drogas, a bissexualidade. Como em toda profissão desafiadora, no balé há cisnes brancos, há cisnes negros e há os que surtam”. O desempenho de Natalie como bailarina foi elogiado por Ana: “Ela fez eximiamente as tomadas da cintura para cima.

No conjunto de braços, colo e pescoço, conseguiu uma harmonia impossível numa bailarina não profissional, mesmo tendo estudado dois anos para o papel. A trucagem com os dublês, para o trabalho de pés e piruetas, é muito caprichada. Cheguei a me confundir na primeira vez em que vi o filme”. O filme “Cisne negro” incomoda, não é para todos. Tem a ver com delírio, transgressão e liberdade

Só depois de assistir a Cisne negro, li sobre ele. Valorizou-se demais a rivalidade entre mãe e filha – comum em quase todo divã. Cada um vê o que lhe toca mais: a competição, a automutilação, a ânsia de perfeição.

Há o time dos implicantes com Natalie. Acham que “a expressão dela é sempre a mesma no filme”. Ela estava arrebatadora no papel de uma jovem confusa, sozinha, virgem e imatura que quer ser perfeita a todo custo. E surta.

Cisne negro incomoda. É um thriller psicológico sadomasoquista, um gênero que não é para todos. Não dá para levar a sério quem diz: “Não gostei do filme porque é exagerado”. É como não gostar de uma ópera “por ser dramática”. Ou não gostar de A single man (título patético no Brasil: Direito de amar), de Tom Ford, porque só percebeu no cinema, tarde demais, que o protagonista era homossexual e o roteiro era sobre gays.

Veludo azul e Cidade dos sonhos, ambos de David Lynch, são ruins por serem confusos, doentios? Esses filmes são alucinações. Não se exige compromisso com a lógica ou o comedimento. Quem deseja mergulhar num cristalino Lago dos Cisnes deve evitar a turbulência de Cisne negro, porque se sentirá ludibriado.

A frase que mais me marcou foi a do coreógrafo para a bailarina: “Perfeição não é só sobre controle; é também saber abandonar-se” . Técnica irrepreensível sem emoção deixa a desejar em qualquer profissão. É preciso deixar rolar, entregar-se, ser flexível e até imperfeito. Rir de si mesmo e de tudo.

O cisne branco, com sua rigidez, parecia incapaz de relaxar e se divertir. O cisne negro era passional, imprevisível, com a centelha da loucura, e por isso tão sedutor. Os foliões escolheram a fantasia certa.

Carnaval é uma festa pagã. Tem a ver com delírio, transgressão, máscaras e liberdade.


12 de março de 2011 | N° 16637
NILSON SOUZA


Duas rodas

No meu tempo de garoto, as bicicletas tinham duas características básicas: ou eram torpedo ou catraca. Torpedo, não sei se ainda é assim hoje, é aquela que tem freio contra pedal. Basta a gente empurrar o pedal para trás que a roda de trás bloqueia. Era o modelo ideal para fazer cavalo-de-pau em pista de terra.

A gente embalava e, no ponto escolhido, largava todo o peso do corpo no pedal, girando levemente a roda da frente. Os mais habilidosos nem colocavam o pé no chão, saíam do meio da poeira pedalando. Modéstia à parte, cansei de fazer isso.

Já as chamadas catracas tinham freio no guidom, o da esquerda para a roda da frente, o da direita para a roda de trás. Também não sei se ainda é assim, pois agora as bikes têm várias marchas, algumas são tão sofisticadas que o condutor pedala deitado. E a garotada faz cada coisa em cima de duas rodas que os circos só podiam mesmo ir à falência. Antigamente andar com a roda da frente no ar já era uma proeza. Agora tem menino dando mortal triplo sem descer do selim.

Por tudo isso – e também por absoluta incompatibilidade com o nosso trânsito – doei a última bicicleta que tive para o entregador de jornais, desejando que o homem fizesse bom uso do equipamento na sua tarefa de todas as madrugadas. Não durou uma semana nas suas mãos: ele encostou a bicicleta num poste para fazer a sua entrega e, quando voltou, ela já estava longe.

Os ladrões de bicicleta também se sofisticaram. Em tempos pretéritos, o máximo que eles faziam era raspar a pintura para evitar que ela fosse reconhecida pelo dono. Agora, me contou um especialista, trocam o quadro e as rodas, colocam acessórios coloridos, mudam tanto que ninguém mais consegue identificar.

