sábado, 29 de janeiro de 2022


29 DE JANEIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

O sorriso que o tempo nos deu

A última vez que almoçamos juntas eu ainda me deslumbrava com seu sorriso de garota e seus olhos faiscantes, dois holofotes que não perdiam nada do que acontecia ao redor - e nem eram azuis, e ela nem era garota, tinha mais de 60. Sobrava inteligência. Assistia a todas as peças em cartaz e dominava os assuntos da mídia tradicional e da mídia independente, pois não era mulher de se conformar com uma única versão dos fatos. Não saía de casa sem suas echarpes exóticas, trazidas de andanças pelo mundo. Era uma pessoa comum e ao mesmo tempo um acontecimento, e sendo o mundo generoso comigo, aquele não foi nosso terceiro nem oitavo almoço, pra lá do vigésimo. Amizade rodada.

Acho que nunca havíamos demorado tanto para nos reencontrar. Além de morarmos em cidades diferentes, teve a pandemia e a própria vida, que nos sobrecarrega de tarefas a ponto de subverter a percepção do tempo: mal diferenciamos o que aconteceu há três meses ou há três anos. Ela e eu acabamos nos acostumando com a troca de WhatsApp e não vimos o tempo passar, até que voltamos a sentar à mesma mesa, ela agora com mais de 70 e algumas perdas na bagagem.

Me explicou sobre o problema no joelho que a estava impedindo de correr, atividade matinal sagrada, costumava fazer oito quilômetros assim que acordava. Paciência, aderiu ao pilates. Percebi seu rosto tomado por rugas novas, mas os olhos mantinham-se faiscantes. Sua boca murchou, reparei, mas, que diabos, a minha também, mesmo sendo mais moça. Seu cabelo havia perdido o brilho e o volume, percebi assim que ela retirou a echarpe que agora usava enrolada na cabeça, não mais no pescoço. Quimio? 

Ela assentiu, mas a ascendência nordestina não permitiu que ele caísse todo, foi a explicação pouco científica que me deu, acompanhada de uma piscadinha. E ainda nem tínhamos falado sobre a morte de sua mãe, que foi um abalo mais duro do que ela previa. "Mas são 13h20min de uma quinta-feira e você está bem aqui na minha frente, não vejo motivo melhor para um vinho branco gelado. Garçom!"

É um processo lento e contínuo. O rosto desaba um pouco e ganha vincos. O corpo resiste graças a atividades físicas regulares, mas também vai se entregando. Alguma doença aparece, é curada, então vem outra, e certas dores excêntricas. A memória falha bastante, às vezes menos, ler ajuda. Mas graças ao bom humor e a uma vida bem aproveitada, as contingências previsíveis deixam de ser dramáticas. Envelhecer é um teste de sabedoria. A grande tragédia do envelhecimento é restar só. Ela e eu fizemos um brinde, sorrimos o sorriso que o tempo nos deu e confirmamos que, sem preservar os afetos, de nada presta viver tanto. Marcamos novo almoço para breve.

MARTHA MEDEIROS

29 DE JANEIRO DE 2022
CLAUDIA TAJES

De calções e calçolas

Ela era fã de um ex-jogador da dupla que, terminado o contrato, foi para o Palmeiras. Fique claro: era fã não só do talento futebolístico do atleta, também da forma, dos músculos, do estilo, do sujeito como um todo. Até salvava uma que outra foto dele para ficar olhando em momentos de tédio, assim como um dia recortou fotos do Peter Frampton e do Sean Penn para usar como marcador de livros. Ingenuidades de fã. Mais ou menos na mesma época, ela mesma foi transferida, a trabalho, para São Paulo. O marido não a acompanhou, funcionário estadual que era, e também havia o filho, que não queria sequer discutir a hipótese de uma troca de cidade aos 14 anos.

Instaurou-se o vai e vem de avião, por sorte antes das passagens custarem o que custam hoje. De qualquer jeito, o cartão de crédito era todo das companhias aéreas, bons tempos dos preços razoáveis em 12 vezes sem juros. Bem verdade que uns e outros detestavam a ideia de ver pessoas com menor poder aquisitivo nos aeroportos, incômodo que, por qualquer que seja o ângulo, não fazia o menor sentido. Seja como for, as pessoas de menor poder aquisitivo atualmente mal comem, que dirá viajar. Os beneficiados com isso? Deixa para outra coluna.

O casamento dos nossos protagonistas seguiu firme, até melhor sem a rotina, essa destruidora de ideais românticos. O tal jogador do início da história fazia sucesso no Palmeiras sem sequer desconfiar da existência da fã - que agora morava em um pequeno apartamento na Barra Funda, a poucas quadras do Allianz Parque. Um dia ela não resistiu a uma foto do jogador sem camisa no jornal, recortou e colou no espelho do quarto. O marido acharia até engraçado e, olhando pelo lado positivo, podia servir de estímulo para ele trabalhar os peitorais.

Esperando a visita da família para um fim de semana esticado, ela tratou de arrumar bem a casa, com flores para enfeitar e essência de shopping center, aquela que remete a compras caras que ela não fazia. Buscou a roupa na lavanderia e arrumou as peças nas pilhas do marido e do filho, todas no mesmo guarda-roupa do quarto. Eram quase 10 da noite de sexta quando os dois chegaram. Depois de jantar, foram dormir para aproveitar o feriadão que se anunciava em toda a sua magnitude.

Antes do café da manhã, o marido surgiu com um calção verde na mão.

Ele: De quem é isso?

Ela: Não é teu?

Ele: Eu sou colorado. Esse calção é do Palmeiras.

Ela: Que Palmeiras?

Ele: O time do teu jogador.

Ela: Eu não sei de calção do Palmeiras nenhum, deve ter vindo por engano da lavanderia.

Ele: Engano é achar que eu vou acreditar nisso.

O fim de semana fracassou. Muita DR depois, o marido se convenceu de que ela jamais tinha encontrado o tal jogador - infelizmente, advérbio de modo que não foi usado para não piorar ainda mais a situação. A única explicação, por mais mentirosa que pudesse parecer, era o calção ter vindo da lavanderia. Ninguém tinha entrado no apartamento, muito menos o tal jogador.

(Infelizmente.)

Na última vez que ela foi a Porto Alegre, encontrou no cesto da roupa suja uma calçola já com o elástico meio frouxo, largona e desbotada, que o filho jurou desconhecer e o marido quis teimar que era dela. Não era. Única explicação plausível: o calçolão devia ser de alguma vizinha e entrou pela janela, em um desses fins de tarde de temporal porto-alegrense.

Nos casamentos em que existe confiança, tudo fica mais fácil.

Felizmente.

Carlos Gerbase, Replicante, professor, roteirista e diretor de cinema, acaba de lançar seu sexto livro de ficção. No romance O Caderno dos Sonhos de Hugo Drummond, um jovem cineasta do interior do Rio Grande do Sul vem a Porto Alegre para um evento de produtores e acaba envolvido por fatos e personagens que mais parecem saídos de filmes. Não se sabe se Gerbase pretende levar o livro para a tela, mas que o leitor já imagina a história no cinema, imagina. Da Diadorim Editora, nas boas livrarias reais e virtuais.

CLAUDIA TAJES

29 DE JANEIRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

O advogado Tiago Pavinatto lançou, pela Edições 70, o livro Estética da Estupidez: a Arte da Guerra Contra o Senso Comum. O livro é muito interessante e serve para refletir o momento curioso em que nos encontramos. O autor mistura bom humor, ironia ácida, referências eruditas e lança catapultas sobre a Jerusalém de Brasília e seus Messias.

