sábado, 25 de maio de 2019


25 DE MAIO DE 2019
LYA LUFT

Livro é filho?

Talvez eu não pareça simpática, mas, no meu caso, a resposta é não.

Filho, para mim, tem algo de tão transcendente e vital ao mesmo tempo, toma conta tão visceralmente de mim, eu toda, que nenhuma obra de arte que eu pudesse produzir se aproximaria dessa sensação. Nem livro, nem música, nem pintura, nem dança, nem nada. Eu não morreria por nenhum de meus livros: morreria, sim, por cada um dos meus filhos, e, hoje, cada um de meus sete netos e netas. Pois são parte da minha vida: essa história de carne da minha carne, sangue do meu sangue, tem proporções ainda maiores: alma da minha alma.

Sim, eu tendo a ser mãe desmesurada, já me disseram que minha verdadeira vocação nem é escritora, mas galinha choca. Imagino que minha razoável dose de bom senso não os tenha superprotegido, pois todos têm suas vidas, casamento, profissão, escolhas, bem determinadas e diferentes: médica, agrônomo, filósofo. Não fiz os temas por eles, não os protegi nem controlei neuroticamente, e, quando preciso, botei limites. Algumas vezes - me arrependo sim - perdendo a cabeça quando a zoeira era demais, e afinal mãe, tradutora, professora, motorista da família, está sempre à beira... não de um ataque de nervos, mas de romper as cordas da paciência. Preocupação, ansiedade (sou ansiosa, sim), mas enormes alegrias, orgulho, parceria, eventuais dissenções - que família não é santidade -, mas uma vida sem eles eu jamais imaginaria nem quereria ter.

Sim, o destino levou um deles, o do meio, com seu sorriso fascinante, seus prodigiosos olhos azuis, sua bondade, alegria, energia incrível, mas afinal ele continua aqui, conosco que o amamos tanto.

E os livros? Os livros não são filhos meus: são produtos. Do meu trabalho e do meu prazer, de algum dom que eu tenha, da imaginação, do conhecimento da língua, de habilidade em escrever depois de tantos e tantos anos, sobretudo lendo e traduzindo loucamente - melhor exercício para aprender qualquer idioma.

Mas, claro, tenho imenso cuidado com cada um deles. Em cada livro, cada página, sempre coloquei o melhor que podia... naquele momento, depois de reescrever, reler, rearrumar, muitas vezes. Mesmo assim, se por acaso releio (em geral se me pedem uma palestra sobre), encontro coisas que hoje talvez escrevesse melhor... ou algumas que me fazem balançar a cabeça afirmativamente, essa você acertou, guria.

É assim. É isso. Meus amados livros, meus amados produtos, acabam de aumentar com um novato que está na minha editora, a Record, para sair possivelmente no segundo semestre. O já anunciado As Coisas Humanas, reunião de textos avulsos, reflexões, poucas crônicas reescritas, retoma, enfim, aquelas conversas no ouvido do leitor, que me fazem tanto bem. Gostem dele, quando aparecer.

(Se não gostarem, não me digam.)

LYA LUFT

25 DE MAIO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Isso até eu faria


Jack Pollock, mestre do expressionismo abstrato, exercia o que se chamava de "pintura em ação": movimentos espontâneos, velozes, abusando da técnica de gotejamento. Ele usava até esmaltes para respingar a tela. Há quem se pergunte por que raios Pollock é festejado por tanta gente e tem seu trabalho exposto nos maiores museus do mundo, já que, diante de seus quadros, a sensação é de "ah, isso até eu faria". Diante dos quadros do espanhol Miró, a sensação é idêntica. Miró pintava bonequinhos, manchas coloridas, tudo muito inocente e lúdico. "Qualquer criança faz isso", escuta-se ainda hoje, entreouvidos, nos cantos das galerias.

Arte realizada aparentemente sem esforço. Se uma obra parece ter sido criada em 20 minutos, a avaliação não é tão generosa quanto a de outras que parecem ter levado décadas para serem concluídas. Que se caia de joelhos diante da Capela Sistina, compreensível: aquilo, sim, a gente não faria. Mas pintura abstrata? Bossa nova? Simples demais. Os presunçosos não perdoam.

Até hoje há quem não se conforme com o O Pato, de João Gilberto. "O pato vinha cantando alegremente, quém, quém". Como essa banalidade pode ser aplaudida? Uma natureza morta de Cézanne: maçãs sobre a mesa. Quanto tempo ele teria levado para pintá-las? Alguém responderá: "O tempo que se leva pra tomar um cafezinho no intervalo do expediente". É o que muitos suspeitam, mas não dizem, temendo passar por ignorantes.

She loves you, yeah, yeah, yeah. Nem o pai de Paul McCartney aprovou essa versão. Pediu ao filho que ao menos cantasse she loves you, yes, yes, yes, um "sim" britânico, classudo, mas Paul tinha menos de 20 anos, insistiu no yeah e pouco importa, a única certeza é que o verso é tão comum que um compositor de jingles faria melhor, não faria?

"Eles passarão, eu passarinho". Uma garota de 14 anos uma vez declarou que os versos que ela publicava em seu blog eram mais elaborados do que os de Mario Quintana. Se até alguns intelectuais consideravam Quintana infantil, é natural que muita gente despreze alusões a passarinhos, esperanças e espantos, assim como desdenham das bandeirinhas de Volpi e das letras de Roberto Carlos. A simplicidade parece muito fácil de ser executada. "Isso até eu pintaria". "Isso até eu cantaria". Mesmo? O mundo aguarda com ansiedade a entrada em cena desses inúmeros talentos secretos. Porque criticar, isso sim, qualquer um faz.

* * *
Aproveitando: quer começar a escrever pra valer? A premiada escritora Cintia Moscovich está abrindo novas oficinas de literatura a partir de 3/6. Informações pelo e-mail oficinasubtexto@gmail.com. Aprender não é simples, mas é a forma como todos começam.

MARTHA MEDEIROS

25 DE MAIO DE 2019

CARPINEJAR

Competição com o vizinho

Eu e o meu vizinho decidimos fazer uma competição de flores na varanda. Não combinamos nada, não apostamos, não acertamos as regras. Ele começou a frequentar floriculturas e comprar vasos de plantas, eu não deixei por menos: desenvolvi uma cisma em arborizar a frente de meu apartamento. Larguei a monocultura da samambaia pela diversidade exótica do jardim. Queria superá-lo, até porque ele havia virado referência para a minha esposa:

- Um dia seremos que nem ele! E eu respondia com ambição: - Que nem não, melhores!

Fui me especializando em plantas resistentes ao sol, virei um botânico nas horas vagas: cebola-da-mata, crássula, iúca, lança-se-são-Jorge, bulbine, moreia.

Estabeleci uma disciplina de irrigação, passei a adquirir fertilizantes e adubo para apressar os resultados. Não permitia que ninguém da família me ajudasse. Havia uma dinâmica rigorosa para regar - eu não brincava em serviço.

A princípio, a performance me surpreendeu. Eu me sentia um Burle Marx. Paisagismo estava no meu sangue, e desconhecia o meu dom. Arbustos, folhas, pétalas e cores repaginaram o nosso cantinho de chimarrão. Lembrava um quintal aéreo, um pedaço do interior no terceiro andar.

O vizinho piscava para mim, alheio à competição que eu inventava sem comunicá-lo. Talvez nutrisse contentamento pela sua influência do bem, orgulho que a sua iniciativa se estendeu para a porta ao lado e embelezou o edifício, mas eu não o via com bons olhos, identificava apenas inveja e soberba da parte dele. Afinal, enxergamos unicamente aquilo que temos em nós.

