sábado, 27 de outubro de 2018



27 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Feridas e jacarandás

Não vi em minhas décadas de vida uma eleição, uma campanha, que resultasse em tanta ruptura, divisão, hostilidade, afastamento até de pessoas que se amam, ou são amigas, ou são famílias antes amorosas. Vários conhecidos meus relatam pessoas que simplesmente se afastaram da casa, das pessoas queridas, de alguns amigos, de hábitos com que foram criados, para aderir a um ou outro partido, uma ou outra ideologia. Muitas vezes sem sequer entender direito os termos usados, o histórico de tudo, a situação do próprio país. Claro, nem todos, nem a maioria, mas tenho amigos que declararam no Face, por exemplo, que, se eu votasse em que consideram o inimigo, deveria deletá-los: eu não estaria mais no seu círculo de amizades.

Pode isso? Pode, sim. Está acontecendo, e confesso que é difícil de entender. Como misturar afetos, às vezes longos e positivos, com política - essa nave incerta e insegura que já mudou de rumo e ainda vai mudar, porque a vida é assim, os povos são assim, a política, essa velha madrasta, age assim?

Talvez estejamos muito cansados de tanta decepção. Muito desiludidos, e muito iludidos. Talvez sejamos imaturos, não sofremos o suficiente. Talvez estejamos muito alienados, povo não educado é povo não informado, e serve de massa de manobra desde que a humanidade tenta se organizar em bandos, tribos, aldeias. Povo educado, ao contrário, faz escolhas mais tranquilas e racionais - sem esse monstruoso preconceito do "nós" e "eles". Alguém já disse que sou repetitiva: é intencional. Bato em assuntos que me interessam ou afligem, como família, educação, democracia. Por falar nisso, que democracia é essa que alija amigos ou família, que se julga dona da verdade e abusa da chibata da intolerância?

E tem os que resolvem partir. O mundo hoje é uma aldeia global etc, etc, etc. Mas: se os bons forem embora, quem vai tomar conta desta nossa pátria, que apesar de muitos atrasos e desmandos ainda é fascinante e acolhedora, e muito mais será quando se corrigirem tanto quanto possível a miséria, a ignorância, a doença, o isolamento - e estes ódios rasteiros, essa desinformação turbulenta, essa balbúrdia de conceitos e emoções? Quem sabe não estejamos nos levando suficientemente a sério: chibata verbal, conceitual ou emocional, a agressividade e o despudor como forma de protesto, a perigosa incitação à revolta estão sendo manejados como brinquedo de gigante em mãos de criancinhas. Podem machucar mais do que se imaginava. Podem quebrar, destruir, arrasar até o que nem de longe se pretendia.

Graças aos deuses, essa fase vai acabar. Talvez comecem outras batalhas, outras ignomínias, outros descaminhos e desconsertos, mas ainda paira no ar, com os jacarandás, as crianças, a lucidez e os afetos bons, a bela Senhora Esperança. (E talvez se curem as insensatas feridas destes tempos.)

LYA LUFT

27 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As consequências da avalanche


É um premiado filme sueco de 2015, chama-se Força Maior. Uma família (pai, mãe e um casal de crianças) tira seis dias de férias para esquiar nos Alpes. Na manhã do segundo dia, estão almoçando ao ar livre, no deck do hotel, cercados por outros hóspedes, quando, nas montanhas ao fundo, um filete de neve começa a escorrer. Não parece perigoso. 


Minutos depois, aquele deslizamento sem importância cresce em dimensão. Avalanches controladas são comuns, mas aquela demonstra estar ligeiramente descontrolada. Até que, de forma súbita, a neve fica prestes a invadir o deck. Pânico. Algumas pessoas gritam e muitas correm, incluindo o pai da família, que dispara sozinho a fim de se abrigar, deixando para trás a mulher e os dois filhos.


Poderia ter sido um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e, assim que se dissipou, os que correram retornaram aos seus lugares, inclusive o pai. A família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual. Descobriu-se que aquele homem, ao se desesperar, segue impulsos egoístas e se desgoverna.


Neste domingo se encerra uma avalanche. Nas últimas semanas, fomos soterrados por textos, vídeos, áudios, fotos, fake news, ofensas e postagens absurdas que invadiram as redes. O que se deseja, depois da esquizofrenia toda, é que o que se configurava uma tragédia demonstre ser apenas uma névoa seca que não deixe mortos e feridos pelo caminho. Se o presidente eleito tiver um mínimo de responsabilidade, será diplomático a fim de reunir todos no mesmo deck de novo, e a vida seguirá com suas avalanches controladas, e não fatais.



Mas será que nossas relações pessoais sobreviverão sem sequelas? No filme, a atitude inesperada e covarde do pai transfigura os laços e, dali por diante, inaugura um distanciamento difícil de transpor. Será que nós, que passamos os últimos dias trocando farpas com amigos e familiares por causa de nossos antagonismos, conseguiremos restituir 100% o afeto que havia antes?



A não ser entre aqueles que construíram uma base de amor e respeito muito sólida, creio que essa eleição tão polarizada fragilizará alguns vínculos. Não estávamos apenas defendendo um candidato ou outro, e sim diferentes visões de mundo, e com isso desnudando raivas, angústias, preconceitos, medos, maledicências, liberalidades, perversidades. Como não se espantar com pessoas que, no convívio social, pareciam ser afins, mas que, diante de um confronto sem precedentes, revelaram uma faceta bastante incômoda?



Ninguém sairá perdendo se o novo presidente conseguir restabelecer o crescimento do país sem colocar em risco a integridade de seus habitantes, mas uma baixa já ocorreu: a da admiração por pessoas próximas que, equivocadamente, julgávamos imunes a certas pequenezas.


MARTHA MEDEIROS


27 DE OUTUBRO DE 2018
CARPINEJAR

Barco furado do amor

Você está na praia dourando a pele salgada, confortavelmente sentado na cadeirinha, com um coco gelado na concha das mãos e mastigando pastéis de camarão, como sonhou um dia, a sua esposa enxerga ao fundo do mar banhistas andando de caiaque, não caia na cilada de dizer "sim" para um "que tal?". Nem fique em silêncio, recuse antes que venha a indesejável insistência: "Vamos lá? Será divertido!".

Descobrirá que o amor não precisava dessa humilhação. Podia passar sem esse mico em seu romance.

Partirá do ponto morto do guarda-sol para uma batedeira frenética em cima das águas - sem aquecimento, sem alongamento. Não há como remar, os farelos dos pastéis ainda permanecem nos dentes.

Para piorar, você estará de colete salva-vidas laranja, que esvazia a sua masculinidade. Parece uma criança com boia no raso.

Para piorar, você não tem sincronia nenhuma. O caiaque ficará girando no mesmo lugar, como um carrossel desastrado, para diversão dos outros. Não avança para dentro, muito menos consegue desistir e retornar à margem.

Para piorar, ela diz que é fácil e só é seguir os movimentos dela. Mas a dinâmica tem a complexidade de uma aula de dança, só que sentado.

Para piorar, a esposa perderá a paciência e tentará lhe ensinar didaticamente a segurar o remo. Não vai corresponder às expectativas, e discutirão no meio do nada. Ela queria tirar uma foto longe de todos, perto dos rochedos, mas não dá nem para chegar perto do objetivo, muito menos demonstrar um pouco de diversão e contentamento: já que está suando bicas e desconfortável com a própria incompetência. No máximo, será uma selfie de seu afogamento.