Nunca tive esses equipamentos modernos que hoje fazem do ciclista quase um jogador de futebol americano: luvas, capacete, sapatilhas especiais, camisas antitranspiração e calças colantes. O máximo que contei como equipamento, na juventude, foi uma presilha de lata, que evitava que a calça comprida fosse mordida pela correia. Na maioria das vezes, porém, apenas colocava a calça dentro da meia.

Apesar de tanto amadorismo, fui um ciclista assíduo. Na época em que prestei serviço militar na base aérea de Canoas, saía pedalando da zona norte da Capital, atravessava um pedaço de Cachoeirinha e entrava, mediante permissão especial do comando, pelo portão dos fundos da área militar.

Poupava a passagem do ônibus, ganhava músculos nas pernas e ainda chegava em tempo de pegar o café da manhã, que era uma das melhores refeições do dia.

Mas o melhor deste brinquedo/transporte que me traz tantas boas recordações é que ele só obedece a quem aprende a inesquecível lição do equilíbrio. É o que parece estar faltando nesta batalha cada vez mais radical entre os condutores de bicicletas e de automóveis em nossa cidade.

quarta-feira, 9 de março de 2011



09 de março de 2011 | N° 16634
MARTHA MEDEIROS


A perca

Da série “só acontece comigo”: estava parada num sinal da Avenida Ipiranga quando um carro encostou ao lado do meu. A motorista abriu a janela e pediu para eu abrir a minha. Era uma moça simpática que me perguntou: “Martha, o certo é dizer perda ou perca?”.

“Hãn?”

“É perda de tempo ou perca de tempo? Como se diz?”

A pergunta era tão inusitada para a hora e o local, tão surpreendente, vinda de alguém que eu não conhecia, que me deu um branco: por um milésimo de segundo eu não soube o que responder. Perca de tempo, isso existe? Então o sinal abriu, os carros da frente começaram a engatar a primeira, eu olhei para ela e disse: “É perda de tempo”.

Ela sorriu em agradecimento e foi em frente. Meu carro ainda ficou um tempo parado. Eu parada no tempo. Perca de tempo.

Dei uma risada e segui meu rumo também.

Se alguém te diz “não perca tempo”, e todos te dizem isso o tempo todo, como não confundir? Tantos confundem. São coagidos a tal.

E, cá entre nós, a “perca” parece mais amena do que a perda.

A perca de um amor é quase tão corriqueira como a perca do capítulo da novela. A perca é feira livre. A perca é festiva. A perca é música popular.

Já a perda é sinfonia de Beethoven.

A perca acontece no verão. A perca de uma cadeirinha de praia, a perca de um palito premiado de picolé.

As perdas acontecem no inverno.

A perca é simplória, a perca é distraída, a perca é provisória, logo, logo reencontrarão o que está faltando.

A perda é para sempre.

As percas reinventam o vocabulário e seu sentido, não são graves, as percas são imperfeições perdoáveis, as percas são inocentes.

As perdas são catastróficas, nada têm de folclóricas.

A perca é um erro gramatical, e apenas esse erro ela contém. De resto, não faz mal a ninguém.

A perda é um acerto gramatical, mas só esse acerto ela contém. De resto, é brutal.

Se eu pudesse voltar no tempo, reconstituiria a cena de outra forma:

“Martha, é perda de tempo ou perca de tempo? Como é que se diz?”

“O correto é dizer perda, mas é muito solene. Perca dói menos por ser mais trivial”.

terça-feira, 8 de março de 2011



08 de março de 2011 | N° 16633
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Retrato de família

Até onde vai a memória? Esta é uma pergunta para a qual nunca obterei resposta, embora se ofereça para um jogo de tentativa e erro.

Tenho, bem aqui na minha frente, duas fotos em que apareço com meus pais. Sou uma criança de poucos meses, o tempo é o inverno de 1945. mas não guardo a mínima lembrança do dia em que foram tiradas. Para onde olho? Para uma nuvem, um gato, uma andorinha?

Depois vem outra foto, posada no Studio Aurora, de Cachoeira. Nela tenho um ano, informação que sei porque ela foi publicada no Jornal do Povo, até hoje sob o controle da família.

Mas nem tudo são fotos. Minha memória alcança muito mais cenas e momentos que se tornaram inapagáveis.