Todo investimento, que não foi pouco, quase o valor de uma reforma, vingava. Era o que eu achava. Qualquer varanda se mantém bonita nos primeiros meses. Depois é que o novo ambiente passa a fazer efeito nas espécimes.

Minhas plantinhas foram morrendo sem dó nem piedade, como uma maldição. Tornou-se lentamente um vale das sombras. Por mais que implantasse mudanças, não remedia a tristeza e a penúria. Os galhos secavam, varria montinhos cada vez maiores na área. Deduzi a invasão de alguma praga, porém não encontrei nenhum sinal de formigas e insetos. Perdi o concurso imaginário. Restava-me ser educado e cumprimentar o meu oponente pela vitória. Apertei a campainha, ele abriu, ofereceu café, eu entrei.

Permaneci um longo tempo em silêncio, sem saber como driblar o orgulho. No último minuto, antes de me despedir, a minha curiosidade falou por mim:

- Qual é o segredo das plantas?

Ele riu, e logo completou: - Talvez você não acredite, eu converso com as flores, conto toda a minha vida para elas. Confidências germinam. Só que não invente de dançar, senão elas morrem mais rápido.

Gargalhamos juntos.

CARPINEJAR

25 DE MAIO DE 2019
PIANGERS

Passa rápido

Minha filha mais nova fez sete anos na terça-feira passada. Eu estou gritando pra mim mesmo: "Sete anos! Ela está muito velha!". E ela nem é minha filha mais antiga! Tenho outro exemplar, este de 14. "Catorze anos!", por Deus, minhas filhas estão quase adultas. Já dormem nas suas próprias camas, fazem tarefas escolares sozinhas, lavam e secam a louça depois do jantar. Minhas filhas estão grandes (grandes demais!) e tudo o que posso dizer aos pais de crianças ainda novas é: "Aproveitem".

Aproveitem quando seus filhos forem pequenos e chorarem o dia inteiro. Aproveitem os barulhinhos que fazem nos primeiros meses, os resmungos quando estão dormindo. Aproveitem o cheiro de talco. Aproveitem as músicas de ninar. Aproveitem quando estão aprendendo a sentar, quando sua força abdominal ainda não segura seu peso e eles caem pra trás de cabeça nas almofadas. Aproveitem quando se viram no sofá com a barriga pra baixo e espicham a cabeça para espiá-los. Aproveitem quando dizem "papá" e "mamá".

Aproveitem quando aprendem a andar. Aproveitem quando você estiver em um restaurante e no meio da refeição seu filho quiser explorar o ambiente, aproveite enquanto caminha com as costas curvadas e segurando a mãozinha do bebê, enquanto ele pega qualquer sujeira do chão e coloca na boca. Aproveitem a dor nas costas que sentirão nos primeiros anos.

Aproveitem as trocas de fralda. Aproveitem os banhos morninhos na banheira. Aproveitem as apresentações escolares em que todas as crianças deveriam cantar mas ficam apenas chorando. Aproveitem os desenhos terríveis com riscos que podem ser pessoas, árvores, prédios ou animais. Aproveitem as músicas viciantes dos desenhos infantis.

Sei que todos os pais dizem isso, mas repito: passa rápido. Passa terrivelmente rápido. Sei que você vai me ignorar porque eu mesmo ouvi o conselho milhares de vezes e ignorei. Me diziam: "Aproveita que passa rápido!" e tudo o que eu queria é que as noites em claro passassem, o período de dentes nascendo, o cansaço dos primeiros dois anos, a falta de autonomia dos anos seguintes. Eu comemorei cada pequena vitória das minhas filhas, cada aniversário, e agora estão ali, enormes.

Quero acreditar que aproveitei, mas se pudesse conversar comigo mesmo há 14 anos diria: "Aproveite mais!". Aproveite as vezes que dormirão no seu colo. Aproveite os beijos melados que darão quando chegarem da escola. Aproveite as conversas sem sentido antes de dormir. Aproveite qualquer passeio de mãos dadas. Aproveite as brincadeiras bobas no meio da sala nas noites dos dias de semana. Aproveite os dias de folga. Aproveite os finais de semana. Aproveite cada feriado. Aproveite enquanto ainda são pequenas. Aproveite, porque passa rápido demais.

PIANGERS

25 DE MAIO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Afinal, para o que servimos?

Tenho a tentação de explicar para o que eu sirvo. A pergunta é complexa. Comecei a trabalhar aos 16 anos com carteira assinada. Desde a primeira formatura, em História, aumentei minha carga horária sucessivamente. Dei aula em instituições públicas e privadas e colaborei na educação de milhares de alunos. Há muitos anos formo professores e pesquisadores na Unicamp e escrevo livros. Tenho escrito muitos artigos, orientado pessoas, dado entrevistas, palestras, colaborado com trabalho voluntário em instituições e outras questões menores. Volto à questão: para que eu serviria?

O governo federal fala em investir em áreas mais úteis para a sociedade. Oscar Wilde achava que o Estado deve fazer o que é útil, e o indivíduo, o que é belo. É um terreno pantanoso. Vamos imaginar que útil seja aquilo que produza um bem concreto e objetivo. Nesse caso, o marceneiro é muito útil. O padeiro é um monumento à utilidade. Um agricultor e um operário são indispensáveis. Precisaríamos de filósofos? Seriam necessários políticos? O mundo não sobreviveria sem militares?

Voltemos ao campo da definição. Se as faculdades de Filosofia pararem por um mês, poucos notarão. Talvez o trânsito melhore, inclusive. Dez minutos de paralisação do metrô causam um caos que Sócrates algum poderia supor. O Brasil não dispara tiros contra um inimigo externo desde 1945. Seriam úteis as Forças Armadas? Se o ministro da Educação passasse para outra dimensão e os mecanismos de transferências de recursos estivessem no automático dos computadores, alguém deixaria de existir? Afinal, para que poderia servir um filósofo, um ministro ou um militar?

Como indiquei, produtores de bens materiais de primeira linha, como pães, nunca foram classificados como parasitas ou inúteis. Serviços estratégicos, como metrô ou motoristas de caminhão, têm imenso poder de fogo. E os bens imateriais? Os serviços que não apresentam algo muito concreto, com padres rezando missas ou pastores celebrando cultos? De novo, o mundo pararia sem rabinos, padres ou pastores? Se as zelosas freiras contemplativas de um convento acompanhassem o doutor Weintraub para espaço distante da nossa visão, como amanheceria o mundo? Para religiosos, a falta dos ministros de Deus seria um desastre. Porém, e para o mundo do pão e do metrô? Fariam falta?

Imagine que o Brasil amanheceu sem poetas, sem filósofos, sem críticos de arte, sem ministros, sem palestrantes, sem decoradores, sem maquiadores de defuntos, sem capitães ou sem pastores: que falta todos fariam? Para uma ilha deserta, você preferiria qual profissão para salvar? O mundo vai acabar, selecione entre um ministro da Educação e um agricultor, entre um médico e um capitão reformado. O que você escolheria?

Quando eu era criança, no meu livro do primário havia imagens de animais "úteis e nocivos". As vacas eram úteis, bem como as abelhas. Os mosquitos eram nocivos, claro. No meio desse antropocentrismo especista, havia pouco questionamento sobre o critério da utilidade. No livro didático dos camaleões, por exemplo, mosquitos seriam muito úteis e humanos, muito nocivos. A ética camaleônica, insetívora, apoiaria exterminar humanos e preservar o Aedes aegypti.