Para piorar, não completará os 30 minutos pagos do percurso. Abandonará o passeio antes da hora, na largada, para desgosto eterno. Seu rosto murchará em fracasso e baixará a cabeça no resto do dia. Para piorar, a esposa o ajudará a descer do caiaque, já que se enrolou com as cordas do colete e se prendeu no cinto.

Para piorar, o instrutor elogiará a coordenação de sua mulher, o quanto ela nasceu para o esporte, que é uma pena não ter um parceiro à altura. Terá que engolir a cantada a seco, com uma risada amarela, da mesma cor da areia.

Para piorar, nunca mais será convidado a nada.

CARPINEJAR

27 DE OUTUBRO DE 2018
PIANGERS

Melancolia no domingo à tarde

Esses dias, minha mãe me mandou fotos de quando eu ainda era pequeno e gordinho. As fotos estão desbotadas, estou no colo dela. Ela era uma menina sorridente. Minha mãe era jovem e bonita quando me teve. Continua bonita, mas não tão jovem. Ela era jovem demais. Uma menina cheia de vida e sonhos pela frente, mãe solteira.

Acho que durante anos não fui o filho que poderia ser para minha mãe, não fui agradecido por tudo o que ela fez por mim. Só entendi tudo o que se faz por um filho quando me tornei pai. Você aprende a ser filho depois que tem um filho. Você se torna grato. Quando vi aquelas fotos fiquei emocionado, pensando em tudo o que a minha mãe me deu. 

Ela me deu sua juventude, seus sonhos profissionais, seus relacionamentos amorosos. Disse não para promoções, para viagens longas a trabalho. Tinha que cuidar de mim sozinha. Disse não para amores que não estavam preparados para criar o filho dos outros. Disse não para sua própria vida, para me transformar naquilo que sou. Ela pegou uma célula, transformou-a em gente. E, depois, em homem.

A minha ingratidão foi terrível e me arrependo dela. Fui um adolescente metido e revoltado. Eu achava que sabia de tudo. Achava que a minha mãe não sabia de nada, que ela nunca tinha sido jovem. Os filhos olham para os pais como se fossem tiranossauros, obsoletos e desatualizados, irritados por qualquer bobagem. Só enxergamos essas coisas anos depois, quando nossos próprios filhos nos olham assim.

Eu lembro das coisas que a minha mãe repetia. "Seja educado. Seja honesto. Trate bem as pessoas. Seja gentil. Tente ser bom com todos ao seu redor. Se esforce para fazer amigos." Conselhos adolescentemente ignorados e desafiados. E aqui estou eu, repetindo os mesmos conselhos para minhas filhas. E aqui estou eu, sendo adolescentemente ignorado. Com uma esperança boba de que um dia se lembrem dos conselhos, ao ver nossas fotos desbotadas. Que notem tudo o que oferecemos, sem perceberem. Que não nos deem nada em troca, mas passem adiante. Passem adiante aquilo que nossas mães nos deram.

PIANGERS

27 DE OUTUBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL

BRASIL BIPOLAR

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Estamos afogados na polarização. O maniqueísmo é uma heresia no catolicismo, mas se transformou em virtude no maior país católico do mundo. São escassos os argumentos e abundantes as opiniões. Coaxam os adeptos polarizados de forma monocórdica no pântano raso das redes sociais. Robôs ladram e a caravana não passa, emperrada em palavrões. Pena que tantos jovens tenham descoberto o território da política como o aniquilamento do outro. Alienação e agressividade política são armas perigosas. Sufocar um campo tão importante pela falta ou pelo excesso é um desastre.

Nunca se viu algo assim? Vivemos os tempos derradeiros e, após o processo de eleição, veremos os quatro cavaleiros do apocalipse cavalgando por sobre o Congresso? O fim do meu mundo nunca é o fim do mundo, e precisamos da perspectiva histórica.

O Brasil tem tradição de violência e polarização. A agressividade da nossa história é forte e salta aos olhos dos documentos coloniais, imperiais e republicanos. A morte dada a Zumbi dos Palmares com o castigo final de cortar o pênis do líder do quilombo e costurá-lo na boca é um indício de como a Terra de Santa Cruz não era a fazenda bucólica de flores de certas correntes sobre o passado. A sanha de ódio (e de medo) levou a três séculos de punições públicas e exemplares de escravos. O desembarque de centenas de milhares de seres humanos no cais do Valongo do Rio era a estetização trágica de um mundo muito agressivo. Sociedades de tradição escravocrata costumam ser historicamente agressivas, pois a destruição pública de muitos contamina o tecido social.

Canudos sofreu quatro expedições militares e final dramático, um genocídio de sertanejos. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul virou um festival hediondo de degolas e estupros. Cangaceiros violentos como Lampião foram punidos com o corte das cabeças. Fizeram uma foto macabra do evento como registro e comemoração. Criminosos fluminenses punem desvios colocando a vítima dentro de pneus e tocando fogo, ato batizado de "colocar no micro-ondas". Se pudesse optar, Joana D?Arc teria preferido sua fogueira de 1431 ou os pneus?

Nosso tema não é a violência, porém, como ela aflora em momentos polarizados. Violência existe diariamente. De quando em vez, ela se torna política em polarização. Em 1935, o país estava partido ao meio entre as propostas da Aliança Nacional Libertadora de esquerda e instituições alinhadas à direita, como a Ação Integralista Brasileira. Como é frequente, aproveitando-se do clima de insegurança gerado pela polarização, Getúlio Vargas destruiu a frágil democracia inaugurada pela Constituição de 1934. Resolveu-se a polarização pela repressão, entregando Olga Prestes aos nazistas e encarcerando, entre tantos, Graciliano Ramos. O curioso é que os mesmos socialistas que, com razão, gritavam contra os porões da ditadura no Brasil, no Exterior, apoiavam campos de concentração soviéticos, ou fingiam que não viam para maior conveniência política. Talvez por isso sejam inóspitos os polos: ambos costumam ser marcados pela cegueira seletiva. A lógica é sempre a mesma: o meu inferno é mais gostoso do que os outros.

Entre 1961 e 1968, recrudesceu a polarização política. Os campos da esquerda e da direita se enfrentavam em campanhas marcantes e regidos por uma gramática de respostas mútuas: Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964) versus Marcha da Família com Deus e pela Liberdade (19 de março, seguida de mais de 40 marchas em outras cidades). 

Mais uma vez eliminamos a polarização pela repressão. A solução para que o Brasil melhorasse e evitasse os males da violência do golpe civil-militar de 1964 seria o sufocante AI-5? Qual a solução para sair da ditadura que matava, torturava e concentrava renda? Deveríamos seguir os modelos ditatoriais de Cuba para alguns, ou a ditadura maoista na China ou até, pasmem, a mais primitiva e retrógrada ditadura europeia do pós-II Guerra: a Albânia? Nem toda a direita brasileira era golpista e nem toda a esquerda defendia ditaduras. Generalizações são pouco científicas. O ano de 1964 foi o final do enfrentamento entre duas propostas dominantemente autoritárias. 