Aqui estou eu, na enorme cozinha da casa da Rua Sete, nos ombros de meu tio Nilson, que canta uma melodia espanhola. Aqui estou eu, olhando assombrado para um ser maravilhoso e estranho, que depois me contariam ser uma cigana. Aqui estou eu contemplando encantado umas tias lindas e crescidas, pois já eram então – eu saberia depois – meninas adolescentes.

É infinito esse universo de lembranças. De volta às fotos, surpreendo-me aqui, com minha irmã Miriam, junto ao Chevrolet 46 de nosso avô. E aqui num lugar chamado Granja da Penha, ao lado do poço que era uma reserva de mistérios insondáveis. E mais além, na porta da casa que abrigaria nossa infância por muitos verões.

Quem é esse casal abraçado que me olha do fundo da eternidade? São de novo meus pais, no esplendor de sua mocidade.

Que árvore é esta, que se ergue sobre todas as demais? É a figueira que sobrevive até hoje, como testemunha de um passado que não volta mais.

E quem são todas essas pessoas que sorriem para a câmera do fotógrafo, olhando para o futuro?

Somos nós, que nos amávamos tanto.

Bem amigos, desculpem pelo atraso dos post. a NET uma vez já foi boa, hoje sofre de uma instabilidade a toda prova. O bom é não contar com ela, e podendo trocar aconselho.

Parabéns a todas as mulheres leitoras deste Blogger, pelo seu dia.

segunda-feira, 7 de março de 2011



07 de março de 2011 | N° 16632
FABRÍCIO CARPINEJAR


Depois de muito amor

A mulher somente despreza quem ela amou demais. Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa. Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas. O desprezo surge após longo desespero. É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida.

É possível desprezar pai e mãe, ex-esposa ou ex-marido, daquele que se esperava tanto. Não se pode sentir desprezo por um desconhecido, por um colega de trabalho, por um amigo recente. O desprezo demora toda a vida, é outra vida. É nossa incrível capacidade de transformar o ente familiar num sujeito anônimo.

Assim que se torna desprezo, é irreversível, não é uma opinião que se troca, um princípio que se aperfeiçoa. Incorpora-se ao nosso caráter.

Desprezo não recebe promoção, não decresce com o tempo. Não existe como convencer seu portador a largá-lo. Não é algo que dominamos, tampouco gera orgulho, nunca será um troféu que se põe na estante.

Desprezo é uma casa que não será novamente habitada. Uma casa em inventário. Uma casa que ocupa um espaço, mas não conta.

É a medida do que não foi feito, uma régua do deserto. A saudade mede a falta. O desprezo mede a ausência.

O desprezo não costuma acontecer na adolescência, fase em que nada realmente acaba e toda vela de aniversário ainda teima em acender. É reservado aos adultos, desconfio que deflagre a velhice; vem de um amor abandonado. Trata-se de um mergulho corajoso ao pântano de si, desaconselhável aos corações doces e puros, representa a mais aterrorizante e ameaçadora experiência.

Indica uma intimidade perdida, solitária, uma intimidade que se soltou da raiz do voo.

O desprezo é um ódio morto. É quando o ódio não é mais correspondido.

Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência. Uma espécie de serenidade da indiferença. Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender. Supera a ideia de fim, é a abolição do início.

Não desejaria isso para nenhum homem. O desprezado é mais do que um fantasma. Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir.

O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor. Não há como voltar dele.

sábado, 5 de março de 2011



06 de março de 2011 | N° 16631
MARTHA MEDEIROS


Explosão de cores

Descobri que não sou apenas do sul, do pampa, do inverno. Possuo profunda identificação com o lado supertropical do Brasil

Onde o Brasil é mais Brasil? Em cada canto do país a brasilidade se expressa a seu modo, mas o inconsciente coletivo nos remete a uma resposta única para a pergunta que abre esta crônica: o Brasil é mais Brasil onde ele foi descoberto, no sul da Bahia.

Cheguei de lá recentemente. Fiquei extasiada com o encanto de Porto Seguro, Arraial da Ajuda, Trancoso e Praia do Espelho, onde me senti dentro de um caldeirão de cores vivas e de uma rusticidade que nos remete ao melhor da vida: o simples.