É preciso reconhecer que o conceito de utilidade é um pouco mais elástico do que aquele centrado no produto material. Os caminhoneiros são essenciais no Brasil. Eles existem porque houve a invenção do motor a explosão e o surgimento de cientistas que transformaram petróleo em combustível, muitos ligados à área de pesquisa da universidade. As áreas de pesquisa cresceram quando filósofos como Descartes criaram métodos racionais para pensar problemas específicos e paradigmas físicos foram tratados por pensadores como Newton. O cientista inglês, aliás, era também astrólogo nas horas vagas, vejam que coisa curiosa. O diálogo entre o método científico, a universidade, os pesquisadores, os cientistas oficiais e avulsos e os inventores privados deu origem ao mundo complexo que possibilita ao caminhoneiro existir. Compreender esse mundo inclui saber que certas éticas religiosas do trabalho devem ter colaborado para o progresso do capitalismo como previa o sociólogo Weber. Fundamental supor que elementos religiosos, filosóficos, científicos e demandas de mercado foram se tornando elos de uma corrente que possibilitava Pascal ser um grande filósofo, renomado teólogo e inventor de teorias matemáticas usadas até hoje. Aliás, ele também deduziu uma máquina de calcular muito engenhosa. O conhecimento de um Leonardo da Vinci ou de um Pascal nunca pensou em utilidade, porém no sentido socrático de que todo conhecimento que nos torna melhores é útil. A realidade é mais complexa do que o tijolo feito pelo oleiro para um muro. Ainda que o olho simples e comum só veja o tijolo (algo útil), a concepção artesanal ou arquitetônica vai dialogar com sujeitos invisíveis além do que tocamos.

O tema é vasto e contém muitas bibliotecas de apoio para argumentos. Fiquemos apenas em um questionamento: quando começamos a falar sobre o que é útil ou inútil, devemos ter cuidado. Pela dialética clássica, podemos despertar a mesma pergunta para nosso campo e alguém pode devolver a pergunta a quem a faz: você é útil ou inútil? Além dessas categorias, existe uma pior: você faria alguma falta? É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


25 DE MAIO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

CERUME

COMO SUA PRODUÇÃO FAZ PARTE DO MECANISMO DE PROTEÇÃO DO OUVIDO, NÃO É PRECISO PREVENIR A OBSTRUÇÃO DO CONDUTO AUDITIVO
A cera que se forma no ouvido é uma secreção normal produzida para limpar, proteger e lubrificar o conduto auditivo.

Pequenas partículas que penetram com a poeira e a poluição ficam presas no cerume, que as impede de chegar à membrana do tímpano. A mastigação, os movimentos das articulações temporomandibulares e a descamação da pele do conduto auditivo externo ajudam a empurrar o cerume velho na direção da abertura externa, de onde será eliminado durante o banho.

O cerume é produzido nos dois terços externos do conduto auditivo. O terço interno, junto à membrana do tímpano, fica praticamente livre dele, providência da natureza para impedir que a cera ficasse impactada contra a membrana, interferindo com sua capacidade de vibrar e transmitir as ondas sonoras para o interior do ouvido.

Quando esse mecanismo de autolimpeza funciona mal, o cerume pode se acumular, endurecer e bloquear o canal, parcial ou totalmente.

Os principais sintomas provocados pela obstrução são: dor, prurido, sensação de corpo estranho, zumbido, perda de acuidade auditiva, secreção purulenta e até tosse.

O risco de obstrução aumenta com a idade, com o uso de aparelhos auditivos, de tampões e com a introdução de cotonetes e outros objetos. O diagnóstico é feito pelo exame do local com o otoscópio.

O tratamento conservador pode ser uma opção. Muitas vezes, a medida mais sensata é observar por alguns dias para ver se ocorre eliminação espontânea.

Caso contrário, a irrigação com água morna ou soro fisiológico aquecido é a alternativa mais empregada. Embora a lavagem possa ser realizada em casa, a recomendação é que seja feita por alguém com experiência. Nos casos de pessoas com otites frequentes, com próteses ou perfuração na membrana do tímpano, a irrigação deve ser feita por um otorrinolaringologista.

Gotas de agentes que diminuem a consistência do cerume são úteis, especialmente nos casos de produção excessiva. Os otorrinos não costumam indicar esses agentes em crianças com menos de três anos.

Algumas obstruções exigem remoção mecânica com instrumentos ou aparelhos de sucção, procedimentos que exigem profissionais especializados.

A introdução no ouvido de cotonetes, clipes, hastes de óculos ou de qualquer outro objeto está formalmente contraindicada. Embora eles possam retirar pequena quantidade de cerume, na verdade o que fazem é impactá-los contra a membrana do tímpano, além de traumatizar a pele do conduto auditivo e facilitar o aparecimento de otites bacterianas.

Como a produção de cerume faz parte do mecanismo de proteção do ouvido, não há necessidade de prevenir a obstrução do conduto auditivo. Algumas pessoas, no entanto, podem beneficiar-se de exames regulares: as mais velhas, as que usam aparelhos auditivos, as que usam tampões para dormir e as que têm histórico de produção excessiva de cera.

Tratamentos populares do tempo de nossas avós, como pingar azeite quente ou gotejar álcool, não devem ser utilizados.

DRAUZIO VARELLA


25 DE MAIO DE 2019
PAULO GLEICH

O DEMÔNIO DO MEIO-DIA

Em um dia qualquer de um outono que se arrasta em chegar, o sol cálido banha ruas e casas. Crianças e adolescentes tomam as calçadas na saída da escola, cheiros diversos anunciam no ar cardápios que só serão degustados por quem compartilhará aquela íntima refeição. Os barulhos e as cores da cidade tocam a harmonia caótica que embala sonhos e vaivéns de seus habitantes.

Muitas dessas pessoas, porém, não sentem o suave calor que o sol projeta em seus corpos. Os cheiros não despertam seu apetite, e a vida que corre à sua volta mal é percebida - e, se percebida, causa alguma tristeza, quando não indiferença. Movem-se com esforço, como se o ar oferecesse resistência a seus corpos. Dessas, algumas sequer saíram de casa, porque ar tornou-se pesado demais para levantar.

Alguns desses sujeitos, tão acostumados que estão a não sentir prazeres, já se conformaram: a vida é isso mesmo. Limitam-se a seguir sua rotina, que ao menos oferece um estímulo externo - mesmo que esse não seja muito estimulante - para não parar de vez. Veem a vida em tons de cinza, contentam-se quando conseguem evitar ao máximo os tons mais escuros.

Outros já não conseguem mais ver tom nenhum: tudo é escuridão, e a única forma que têm de lidar com ela é ficando imóveis, porque andando podem topar com algo que os derrube de vez. Há os que sonham com morrer, como se fosse o único remédio capaz de trazer alívio a seu inferno particular. Desesperados e desesperançados, alguns chegam a apressar a chegada da morte, não mais suportando o vazio da escuridão.

Há também os que reconhecem que há algo de errado em ver tanto breu e em não sentir sequer o calor do sol. Falam de seu mal-estar, numa tentativa de encontrar amparo para sair desse lugar tão insuportavelmente penoso. Uns azarados encontram ouvidos fechados e respostas como "vai passar", que sua dor é "só coisa da cabeça" - como se a cabeça não fosse parte do corpo e também não adoecesse.