Comecei refletindo na epígrafe do livro: "Debater com um idiota é perder de maneiras distintas e combinadas. Perde-se tempo. Perde-se a paciência. E se perde o debate propriamente, porque ele só entenderá argumentos idiotas - e, nesse quesito, o imbatível é ele, não você" (Reinaldo Azevedo).

A primeira reação ao ler o pensamento é sorrir. Ela já contém uma vaidade: se você gostou, há uma chance de não se considerar um idiota. Quem achou bom, naturalmente, imagina-se portador de cidadania plena na ilha da sabedoria e da razão e olha para os limitados com certa xenofobia. O pensamento de Azevedo termina com frase que, diria meu pai, usa de "contundência". O termo comum para a conclusão, hoje, é "lacradora". Sim, o adversário é imbatível porque é... idiota. Há certo consolo retórico e psicológico na conclusão.

Despontam questionamentos válidos: a) como saberei, de fato, que não sou um imbecil? A característica básica da falta de inteligência é ser cego sobre suas próprias capacidades; b) se não posso debater com idiotas e não tenho certeza sobre minha pontuação no campo da genialidade, com mais certeza terei dúvidas sobre quem é sábio ao meu redor e, por consequência, digno de debate; c) se eu perco o debate com idiota porque ele é melhor no manejo do argumento ilógico, com um sábio eu perderei porque ele é hábil no uso da razão; logo, perderei sempre?

Já dei este conselho em palestra, citando minha avó: "Não toque tambor para maluco dançar". Li O Alienista de Machado algumas vezes e me dou o direito ao relativismo no campo da sanidade mental. Analisando algumas passagens da minha vida pretérita, eu teria bons motivos para ocupar ampla suíte na Casa Verde do dr. Bacamarte. Itaguaí poderia conter o universo todo.

Sim, fui louco eventual. Continuarei sendo um idiota? Claro, querida leitora e estimado leitor, já ficou claro aqui que temos idiotas insanos e idiotas perfeitamente equilibrados daquele tipo que, em época menos cuidadosa com palavras, chamaríamos de "pessoa normal". Como é patológico nos dias atuais identificar alguém como normal, digamos que a maioria das ações e pensamentos de alguns idiotas caracteriza um comportamento médio tido por aceitável pela sociedade.

Duas questões afloram: sou um idiota? Devo discutir com idiotas? Sendo a democracia inconciliável com a censura, estaríamos condenados (como pensou Umberto Eco) à fala onipresente do "idiota da aldeia"? A figura descrita por Eco tem base literária: anda, maltrapilho, incomodando pessoas com frases e gestos, todavia todos o tomam por inofensivo. Aliás, o "idiota da aldeia" tem profunda função social: serve para classificar todo o resto da comunidade como inteligente. É fundamental existir, no grupo, o tipo limitado: a sombra da escassez cerebral dele ilumina a inteligência dos outros.

Nos tempos que despertam desejo daquele meteoro devastador como redenção possível, existe a categoria que Pierre Bourdieu chamou de "meio-cientistas", chave conceitual analisada por Pavinatto na página 175. Fazem eco a algum tema tratado por pesquisadores, misturam a outros, somam certo senso comum com linguagem elaborada e, le voilà, surge um post devastador contra vacinas. O meio-cientista reúne o pior de dois mundos e causa danos aos idiotas da aldeia e aos sábios.

Que futuro terá nossa sociedade se conseguirmos classificar com quem se pode e com quem não se pode debater? Teremos uma Berlim reconstruída com um muro ao meio? Uma nova Guerra Fria?

Eu tenho alguns princípios para tentar conversa séria. O primeiro é concordância sobre ética e lei. Não discuto com racistas ou defensores da violência contra a mulher, por exemplo. É uma derivação do paradoxo de Karl Popper: não tolerar intolerantes. "A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância", segundo o austro-britânico.

Há mais condições propícias: a pessoa ouve e fala. A condição de um diálogo é a alternância entre ouvir e falar. Mais uma: existe uma vontade de análise sem fígado, adjetivos, fulanização ou violência verbal. Por fim, os dois lados reconhecem que não são donos absolutos da verdade e o outro tem direito à existência, mesmo que com argumentos contrários.

Na minha concepção, nunca saberemos se somos idiotas ou inteligentes. Porém, o debate com alguns princípios prévios aperfeiçoa meu raciocínio oferecendo o contraditório. Também aumenta minha visão e, eventualmente, muda minha ideia ou a do meu debatedor. Não existem as condições dadas? Melhor ficar de um lado de Berlim que lhe agrade lamentando o limite das pessoas do outro lado do muro. Enquanto isso, leia o livro de Pavinatto e seja feliz. No ano de 2022, os muros serão erguidos a alturas inimagináveis. Esperança média de bons debates...

LEANDRO KARNAL

PRIORIDADES

Na semana que passou, a nova variante Ômicron do SARS-CoV-2 se confirmou como a esmagadoramente dominante no mundo. Com uma taxa de transmissão altíssima e, alguns virologistas sugerem, inédita. Esses dados vêm dos países cujos órgãos de saúde sequenciam e testam em larga escala, e cuja prioridade é a proteção de seus cidadãos. Confirmando previsões dos imunologistas desde 2020: enquanto todos não estiverem vacinados, variantes surgirão.

As mutações dessa variante se concentram na porção que liga no hospedeiro. As respostas imunes que nos protegem induzem anticorpos que bloqueiam essa interação. Elas são altas e bem uniformes nos vacinados, mas variam muito nos não vacinados - daí a importância de se vacinar. Lembrando que mesmo uma resposta vacinal forte não protege da infecção, mas da doença. E, quando protege, protege por anos.

Isso porque, além de anticorpos, fazemos células T, que não deixam o vírus que infecta se multiplicar no corpo. E assim o vacinado, mesmo que se infecte, não transmite, ou transmite muito menos. Enquanto houver surtos, nos infectaremos; vacinar é para controlar a lotação dos hospitais e manter condições de atender os que realmente precisam. Que são, hoje, majoritariamente, os não vacinados.

Com as mutações, precisaremos atualizar as vacinas; a Pfizer já começou o primeiro estudo clínico para uma vacina atualizada. Essa, sim, é experimental - até ser aprovada. Enquanto isso, dois estudos recentes trouxeram boas notícias. A terceira dose cria anticorpos que neutralizam a Ômicron. E as respostas de células T induzidas pelas vacinas reconhecem todas as variantes.

A Ômicron não é, como dizem alguns, mais branda. As mortes dos não vacinados mostram isso. Para os que sugerem que a Ômicron é o fim da pandemia e o início de uma endemia, o virologista Aris Katzourakis, da Oxford, lembra que não existe nenhuma lei da natureza que diga que, por ser endêmica, uma doença se torna menos letal. Malária e tuberculose são endêmicas e matam milhões a cada ano.

Esse é um argumento preguiçoso, que ignora o papel do comportamento individual e da ação do poder público em controlar as doenças. No Brasil, as ações do ministro da Saúde vão além da preguiça: há um engajamento sério em perpetuar fraudes. Mesmo sendo compelido por lei e recomendações técnicas a executar a vacinação infantil e não distribuir hidroxicloroquina pelo SUS, ele primeiro convoca uma audiência pública esdrúxula para criar uma controvérsia que não existe. A seguir, emite uma nota que estimula o uso do "kit covid" - que um estudo encomendado pelo próprio ministério mostrou ser ineficaz. Esquizofrenicamente, fala que precisa acelerar a vacinação; alega que a nota foi de um subalterno, não dele. O comportamento do ministro é desenhado para confundir, mas na verdade é esclarecedor. Estejam onde estiverem suas prioridades, sabemos onde não estão: em liderar um ministério focado na saúde e no bem-estar da população.