Quando falo de simplicidade, não estou excluindo o bom gosto, ao contrário, ele está incluído no pacote. Nunca vi tanta beleza junta, resultado da comunhão da natureza (mar verde, falésias, coqueirais) com a matéria-prima que ela mesma fornece e que é recriada pela mão do homem: o que se convencionou chamar de artesanato. Cerâmica, palha, chita, fibras, argila, madeira, tudo se aplica à tecelagem, cestaria, mobiliário, pintura, escultura, honrando nossa herança indígena, africana e portuguesa.

É cultura popular diversificada, colorida e divertida, que mantém sua essência pura – e incentiva a nossa. Me senti conectada com as minhas origens mais ancestrais. Descobri que não sou apenas do sul, do pampa, do inverno. Apesar de ser vizinha dos países platinos, possuo profunda identificação com o lado supertropical do Brasil.

O que mais me cativou foi a harmonia do visual. Muitas vezes consideramos que o bom gosto é atributo do que é luxuoso, e não há erro nessa avaliação, porém devemos reconsiderar o que é luxo. Produtos industrializados são necessários e facilitam nossa vida, mas raramente possuem uma originalidade cativante.

O artesanato brasileiro demonstra claramente que o simplório e o sofisticado podem fazer parte da mesma família, e que o que parece pobre é mais rico do que se supõe. É preciso compreender essas concepções não no que elas têm de contraditórias, mas no que elas têm de complementares.

Ninguém aqui está descobrindo a pólvora, mas sempre é reconfortante lembrar que a elegância é um conceito fácil de aplicar no dia a dia, que ela é mais acessível do que se supõe. Claro que o chamado bom gosto é variável e que há muita coisa feia e cafona feita em nome da rusticidade, mas quando se tem um mínimo de senso estético, de informação histórica e de filtragem, impossível não se render à nossa cultura popular.

Você já foi à Bahia, nêga? Então vá.

Ruth de Aquino

Sandy devassa e Dilma cozinheira

Quem convence mais? Sandy bebendo cerveja ou Dilma preparando omelete? A cantora e a presidente decidiram popularizar suas imagens. Sandy ficou loura platinada e posou com uma tulipa nos lábios, sem nenhum jeito de devassa.

Dilma encarou a frigideira no programa de Ana Maria Braga e se saiu melhor do que a cantora. Marketing por marketing, a presidente foi menos polêmica e mais convincente no papel desenhado para ela: uma avó normal e afetuosa que lê romances açucarados e Dostoievsky.

“Todo mundo achava que ela era comportadinha, boa menina, dormia cedo.” Assim começa o anúncio da cerveja, com a Sandy de costas. Aí ela faz algo que certamente nunca tentara antes e precisou ensaiar bastante: destampa a garrafa com um golpe de mão no balcão. E se vira, os cílios enormes, a bochecha rosada de blush. Reconhecemos ali a moça que sempre defendeu a virgindade antes do casamento. Cervejeiros se recusam a acreditar que a cantora seja boa de copo. E seu striptease meia bomba é despido de qualquer traço de sensualidade.

Pela polêmica, a campanha é sucesso – só não sabemos se vai convencer homens e mulheres a consumir a cerveja. O jeito com que Sandy segura o copo cheio, com o dedo mindinho tenso, denunciou a incompatibilidade da moça com o líquido dourado.

A escolha da garota-propaganda rendeu piadas no Twitter. “A Sandy é tão devassa que... comeu os docinhos antes do parabéns... para causar, cortou o papel higiênico fora do picote.... tocou a campainha da Wanessa Camargo e saiu correndo!... já usou condicionador antes do xampu... A Sandy é tão devassa que uma vez comeu cereal matinal à tarde.”

Como a Sandy nunca me convenceu nem como cantora nem como mulher atraente, custo a encontrar o motivo do cachê milionário. Além do mais, prefiro cerveja ruiva e preta. Não sou definitivamente o público-alvo dessa campanha.

A outra investida de imagem na semana, que exibiu a Dilma dona de casa, avó e cozinheira, me convenceu bem mais. Foi um marketing bem pensado às vésperas do Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Não faço parte do público de programas populares ou de televisão aberta no Brasil. Jamais assisti a um Big Brother, nem por dever de profissão. Há sacrifícios impossíveis.
Dilma encarou a frigideira e se saiu melhor do que a nova garota-propaganda da cerveja

Como Dilma seria a entrevistada de Ana Maria Braga, resolvi assistir ao programa. Li críticas azedas à presidente, pela conversa de comadre numa semana em que o país discutiu volta da inflação, cortes no Orçamento e aumento nos juros.