Os que nunca padeceram nas garras do demônio do meio-dia - como Andrew Solomon nomeou a depressão em seu livro sobre o assunto - se assustam ao deparar com quem está sob a influência deste mal. Talvez por medo de serem também acossados por ele, tentam enxotá-lo com alegrias e distrações, ignorando que esses são, no máximo, paliativos. Algumas pessoas de fato acabam se contagiando, vendo-se paralisadas diante do excesso de escuridão na vida de quem pede ajuda.

Os avanços da farmacologia têm oferecido um importante auxílio para quem sofre com esse demônio que, a cada ano, atinge mais pessoas em todo o mundo. Ajudam a clarear um pouco seus tons mais escuros, aliviar o peso para que possam ao menos sair da cama. Mas também induzem a um equívoco frequente, ao igualar a depressão a uma doença como outra qualquer, para a qual bastaria apenas a pílula diária.

O demônio do meio-dia é um ser tinhoso, entranhado na alma e no corpo de quem está sob seu domínio. A melhor estratégia é, ainda, aquela máxima do general chinês Sun Tzu: conhece teu inimigo como a ti mesmo - até porque esse demônio não deixa de ser uma parte de nós mesmos. Para isso, a palavra e o pensamento ainda são os melhores recursos, mesmo que esse inimigo interno insista em repetir que de nada adiantam. Uma psicoterapia não pode prometer a luz do sol, mas pode oferecer uma essencial companhia para ajudar a entender e desarmar as engenhosas armadilhas criadas por esse demônio.

PAULO GLEICH


25 DE MAIO DE 2019
J.J.CAMARGO

O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA

Simplificadores costumam atribuir aos baixos salários todo o problema do desempenho medíocre
Um cínico só admitiu que dinheiro não traz felicidade para em seguida advertir: o problema é que as coisas que trazem estão cada vez mais caras.

O que não é previsível é quanto o dinheiro e especialmente a busca por ele podem modificar o ânimo e o humor dos que querem conquistá-lo.

Os simplificadores costumam atribuir aos baixos salários todo o problema do desempenho medíocre, mas é um equívoco ignorar que não há estímulo econômico que coloque entusiasmo no que se faça sem encantamento. O mau humor de alguns profissionais bem remunerados e a comovente entrega afetiva de operários que mal ganham para a sobrevivência são a prova de que também nos alimentamos de uma energia maior que nos impulsiona e gratifica. E que, sem ela, nos transformamos em meros colecionadores de ressentimentos.

Muitos gastam a vida no obstinado esforço de enriquecer, atribuindo toda a desventura à falta do dinheiro, o que tantas vezes é apenas um lamento esfarrapado de quem não encontrou o único caminho que impulsiona os honestos em direção à estabilidade financeira: o prazer de fazer o que lhe dá prazer.

Para as pessoas menos deslumbradas, provavelmente a grande maravilha de se ter dinheiro é eliminar qualquer possibilidade de humilhação pelo receio de perder o emprego. A libertação dessa praga, chamada assédio moral, que assola a civilização contemporânea, cada vez mais competitiva, é a primeira conquista verdadeira de quem, tendo dinheiro, desdenha a possibilidade de ameaça de quem está no andar de cima.

Que o dinheiro traz segurança, autonomia, confiança, independência e liberdade, todo mundo sabe. Mas o alto índice de adição em drogas, alcoolismo e suicídio entre grandes empresários sugere que ele não se basta. O circulo virtuoso da fortuna, que começa com o desejo de ter e se soma à determinação de conseguir, só se completa com a convicção do ricaço de que foi o seu jeito charmoso de ser que atraiu os muitos amigos que agora compartilham sua vida.

Ainda que Nelson Rodrigues tenha dito que o dinheiro compra até mesmo o amor verdadeiro, todos sabemos que alguns dos tipos mais amargurados que se possa encontrar estão entre os bilionários que não têm certeza da sinceridade do afeto dos que o rodeiam.

A necessidade da ostentação, certamente a evidência grosseira da insegurança que atormenta os que se sabem menores do que a aparência possa sugerir, é a prova definitiva da diferença abismal entre os ricos verdadeiros e os que só têm muito dinheiro.

Como sempre, o problema continua sendo o que cada um sabe de si quando coloca a cabeça no travesseiro e percebe que seu valor intrínseco como indivíduo não é influenciado pelo preço das ações da sua empresa na Bolsa de Valores.

Provavelmente a mudança de atitude em direção ao humanismo e à solidariedade social dos grandes empresários, ao envelhecerem, coincide com a descoberta de que não há nada que o dinheiro possa comprar que consiga competir com a epifania da gratidão.

J.J.CAMARGO


25 DE MAIO DE 2019
DAVID COIMBRA

A cara do povo

Trabalhei um punhado de anos como repórter na Assembleia Legislativa. Era bom, aprendi muito. Sentia-me como se estivesse em um dos romances de Arthur Hailey, em que a trama se passa em um único ambiente, como um aeroporto, um hotel ou um hospital. Tanto quanto esses locais, a Assembleia é um mundo à parte, com seus dramas e suas comédias.

Às vezes, quando não tinha pauta específica, nem uma boa ideia para a matéria do dia seguinte, fazia o que os vendedores de livros chamam de "xaveco": conversava aleatoriamente com as pessoas, até encontrar algo interessante. Fazia isso com método: subia de elevador até o último andar do prédio e ia passando nos gabinetes um por um, descendo pelas escadas até chegar ao térreo e às diretorias legislativas.

Numa dessas empreitadas, lá no 12º andar, deparei com uma moça famosa por sua beleza provocante. Havia muitas princesas, entre as milhares de pessoas que por lá passavam todos os dias, mas ela era a rainha. Havia sido miss de alguma coisa, inclusive. Naquele dia, uma sexta-feira, ela parou bem na minha frente e disse, com sua voz de leite condensado, caramelizado com flocos crocantes, coberto com o delicioso chocolate Nestlé:

- Aim, Daviiid, hoje está tããão queeente? Como me arrependi de não ter vindo com uma minissaia beeem curtinha? Tu não acha que eu devia ter vindo com uma minissaia beeem curtinha?

Olhei para as longas pernas dela dentro daquele jeans beeem apertado, engoli em seco e respondi:

- Seria agradável?

Um dos personagens mais conhecidos da Assembleia era Paulo Bráulio Saldanha, que todos chamavam de Professor Saldanha. Ele era baixinho, usava sempre uns imensos óculos quadrados e um terno amarfanhado. Falava com voz de locutor de rádio, num português perfeito, sem sonegar um único plural e mantendo a concordância impecável. O Professor Saldanha chegou a participar do Sala de Redação e de outros programas de rádio, mas, na Assembleia, trabalhava como assessor, em geral do PMDB. Tornamo-nos bons amigos. Ele descobriu que eu gostava de História e me trazia livros de sua biblioteca, recomendando com ênfase:

- Este tu tens que ler! Tens que ler!

Uma vez, depois de um convescote em um bar da cidade, o Professor Saldanha entrou no táxi e disse ao motorista, com aquela sua voz de discurso de posse:

- Leve-me para a Morada dos Deuses!

O carro arrancou e o Professor adormeceu no banco de trás. Acordou com a voz do motorista anunciando:

- Chegamos!

Estavam diante do Cemitério São Miguel e Almas.

- Mas o que é isso, meu filho? - perguntou o Professor.

- Não é aqui a Morada dos Deuses?

- Não, meu caro. A Morada dos Deuses é o bairro Partenon!

Quando o Professor Saldanha discorria sobre algum fato histórico, na sala de imprensa da Assembleia, o grande repórter Gustavo Motta aparteava:

- Sabe muito do passado, mas nada do presente?

O Professor Saldanha sorria com benevolência de quem sabe que é de passado que é formado o presente.