A direita duvidava que o mundo do voto pluripartidário e da liberdade de imprensa conseguiria impedir o risco do avanço comunista. A esquerda usava slogans como o da UNE: "De que adianta democracia se a panela está vazia?" Venceu a proposta que estava mais armada com os óbvios resultados trágicos. Havia muitos projetos para salvar o Brasil em 1964, poucos eram comprometidos com a ideia clássica de sociedade aberta. Ambos, claro, eram os representantes mais legítimos das profundas aspirações do povo brasileiro, que deixava de ser muito consultado a partir de então. Para que voto se eu posso conduzir o proletariado ou as senhoras com rosários e panelas ao Paraíso?

Os anos de chumbo terminaram com inflação passando de 200% e desemprego alto. O Brasil encerrou o período de exceção ajoelhado diante do FMI. Raiou o glorioso sol democrático. Curioso: o novo governo Tancredo-Sarney era tão legítimo como o de Geisel, pois chegou ao poder pelo mesmo sistema indireto de colégio eleitoral. Porém, como sempre, poder de quem eu simpatizo é legal e repressão contra quem eu detesto é um mal necessário.

Só aqui em Macondo é que pode terminar um ciclo ditatorial com o poder entregue ao líder do partido durante a ditadura: Sarney. Tradição mantida: independência proclamada pelo herdeiro do trono português, República feita a golpes de sabre por um monarquista, revolução contra as oligarquias de 1930 liderada por um oligarca, Getúlio Vargas. Sarney foi a farsa de tragédias anteriores.

A Constituição de 1988 vinha selar o alvorecer democrático com seus direitos amplos e propostas de cidadania plena. Apenas um exemplo, em um país de maioria negra, finalmente, uma lei que criminalizava o racismo. Lembro-me de ter chorado ao ver Ulysses Guimarães promulgá-la, há 30 anos. Era um dia histórico e eu tinha 25 anos, sonhos, cabelos e esperança.

Novo ciclo de divisão: o cenário Collor e Lula. As ideologias se enfrentavam com a atenuante de não existirem redes sociais. Que saudade da polarização expressa em artigos de jornal. Parece-me hoje uma Belle Époque comparada ao padrão digital de 2018. Bom voto a todos. Acho que minha fé na democracia é como a fé em Deus de muitos: eu não vejo, mas sinto que seria bom. Tal como tantos, eu também espero um milagre. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


27 DE OUTUBRO DE 2018
COM A PALAVRA

Roman Krznaric acredita no poder da empatia para transformar indivíduos e sociedades. Nascido na Austrália e radicado na Inglaterra, o filósofo deu um giro pelo Brasil neste mês, incluindo uma escala em Porto Alegre, para o lançamento do livro Carpe Diem - Resgatando a Arte de Aproveitar a Vida (Zahar, 280 páginas, R$ 59,90 o impresso e R$ 39,90 o e-book) e falou também sobre a capacidade de se colocar no lugar do outro. Ao lado do filósofo e escritor suíço Alain de Botton, Krznaric é um dos idealizadores da respeitada The School of Life ("A Escola da Vida"), com sede em Londres e filiais em outras grandes cidades, como São Paulo. A instituição se dedica ao desenvolvimento da inteligência emocional, aplicando psicologia, filosofia e cultura ao cotidiano.

VOCÊ É UM DOS IDEALIZADORES DA SCHOOL OF LIFE E TAMBÉM DO MUSEU DA EMPATIA, FAMOSO, ENTRE OUTROS PROJETOS, POR CONVIDAR AS PESSOAS A CALÇAREM OS SAPATOS DE OUTRAS PARA QUE SE SINTAM COMO ELAS. VOCÊ AFIRMA QUE A EMPATIA É ALGO QUE SE PODE APRENDER. PARTICULARMENTE, SEMPRE PENSEI QUE, OU VOCÊ TEM, OU VOCÊ NÃO TEM EMPATIA.

A ideia da inteligência emocional remonta à década de 1990, quando o conceito foi criado pelo psicólogo Daniel Goleman. A boa notícia é que ela pode ser aprendida - é uma habilidade como a de dirigir um carro ou andar de bicicleta. A empatia, a capacidade de se colocar no lugar de alguém, entendendo seus sentimentos e perspectivas, é um dos componentes-chave da inteligência emocional. Como melhorar nesse aspecto? Em termos práticos, tem algo que todos nós podemos fazer: conversar com um estranho uma vez por semana. 

Converse com o tipo de pessoa com quem você normalmente não fala - o cara que lhe vende o jornal pela manhã, a pessoa que limpa o seu escritório... Por que fazer isso? Estamos todos carregando, dentro de nós, preconceitos, suposições, estereótipos sobre as pessoas. Julgamos os outros a partir da aparência, do que parecem ser. A conversa com um estranho é a primeira de muitas formas de praticar a empatia, porque você começa a perceber que as outras pessoas são, talvez, um pouco como você. É a prática do ato de ouvir. É assim que começamos a nos conectar com os outros, entendendo como eles veem o mundo e desafiando nossos preconceitos e suposições.

VIAJANDO TANTO, IMAGINO QUE VOCÊ TENHA A CHANCE DE CONHECER MUITOS ESTRANHOS, O TEMPO TODO.

Sim, conheço muitos. Mas você também pode viajar e não conhecer ninguém. Você tem que ter aquela coragem de sair de si mesmo e conversar com as pessoas. Olhe em volta. Mantenha seus olhos abertos, como um antropólogo. Você pode fazer isso na sua própria rua. Você pode ter uma conversa com o seu vizinho de porta ou com pessoas próximas com quem você nunca falou sobre amor. Por que não? Descubra o que elas pensam.

DE QUE OUTRAS MANEIRAS SE PODE EXERCITAR A EMPATIA NO DIA A DIA?

Se você está em uma discussão tensa, há três coisas que pode fazer para ouvir bem. A primeira é estar de fato presente, disponível para a outra pessoa. Escute-a, não a interrompa, não a julgue. A segunda é prestar atenção aos sentimentos dela. A terceira é ouvir quais são as necessidades dela. Você pode perguntar: do que você está precisando? É como mágica. Mesmo que você não consiga concordar, tudo bem, mas a voz dela estará sendo ouvida. Isso tende a reduzir a tensão. Vocês começam a criar vínculos. Quando você pergunta por que as pessoas se divorciaram, grande parte delas diz que foi porque o marido ou a esposa não as escutava. Existe um grande espaço na vida familiar para que se pratique a empatia, ouvindo e falando sobre sentimentos e necessidades. 

Com meus filhos, estou, com frequência, completamente enganado a respeito de como eles estão se sentindo ou o que estão pensando. É preciso muita conversa para entender realmente do que se trata, para entender o que eles sentem, para ver o mundo do ponto de vista do outro. Se você quiser que seus filhos sejam empáticos, não lhes dê uma palestra sobre empatia. Pratique a empatia com eles, molde-os, mostre a eles pela maneira como o casal se trata e conversa. É como uma criança aprende: observando o que acontece ao redor dela.

O QUE VOCÊ SABE SOBRE O CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO ATUAL?