Vi e gostei. Na cozinha, Dilma parecia menos deslocada do que Sandy no botequim. Estavam ali no programa duas mulheres que venceram uma luta contra o câncer. Não dá para achar que Dilma vai tomar café da manhã com o papagaio e Ana Maria Braga para discutir a Líbia ou a demissão de Emir Sader na Cultura ou o assédio do Paulinho da Força Sindical.

Dilma chegou a falar de CPMF e das microempresas. Saúde e empreendedorismo são temas caros à mulher. Com um timbre de voz mais suave, tentou desgarrar sua imagem do ex-presidente que agora ganha R$ 200 mil por palestra autolaudatória.

O que mais me agradou em Dilma quase não repercutiu: seu apreço pela educação. “Meu pai valorizou uma coisa que todos os pais e mães devem valorizar nas crianças e jovens, o estudo. É uma forma de conhecer o mundo e ser uma pessoa melhor.

Eu gostava de romances açucarados com final feliz, da Coleção das Moças, mas meu pai me dava junto um livro de Dostoievsky.” A presidente disse ter tanta paixão por livros que adora cheirar as páginas novas. “Se quiser me dar imenso prazer, me deixa numa livraria. Faço outras compras como todas as mulheres, mas amo livros.”

Após dois mandatos de um presidente que se gabava de não ler nem jornal, oito anos sendo obrigada a engolir a glamourização da ignorância e a glorificação do inculto, dá enorme alívio ouvir Dilma falar assim. Não importa que a maioria dos telespectadores nem sequer saiba quem é Dostoievsky, o autor de Crime e castigo que viveu no século XIX. Isso é detalhe.


05 de março de 2011 | N° 16630
NILSON SOUZA

Chute na coruja

Albert Einstein disse que conhecia duas coisas infinitas, o universo e a estupidez humana, mas que não tinha certeza sobre a primeira. Einstein, com sua mente privilegiada, pensou e criou coisas maravilhosas.

Ele nos representou bem em sua passagem pela Terra. O ser humano foi dotado pela natureza de um cérebro capaz de imaginar, de sonhar, de inventar, de transformar o mundo para melhor.

Mas este mesmo cérebro guarda nos seus recônditos uma faísca de estupidez destruidora, que leva o homem a cometer atrocidades, a fazer guerras, a matar seus semelhantes e – o que me parece mais assombroso do nosso pior lado – a maltratar animais indefesos.

O que pode ter passado pela cabeça do jogador que chutou a coruja num jogo do futebol colombiano? É uma cena inacreditável, está no youtube para quem quiser ver e já foi reproduzida na televisão.

Ao ver que uma dessas corujas que moram nos campos de futebol como os nossos quero-queros fora atingida pela bola, o árbitro parou o jogo a fim de que a ave fosse retirada de campo. Então um mastodonte fardado aproximou-se lentamente como se fosse juntá-la.

A coruja ainda olhou para ele com aquele olhar arregalado de gente assustada – e aí o cara desferiu um chutão de pé esquerdo na ave ferida, com o claro objetivo de lançá-la para fora de campo. Depois, ao prestar contas para a polícia e para os indignados repórteres que o entrevistaram, ele disse que sua intenção era fazer o bicho levantar voo.

Somos até capazes de voar. Inventamos aparelhos fantásticos, que nos fizeram mais poderosos do que os pássaros na sua especialidade, que reduziram a distância entre os continentes, que nos levaram à Lua e tornaram o universo menor do que parecia a Einstein quando formulou sua premonitória comparação.

Mas também somos capazes de acelerar nossas máquinas sobre um grupo de ciclistas, de mandar pessoas para a câmara de gás por motivos raciais, de humilhar e mutilar nossas mulheres, de roubar a merenda escolar de crianças.

Parece que temos mesmo dentro de nós aqueles dois cães da lenda indígena, que estão sempre brigando para se impor: um, cruel e sanguinário; o outro, bom e dócil. E, de vez em quando, alimentamos mais o chacal.

Ainda assim, nunca imaginei que alguém da nossa espécie fosse capaz de chutar uma coruja ferida. Espero que os mastodontes (se ainda houver algum congelado por aí), os cães e os chacais me perdoem pelas comparações.

Einstein tinha razão. Não dá para ter certeza mesmo se o universo é infinito. Já quanto à estupidez humana...