Poderia escrever um livro sobre as histórias e personagens da Assembleia. Nesse relato, é claro, os deputados teriam inevitável destaque. São 55 seres humanos montando um painel heterodoxo e complexo. Havia de um tudo ali, no meu tempo. Um dormia durante as votações, outro teve um caso rumoroso com a beldade de minissaia que encontrei no 12º andar, um terceiro era temido pelo seu nauseabundo mau hálito. Certo dia, o Gustavo Motta foi pautado para entrevistá-lo. Passei por perto e vi o nobre edil discorrendo com entusiasmo sobre algum projeto importantíssimo, os perdigotos voando-lhe boca afora, e o Gustavo teso, empunhando o gravador com mão trêmula, enquanto uma triste lágrima escorria-lhe rosto abaixo.

Mas muitos não eram folclóricos, eram até fascinantes. Como José Paulo Bisol, intelectual de brilho raro e vasto conhecimento. Ouvir o Bisol falando era uma aula.

Tempos atrás, Bisol disse, em uma entrevista, que lamentava porque eu "era de esquerda no passado" e especulava que havia mudado para agradar à empresa em que trabalho. Fez essa avaliação, evidentemente, porque eu criticava o governo do PT. Fiquei triste pelo Bisol achar que eu poderia ser assim tão desonesto em meu trabalho. Agora, curiosamente, os bolsonaristas dizem que sou petista porque critico o governo Bolsonaro. E, como o Bisol, eles também alegam que quero agradar à empresa em que trabalho. De fato, os opostos se atraem.

Mas o que pretendia dizer é que você pode encontrar uma imensa variedade de tipos humanos numa casa legislativa. Como os deputados vêm de regiões diferentes e de classes econômicas diferentes, há um caráter heterodoxo no conjunto montado por eles a cada mandato. Há ricos, pobres e remediados, há os extremamente cultos e os pouco letrados, há jovens e velhos, há homossexuais e heterossexuais. E há, também, os desonestos. Porque a sociedade, em geral, está muito bem representada no Poder Legislativo. Os brasileiros, se olharem para o Congresso, estarão olhando para o espelho. Aquela é a imagem do Brasil. Você quer melhorar essa imagem? Só existe um jeito: você terá de melhorar.

DAVID COIMBRA

25 DE MAIO DE 2019
MÁRIO CORSO

O preço de ter um guru

Compreender a Babel moderna é tarefa árdua. O mundo tornou-se um labirinto de referências culturais. Perdemo-nos entre tantas formas de pensar e comportamentos exóticos. Até em casa sentimo-nos estrangeiros. Não chega a ser novidade: a invenção é o motor da aventura humana. Mas como adaptar-se a tantas e tão frequentes mudanças? Como não se angustiar frente ao aparente caos? A quem devemos ouvir? A quem vamos seguir?

Algumas pessoas, assustadas pelo tamanho da empreitada, pegam um atalho perigoso. Na esquina da facilitação vivem os gurus: vendendo certezas a quem não se sente capaz de fazer a própria síntese da realidade. O mentor surge quando alguém abdica de pensar por conta própria.

O guru apresenta-se como iluminado, encarna uma biblioteca universal, fala desde a experiência de Matusalém. É um mercador do saber que empresta chaves de interpretação simples à complexidade de tudo. Quem não quereria comprar? Afinal, é impossível navegar sem bússola pela existência.

A questão é o preço dessa mestria torta. A adesão infantiliza o usuário, criando uma dependência emocional ao fiador do saber. Encontrar um guru é fácil, difícil é sair da vassalagem amorosa que vem no pacote. Abrir mão dele é ser devolvido ao caos, à deriva da falta de sentido. Dispensá-lo é como abrir mão de um pai.

Todo guru é único, por isso seria incompreendido e marginalizado pela academia. Suas teses seriam tão revolucionárias, que só os iniciados, que ganharam o privilégio de ser escolhidos e tiveram um contato íntimo com a obra, o entenderiam. Por palmilhar cada área do conhecimento, ele toma ares de profeta e promete uma mensagem redentora para a humanidade. Seus discípulos respondem unindo-se numa seita.

Quanto mais avançamos no entendimento do mundo, mais ignorantes nos sentimos, pois subimos um degrau e enxergamos mais longe o que nos falta saber. Quando alguém arrota sapiência, esbraveja epifanias, percebemos não estar diante de um sábio. A sabedoria nos faz humildes e ponderados, pois encara as verdades como transitórias. Portanto é fácil reconhecer a fraude intelectual, basta escutar a gritaria das certezas e revelações.

Quem assiste de fora repara o patético, o enganoso das teses simplórias travestidas de filosofia, mas não consegue transmitir ao discípulo a impostura do seu amado mestre. Quem está tomado nisso não ouve racionalmente, o que ele escuta é como se disséssemos que seus pais são mentirosos e embusteiros. Para ele, a maçaroca delirante faz sentido e é necessária para se situar no mundo.

Infelizmente não existe vacina contra gurus e nem passar por um imuniza para não recair em outro. Mas a condição infantil do pensamento pode ser superada, não desista de seus amigos abduzidos por camelô de ideologias. Siga martelando, um dia eles acordam.

MÁRIO CORSO

 25 DE MAIO DE 2019
DUAS VISÕES

POR QUE AINDA EXISTEM?

Alguns jogam na Mega Sena, outros trabalham duro. E há, também, quem acredite que exista uma maneira mais fácil de atingir aquele objetivo, como os supostos “investimentos” que oferecem retornos muito acima do mercado, mas não passam de pirâmides financeiras. Esses golpes são antigos, rodam o país, frequentemente, concentrando-se em determinadas regiões, já que dependem de adesões obtidas no boca a boca.

O que a psicologia aponta nesses fenômenos? Primeiro: se já são tão conhecidos, por que ainda atraem vítimas? Três fatores a considerar: somos, em geral, otimistas, mas o otimismo pode se tornar excessivo e impedir a percepção de riscos. Adicionalmente, há o problema da autoconfiança exagerada - a pessoa consegue enxergar riscos, mas só para terceiros, já que não vê ameaças a si, sentindo-se inatingível e livre de perigos. Neste caso, pode dar-se conta de que é pirâmide, mas vai "entrar e sair" sem maiores problemas, antes que o esquema desmorone.

Por fim, o conhecido comportamento de manada - em situações de incerteza, desconhecimento, quando alguma "autoridade" (que, em nossos tempos virtuais, pode ser um influenciador digital, um áudio no WhatsApp ou um power point caprichado) avaliza, ela adere ao que acredita ser uma oportunidade única. Com dinheiro envolvido, vem a sensação de FOMO (fear of missing out), o medo de perder aquela chance. E o chamado viés de confirmação nos empurra a acreditar, apenas, naquilo que combina com nossas expectativas e crenças, mesmo que ilusão, enquanto nos impede de considerar o que as contraria, ainda que real.

Além disso, somos, sempre, guiados pelo desejo, que é inconsciente e não cessa de nos impulsionar a buscar satisfação. Pode ser o novo celular, o novo parceiro/a, ou o dinheiro na nova pirâmide.

Psicóloga econômica, psicanalista, doutora em Psicologia Social ? PUC-SP - VERA RITA DE MELLO FERREIRA

25 DE MAIO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

CHOQUE DE ORDEM

Dos flanelinhas que privatizam espaços públicos e extorquem motoristas às milícias do Rio de Janeiro que constroem prédios clandestinos que depois redundam em tragédias, as grandes cidades brasileiras vêm sendo paulatinamente degradadas por um sem-número de atos que transitam da falta de civilidade ao completo desprezo à legislação. 