CRISTINA BONORINO

29 DE JANEIRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

O CORRUPTO-MOR

Desde que o Estado regulou a propriedade privada e hierarquias de poder na sociedade, há corrupção; onde houver uma porteira, haverá quem cobre umas patacas para liberar passagem. Os gregos, todavia, cedo compreenderam que a corrupção maior vem da ambição desmedida - a hybris -, a cupidez de poder, honras, bens e prazeres que cega a muitos homens e os leva a erros trágicos para o transgressor, o hybristés, e para a sociedade. Há, pois, uma hierarquia também entre corruptos, e o corrupto-mor o é no topo de cadeia nefasta de delitos. Que tal enquadrarmos nosso corrupto-mor, homem público notório, enquanto é tempo, por crimes já praticados e riscos evidentes?

A hybris é falha moral típica de sociedades competitivas, como foi a Grécia antiga, em sua aurora aristocrática e ainda mais na era da pólis e da democracia. O poder está aberto à disputa, ambiente em que podem ocorrer golpes, fraudes e outros frutos podres de ambições espúrias. Tudo começa com certo estado de opulência (ólbos) em que o sujeito se julga superior e, em estado de saciedade (kóros), ambiciona com megalomania (méga phroneín); isto ocorre com um ser potente, líder em triunfo, mas também com um ser giomoro, medíocre torpemente adulado. 

Nessa condição perturbada, o sujeito em estado de hybris julga-se heroico ou divino, e invade domínios, ferindo normas de direito e reciprocidade, ou também, como acreditavam os antigos, incomodando deidades. É a síndrome trágica grega. Com a desmedida, desencadeiam-se punições divinas (némesis) e sociais (julgamentos). O pior caso é a ambição de poder, como proclama Sófocles no v. 873 do Édipo Tirano: hybris phyteuei tyrrhanon - a hybris engendra o tirano. A democracia deve precaver-se contra a hybris como nossos corpos diante do assassino. O corrupto-mor, o perigo real, é o hybristés - cego por ambição, pronto para qualquer delito.

Não há corrupção maior do que subverter a República e manipular a democracia para saciar ambições pessoais. Se isso é feito com a utilização pervertida dos meios judiciários, instituídos como garantia coletiva e fundados em exigências de imparcialidade, algo ainda mais grave ocorre; é asquerosa a partidarização do Judiciário. E quando esta cabala ocorre em cenário de tráfico de influências envolvendo poderes políticos e financeiros estrangeiros, então o que já era gravíssimo torna-se hediondo: traição à pátria. A investigação severa desses delitos pode levar ao indiciamento também de outras autoridades judiciárias acumpliciadas, aqueles três e os que permitiram, por arrogância política, incúria e ódio partidário, que um cidadão brasileiro fosse condenado sem provas por crime indeterminado, como consta na infame sentença, um panfleto medíocre e ilegítimo.

Ardilosamente, o corrupto-mor ocupa a vitrine e defende-se ambicionando ainda mais, com a bravata de dizer-se ser ele, o corrupto-mor, o que combate a corrupção, quando é o pivô da maior trama corrupta da história do Brasil, e precisa ser indiciado, julgado e condenado por seus gravíssimos delitos, o corrupto-mor obsceno e sua querquedulea hybris.

FRANCISCO MARSHALL

29 DE JANEIRO DE 2022
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

NADINE CLAUSELL- médica,

63 anos Cardiologista, professora da UFRGS, é a atual diretora-presidente do Hospital de Clínicas, o maior de Porto Alegre

Líder há cinco anos de um hospital que mais parece uma cidade, com quase 7 mil colaboradores e cerca de 18 mil pessoas circulando em suas dependências diariamente, a cardiologista Nadine Clausell não para. A médica concilia a rotina de diretora-presidente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) com as aulas que leciona para os estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e suas próprias pesquisas, na área de insuficiência cardíaca. Mesmo diante de uma rotina exaustiva, somada a cortes orçamentários na área de pesquisa, diz que não se arrepende de ter voltado do Canadá para trilhar sua carreira no Brasil - e segue acreditando em um futuro mais pujante para a ciência brasileira. Nesta entrevista, detalha as dificuldades de fazer pesquisa hoje, quadro agravado com a pandemia, e comenta sobre o desgaste causado pelo negacionismo.

COMO TÊM SIDO OS ÚLTIMOS DOIS ANOS? A ROTINA ADMINISTRATIVA DO HOSPITAL MUDOU MUITO?

Esses dois anos foram realmente uma surpresa, num certo sentido, porque ninguém havia passado por algo assim. Tivemos que aprender a lidar com a pandemia e os números de pacientes crescentes no Clínicas, que se tornou um hospital de referência aqui no Sul, ao mesmo tempo em que fazíamos uma grande reorganização, para que o hospital redirecionasse sua energia para atender essa demanda nova. Tivemos um desafio adicional no início da pandemia, que foi o de montar mais de cem novos leitos de CTI na nova área do hospital em questão de 40 dias, entre março e abril de 2020. Fazer com que tudo continuasse a contento e nos prepararmos para aquilo que até o momento era incerto e não sabido, em termos de intensidade, tempo e complexidade. Foi um aprendizado muito grande para as equipes e, o lado positivo, fez com que houvesse um sentimento de união enorme, de solidariedade, com grupos se organizando para ajudar os colegas. Um crescimento institucional, que veio junto com o estresse, o sofrimento, o medo e as perdas por que nós todos passamos.

LIDAR COM A SAÚDE MENTAL DAS EQUIPES NESSE CONTEXTO É DESAFIADOR?

Muito. No início, havia muito receio do desconhecido. Rapidamente, com a nossa área de psicologia e de gerenciamento de risco, montaram-se grupos que foram visitando as áreas onde havia os primeiros funcionários e pacientes internados, para lidar com aquela situação de insegurança. Isso desenvolveu um senso de pertencer a uma instituição que se mobilizou muito para cuidar de quem estava cuidando dos pacientes, o que acho que é um ganho, um legado. Essas pessoas foram reconhecidas em diversas instâncias pelos seus próprios colegas.

PESSOALMENTE, COMO TEM SIDO A SUA ROTINA NO PERÍODO?

Eu enxergo minha função de diretora-presidente do hospital como uma missão, um dever, e estou junto com todos o tempo inteiro, desde o início da pandemia, participando, cuidando das coisas da gestão, trabalhando com os pacientes, com os residentes. Os alunos foram afastados por algum tempo, mas, mais recentemente, voltaram, e eu reassumi as atividades de graduação. Para mim, o cansaço fica abstraído dentro daquilo que considero mesmo uma missão dentro da minha trajetória. Isso fica em segundo plano. Meu objetivo é dar o máximo pelo hospital, ajudar meus colegas e fazer com que todos se sintam amparados, com energia para superar tudo isso. É nisso que eu venho pensando nestes últimos quase dois anos. Não quero olhar para trás e me arrepender de não ter feito alguma coisa, então eu prefiro seguir com o pé no acelerador o tempo inteiro, e é isso que me move.

DE QUE FORMA TEM SIDO POSSÍVEL MANTER O ÂNIMO DAS MILHARES DE PESSOAS QUE TRABALHAM NO CLÍNICAS, DIANTE DE UMA PANDEMIA QUE NÃO TEM DATA PARA TERMINAR?