05 de março de 2011 | N° 16630
CLÁUDIA LAITANO


Nu na passarela

A moda tira sua força da tensão permanente entre a vontade de ser diferente e o impulso de imitar. Por um lado, há o desejo de sermos únicos, especiais.

Por outro, queremos pertencer aos grupos da nossa escolha em todos os detalhes, inclusive na roupa, dissolvendo nossa identidade de forma que não reste a menor dúvida de que compartilhamos todos os códigos não escritos que definem nosso lugar no mundo – pelo menos naquilo que depende unicamente do nosso poder de compra.

A definição é do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que em um ensaio já clássico, O Império do Efêmero (1987), defendia que a moda era uma ferramenta preciosa para entender o mundo contemporâneo.

Na contramão de boa parte dos intelectuais que ainda torcia o nariz para o assunto, o filósofo mostrava como a indústria da aparência reflete valores caros a nossa época: o culto ao corpo, o fetiche do consumo, a obsessão pela eterna juventude. Encarar o tema como passatempo inconsequente de gente rica e desocupada, defendia Lipovetsky, é perder a oportunidade de entender um pouco melhor quem somos e o que valorizamos.

Cópia e originalidade, arte e mercado, ousadia e submissão. Poucos fenômenos culturais serão tão ricos em ambivalências quanto o universo fashion, que envolve pesquisa, observação, criação, mas também marketing, comércio, obsolescência programada, pose – e tudo isso em doses mais ou menos equilibradas.

Diante de um desfile do estilista britânico Alexander McQueen, que se suicidou há pouco mais de um ano, era difícil ficar indiferente à explosão criativa do que se via na passarela – uma combinação de teatro, artes plásticas, dança, música e, evidentemente, figurino que impactava o espectador como o espetáculo de um encenador brilhante.

Mas mesmo estilistas menos geniais eventualmente apresentam essa capacidade única de traduzir em formas e texturas uma ideia ou um sentimento. Nesse aspecto, a moda pode, sim, reclamar seu espaço no universo das artes como uma manifestação do espírito criativo capaz de expressar autoria e refletir o espírito de uma época.

Mas criação e invenção são apenas um dos lados da indústria da moda, que se sustenta não apenas do talento dos estilistas para encher os olhos, mas dos lucros da enorme cadeia produtiva que está por trás das roupas esquisitas que desfilam na passarela.

Para funcionar, é preciso que a casta formada por estilistas, jornalistas de moda e artistas (que emprestam sua imagem para esta ou aquela marca) seja investida de algum tipo de autoridade. Os mortais comuns, aqueles que vão comprar na loja da esquina a diluição infinitesimal do princípio ativo apresentado na semana de moda, devem reconhecer nesses profissionais o domínio de códigos que eles não alcançam. Dessa estratificação entre a casta dos que ditam e a casta dos que compram surge a arrogância dos primeiros – subproduto desse sistema que se sustenta do eterno desejo de se parecer o que não se é. O diabo, como todo mundo sabe, veste Prada.

O estilista John Galliano perdeu o emprego esta semana por declarações antissemitas registradas em vídeo e tornadas públicas – para choque de admiradores do mundo todo. Quase imperceptível entre os insultos racistas, porém, aparecia uma ofensa bem menos grave, mas muito eficiente para revelar a essência desse mundo movido a regimes extremos, photoshop e supervalorização da imagem: “Vocês são feias!”.

Onde os mortais viam irreverência e gênio não havia nada além de histrionismo, álcool e uma brutal ausência de humanidade. Vestido na última moda, o rei ficou nu.

quarta-feira, 2 de março de 2011



02 de março de 2011 | N° 16627
MARTHA MEDEIROS


Bicicletas levadas a sério

Avenida Ipiranga, 8h da manhã de sexta-feira passada. Tirei um fino de dois ciclistas, entre os muitos que pedalavam prensados entre os carros estacionados à sua direita e os carros em movimento do lado esquerdo. Pensei: é um milagre que não ocorram mais acidentes envolvendo esse pessoal. Nem imaginava que, à noite, aconteceria aquele espantoso atropelamento em massa.

Não sei o que mais precisa acontecer para Porto Alegre se conscientizar da importância de se determinar um espaço para uso exclusivo de bicicletas, esse meio de transporte revolucionário. Elas são baratas, não poluem o ar, não gastam combustível, são fáceis de estacionar e ainda colaboram para o nosso condicionamento físico. Por que são reverenciadas na Europa e não aqui?