Em Porto Alegre, há bem-vindos sinais de disposição da prefeitura de enfrentar o que no Rio passou a ser conhecido como bandalha. Vendedores ambulantes ilegais, moradores de rua que montam acampamento e se apropriam de praças e outras áreas públicas, publicidade irregular, poluição visual e sonora, pichações, comércio de objetos furtados ou contrabandeados, despejo clandestino de dejetos o cardápio da bandalha porto-alegrense é lamentavelmente extenso.

Em muitos casos, como o de camelôs e do comércio clandestino, há uma indústria à margem da lei que se vale de pessoas vulneráveis para acobertar moralmente a ilegalidade. Em outros, como o de moradores de rua, a compreensível solidariedade se confunde com a obrigação de o município ajudar tais pessoas a encontrarem um destino mais adequado, como os abrigos públicos. Apoiar uma existência sob tetos improvisados, sobretudo às vésperas do implacável inverno gaúcho, é, antes de um ato de caridade, um involuntário estímulo à manutenção de tal sofrimento.

Porto Alegre tem um exemplo notável de como, com coragem, racionalidade e mobilização social, logrou reduzir drasticamente o número de crianças pedintes nas sinaleiras e devolvê-las às escolas. Há 20 anos, a campanha contra a esmola, que à primeira vista poderia parecer uma crueldade, ajudou a retirar milhares de crianças e adolescentes das ruas em que eram obrigadas a angariar renda para adultos manipuladores e exploradores. 

Ao convencer cidadãos a trocar a esmola por doações para entidades e o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a campanha Sinal Vermelho para a Esmola, coordenada inicialmente pela Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, serviu de inspiração para dezenas de outras cidades brasileiras adotarem movimentos similares.

Um choque de ordem nem sempre é uma atitude simpática, sobretudo em sociedades que não têm por cultura considerar o direito coletivo precedente ao individual, mas é imprescindível para se evitarem tragédias - como casebres erguidos em locais de risco - ou para elevar a qualidade de vida de todos. É também uma oportunidade para se promover o debate sobre as responsabilidades de cada indivíduo, desde os que não recolhem fezes de seus animais domésticos nas calçadas aos que compram produtos furtados ou vandalizam propriedade alheia. 

Defender a lei não significa dar carta branca para governantes assumirem uma fúria fiscalizatória cega e implacável, mas, sim, exigir que todos assumam seus deveres, públicos ou individuais. Autorizações legais prévias, educação e respeito ao patrimônio coletivo, amparados por uma atuação justa e ativa do poder público, são e serão sempre os melhores caminhos na busca de uma Porto Alegre melhor, onde todos possam viver e trabalhar em harmonia e com respeito às normas de convivência.

OPINIÃO DA RBS

25 DE MAIO DE 2019
SEGURANÇA

Dívida de quase R$ 1 bi e problemas na Justiça Federal

Apesar de ter tido prejuízo líquido de R$ 59 milhões no ano passado, a Taurus obteve no primeiro trimestre de 2019 receita operacional líquida de R$ 252 milhões e lucro líquido de R$ 4 milhões, números bem melhores que igual período em 2018. Os resultados podem ser consequências positivas dos movimentos favoráveis às armas emitidos pelo governo federal. O problema é que a dívida histórica da empresa é de R$ 835 milhões. Os maiores credores são bancos do Brasil, dos Estados Unidos e da China. Uma renegociação possibilitou que o débito seja parcelado nos próximos cinco anos.

Para driblar as dívidas, a Taurus colocou novas ações no mercado e pôs à venda um terreno em Porto Alegre e também uma fábrica de capacetes no Paraná. Metade do que for captado irá para os credores. A expectativa, segundo o presidente da Taurus, Salesio Nuhs, é obter R$ 300 milhões neste ano com os dois movimentos.

POSSÍVEIS FALHAS EM 19 ESTADOS, SEGUNDO MINISTÉRIO PÚBLICO

No quesito técnico, a Taurus também tem sido alvo de críticas - muitas alimentadas pela concorrência. Policiais alinham histórico de pistolas defeituosas que travam. Algumas teriam provocado acidentes fatais, tanto que foram registrados problemas em armamentos em 19 Estados, segundo pesquisa feita pelo Ministério Público Federal (MPF). Em certas regiões, como no Distrito Federal, houve determinação de recolhimento de armas defeituosas. Nuhs assegura que os problemas com armas têm sido corrigidos.

Outra dor de cabeça recente é o fato de dois ex-executivos da Taurus terem sido denunciados pelo MPF pela venda, em 2013, de 8 mil armas para o governo do Djibuti. O armamento teria ido parar nas mãos de guerrilheiros no Iêmen. O caso ainda não tem decisão judicial.

Nuhs lembra que a empresa não foi processada, apenas os ex-diretores, mas ressalta que toda exportação - inclusive aquela para Djbuti - passa pelo crivo do Itamaraty e do Ministério da Defesa. O comprador de armas também veio ao Brasil e passou pela Polícia Federal.

- Se os executivos da Taurus foram enganados, o governo também foi enganado - resume.

25 DE MAIO DE 2019
+ ECONOMIA

CRISE? QUE CRISE?


A Rasip, que produz e vende maçãs, teve US$ 7,3 milhões em receita de exportações em 2018. A conquista de mercados como Índia e Rússia ajudou. Neste ano, o objetivo da Rasip, vinculada à RAR, da família Randon, é manter a média de crescimento de 13% e ter receita ao redor de R$ 300 milhões.

A HS Consórcios, do grupo Herval, fechou os primeiros quatro meses com crescimento de 30% nas vendas ante o mesmo período do ano passado. O número de consorciados aumentou 32%. A administradora tem representantes em oito Estados e no Distrito Federal.

Os cerca de 15 mil cooperados da Unicred Porto Alegre vão receber, no final do mês, mais de R$ 10 milhões, referente às "sobras", o lucro da cooperativa, de 2018. O valor será distribuído proporcionalmente ao relacionamento de cada um com a cooperativa, conforme a movimentação em sua conta e investimentos.

A SEMANA QUE EU VI

Tensão, trégua, tensão

Depois de bate-boca entre Planalto e parlamentares, houve trégua, com aprovação parcial de projetos do governo. A tensão voltou com expectativa sobre atos de domingo e nova ameaça de renúncia de Guedes.

Venda da Refap

O edital com as regras para privatização da refinaria de Canoas deve sair até o final de junho, disse à coluna a diretora de refino e gás da Petrobras, Anelise Lara. Regras devem atrair mais interessados do que as do processo anterior.

Reforço intermitente

Começaram os testes para entrada em operação comercial da usina Pampa Sul, em Candiota. Por restrições na transmissão de energia, por atraso em obras, corre o risco eventual de operar com metade da capacidade ou até parar.

Encontros & despedidas

Se a Air Europa anunciou entrada no Brasil, às vésperas da confirmação da MP que abre a aviação a empresas 100% estrangeiras, a Avianca foi obrigada a sair. E mesmo com crise avançando, empresas brasileiras foram às compras.

MARTA SFREDO

25 DE MAIO DE 2019
INOVAÇÃO

Pacto Alegre seleciona quatro projetos de qualidade de vida

Quatro projetos foram selecionados no último encontro de elaboração do Pacto Alegre sobre desafios para melhorar a qualidade de vida na Capital. Outras cinco rodadas debateram os temas talentos, transformação urbana, gestão pública, imagem da cidade e ambiente de negócios. Todos os planos serão analisados pela mesa do Pacto em evento programado para 31 de maio.