Existe inegavelmente um burnout muito grande entre os profissionais de saúde, não só no Hospital de Clínicas. Houve esforços muito grandes no ano passado de tentar de alguma maneira reorganizar as equipes para que alguns pudessem tirar férias. Fizemos organizações internas e rodízios para as pessoas se exporem um pouco menos. Nos esforçamos para estarmos muito disponíveis para a escuta. Na direção, dizemos que estamos em uma guerra: às vezes, tem pessoas que ficam feridas e a gente tem que trazer outras pessoas, que estão um pouco mais em segundo plano, para a frente. Acho que a ideia de que tentamos acolher o cansaço de todos é uma maneira de dar um pouco de energia, dizer "descansa um pouquinho, vamos respirar fundo". O "descansa um pouquinho" pode ser um ou dois dias e tem que voltar de novo, mas o fato de estar atento para isso talvez seja uma maneira de mostrar solidariedade, e aí as pessoas relevam e vão adiante.

COMO VOCÊS TÊM LIDADO COM O NEGACIONISMO? AFETA MUITO O TRABALHO DENTRO DO HOSPITAL?

Ficamos tristes e preocupados, porque o negacionismo, do ponto de vista da vacina, ultrapassa o nível individual de decisão de vacinar-se ou não, e nós, profissionais da saúde, lidamos com isso o dia inteiro. Causa um certo desânimo ver que há pessoas que não conseguem enxergar o seu papel na sociedade. A vacina é uma questão de solidariedade, de entender que a minha decisão pode afetar o outro e, ao afetar o outro, eu posso sobrecarregar um sistema de saúde que vem muito assoberbado. Mas acho que não adianta o embate. Os dados estão aí, da ciência, da técnica. Aqui no Brasil, a tradição da vacina é muito forte, ainda bem. Mas o movimento antivax existe no mundo inteiro. O curioso é que talvez ele exista na medida em que as outras vacinas se tornaram tão parte do dia a dia de todos, desde criança, se vacinando para tudo, que muitas doenças foram praticamente erradicadas, então há gerações que nunca viveram o sarampo, os surtos de rubéola, a varíola. Aí as taxas de vacinação podem cair, e isso já está demonstrado em outras partes do mundo, essas doenças voltam e aí volta a taxa de vacinação a subir. Só que é uma discussão em que eu evito entrar, porque não é produtivo. A gente tem que seguir trabalhando sério e mostrando a importância da vacinação. Eu preciso botar o meu tempo para fazer as coisas funcionarem para o bem. Entrar em discussões ideológicas a respeito de vacina, de medicação, acho que não é produtivo. Os dados estão aí, eu e todos os meus colegas da área científica sempre repetimos os mesmos dados e a imprensa tem sido muito parceira em reproduzir aquilo que está bem embasado na ciência, e acho que é isso que vai nos fazer vencer essa pandemia.

COM TODO ESSE AUMENTO NO DEBATE PÚBLICO SOBRE CIÊNCIA, HÁ UM INTERESSE MAIOR DAS PESSOAS EM FAZER PESQUISA?

Não sei se há uma mudança nesse nível. Na área da saúde, das universidades e dos hospitais não há muita dúvida sobre onde reside a melhor evidência e o que tem que ser feito em termos de saúde pública durante uma pandemia. Isso é feito com tranquilidade clínica, e aqui somos mais um hospital seguindo essa cartilha, então quem está se formando na área da Medicina ou na área da Enfermagem já tem essa noção de para que lado é o norte da verdade científica. Isso não mudou agora. Não aumentou a procura por residência, por exemplo, em um hospital como o Clínicas. Os alunos viveram muito tudo isso que está acontecendo e eles são os primeiros defensores de vacina, das evidências, do distanciamento, da máscara, porque viveram na pele o afastamento imposto a eles durante esse período. Não mudou para eles o interesse em buscar uma carreira pautada pela evidência científica. Essa é a trincheira certa de lutar nessa guerra e eles estão do lado certo, pelo simples fato de que estão em uma escola de Medicina, de Enfermagem, de Farmácia, da área técnica, bem formados em boas universidades.

A SENHORA FOI UM EXEMPLO DE PESSOA QUE SAIU DO BRASIL PARA BUSCAR UMA FORMAÇÃO E RETORNOU. POR QUE A SENHORA VOLTOU?

Essa é uma dúvida que eu não me permito mais ter, do porquê de eu ter voltado. Fiquei cinco anos fora, no Canadá, fiz minha formação de pesquisa em insuficiência cardíaca, transplante, meu PhD, tudo em Toronto. Minha volta se baseou em achar que eu tinha muito mais a contribuir aqui, em tentar trazer o que aprendi lá fora e ajudar a melhorar o meu meio, como forma de retribuição, porque eu fui com uma bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, entidade vinculada ao Ministério da Educação), em um primeiro momento, para fazer meu doutorado. Sempre achei que deveria voltar para implementar coisas novas e melhores aqui. Se eu olhar para trás, não me arrependo. Claro que é um caminho muito difícil. Talvez eu tenha implantado muito pouco do que aprendi lá fora até hoje, e já faz mais de 20 anos que voltei. Mas alguma coisinha eu acho que ajudei.

COMO EVITAR A FAMOSA FUGA DE CÉREBROS DO BRASIL?

É uma missão difícil. É difícil convencer um jovem da área científica de que vale a pena apostar no Brasil em um momento de redução muito grande de financiamento de pesquisa, de bolsas de estudo, de fomentos para a inovação, de aquisição de novos equipamentos e de bolsas de doutorado e de mestrado, que é o que alimenta a ciência e é o que esses cérebros precisam desenvolver. O Brasil está passando por um período de perspectivas muito sombrias na área científica, e eu entendo que as pessoas queiram buscar em outros lugares do mundo a chance de se desenvolverem melhor, serem mais realizados profissional e socialmente. Eu gostaria de que ficassem para nos ajudar, porque, assim como eu, outros voltaram e continuam aqui tentando fazer mudanças. Tem gente que continua, mas tem gente que está terminando sua faculdade e não quer dar esse tempo de esperar. Porque as coisas são cíclicas e podem melhorar. Temos que olhar para frente, esperar passar um pouco essa pandemia e ter um pouco de esperança. Eu entendo que as pessoas sejam céticas com relação a isso, porque a realidade tem sido muito dura.

O MOMENTO É DE CORTES FINANCEIROS NA ÁREA CIENTÍFICA, MAS, AO LONGO DO TEMPO, O BRASIL FOI SE TORNANDO UM PAÍS RECONHECIDO CIENTIFICAMENTE. ESTÁ MELHOR OU PIOR DE FAZER PESQUISA HOJE NO BRASIL, SE COMPARADO COM QUANDO A SENHORA INICIOU?

Agora está pior. Houve cortes importantes na Capes, no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Não se consegue avançar na ciência sem investimento em educação. Este período é muito difícil. Hoje, comparado com 20 anos atrás, está muito pior para avançar em projetos novos, buscar publicações internacionais. O Brasil tem um papel fundamental na América do Sul nas pesquisas na área de saúde e já teve um destaque maior. Hoje, o que tem são esforços individuais de grupos de excelência que não desistem do país e inclusive buscam fomento internacional e parcerias público-privadas para seguir com as pesquisas. A gente tem que ter energia para seguir apostando, para que os jovens enxerguem uma perspectiva. Sem isso, eles aplicam para uma bolsa no Exterior. Eu fiz isso também, mas decidi rapidamente que meu papel era voltar e, digo de novo, não me arrependo. Acho que muita gente pensa como eu, porque a maioria fica, aposta, segue investindo. São fases cíclicas. Espero enxergar um momento no Brasil de novamente ter uma ciência mais pujante. Temos que mostrar a importância disso, não só para a pesquisa, mas para o país como um todo.