Estou no Brasil neste momento de grande polarização política. Sei sobre Bolsonaro (Jair Bolsonaro, candidato do PSL à Presidência), sobre a campanha no WhatsApp e no Facebook... É incrível. O que me chama a atenção é que, não importa o resultado da eleição ou o que aconteça, esta é uma sociedade que terá de encontrar caminhos, criar pontes para lidar com essa divisão entre um lado e outro, e a empatia é uma das formas de fazer isso. Como podemos dialogar em torno dessa divisão? Quando você se coloca no lugar de uma pessoa para tentar entendê-la, o que não significa ter de concordar com ela, precisa criar espaços para dialogar. Tive um projeto em que eu organizava o que chamava de "refeições para conversar". Convidávamos pessoas de origens e trajetórias bem diferentes: muito ricas e muito pobres, negras e brancas, cristãs e muçulmanas... Em vez de lhes dar um menu de comida, entregávamos um cardápio de conversação. 

"O que você aprendeu sobre os diferentes tipos de amor na sua vida?" "De que maneira você gostaria de ser mais corajoso?" "Como suas prioridades devem mudar ao longo dos anos?" A ideia era que essas pessoas conseguissem estabelecer uma conexão e conversar por horas, não apenas um minuto, tentando atravessar a distância entre elas. Construir empatia. Não importa quem vença o segundo turno, a polarização vai continuar existindo e será necessário encontrar um jeito de a sociedade se conectar outra vez. É muito difícil um país funcionar baseado no ódio e no medo. Esses projetos de conversação são, acredito, o tipo de coisa em que os brasileiros deveriam pensar para tentar ajudar a reduzir a polarização. Trata-se de humanizar as outras pessoas.

EMPATIA, E NÃO POLÍTICA, PODE MODIFICAR NOSSA SOCIEDADE. COMO VOCÊ CHEGOU A ESSA CONCLUSÃO?

Quando eu atuava como cientista político, costumava pensar que você muda o mundo com novas leis, eleições e políticas públicas. Ainda acredito nisso de certa forma, mas o que aprendi, com os anos, é que mudanças fundamentais na sociedade acontecem por meio da empatia. Se você olhar para a história... Por exemplo, vivo na Inglaterra, e no século 18 houve o primeiro grande movimento social mundial contra a escravidão. Foi um movimento baseado na empatia. Ex-escravos foram chamados para falar em diferentes locais do país para que as pessoas pudessem encontrá-los e ouvir a voz deles. Elas podiam se colocar no lugar de um escravo. 

E esse movimento foi tão poderoso que levou a novas leis para abolir a escravatura e o tráfico de escravos. É um dos muitos exemplos na história que mostram que a empatia abre a porta para a nossa preocupação moral, enquanto leis e direitos mantêm essa porta aberta. É como vejo muitas mudanças fundamentais acontecendo, particularmente na luta pelos direitos humanos e pela justiça social. É claro que esse não é o único modo com o qual a história se constrói, mas é algo fundamental. Em um país onde houve uma guerra civil, como a Croácia, é essencial criar projetos de empatia para aqueles que estavam se matando uma geração atrás voltem a se falar de novo. A empatia é a base da construção da paz e de uma sociedade tolerante.

A EMPATIA VEM DIMINUINDO OU AUMENTANDO?

Existem evidências de declínio empático em diversos países. Na Grã-Bretanha, por exemplo, estudos mostram que há menos cuidado dos cidadãos em relação a pessoas que são diferentes, como os imigrantes. Ao mesmo tempo, a cultura digital está piorando tudo: quanto mais interações via Facebook você tem, mais narcisista você tende a se tornar. No mundo digital, é como se estivéssemos em uma câmara de reverberação, recebendo apenas notícias que reforçam nossos pontos de vista e nos conectando preferencialmente com pessoas que compartilham dos nossos pontos de vista. Acredito que há grandes desafios para o desenvolvimento da empatia nesse contexto. Por outro lado, há crescente valorização da importância da empatia. Por exemplo, em muitos países a empatia é um conteúdo ensinado às crianças na escola.

NOS TORNAMOS MAIS INDIVIDUALISTAS PELO QUE VOCÊ CHAMA DE CULTURA DA DISTRAÇÃO DIGITAL?

Sim, acho que nos tornamos mais individualistas. Cada pessoa checa seu telefone 110 vezes por dia. O narcisismo está contribuindo para o aumento do individualismo. A indústria da autoajuda diz que a grande questão é "quem sou eu?", "o que há para mim?". Acho que a grande questão do século 21 não é "quem eu sou?", mas "quem é você?". Essa é uma questão sobre empatia: dar-se conta de que aprendemos sobre a vida não apenas pensando sobre nós mesmos ou postando sobre as coisas maravilhosas que estão acontecendo nas nossas vidas, mas nos interessando pelos outros e aprendendo com eles. É por isso que tenho curiosidade pelos estranhos. Conhecer pessoas diferentes da gente é algo energizante, nos dá novas ideias, mas também é parte do jeito pelo qual expandimos nosso círculo moral, nosso "eu" ético. E acho que é muito difícil fazer isso online.

NO LIVRO CARPE DIEM, VOCÊ AFIRMA QUE O ESPÍRITO DESSA EXPRESSÃO FOI SEQUESTRADO, ROUBADO DE INÚMERAS FORMAS, E QUE NÓS DEVEMOS RECUPERÁ-LO SE QUISERMOS VIVER A VIDA AO MÁXIMO. PODE FALAR UM POUCO SOBRE ISSO?

Carpe diem é essa frase latina antiga, de 2 mil anos atrás. Em inglês, é traduzida como "aproveite o dia", como "aproveitar uma oportunidade", uma oportunidade que pode desaparecer, como a chance de trocar de carreira ou de salvar um relacionamento que está se desfazendo. Em português, se eu olhar para a capa do meu livro na edição brasileira, diz "aproveitar" no sentido de aproveitar o prazer. Se formos para a Holanda, poderemos traduzir carpe diem como "colher o dia", como você colhe ou pega uma flor. É mais gentil. Em meu livro, exploro esses diferentes significados. O significado de carpe diem foi sequestrado de várias formas. A primeira foi pela cultura do consumo: lemos "apenas faça isso" como "apenas compre isso" (alusão ao slogan da Nike em inglês, "just do it"). Em vez de aproveitar o dia, aproveitamos nossos cartões de crédito. A liberdade se tornou uma escolha entre diferentes marcas: Nike ou Adidas? IPhone ou Samsung? 

Quando o poeta romano Horácio disse carpe diem pela primeira vez, tenho certeza de que ele não pensava que "aproveitar o dia" se resumisse a conseguir uma barbada em um shopping, ou a comprar com um clique, ou a escolher entre Nike ou Adidas. É sobre tomar grandes decisões na vida, e não sobre tomar decisões de consumo. A segunda forma de sequestro é uma que todos nós conhecemos, a cultura digital. "Faça isso" se tornou "tuíte isso", "compartilhe isso", "poste isso". Antes de viajar para cá, estava pesquisando sobre a vida brasileira nas mídias sociais e descobri uma estatística surpreendente: os brasileiros passam, em média, três horas e 43 minutos por dia navegando nas redes sociais. É um dos índices mais altos do mundo. Incrível. Isso significa que, quando você chegar aos 75 anos, terá passado nove anos da sua vida nas mídias sociais. Imagine chegar ao fim da vida, olhar para trás e pensar: "Eu passei nove anos da minha vida em uma tela". 

Claro que podemos ter relações reais e sentir emoções assim, mas viver é a experiência direta, não é assistir às pessoas vivendo suas vidas em uma novela ou ver os posts dos outros no Facebook. Portanto, este é o segundo sequestro: nos tornamos altamente viciados em redes sociais, e a maior parte dos aplicativos é elaborada de forma a fazer com que a dopamina, ligada ao prazer, invada nossos cérebros. Estamos tentando aprender a lidar com isso. É difícil. Temos que reconquistar o espírito do carpe diem levado pela cultura do consumo e pela cultura digital.