O Pacto Alegre é um esforço coletivo envolvendo prefeitura, universidades, empresas e instituições civis para promover a inovação e o desenvolvimento no município. Para isso, um plano de trabalho estabeleceu prioridades, metas e prazos. As reuniões temáticas sobre os macrodesafios se encerrou com quatro ideias discutidas e aprovadas pela maioria dos cerca de 50 participantes.

No dia 31, a mesa do pacto, que deverá contar com as presenças do prefeito Nelson Marchezan e do consultor espanhol Josep Piqué, analisará os 20 esboços de projeto e verificará quesitos para a chancela definitiva. Representantes das 82 instituições que formam a iniciativa avaliarão os projetos, verificando se têm um líder, recursos (se necessário) e capacidade de cumprir as intenções.

- A ideia é ficar com 14 a 18 projetos, que serão colocados em prática e já deverão ter alguma etapa concreta cumprida até novembro, quando haverá outra reunião - explica o diretor de Inovação da prefeitura da Capital, Paulo Renato Ardenghi.

domingo, 19 de maio de 2019



18 DE MAIO DE 2019
LYA LUFT

Antes que o mundo acabe

Qualquer coisa muito nova, diferente, e minha avó Olga, mãe de meu pai, exclamava: "O mundo vai acabar".

A gente adorava aquela avó baixinha, gordinha, os olhos mais azuis deste mundo, e a bondade mais bondosa também. Eu achava maravilhoso meu pai ter mãe, e não me cansavam as histórias que ela contava da infância dele. Mais ainda, da própria infância dela - e a gente abusava da paciência dela, vó, conta de novo de quando você subiu na goiabeira e caiu e quebrou o braço.

Vó subindo em goiabeira era uma loucura. Naturalmente a bondosíssima dona Olga repetia mais uma vez, e mais outra, e se divertia com nosso deslumbramento.

Não sei se perdemos menos do que devíamos a capacidade infantil de acreditar, de nos iludir. Ou será que estamos sarcásticos e céticos, e só eu não vi direito? Estamos num momento esquisito, não só aqui, mas no mundo todo. Trump, Teresa May, Guaidó e Maduro, Irã, Iraque, Síria, escolas e estudantes, professores e reitores, garis e médicos, advogados e donas de casa (isso ainda existe?), todo mundo inquieto, um pouco amedrontado, sacudindo a cabeça, o mundo não tem jeito mesmo. O ser humano não tem jeito. O Brasil não tem jeito.

E alguém há muitos anos, quando eu fazia essas argumentações meio desesperadas, me disse com simplicidade dos sábios essa coisa definitiva:

"Ora, esse é o jeito do mundo, das pessoas, do país. E ponto final". O resto é arrancar os cabelos para nada. Aceitar sem aceitar, procurar não bater a cabeça demais na parede, ou o mundo continua e nós temos de ir para alguma emergência... onde talvez não tenham mertiolate nem band-aid. Então melhor ficar meio quieto, sem ignorar, sem se alienar demais.

Porque anda difícil mesmo. Porque o pão nosso de cada dia, a escola das crianças, o juro, o ar impuro, o mar desolado onde querem botar terminais de petroleiros, tudo parece esquisito. Como a maior parte das explicações de um lado e de outro.

Não acho que o mundo vá acabar... agora. Não ainda. Pois quero poder segurar bisnetos, por gentileza: não precocemente, não já, mas um dia. Mas que está chato, repetitivo, como nós em nossas queixas e receios, ah isso está. E sem jeito de mudar.

Então pelo menos, depois dos dias de chuva que eu amo especialmente, agora mesmo o sol rompe um nevoeiro fraco aqui no parque à minha frente, e levantei cedo, com frio, para vir ao computador fazer uma coisa importante (para mim, importante): a ultimíssima revisão do meu novo livro, As Coisas Humanas, textos avulsos que devem aparecer na minha editora Record no próximo semestre.

E sentada aqui no meu pequeno escritório, o dia mal nascendo, balancei a cabeça rindo sozinha: Só eu mesma, escrever a esta hora, em lugar de ficar na cama quentinha.

Mas escrever, para os doidos como eu, é o melhor remédio e a maior aventura. O problema é botar o ponto final, pois um livro é, como a análise de Freud, terminável e... interminável. Mas que seja antes que o mundo acabe.

LYA LUFT

18 DE MAIO DE 2019
CARPINEJAR

Tá ocupado!

Na infância, havia o telefone fixo em casa, com a extensão no quarto dos pais. Não existia celular e computador. Representava o único jeito de contato com os amigos. Fazia-se fila e escala de horários para usá-lo.

Evidente que ficávamos furiosos com a irmã mais velha, Carla, que não respeitava os acordos e se alongava em bem-me-quer e mal-me-quer com o namoradinho da escola. Não desligava de imediato. Ameaçava se despedir e retomava a conversa do nada, depois do tchau, com alguma fofoca ou novidade.

O telefone tornava-se pivô da tensão familiar, já que os negócios e trabalhos paterno e materno tinham a preferência sobre as nossas amenidades adolescentes. Não foi uma vez que escutei o sermão: "Ligação é só para urgências e dar recado rápido".

As enrolações geravam a maior parte das discussões na mesa. Quando a irmã se declarava infinitamente nos seus interurbanos, enrolando o fio nos dedos como se fossem os seus próprios cachos, os adultos de casa apareciam discando o aparelho lá do cômodo de cima, constrangendo e forçando imediatamente a liberação. Ela reagia com gritos: tá ocupado!

Tentar fazer uma ligação enquanto alguém falava demais era uma forma de intimação: mais contundente que pedidos educados para desocupar o número.

Todos os filhos foram vítimas da levantada de gancho dos pais, nossos censores domésticos. Silenciosamente, com mãos de pluma, seguravam o fone para ouvir o que estávamos aprontando. Os ruídos atrapalhavam a nossa identificação. Precisávamos de muita atenção ou a sorte de uma tosse ou de um pigarro.

Aquilo nos irritava profundamente: sentíamo-nos pressionados, fiscalizados, julgados. Óbvio que os dois negavam até a morte. Corríamos para fazer o flagrante e eles já se encontravam disfarçados com novas ocupações. Espumávamos de ódio da dissimulação, jamais confessaram os seus crimes de espionagem.

Hoje, estranhamente (a saudade é estranha mesmo), quando converso no telefone, eu torço para que os meus pais estejam ainda escutando no outro lado da linha, sabendo de mim, cuidando de mim, interessados em mim, preocupados comigo, daí não me vejo sozinho para decidir a minha vida. De arapongas, eles se transformaram em anjos da minha voz. Meu coração nunca estará ocupado para eles.

CARPINEJAR


18 DE MAIO DE 2019
PIANGERS

Não pode

Me ocorreu contar aqui sobre aquela vez em que os conselhos que dei para minha filha pequena se voltaram contra mim. Perceba: não sou desses pais que permite que as crianças desenhem na parede de casa. Sei que existem estes pais, moderninhos e criativos, que acham que é importante a criança se expressar. Também acho, mas não na parede do nosso apartamento. Permito que durmam sem tomar banho, por vezes; permito que não comam toda a comida que está no prato (meu trauma de infância); permito que comam frutas antes do almoço, arruinando seu apetite; mas não permito que desenhem na parede, nem no sofá, nem nos armários, nem na roupa, nem na mochila. "Não pode riscar!", eu sempre disse, desde que eram pequenas.