COM OS CORTES, HOUVE REDUÇÃO DE PESQUISAS DESENVOLVIDAS NO CLÍNICAS OU A DIMINUIÇÃO FOI COMPENSADA COM ESTUDOS SOBRE A PANDEMIA?

Houve redução, sim, de número de projetos novos com fomentos públicos, especialmente. Houve redução de número de bolsistas, o pessoal um pouco cético de embarcar num mestrado ou doutorado, com receio de as coisas não andarem a contento. É um período de ceticismo em relação a isso. Temos no Clínicas uma área de pesquisa muito forte. Enquanto os projetos de covid-19 cresceram, e acho que isso é importante e foi uma oportunidade de desenvolver uma área significativa, como a de vacinas, outras áreas foram ficando mais acanhadas. O balanço geral é de uma redução nas atividades de pesquisa. Mas acredito que isso é transitório. Continuo mantendo um certo otimismo, de que vamos encontrar saídas e voltar a ter um papel mais importante na área da ciência.

A SENHORA FOI RECONDUZIDA AO CARGO DE DIRETORA-PRESIDENTE DO CLÍNICAS EM JULHO DE 2020. NESSE TEMPO, DEIXOU ALGUM PROJETO PARADO POR CONTA DA SOBRECARGA LIGADA À PANDEMIA?

Alguns alunos de mestrado e doutorado tiveram dificuldade de continuar algumas coletas de dados e atrasos, porque todo mundo ficou assoberbado, o que não tem necessariamente a ver com o fomento. Acho que direcionamos muito a atenção para a pandemia, o que também fez com que houvesse certo sofrimento e retração nas defesas de mestrado e doutorado. Comigo não foi diferente. Eu também me direcionei bastante para isso. Eu estava recém assumindo a direção no início da pandemia e isso impactou. Minha energia ficou muito voltada para o aspecto covid-19. Eu esperava poder retomar isso agora, desde o final do ano. Mas ainda não conseguimos nos organizar suficientemente para retomar o que ficou para trás, do ponto de vista de projetos e artigos para escrever. É uma certa frustração que fica, mas eu quero crer que a gente vai acabar retomando em algum momento. Espero que a gente consiga, neste ano ainda, dar uma respirada e fazer outras coisas que não covid-19.

QUE TIPOS DE PROJETOS?

Eu trabalho especificamente na área de insuficiência cardíaca e transplante de coração. A pandemia impactou nos nossos projetos de coleta de dados, levantamento de perfil de risco dos pacientes com insuficiência cardíaca, o que poderíamos ter de queixas de pacientes que tinham complicações, pré-transplante com hipertensão pulmonar, então tínhamos todo um projeto de avaliar esses pacientes, fazer intervenções com alguns tipos de cateterismo. Isso tudo foi muito impactado. São exames que demoram para ser feitos, a gente precisou desativar algumas áreas do hospital. Assim como ocorreu comigo, com outros também precisaram abrir espaço para aquilo que a covid-19 nos demandou. Nossa área de projetos de pesquisa, do meu grupo, especificamente, ficou impactada. Já a nossa área de atuação especificamente em transplante se reduziu muito, se tornou praticamente a metade do que vínhamos fazendo antes. Isso desmotiva o grupo. Foi bastante frustrante tudo o que a covid-19 impactou nas nossas atividades que eram o nosso dia a dia no hospital.

COMO SE CONCILIA A FUNÇÃO HOSPITALAR DE ATENDER PACIENTES COM COVID-19 E A FUNÇÃO DE HOSPITAL-ESCOLA QUE O CLÍNICAS ACUMULA?

Especialmente na Medicina, que tem alunos no hospital desde o quarto semestre, os estudantes foram bastante impactados. Passamos mais de um ano com os alunos afastados do hospital, com aulas online e trabalhando com modelos de simulação. Essa é uma perda importante na formação, que eles não vão recuperar nunca mais. Infelizmente, vai ficar uma lacuna na formação de uma geração, pelo menos na área médica. A residência médica também foi bastante impactada, porque reduzimos muito as atividades ambulatoriais e as cirurgias. Teve residente que passou quase dois anos de uma residência que tem no total dois anos envolvido com covid-19 e teve um contato com sua área de interesse primária muito restrito. Na área cirúrgica, nem se fala. O residente da cirurgia precisa operar, e o nosso bloco cirúrgico foi seriamente impactado. Isso também não se retoma. Por outro lado, trabalhou-se bem mais com modelos de simulação, que é algo bastante contemporâneo e muito utilizado em várias outras universidades mundo afora, e com a área de teleatendimento.

O QUE FICA DE REFLEXÃO PARA O FUTURO, PENSANDO NO QUE HOUVE NOS DOIS ÚLTIMOS ANOS?

À parte todo o cansaço que estamos sentindo, não podemos perder de vista que estamos no meio de uma batalha, que ainda é preciso trabalhar muito, mas quero acreditar que vamos sair com aprendizados de tudo isso. Que vamos nos recuperar e voltar a ter um investimento forte em educação, saúde, ciência e o Brasil vai voltar a ser um país que vai poder encantar com essas coisas e fazer as pessoas quererem ficar aqui para seguirem ajudando no desenvolvimento. Essa fase vai passar, a pandemia vai passar. Nós temos que seguir firmes nas nossas convicções e seguir trabalhando seriamente.

ISABELLA SANDER


29 DE JANEIRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

A ARTE DE ENVELHECER

Achei que estava bem na foto. Magro, olhar vivo, rindo com os amigos na praia. Quase não havia cabelos brancos entre os poucos que sobreviviam. Comparada ao homem de hoje, era a fotografia de um jovem.

Tinha 50 anos naquela época, entretanto, idade em que me considerava bem distante da juventude. Se me for dado o privilégio de chegar aos 90 em pleno domínio da razão, é possível que uma imagem de agora me cause impressão semelhante.

O envelhecimento é sombra que nos acompanha desde a concepção: o feto de seis meses é muito mais velho do que o embrião de cinco dias.

Lidar com a inexorabilidade desse processo exige uma habilidade na qual somos inigualáveis: a adaptação. Não há animal capaz de criar soluções diante da adversidade como nós, de sobreviver em nichos ecológicos que vão do calor tropical às geleiras do Ártico.

Da mesma forma que ensaiamos os primeiros passos por imitação, temos que aprender a ser adolescentes, adultos e a ficar cada vez mais velhos.

A adolescência é um fenômeno moderno. Nossos ancestrais passavam da infância à vida adulta sem estágios intermediários. Nas comunidades agrárias, o menino de sete anos trabalhava na roça e as meninas cuidavam dos afazeres domésticos antes de chegar a essa idade.

A figura do adolescente que mora com os pais até os 30 anos, sem abrir mão do direito de reclamar da comida à mesa e da camisa mal passada, surgiu nas sociedades industrializadas depois da Segunda Guerra Mundial. Bem mais cedo, nossos avós tinham filhos para criar.

A exaltação da juventude como o período áureo da existência humana é um mito das sociedades ocidentais. Confinar aos jovens a publicidade dos bens de consumo e louvar a estética, os costumes e os padrões de comportamento característicos dessa faixa etária têm o efeito perverso de insinuar que o declínio começa assim que essa fase se aproxima do fim.

A ideia de envelhecer aflige mulheres e homens modernos, muito mais do que afligia nossos antepassados. Sócrates tomou cicuta aos 70 anos, Cícero foi assassinado aos 63, Matusalém, sabe-se lá quantos anos teve, mas seus contemporâneos gregos, romanos ou judeus viviam em média 30 anos. No início do século 20, a expectativa de vida ao nascer nos países da Europa mais desenvolvida não passava dos 40 anos.