EXISTE ESSA OBSESSÃO CONTEMPORÂNEA COM A OCUPAÇÃO DO TEMPO, E ACREDITO QUE ÀS VEZES, SECRETAMENTE, CRITICAMOS QUEM NÃO RESPONDE À PERGUNTA COMO VOCÊ ESTÁ? COM ALGUMA REFERÊNCIA A TONELADAS DE TRABALHO. ESTAMOS DESPERDIÇANDO NOSSO TEMPO?

Às vezes, as pessoas me perguntam: "Você está ocupado?". Quando respondo que não, elas me olham como se eu fosse um fracasso. O problema é o culto ao gerenciamento do tempo, em que a produtividade e a eficiência são tidas como grandes virtudes humanas. Eu discordo. Acho que o gerenciamento do tempo é uma maneira de nos fazer trabalhar cada vez mais duro e enfiar cada vez mais trabalho em nossas vidas - o que pode ser bom para nossos empregadores, mas não necessariamente para o nosso bem-estar. Acho que mais e mais pessoas estão começando a se dar conta de que a mercadoria mais preciosa é o tempo, e não o dinheiro. Elas querem tempo livre para investir nos mais diversos aspectos de quem são - paixões, talentos, criatividade. Para isso, não podemos estar superocupados o tempo inteiro. Na Europa, há um movimento crescente a favor de uma semana de trabalho de quatro dias. Mais e mais indivíduos prefeririam ter 20% a menos de renda e 20% a mais de tempo. Já está mais do que na hora de mandar esse culto ao rendimento para a lata de lixo da história.

O SITE DA SCHOOL OF LIFE VENDE ALGUNS ARTIGOS, ENTRE ELES AS CARTAS DA RESILIÊNCIA. COSTUMAMOS SUPERESTIMAR NOSSA FRAGILIDADE? E QUANTO AO CONTRÁRIO: SUPERESTIMAMOS O QUÃO FORTES SOMOS?

Acredito que nosso nível de resiliência é uma questão bastante pessoal, que depende de nossas experiências próprias. Muitas pessoas que trabalham em ambientes muito másculos e que se consideram extremamente confiantes são, na verdade, com frequência, frágeis. Talvez eles não tenham "praticado" a vulnerabilidade emocional, então, quando as coisas ficam difíceis - perdem o emprego, divorciam-se -, podem encontrar dificuldade para administrá-las ou não saber como conversar com alguém sobre seus problemas. 

Nesse caso, as pessoas superestimam sua força. Ao mesmo tempo, as pessoas são menos frágeis do que imaginam. Seres humanos são criaturas incrivelmente resilientes. Podemos enfrentar traumas terríveis - como uma morte na família - e, de alguma forma, nos recuperarmos. Mas precisamos ficar atentos à crescente crise da saúde mental. Na Europa, cerca de uma em cada quatro pessoas terá um problema de saúde mental em algum momento da vida. A mensagem que esse dado pode estar nos passando é a de que nossos níveis de resiliência psicológica estão em declínio.

A BUSCA DA PERFEIÇÃO É UM ERRO? ESSE MESMO JOGO DE CARTAS DIZ QUE BOM JÁ É O BASTANTE.

Quando meus filhos gêmeos nasceram, me esforcei muito para ser o pai perfeito. Quando ia a um café e os bebês começavam a chorar, me sentia envergonhado, um pai terrível. Mas aprendi que a filosofia do "ser bom o suficiente" é extremamente útil, nos ajudando a parar de nos sentirmos mal a respeito de nossas falhas e a reconhecer que não precisamos ter uma performance de superstar como pais, parceiros em um relacionamento ou trabalhadores. Tudo depende das pessoas com quem nos comparamos. Se você é um artista e só se compara a Picasso, se sentirá um fracasso. Podemos escolher com quem nos comparar, e esse é o segredo do "suficientemente bom".

LARISSA ROSO

27 DE OUTUBRO DE 2018
PAULO GLEICH

ANTÍDOTO À MELANCOLIA


Na noite deste domingo, salvo algum imprevisto, conheceremos o próximo presidente eleito do Brasil. Independentemente do resultado, antevejo que o clima não será de alegria, nem em boa parte daqueles que votaram no vencedor. O que estas eleições expuseram a olho nu - e em carne viva - não é apenas uma polarização, comum em processos eleitorais, mas uma fissura crescente que ameaça as bases do convívio entre as pessoas.

Isso se fez notar não só nas tantas brigas em redes sociais e entre amigos e familiares, mas no próprio clima que se sente nas ruas. No último sábado, belo dia de sol, uma churrascaria sempre cheia ao meio-dia estava com metade das mesas vazias. O mesmo foi relatado em relação a bares e outros locais de convívio: tem sido difícil se juntar, comemorar, confraternizar. A desconfiança e a animosidade no ar transcendem o período eleitoral.

Impera um clima que convoca ao recolhimento melancólico, desesperançoso em relação à possibilidade de tempos melhores. Muitos amigos e conhecidos evocaram um filme de Lars Von Trier, Melancolia, no qual duas irmãs aguardam a chegada de um planeta que se chocará com a Terra e dará fim à vida, sem qualquer possibilidade de outro desfecho. É como se a piada que circulava tempos atrás, "Vem, meteoro!", estivesse próxima de se concretizar.

Tudo indica que os próximos tempos não serão nada auspiciosos em nosso país, que ainda lidaremos por um bom tempo com os efeitos do que tem acontecido ao longo dos últimos anos. O resultado de uma eleição não cura a fratura que se expôs, e será preciso muito trabalho para reatar consensos mínimos que possibilitam a vida em conjunto - seja nas relações afetivas, seja no laço social.

Neste momento, um grande desafio que se coloca é resistir à tentação de sucumbir à melancolia, que nos empurra à indiferença com o que acontece e com nossas próprias vidas. Ela embota não só a alegria como o pensamento, por colocar no horizonte um desfecho catastrófico que retira de qualquer ato a possibilidade de significado - como o sujeito depressivo que diz "Se no final vou morrer, que diferença faz?".

Um dos maiores antídotos à entrega à melancolia é estar com quem gostamos. Não para acirrar o confronto entre "nós" e "eles", mas para alimentar aquilo que nos mantém vivos e desejosos de viver: o amor, mas também o trabalho criativo, que sempre tem em seu horizonte encontrar os outros. Em Os Invisíveis, belíssimo filme alemão que acompanha a vida de quatro judeus na Berlim nazista, são esses laços que possibilitam sua sobrevivência em meio ao terror.

Na contramão da atmosfera que chamava a ficar sozinho em casa, no fim de semana passado estive com vários de meus "antídotos". Organizei com duas amigas um encontro para a Feira do Livro sobre sonhos e criação, temas tão importantes nesse momento. Fui prestigiar um amigo no lançamento de seu livro, Não Existe Mais Dia Seguinte, que, apesar do título, fala em suas crônicas da urgente importância dos afetos. Planejei com uma amiga uma festa conjunta de aniversário, mesmo com nosso desânimo. Fui à comemoração de um ano da filha de um casal de amigos, que com sua alegria nos lembrou de cuidarmos da nossa. Terminei a noite de domingo ao lado de um grande amor.