As cidades europeias nasceram séculos antes de Henry Ford. Os primeiros prédios foram construídos sem garagem, lógico, e não vieram outros prédios, pois a Europa tem esta mania estranha de preservar seu patrimônio, modernizando-se por dentro, mas mantendo a fachada de origem, o que faz dela o continente mais belo do planeta.

Até nos vilarejos medievais há ciclovias e códigos de trânsito para ciclistas. E o conceito de status social difere do nosso. Os adolescentes fazem 18 anos, depois 28, e então 38, e, se não tiverem um carro, continuam sendo cidadãos respeitáveis e conseguem inclusive arranjar namorada.

Já o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, cultua o automóvel a ponto de ser prisioneiro dele. Somos estimulados a nos endividar para ter um carro do ano, como se isso fosse dizer quem somos. De certa maneira, diz. Diz que somos vítimas de um comportamento padrão que vê com desconfiança hábitos alternativos e que pouco luta por um transporte público mais seguro e eficiente, o que nos tornaria menos dependentes das quatro rodas e suas trações.

No Rio Grande do Sul, há 5 milhões de veículos transitando pelas ruas e estradas. Por um lado, a notícia é boa, pois comprova a elevação do nosso poder aquisitivo, mas por outro é preocupante, já que não há condições de acomodar toda essa frota nas grandes cidades, principalmente na capital, onde o trânsito flui de forma lenta, mal organizada e despreparada para o convívio com veículos menos potentes.

Que a estupidez que aconteceu na última sexta-feira sirva para duas coisas. Primeira: alertar para o perigo do superaquecimento não só ambiental, mas mental. Pessoas destemperadas, que não conseguem se controlar, devem ser afastadas dos volantes (se alguns manifestantes perderam a cabeça com o motorista durante a discussão, vale pra eles também – ninguém tem que dar socos em para-brisas).

Segunda: que se providencie a repintura das sinalizações no asfalto das ciclovias já existentes, e que sejam criados vários outros quilômetros de pistas exclusivas para bikes. Não é só para passear nos finais de semana que se usa bicicleta: elas levam estudantes e trabalhadores aos seus destinos todos os dias. É uma questão séria de gestão urbana.

terça-feira, 1 de março de 2011



01 de março de 2011 | N° 16626
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma nova chance

Leio que o MEC está recomendando às escolas abolir a reprovação nos três primeiros anos do ensino fundamental. A diretriz reprisaria o êxito de medida semelhante adotada em países como o Japão e a França, onde se renovou o interesse pela sala de aula e reduziu a evasão.

É uma antiga tentação brasileira transpor modelos externos prontos e acabados para a nossa realidade, como se a simples etiqueta estrangeira fosse garantia bastante e suficiente para resolver nossos problemas.

Quase sempre não é.

Quando cursei as séries iniciais do primário no Colégio das Dores, de Porto Alegre, os irmãos lassalistas costumavam distribuir pequenas estampas aos alunos que se destacavam em alguma matéria. Não era nada de fabuloso. Apenas um cão, um gato, um rádio, que contavam pontos para a premiação final.

Significavam muito. Queriam dizer que uma redação de português, uma prova de aritmética, um questionário de geografia estavam além da expectativa. E nós, os guris, nos sentíamos contentes por estar correspondendo ao que esperavam de nós.

Vários anos mais tarde, num outro colégio, adotaram as aulas livres de inglês. Não distribuíam estampas de cães ou de rádios, mas requeriam dissertações sobre as maravilhas de Londres. Em resumo, nos pediam que elogiássemos os prodígios daquela cidade, para comparar nossas composições com outras vindas do Egito, da Índia ou da Austrália.

Nada disso me tornou mais sábio. Mas me desafiou a explorar matérias que eu não percorrera. Me provocou a vencer obstáculos que eu desconhecia. Me instigou a encarar dificuldades que eu não havia transposto.

Voltando agora ao fim das reprovações, devo lembrar que houve uma calamitosa abolição das avaliações de leitura no Rio de Janeiro.

Não quero com isso dizer que vá acontecer sempre.

Mas se o sistema de reprovações funcionou até hoje, sem grandes traumas existenciais, não seria justo dar-lhe uma nova chance?