A mortalidade infantil era altíssima, epidemias de peste negra, varíola, malária, febre amarela, gripe e tuberculose dizimavam populações inteiras. Nossos ancestrais viveram num mundo devastado por guerras, enfermidades infecciosas, escravidão, dores sem analgesia e a onipresença da mais temível das criaturas. Que sentido haveria em pensar na velhice, quando a probabilidade de morrer jovem era tão alta? Seria como hoje preocupar-nos com a vida aos cem anos de idade, que pouquíssimos conhecerão.

Os que estão vivos agora têm boa chance de passar dos 80. Se assim for, é preciso sabedoria para aceitar que nossos atributos se modificam com o passar dos anos. Que nenhuma cirurgia devolverá, aos 60, o rosto que tínhamos aos 18, mas que envelhecer não é sinônimo de decadência física para aqueles que se movimentam, não fumam, comem com parcimônia, exercitam a cognição e continuam atentos às transformações do mundo.

Considerar a vida um vale de lágrimas no qual submergimos de corpo e alma ao deixar a juventude é torná-la experiência medíocre. Julgar aos 80 anos que os melhores foram aqueles dos 15 aos 25 é não levar em conta que a memória é editora autoritária, capaz de suprimir por conta própria as experiências traumáticas e relegar ao esquecimento inseguranças, medos, desilusões afetivas, riscos desnecessários e as burradas que fizemos nessa época.

Nada mais ofensivo para o velho do que dizer que ele tem "cabeça de jovem". É considerá-lo mais inadequado do que o rapaz de 20 anos que se comporta como criança de 10.

Ainda que maldigamos o envelhecimento, é ele que nos traz a aceitação das ambiguidades, das diferenças, do contraditório e abre espaço para uma diversidade de experiências com as quais nem sonhávamos anteriormente.

DRAUZIO VARELLA

DE CORPO INTEIRO NO MOMENTO

À zero hora do dia 22 de janeiro de 2022, adentrou Parinirvana o monge vietnamita Thich Nhat Hanh, aos 95 anos de idade. Era chamado por seus discípulos e amigos de Thay - "professor".

Houve uma guerra entre Estados Unidos e Vietnã, foi quando ele se destacou por não matar e não odiar, mas cuidar e resgatar seres humanos dos horrores das guerras.

Há histórias tristes e dramáticas de ambos os lados. Uma delas, a de um soldado norte-americano que caminhava com seu companheiro pelos campos de arroz quando ouviram o choro de um bebê. Seu companheiro imediatamente pegou a criancinha no colo. Ela estava envolta em um cueiro simples, de algodão grosso. Ao abrir o pano para verificar o que incomodava o bebê, uma bomba explodiu: seu amigo e o bebê ficaram em pedaços.

Desesperado, o soldado preparou uma vingança. Quando os aviões jogaram mantimentos para os norte-americanos em combate, ele pegou vários sanduiches e colocou pólvora dentro. Deixou o pacote na praça de um vilarejo e ficou atrás de um arbusto assistindo às crianças comerem os sanduiches e as viu se retorcendo de dor até a morte.

Essa imagem nunca o abandonou. Certa ocasião, ele foi ouvir o famoso monge Thich Naht Hanh numa palestra sobre a consciência plena ao respirar e caminhar para encontrar a paz. Ao final, dirigiu-se ao mestre, relatou o acontecido e perguntou o que ele deveria fazer para encontrar a paz.

Thay teria dito que é impossível transformar o que foi feito, mas que ele poderia adotar crianças vietnamitas e lhes dar o melhor - seria a maneira de fazer o bem e se libertar. Parece que esse soldado seguiu suas instruções e embora não houvesse apagado o passado pode, no presente, beneficiar inúmeras crianças.

Os ensinamentos de Thay eram de amor e compaixão. De plena atenção e respeito a vida em sua pluralidade. Aos 93 anos, falou a seus discípulos: "Quando eu morrer, não precisam fazer um grande monumento. Mas, se fizerem, coloquem uma placa dizendo ?não estou aqui dentro? e do outro lado mais uma ?não estou aqui fora?. Onde vocês estiverem respirando conscientemente e caminhando conscientemente, aí eu estarei".

Falava lentamente e estava sempre presente na ação do momento.

Eu o conheci no Zen Center de Los Angeles, quando era noviça, em 1980. Thay fora visitar meu mestre de ordenação Maezumi Roshi. Coube a mim prepara os aposentos para nosso hóspede e fui convidá-lo a almoçar com nosso professor:

- Maezumi Roshi está o convidando para conversarem sobre sua participação durante o almoço em sua casa.

- Pois agradeço. Diga a Maezumi Roshi que na hora do almoço apenas almoço. Podemos conversar antes ou depois da refeição, nunca durante.

Isso foi há 40 anos, e nunca esqueci. Pude viver para confirmar que esse professor extraordinário, que deixou muitos livros de ensinamentos budistas baseado nos textos sagrados antigos e escritos com beleza e poesia, sempre foi coerente com os princípios básicos do Zen de estar inteiro na ação do momento. Plena atenção ao inspirar e ao expirar eram a chave mestra de seus ensinamentos.

Para receber pessoas do mundo todo, criou um espaço de prática na França, chamado Plum Village, e deixou centenas de discípulos, mosteiros e centros de prática em quase todos os continentes. Escreveu textos belíssimos e poéticos e há muitos dos seus livros em português.

Este sábado é o sétimo dia do seu parinirvana, a grande paz final. No YouTube, podemos acompanhar as celebrações fúnebres no Vietnã, em Plum Village e em vários templos.

Que possamos todos despertar e nos tornamos a grande sanga de Buda, pois, como Thay ensinou, não haverá um novo Buda, mas a sanga unida, em amor e compaixão é Buda.

O puro corpo dos ensinamentos não aparece nem desaparece - estará sempre entre nós.

Mãos em prece

MONJA COEN 


29 DE JANEIRO DE 2022
PANDEMIA

DO SPRAY À PÍLULA

CIENTISTAS TRABALHAM NA SEGUNDA GERAÇÃO DE VACINA CONTRA COVID

Em formato de pílulas, sprays nasais ou à prova de mutações: a segunda geração de vacinas contra a covid-19 está a caminho. O surgimento de variantes altamente transmissíveis, como a Ômicron, e a perspectiva de que o mundo terá de conviver com o coronavírus impulsionam pesquisas nessa área. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que há 140 imunizantes em fase de estudo clínico - quando a vacina é testada em humanos - e 194 em estágio pré-clínico, com testes em animais. .

Imunizantes hoje à disposição vêm cumprindo muito bem sua função principal: prevenir o adoecimento e a morte. O desenrolar da pandemia já deixou claro que as vacinas podem ser aprimoradas para reduzir infecções e transmissão. Hoje, especialmente com a Ômicron, vacinados se infectam e transmitem, ainda que em escala menor do que não imunizados. O avanço da variante fez a Coalizão Internacional de Autoridades Reguladoras de Medicamentos convocar uma reunião para debater "estratégias de longo prazo" sobre tipos de vacinas necessárias para gerenciar a covid-19.

- Uma das razões pela qual a Ômicron é tão transmissível é que muita gente já vacinada tem o vírus (alojado) no nariz, mas é assintomático - diz o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Kalil.

O cientista quer armar o organismo contra o Sars-Cov-2 antes que ele invada e se multiplique pelo corpo. Por isso, desenvolveu uma vacina de spray nasal - poucas com este método estão em teste no mundo.