Freud escreveu sobre duas forças que organizam nossa vida, as pulsões de vida e de morte, eros e tanatos. O desafio de cada um, mais urgente do que nunca, é não deixar que se apague a chama de eros.
PAULO GLEICH

27 DE OUTUBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

SAÚDE E DINHEIRO


apesar do alto investimento financeiro, expectativa de vida nos estados unidos só cai

Dinheiro não traz felicidade, diz o povo. Embora haja controvérsias, a julgar pelo exemplo dos Estados Unidos, nem saúde: pelo segundo ano consecutivo, a expectativa de vida dos americanos diminuiu.

Em 1960, eles tinham a expectativa de vida mais alta do mundo. Chegava a 2,4 anos a mais do que a média dos países da OECD (Organization for Economic Cooperation and Development - uma cesta de 35 países, entre os quais os mais ricos e desenvolvidos). Em 1998, a expectativa de vida no país ficou para trás da média da OECD. Hoje, a diferença já é de 1,6 ano: 78,7 anos contra 80,3 anos na OECD.

Um painel conjunto do National Research Council e do Institute of Medicine investigou as causas dessa desvantagem crescente. A conclusão foi a de que a saúde dos americanos é mais pobre em diversos aspectos: obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, ferimentos, homicídios, complicações de parto, gravidez na adolescência, consumo de drogas ilícitas e infecções pelo HIV.

Ficou evidente, também, que o estilo de vida é menos saudável do que o dos países da OECD: as cidades privilegiam o automóvel, a população costuma ingerir alimentos altamente calóricos, abusar de álcool e possuir armas de fogo. Aqueles com renda familiar mais baixa têm menos suporte social, previdenciário e acesso limitado à assistência médica.

As mortes por overdose aumentam a cada ano. Em 2015, foram 64 mil; neste ano, serão 70 mil, números que ultrapassam o total das mortes de soldados americanos na guerra do Vietnã.

Numa análise publicada no Bristish Medical Journal, por Steven Wolf e Laudan Aron, os autores consideraram esses óbitos a "ponta do iceberg" de uma crise de saúde mais abrangente: a mortalidade associada ao abuso de álcool e aos suicídios, que afeta especialmente os brancos de meia idade e certas comunidades rurais.

As causas estariam ligadas ao colapso das indústrias locais, à erosão dos laços comunitários, ao isolamento social, à pressão financeira e à consciência dos trabalhadores de que perderam o padrão de vida que os pais um dia tiveram.

Entre os negros, o número de suicídios e de mortes por overdose não aumentou. Os autores atribuem esse fenômeno à maior resiliência de mulheres e homens negros, habituados a enfrentar desvantagens econômicas, discriminação, preconceito social e mortalidade geral mais elevada.

De outro lado, nos últimos anos, as diferenças sociais se acentuaram, a performance escolar piorou, os salários da classe média estagnaram e os níveis de pobreza aumentaram em relação aos dos países desenvolvidos. O país é rico, mas desigual: os mais pobres têm dificuldade de acesso a serviços sociais, à assistência médica, à prevenção e ao tratamento de transtornos psiquiátricos e dependência química.

Os Estados Unidos investem em saúde 17% de um PIB de US$ 19 trilhões, ou seja, cerca de US$ 3,2 trilhões. É mais do que o PIB inteiro do Brasil. Para justificar esse gasto, o americano médio deveria viver 110 anos, pelo menos. Quem nasce em Santa Catarina vive mais.

DRAUZIO VARELLA


27 DE OUTUBRO DE 2018
JJ CAMARGO

PARA NUNCA ESQUECER

relatos de testemunhas oculares do 11/9 liquidaram com meu dia

A nossa reação à tragédia se submete a uma variável poderosa: a distância. A micro fatalidade de um familiar parecerá sempre mais importante e comovedora do que a mega desgraça ocorrida do outro lado do mundo. E isso é compreensível: o que não vai alterar a monotonia da nossa rotina pode merecer uma exclamação, mas nada que não se resolva com um bocejo.

Como a nossa sensibilidade pode estar entorpecida, mas não eliminada, pela geografia, ao nos aproximarmos do local da iniquidade somos assaltados pela emoção das testemunhas que estavam lá de alma escancarada. É assim quando os turistas visitam Auschwitz, na Polônia, e encaram as marcas das unhas dos prisioneiros nas paredes de cimento das câmaras de gás ou excursionam pelo Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.

A imagem que arquivei daquele 11/9 se diluía com a lembrança do que eu estava fazendo naquela manhã de terça-feira, e recordo o pessoal da UTI correndo para o quarto do plantonista a tempo de ver que o céu azul na extremidade de Manhattan emoldurava as Torres Gêmeas invadidas por aviões e, por fim, ruindo, como ninguém imaginou que pudesse acontecer. Pois foi com o sentimento pífio da mera curiosidade que recentemente visitei o 9/11 Memorial Museum, erguido ali onde outrora duas torres tinham se tornando a obsessão dos inimigos por representarem, na parca visão deles, o símbolo mais pungente do capitalismo ateu. 

Entra-se no memorial, baixa-se um aplicativo no celular e, a partir daí, percorre-se durante até três horas o roteiro da tragédia, a começar pelo preâmbulo representado pela explosão de bombas no subsolo do World Trade Center, em 1993. Anos depois, no laptop de um terrorista, encontrou-se seu pedido de desculpas ao seu líder por ter superestimado o dano potencial daquele atentado, mas deixando o alerta de que o WTC seguiria como alvo no futuro.

O planejamento audacioso, a escolha do dia (a terça-feira é quando os aviões estão sempre menos lotados e, portanto, haveria menos gente para ser dominada pelos poucos terroristas), a seleção de aeronaves gigantes para voos de costa a costa (os tanques cheios de combustível teriam uma participação crucial no atentado) e, principalmente, a assustadora disponibilidade de fanáticos suicidas estão brilhantemente relatadas em Plano de Ataque, de Ivan Sant?

Anna, um livro imperdível. Mas nada mexe mais com a emoção dos turistas que percorrem o memorial do que as fotos das quase 3 mil pessoas, oriundas de 77 países, com idade entre dois e 85 anos, mortas naquele dia fatídico e os depoimentos de dezenas de testemunhas oculares, cujos relatos estão gravados nas paredes. Alguns desses liquidaram com o meu dia e estão lá disponíveis para liquidar com o seu:

"Estamos nos deslocando muito devagar, não vai dar tempo, nós estamos caminhando para a morte" - uma agente de segurança ajudando pessoas na descida da escada do 77º andar.

"Eu tentava animar meus companheiros, dizendo: aguentem firme que nós vamos resgatá-los. Mas eu sabia que não havia mais nada que eu pudesse fazer por eles" - chefe dos bombeiros.

"Eu fiquei parado, vendo aquela mulher olhando para baixo durante um tempo. E, então, ela saltou. Tentei ver para onde, e só havia uma nuvem escura. Foi quando pensei: esta torre com seus ferros retorcidos e vidros pulverizados agora tem uma alma humana!" - um sobrevivente.

"Era uma mulher jovem, com a jaqueta amarela, que olhou um tempo para baixo, depois tirou a jaqueta e pulou. Não sei porquê ela fez aquilo, mas não consegui olhar para mais nada" - um sobrevivente.