Pois bem, um dia fui chamado para palestrar em um evento ao lado de uma grande personalidade internacional, Steve Wozniak, o programador que ao lado de Steve Jobs fundou a Apple, a empresa que faz o iPhone e os lindos computadores Macintosh. Desde que comprei meu primeiro computador da Apple, em 2008, parcelado em 12 vezes na Americanas.com, sou fascinado pelo bom gosto da empresa. Estar em um evento com Steve Wozniak foi, portanto, uma honra.

Horas antes do evento, a organização me informou que, além da minha palestra, gostariam que eu ficasse no palco por mais alguns minutos, realizando uma entrevista com Wozniak e conduzindo as perguntas da plateia. Imaginem minha honra: além de palestrar antes do meu ídolo poderia conversar com ele por mais de uma hora em cima do palco. Sei que a memória nos prega peças, mas gosto de imaginar que ele admirou meu inglês fluido, riu de uma ou outra observação que fiz de improviso e gostaria de me reencontrar. Imagino que esteja agora em algum lugar da Califórnia pensando como foi agradável aquele dia ao lado daquele brasileiro barbudo.

Depois que saímos do palco ainda tivemos a chance de conversar nos bastidores e, ciente de que me arrependeria se não o fizesse, ofereci meu notebook da Apple para que ele autografasse. "No problem", disse meu amigo célebre. E escreveu: "Woz", com uma caneta vermelha. Imaginem minha emoção, meu computador agora tinha um autógrafo do criador de uma das mais valiosas empresas de tecnologia do mundo.

Cheguei em casa radiante, deixei o computador em cima da mesa da sala e fui para o banho. "Que grande dia", pensei, ainda ensaboando o cabelo. Enquanto colocava o pijama pensei que seria prudente colocar algum tipo de proteção no autógrafo, para que o tempo não apagasse esta valiosa recordação. Fui até o computador e lá estava minha filha pequena, lambendo o dedo indicador e esfregando-o contra a assinatura. "Não pode riscá", dizia ela, enquanto apagava o autógrafo. "Não pode riscá", ela dizia.

PIANGERS

18 DE MAIO DE 2019
CLAUDIA TAJES

"O Ataque dos Pintos e Pererecas"

Mulheres e homens de bem se respeitavam, as famílias eram felizes e sem problemas, não havia criança sem comida, sem colégio, abusada, trabalhando, dormindo na rua. Então, as perigosas bibas e as malvadas sapatonas resolveram dominar o planeta e obrigar todo mundo a virar gay desde bebê. Afinal, é de pequenino que se aprende a gostar de pepino. A reação vem na forma de muito rosa e azul e clipes cristãos. Conto de fadas invertido. Proibido para menores de 18 anos.

"Enterrem meu Doutorado na Curva do Rio"

Em uma sociedade distópica onde os governantes combatem a educação, os professores, os bons alunos, a pesquisa e a ciência, os cabeças (no sentido figurado) resolvem cortar 30% das verbas das universidades públicas, punição pela balbúrdia, baixo desempenho acadêmico e gente pelada. Números e resultados vêm de todos os lados para provar que a medida, mais que um equívoco, é um crime. Tudo em vão. 

Estudantes perdem suas bolsas de mestrado e doutorado, o desenvolvimento de remédios e soluções para o meio ambiente e a agricultura, por exemplo, é cortado. O roteiro deixa claro o poder da ignorância.


sábado, 18 de maio de 2019


18 DE MAIO DE 2019

PAULO GERMANO


O prazer de se irritar com bobagem


Essa coisa de surreal. O cara cai um tombo surreal, a noite passada foi surreal, o gosto do bolo é surreal, a próxima eleição vai ser surreal. Tem me irritado isso, embora eu saiba que o errado seja eu. Porque, enfim, a linguagem tem desses dinamismos, os vocábulos vão absorvendo novas acepções, então fica até meio arrogante eu aqui, no auge da minha pretensão, ditar o que deve e o que não deve ser dito. Tudo bem, podem dizer.

Só deixem eu me irritar.

Até porque, não sei vocês, mas eu gosto de me irritar com bobagens. Com coisas mais graves, aí não vale a pena - não dá para levar a vida tão a sério. Portanto, irritar-se com surreal é como eleger um inofensivo inimigo para depositar nele todas as fúrias e insultos que, de vez em quando, a gente pensa em distribuir por aí. Melhor xingar o surreal do que o meu chefe.

Liguei para o professor Cláudio Moreno, uma das maiores autoridades em gramática, para me ajudar a esculhambar o surreal. E surreal, segundo o Moreno, é uma redução de surrealista, bem como japa é redução de japonês e bisa é redução de bisavó. Sendo assim, parece-me mesmo descabido dizer que aquele bolo tem um gosto surreal, visto que o surrealismo busca no inconsciente, nos sonhos e nos delírios uma versão onírica da realidade. Certo, professor?

- Errado - disse o Moreno.

Ué.

- Não vou dizer que um cavalo correndo sozinho no meio da rua é uma cena surrealista, porque surrealista tem outro sentido, mas posso dizer que é uma cena surreal, já que surreal tornou-se sinônimo de absurdo ou espantoso.

Mas que homem estraga-prazer. Enfim, como eu seguia sedento por esculachar qualquer coisa, aproveitei a ligação para debater outra estupidez que me dá nos nervos: a moda do precisamos falar sobre. A imprensa adora. Jogue no Google e verá que precisamos falar sobre depressão, precisamos falar sobre o Coaf, precisamos falar sobre a Capitã Marvel, precisamos falar sobre assédio, precisamos falar sobre rap nerd, precisamos falar sobre estupro de homens, precisamos falar sobre marketing da mentira, precisamos falar sobre a arbitragem de Boca Juniors e Athletico-PR.

Com todo o respeito, eu não preciso falar sobre a porcaria da arbitragem de Boca Juniors e Athletico-PR. Prefiro falar sobre por que, todo dia, alguém diz que preciso falar sobre irrelevâncias como, ora bolas, rap nerd. Aliás, faço aqui uma admissão de culpa, eu errei, errei feio, jamais repetirei esse erro: escrevi, há três anos, uma coluna sob o título "Precisamos falar sobre Jardel".

- Foi um bom título.

Como assim, professor Moreno?

- Fez muito sucesso o filme Precisamos Falar sobre o Kevin, e as pessoas aproveitaram essa frase como forma de denunciar uma situação que vem sendo pouco discutida. Nos anos 50, a peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, teve o mesmo impacto: os jornais passaram a publicar "Esperando o atacante" quando um clube buscava algum jogador, ou "Esperando a Constituinte".

- O senhor, por favor, poderia dar licença para eu me irritar?

- Claro, só que os ódios linguísticos de alguns podem ser as paixões de outros.

Mas que coisa.

Tudo bem, então vamos ao confira. Eu odeio o confira. Aqui na Zero, quando a gente publica um vídeo, ou uma tabela, ou um gráfico, ou uma entrevista, com frequência se lê logo acima: confira. Mas como "confira"? Por que não usamos leia, veja, ouça, assista? Só posso conferir alguma coisa se já sei do que se trata, porque conferir é checar, bater, verificar, averiguar. Está errado, professor Moreno! Confira é um chavão vulgar, um atentado ao idioma que os jornais estimulam dia após dia!

- Não acho. Ah, meu Deus... - O recado é o seguinte: se você tem dúvida, leia a entrevista, assista ao vídeo, veja como é verdade. Verifique, confira.

Chega: agradeci ao professor e, educadamente, pedi para desligar. Aquela conversa vinha ficando muito surreal.

PAULO GERMANO