- O gol final é ter uma vacina de imunidade esterilizante, aquela que gera tantos anticorpos na porta de entrada de forma que o vírus praticamente não infecta. Mas isso é difícil de alcançar - diz o virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale e membro do comitê de especialistas da Rede Vírus, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

De toda forma, tecnologias como a do spray nasal podem, se não barrar totalmente a entrada do Sars-Cov-2, reduzir o alcance, diminuindo o contágio. E, embora não tenham efeito direto no nariz, vacinas injetáveis, no braço, também diminuem a transmissão porque evitam a replicação do vírus dentro do corpo. Essa função é melhor desempenhada à medida em que o imunizante é capaz de atacar de forma certeira a variante em circulação.

À prova de mutações

Outros estudos em teste miram evitar o problema das mutações, com vacinas "à prova de variantes". Uma das tentativas é da empresa Gritstone bio, dos EUA, que projetou um produto com foco nas células assassinas de estruturas infectadas pelo vírus. O CEO André Allen diz que a vacina é um primeiro passo para desenvolver um imunizante "pancoronavírus".

Já em teste em brasileiros, uma vacina desenvolvida pelo Senai Cimatec, em parceria com a empresa estadunidense HDT Bio Corp, aposta em alta proteção com baixíssimas doses - até 30 vezes menores do que a da Pfizer. Isso é possível porque o imunizante usa uma técnica para que o RNA - que contém informações para a síntese de proteínas - se autorreplique nas células.

Uma das possíveis vantagens seria juntar, em uma só injeção, doses projetadas para cada uma das variantes. O fato de cada dose ser pequena facilitaria, em tese, criar esse "combo" sem causar tanta reação.

- A expectativa para o futuro é que essa plataforma consiga ter o RNA de diferentes variantes por causa da tecnologia de baixíssimas doses. Talvez seja possível ter uma vacina multivalente - diz a pesquisadora Bruna Machado, líder técnica do projeto no Senai Cimatec.

Outras vacinas estão mais adiantadas: a da estadunidense Novavax, sem o RNA mensageiro, foi aprovada na Europa. Contra o medo das agulhas, há propostas como a da Vaxart, na Califórnia, que criou uma vacina em forma de pílula e começou testes em humanos. Além da possibilidade aumentar a proteção na mucosa da boca, outra vantagem seria a facilidade de transporte e administração.

Pesquisas da segunda geração encontram entraves logísticos e financeiros. O spray nasal do cientista Jorge Kalil está travado pela dificuldade de conseguir lotes piloto para ensaios em seres humanos. Não há como fabricá-los no Brasil. Outra vacina em parceria com pesquisadores da USP, a Versamune, também atrasou.

- Houve escassez geral: de luvas a frascos para envases - diz Helena Faccioli, CEO da Farmacore.

 JÚLIA MARQUES


29 DE JANEIRO DE 2022
DAVID COIMBRA

Honra o médico

Eu devia ter sido médico. O problema é que, desde pequeno, queria viver de escrever. Jamais tive dúvidas. E as certezas iam aumentando a cada vez que conquistava algum louro eventual pelo que escrevia, fossem elogios passageiros da família ou dos amigos, fossem vitórias mais concretas. Por exemplo: ganhei alguns concursos literários em nome de outras pessoas e alcancei algumas notas 10 escrevendo redações para colegas de aula. Pequenas fraudes, sei, mas nunca me envergonhei delas. Ao contrário: sentia orgulho.

Um dos concursos que venci foi do curso pré-vestibular Mauá. Com meu texto, consegui bolsa integral do cursinho para uma moça. Mas não posso revelar seu nome, porque ela, de tão honesta que é, até hoje sente vergonha pela nossa burla.

Noutra vez, escrevi um texto que ganhou o primeiro lugar de um concurso literário do CPOR. Mas eu não estava no CPOR, quem venceu foi o meu amigo Serginho Anão, hoje um senhor respeitável, que não usa diminutivos ou apelidos no nome.

Para o Serginho escrevi também uma carta que ele mandou para uma antiga namorada. É que a Lúcia, esse o nome dela, havia mandado uma carta meio estranha para ele. Ela tentou fazer bonito e incorreu num erro que é comum até para escritores veteranos: o pedantismo. Era uma carta toda rebuscada, quase incompreensível. Escrevi uma resposta igualmente rebuscada, e o Serginho adorou enviá-la.

Como disse, escrever é divertido.

Então, meu caminho só podia ser esse. Fui ser escrevinhador na vida. Não me tornei médico. Pena. Uma profissão tão bonita... Porque o médico faz uma mágica formidável: ele tira a dor das outras pessoas. Existe algo mais importante do que isso?

Quando você está sentindo dor, qualquer dor, esse fato se torna o centro da sua vida. Você não consegue mais pensar direito, você não consegue mais fazer as coisas que sempre faz, você não consegue sentir prazer. Você só sente dor. Aí vem o médico, descobre o que está causando aquele sofrimento e, com algum remédio ou procedimento, o elimina. Ele conseguiu extirpar aquela maldita dor que o torturava. Você suspira de alívio. E a vida refloresce e o sol brilha como brilha nas Maldivas e os passarinhos cantam e você se sente feliz, feliz. Como dizia Schopenhauer, não canso de repetir, a felicidade é a ausência de dor.

O médico, portanto, é um produtor de felicidade. Mas, generosamente, ele produz a felicidade alheia, não a própria. Ele se preocupa com a dor que o outro está sentindo e trabalha para removê-la.

Há, no Eclesiástico, um capítulo intitulado "Honra o Médico". Diz assim:

"Honra o médico, porque ele é necessário; foi o Altíssimo quem o criou.

De Deus lhe vem a sabedoria e do rei ele recebe presentes.

A ciência do médico o faz andar de cabeça erguida, e diante dos grandes será louvado.

O Altíssimo faz sair da terra os medicamentos, e o homem sensato não os rejeita".

Note: "O homem sensato não os rejeita". E hoje, 2.200 anos depois da redação do Eclesiástico, ainda tem gente que duvida da ciência, rejeita as vacinas e prorroga uma pandemia que já devia ter sido extinta.

Triste. Porque essa é uma dor que poderíamos evitar. Várias outras são incontornáveis. Todos sentimos dor, a dor é inevitável. Como dizia Jorge de Lima:

"Dor é vida. Se vivo é porque sofro e sinto.

O primeiro vagido é um hino ao sofrimento.

E o olhar do moribundo é o último lamento.

Ambos vêm do sofrer e têm o mesmo instinto".

Mas existe socorro, existe a quem recorrer: o médico. O médico não nos livrará da morte, que é certa, mas pode fazer com que nossa vida não tenha dor. Ou tenha menos dor. Como queria poder fazer esse feitiço, como queria ter o poder desse encantamento. Como queria poder, com a minha mão, tirar a sua dor.

DAVID COIMBRA

29 DE JANEIRO DE 2022
MAGALI MORAES

Morar na praia

Meu pai sonhava com isso: morar na praia ao se aposentar. E olha que, naquela época, qualquer praia se tornava um verdadeiro deserto fora de temporada. Mas ele não se assustava com a falta de gente e de movimento (nós, sim). Era uma utopia. Assim que o doutor Reggiani pendurasse as chuteiras, o consultório de ortodontia, o centro da cidade, os adorados pacientes, tudo ficaria pra trás. O Imbé seria seu novo paradeiro.