"Eu trabalhava na portaria da Torre Norte. Quando a Torre Sul desmoronou, nós soubemos que a nossa também ia cair porque o rangido era igual. E então começamos a correr tentando escapar da nuvem que baixava. Sou uma mulher grande e forte e puxei pelo casaco xadrez uma menina que só chorava e não saía do lugar. Corri muito puxando aquele casaco, quando a nuvem nos alcançou. Acordei numa ambulância cheia de cortes na cabeça e nas costas. Ainda segurava o casaco xadrez, mas ninguém sabia da menina".

ao nos aproximarmos do local da iniquidade, somos assaltados pela emoção das testemunhas que estavam lá de alma escancarada

JJ CAMARGO


27 DE OUTUBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Água concentrada

Na minha infância, o melhor momento do domingo eram os filmes de faroeste. Havia uma cena recorrente. O herói fazia uma longa jornada debaixo de um sol inclemente. Comia poeira em um trajeto de areia, pedra e desolação. Finalmente chegava a uma vila. Mal amarrava o cavalo, pedia no saloon um martelinho de uísque.

Como nunca tinha tomado, imaginava aquilo como a mais refrescante das águas. Um líquido concentrado, pequeno, mas que engolia a aridez de um deserto. Magnífica invenção contra a sede mais árdua.

Portanto, quando Nico surrupiou de casa uma dessas bebidas poderosas, fiquei eufórico. Aquilo não era para meninos, sabíamos, mas por que não experimentar aquela maravilha que enfeitiçava nossos mais velhos e fazia a delícia de cowboys de matiné?

Tínhamos um terceiro cúmplice, Beto, também da nossa idade. Escolhemos a tardinha de domingo para a iniciação. Um terreno baldio, que já servira para outros planos secretos, seria o palco.

Como Nico tinha providenciado os meios e dado a ideia, coube-lhe, então, a honra do primeiro gole. Fui o segundo. Tive a sensação de engolir uma brasa. Menti que era bom. Beto não conseguiu nem disfarçar, cuspiu.

Nosso patrocinador bebeu mais um gole. Cinco minutos depois, estava bêbado. Ou, hoje pensando, queria estar bêbado. Gritava, cantava e girava sobre si numa dança patética, um xamanismo anacrônico. Sem razão, rasgou a própria camisa.

Era uma festa só dele. Para nós, a aventura desembestou em horror. Eu e o Beto olhávamos assustados o exu que brotou. Temíamos ser descobertos e precisávamos esconder um pinguço escandaloso.

Finalmente, ele vomitou, da pior maneira, em suas roupas. Mas seguia embriagado de si mesmo. Queria caminhar pela cidade naquele estado lamentável. Nossos olhos eram de pouca valia para sua performance.

Tentamos impedi-lo e ele nos driblou. Saltou o muro e se foi. Por um tempo imploramos que voltasse, depois o abandonamos a sua sorte. Perambulou pela cidade como um louco e foi recolhido pela família.

Sua mãe ligou para as nossas para alertar que talvez tivéssemos aprontado juntos. O contraste entre a descrição do Nico e a nossa sobriedade nos salvou. Para evitar uma bronca em casa, deixamos um soldado ferido para trás. Cometemos a maior das infâmias entre amigos, não cuidar de bêbado. Não sei do Beto, mas é uma das minhas maiores vergonhas.

Aprendi que não há substância capaz de desbancar a aridez da vida. Já Nico continuou esperando demais das drogas. Anos depois, cruzou a fronteira das injetáveis. Compartilhar seringas lhe custou a vida. Nada deteve sua busca de uma substância mágica que atalhasse para a felicidade.

Ninguém conseguiu impedir sua busca infrutífera. Bons e inquebrantáveis laços afetivos podem ajudar a sair desse labirinto. De certo, ele seguiu tendo o azar de amigos frouxos.

MÁRIO CORSO

27 DE OUTUBRO DE 2018
DUAS VISÕES

POR QUE BOLSONARO? REPRESENTA A ESPERANÇA

Neste domingo, 28 de outubro, dia de grande responsabilidade, seremos testemunhas de um fato histórico. Depois de muito tempo de total descrença da população na política, voltamos a ver a esperança estampada nos olhos de milhares de pessoas que clamam por mudanças.

E é isso o que o voto em Jair Bolsonaro representa: esperança. A esperança de um país mais seguro, com tolerância zero com o crime, com a corrupção e com os privilégios. Um país onde o direito de propriedade seja respeitado, onde os recursos sejam aplicados onde realmente devem ser: saúde, educação, infraestrutura e segurança pública.

Bolsonaro é o símbolo da luta contra os desvios de dinheiro público, do fim de um longo projeto de poder do PT, comprovadamente financiado pela corrupção e pelo aparelhamento do Estado. Representa o fim do uso de recursos do BNDES, tão escassos para projetos essenciais ao nosso país, para financiar grandes projetos em nações com ideologias similares à do PT, muitas vezes governadas por ditadores.

O voto em Jair Bolsonaro significa a esperança de um país onde os valores não sejam invertidos, onde a escola tenha responsabilidade com a formação de nossas crianças sem doutrinação ideológica e onde todas as pessoas sejam tratadas de forma igual. Um país onde o empreendedor tenha liberdade para atuar e as pessoas tenham vagas de emprego e condições dignas de trabalho.

Bolsonaro trabalhará para desburocratizar, reestruturar e reduzir o Estado brasileiro. Essa é uma das principais propostas defendidas por Paulo Guedes, futuro responsável pela política econômica e que conta com a adesão de diversos setores da economia.

Também é muito positiva a descentralização do poder e dos recursos da União, ideia defendida pela equipe de Bolsonaro. "Menos Brasília e mais Brasil." A proposta é baseada em uma distribuição mais justa dos recursos da União com repasse maior, menos burocrático e com grande autonomia das gestões municipais. Afinal, é nos municípios onde tudo acontece, é onde as pessoas estão e, consequentemente, onde os problemas são identificados e podem ser mais bem administrados.

Caso eleito, promoverá uma justa e responsável reforma da Previdência, com a adoção de um modelo de capitalização que não prejudicará os trabalhadores; além da reforma tributária, que unificará diversos tributos federais e que reduzirá a nossa altíssima e injusta carga de impostos.

Por todos esses motivos, apoio e trabalho por um governo sólido, propositivo e responsável com os valores do nosso país e que representa a esperança na mudança. Defendo um candidato sério, honesto, ficha-limpa e que dedicou sua vida pelo Brasil. E eu tenho certeza de que os brasileiros saberão reconhecer isso.

Este domingo será marcado pelo início de uma grande mudança que tanto almejamos. A data que entrará na história como o dia em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República - o homem que representa a expectativa do cidadão brasileiro que trabalha, que produz. O presidente que vai devolver o orgulho de ser brasileiro, de ser "Pátria Amada, Brasil".

LUIS CARLOS HEINZE Senador eleito (PP-RS) dep.luiscarlosheinze@camara.leg.br

sábado, 20 de outubro de 2018


20 DE OUTUBRO DE 2018
LYA LUFT

Terra de ninguém, ou de muita coisa

Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta. Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada.