As reviravoltas da vida fizeram esse sonho acabar (ou o impediram de seguir sonhando). A casa da família no Imbé foi vendida. Anos depois, antes de adoecer, o pai foi só uma vez até a praia conhecer a minha casa recém-comprada em Xangri-lá. Apenas um bate-volta, já que estávamos terminando de arrumar tudo. O que ele acharia da rotina praiana em condomínio? A segurança de frequentar inverno e verão, poder dormir sem chavear a porta, tantos vizinhos pra conversar, as atrações nos finais de semana, o ônibus pra levar até a beira-mar, os guarda-sóis e cadeiras à disposição dos moradores. Aposto que o pai iria amar. Saberia o nome de todos, não daria uma volta completa ao redor do lago sem parar mil vezes pra assuntar. No Imbé, buzinava e abanava até pros desconhecidos. E recebia abanos de volta (praticamente um vereador).

O Litoral cresceu, se estruturou e cada vez mais oferece oportunidades de emprego pra pessoas de diversas idades e profissões. Com a pandemia, o sonho de morar na praia foi definitivamente ressignificado. Pra que mudar de emprego ou esperar se aposentar, se está comprovado que muitos podem trabalhar remotamente e ser igualmente produtivos? Nossa casinha na praia ajudou em algo imprescindível nos últimos dois anos: manter a sanidade mental. Arejar pulmões e ideias. Também fez nascer a vontade de morar perto do mar. Quem diria, hein, pai? E com uma dose extra de aventura.

A partir de fevereiro, vamos começar a construir uma nova casa pra morar o máximo de tempo possível na praia. Com espaço e conforto pra acomodar melhor a família, seja pra trabalhar ou relaxar. Mais uma vez, vou escolher cada pedacinho de tudo. A diferença será testemunhar uma casa surgindo do zero. Até dezembro, vou me especializar em fundações, esquadrias, telhados, fiações, acabamentos e rezar pra que baixe o preço do cimento (e de todo o resto). Minha experiência na área se resume ao jogo Pequeno Construtor e às paredes de Lego erguidas com meus filhos. Mas estamos muito bem acompanhados por quem entende do assunto. Só tem uma coisa que vai ser impossível realizar: meu pai vivendo esse sonho com a gente.

MAGALI MORAES

29 DE JANEIRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

A SAÍDA FACTÍVEL PARA O RS

Está chegando finalmente a hora de o Rio Grande do Sul começar a acertar de vez as contas com o desequilíbrio financeiro estrutural construído por décadas de irresponsabilidade fiscal. O legado de sucessivas gestões deficitárias é um enorme passivo de R$ 70 bilhões com a União. É uma soma que seria impagável em circunstâncias normais, a não ser às custas de uma completa desestruturação das funções do Estado, com reflexos nefastos nos mais básicos serviços prestados à população. A melhor saída, portanto, é uma repactuação da dívida colossal com o principal credor atrelada a uma série de compromissos que mirem, no médio prazo, a restauração da sustentabilidade das contas do Estado.

É exatamente esta a chance que os gaúchos têm com a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) da União, tentada desde a administração José Ivo Sartori, que deu início ao processo de busca do equilíbrio orçamentário. Tornou-se público na sexta-feira que a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) considerou o Rio Grande do Sul habilitado a ingressar no programa, um mês após envio do pedido pelo Piratini. Ainda é preciso aguardar parecer do Ministério da Economia e homologação pelo presidente da República, mas a chancela técnica da STN é, sem dúvida, uma sinalização positiva, certamente baseada nas ações já tomadas pelo governo Eduardo Leite, como privatizações e reformas, e em demais proposições que sinalizam no sentido de manutenção dos esforços pelo saneamento das finanças do Estado. Vale lembrar que, em meados deste mês, o Rio de Janeiro teve negado o pedido de ingressar no novo RRF por apresentar uma proposta considerada "precária" e com "premissas frágeis". O governo gaúcho, agora, tem de apresentar um plano de recuperação fiscal que valerá pelos próximos nove anos.

As exigências impostas pela União são duras, é verdade. Limitações a reajustes salariais, concursos apenas para compensar a saída de servidores, veto a novas vantagens para o funcionalismo e a concessões tributárias são algumas das exigências. Mas é preciso ter a compreensão de que, em função do elevado endividamento do Estado, não haveria saída fora de um planejamento consistente e focado na austeridade, executado à risca. Não há mais como procrastinar. Apertar o cinto agora de acordo com um plano crível, com consciência e critério, significa ter perspectivas palpáveis de os gaúchos poderem contar, em um breve futuro, com um Estado capaz não apenas de pagar salários em dia, mas de fazer investimentos e oferecer serviços como educação, saúde e segurança com qualidade e eficiência de acordo com as necessidades da população.

É fato também que, nos últimos meses, o Rio Grande do Sul alcançou uma situação financeira um pouco mais confortável, que permitiu colocar os salários em dia, quitar dívidas de curto prazo e promover alguns investimentos. Mas é importante não se iludir. Desde 2017, o Estado não paga as parcelas da dívida com a União devido a uma liminar que, em tese, pode cair a qualquer momento. O aumento da arrecadação se deveu à recuperação da economia, mas também em razão da inflação. E neste ano, as alíquotas de ICMS passam a ser inferiores às dos últimos anos, o que terá impacto na receita do RS. Este quadro mostra que, a despeito dos ganhos obtidos com as reformas e privatizações dos últimos anos, se acomodar com um fôlego fugaz significa insistir no autoengano.

A adesão ao RRF requer sacrifícios partilhados. Pode não ser a solução mais agradável, mas é a mais exequível como caminho para um Estado financeiramente saudável, o que será benéfico para cidadãos, setor produtivo e para o próprio funcionalismo.

OPINIÃO DA RBS

29 DE JANEIRO DE 2022
INFORME ESPECIAL

O Brasil já teve ambições maiores O estilista-prodígio

Com traço único, corte exato e aposta em tecidos artesanais e ecológicos, Carlos Bacchi se tornou um dos designers de moda mais cobiçados do Brasil.

Aos 34 anos, filho de artista plástica e neto de alfaiate, o estilista nascido na localidade de Ana Rech, na Serra, estourou no mercado de noivas e está produzindo vestidos para casamentos de norte a sul do país.

Em 2021, chegou a entregar 30 trajes em um único final de semana, vestiu a influenciadora Luisa Accorsi (com 800 mil seguidores no Instagram) e levou uma de suas coleções para São Paulo - onde recebeu sete clientes por dia, durante uma semana. Quer mais? Bacchi ainda vestiu a cantora Marisa Monte no clipe Portas, seu mais recente sucesso.

A procura é tanta que o designer-prodígio já fechou a agenda em 2022 e 2023 e só aceita novos pedidos para 2024. Nada disso veio por acaso. Prestes a completar 10 anos à frente de seu atelier, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, Bacchi sempre teve apoio da família e dos amigos, que o convenceram a desistir da Educação Física para assumir o dom. Estudou nas melhores escolas - entre elas, o Instituto Marangoni, em Paris - e soube tomar as decisões certas.

- Com a pandemia, tudo parou. Foi muito difícil. Então, decidi apostar em novos projetos: coleções de vestidos de noiva, de quadros bordados e de roupas de linho 100% brasileiro - conta o designer.

A produção chamou a atenção do mercado. Quando os eventos voltaram, uma janela de oportunidades se abriu para Bacchi. E não fechou mais.

aliás

Para dar conta da demanda, Bacchi duplicou a equipe. Hoje, 80% do público é de outros Estados (como São Paulo, Mato Grosso, Goiás e Pará). A base do trabalho está assentada em sedas naturais tramadas à mão made in Brazil e em tecidos desenvolvidos especialmente para cada vestido.

MARCELO RECH