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz, que nos povoam, e somos terra deles. Como quando abro a janela e, diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança). Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!". E isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu, mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro uma brasileira toque meu ombro pra perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar, e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Entusiasmo às vezes, vamos levantar, dona Lya! Ou vontade de ficar ali quietíssima esperando nem sei o quê. O marido perguntando se dormi direito, primeiro carinho do dia. A cachorrinha bebê subindo no meu peito e me olhando com sua cara de ursinho de pelúcia. Saber que a família está por ali e, apesar de uma lacuna grave, e triste, continua me amando como eu a eles.

Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da Serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido, e vizinhas e amigas - e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas.

Esquecer, ao abrir os olhos físicos, por um momento, que em breve haverá novas eleições, e que tanta discórdia surge por causa disso: pessoas que se amavam se deletam, se ofendem, se desconstroem, e nem sabem direito por que motivo estão se empobrecendo de tal maneira.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro, e não entregar os pontos, pensando que logo essa fase de eleições vai acabar, e quem sabe muitíssimas pessoas vão se abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, sonhos, esperanças - ah, as esperanças.

LYA LUFT

20 DE OUTUBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

As bolhas


Era criança e ficava extasiada ao ver um termômetro quebrar. De dentro, saíam várias bolhinhas de mercúrio. Eu mesma vivia numa bolha, mas não sabia. Achava que o planeta se resumia à minha família, ao colégio e ao clube, onde eu encontrava "todo mundo". Todos iguais, brancos, de classe média alta, que reproduziam piadinhas racistas e chamavam de bicha os garotos que não jogavam bola. Não éramos pessoas ruins, apenas alienados.

Mas tive sorte. Meus pais me proporcionaram muita leitura, música, teatro. Dessa forma, o "todo mundo" se expandia. Caetano, Millôr, Fernanda Montenegro e Marina Colassanti, só pra citar alguns, viviam no meu quarto. Cultura não era apenas entretenimento e, sim, uma ponte para um universo muito mais amplo.

A arte impulsionou meu crescimento, mas eu continuava habitando um microcosmo. Até que comecei a trabalhar, a namorar. E aconteceu: conheci pessoas de fora da minha bolha. Gente que foi criada de outro modo, que tinha outra história de vida, que passava por dificuldades que nunca passei. É normal fazer turismo por territórios "estrangeiros", mas é raro incorporá-los ao nosso. Seguem eles lá, nós aqui. Cada um na sua bolha.

Já fui a favor do porte de arma. Já fui contra as cotas nas universidades. Eu estava errada. Eu mudei de ideia. E isso só foi possível porque saí da minha bolha para escutar, enxergar, compreender. Não haveria crescimento progressivo se eu me contentasse em dizer oi para quem era diferente de mim e logo voltasse correndo para baixo da minha cama. Então, cheguei mais perto de tudo que não era eu, e passei a levar outras realidades em conta.

Uma das maneiras de se fazer isso é por meio da política. Já votei certo. Já votei errado. Mesmo sabendo que a nossa política, como um todo, é canalha, cafona e arrogante, ela ainda é uma forma para avançarmos. Se a gente não avança, a gente morre dentro da bolha. Vive aquela vidinha: família, colégio, clube. Tudo bem seguro, como se não houvesse ninguém lá fora, ninguém que importasse.

Nunca fui militante ou ativista. Nunca tive partido, nunca fui fiel a um candidato. Mas já não me acomodo. Trouxe da minha bolha os princípios éticos e deixei pra trás os preconceitos e tudo o que me abreviava como ser humano, tudo o que parecia que me protegia, mas que apenas me tornava uma criatura indiferente. E o processo não terminou, ainda tenho muito a evoluir.

Diante do atual aquecimento de ânimos, lembrei do termômetro quebrado, das gotas de mercúrio no chão e de como elas se fundiam numa só, atraídas umas para as outras numa reação química que me parecia fascinante. Em meio a essa perigosa onda retrô em que nos metemos, nunca me pareceu tão urgente que o "todo mundo" de um dialogue com o "todo mundo" do outro. E apostar em quem respeita o poder transformador da educação, da arte e da diversidade, contribuindo assim para unir todas as bolhas.

MARTHA MEDEIROS

20 DE OUTUBRO DE 2018
CLAUDIA TAJES

Bora compartilhar

Deu no jornal Sensacionalista: WhatsApp leva o prêmio de Veículo do Ano. Fake news com humor.

Embora as tantas publicações jornalísticas de variadas tendências, é no WhatsApp que os mais afoitos - deixemos assim para não ofender ninguém - se "informam". E não tem nada pior do que o famigerado zap para espalhar inverdades por aí. Não sou eu (pobre de mim) que digo, são os fatos. Tanto que o WhatsApp agora impede que a mesma mensagem seja enviada para mais de 20 pessoas em uma única leva, tentativa de diminuir o alcance das fake news. Até julho, cada mensagem podia ser enviada para até 200 almas. Aumentou a mão de obra dos mal-intencionados, mas não terminou com o trabalho sujo. Tem até um candidato que quer rever isso daí, se eleito for.

Faço parte de pouquíssimos grupos de WhatsApp por absoluta convicção. O da família, graças ao bom Deus, comunga das mesmas ideias e do mesmo time de futebol. Devemos ser dos poucos parentes que não passarão o Natal afastados neste ano. Quando me adicionam a um grupo sem perguntar se eu quero, saio no mesmo instante. Já anda tão difícil conviver com pessoas que têm, ou tiveram, significado para a gente, que razão existe para ser incluída em comunidades que não vão acrescentar nada além de boatos diários? Vade retro.

O WhatsApp é a versão atualizada dos fofoqueiros de ontem, que dependiam da própria língua para espalhar pelo prédio suposições sobre as intimidades da vizinha solteira do 301. Ou então se penduravam no telefone fixo para contar alguma bomba que nunca se confirmava, mas que era passada adiante como um fato cientificamente comprovado. 

Quem nunca foi prejudicado, ou prejudicou alguém, por uma fofoca inconsequente? Interessante é que desde sempre as mulheres foram rotuladas como as grandes linguarudas da raça, afirmação controversa - para dizer o mínimo. "Homem não faz fofoca" é uma frase tão equivocada quanto "homem não chora". Só se o homem não fosse humano. Bem, alguns até parecem não ser, mas esses são até mais intrigueiros.

Com o WhatsApp, além da fofoca, a maldade ganhou amplitude digital. Quer acabar com uma reputação? Publique nos seus grupos do WhatsApp. Ninguém se dará ao trabalho de verificar se a coisa procede mesmo, e a batata quente cibernética vai passar de celular em celular até virar uma condenação. Ah, e não adianta a vítima ir a público desmentir e se defender. No WhatsApp, a verdade interessa muito menos do que detalhes sórdidos, de preferência sem provas para aumentar o nível de bizarrice.

O mais irritante é que as fake news, amplamente documentadas em supostos recortes de jornal cheios de erros de gramática e em vídeos onde canastronas e canastrões desconhecidos dão testemunhos delirantes sobre política, arte, educação, comportamento e o que mais a ocasião mandar, terminam sempre com as mesmas imprecações (ô, palavrinha) às massas: bora compartilhar. Curte e compartilha. Compartilha para todos os seus contatos.

Bora compartilhar bom senso, meus amigos. Porque se cada um continuar passando adiante a verdade que lhe é mais conveniente, aí de nada terá adiantado todo o progresso que viver até aqui nos trouxe. Melhor voltar ao pombo-correio. Pelo menos as fake news demorarão mais a se espalhar.

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Bem a propósito de tudo o que anda acontecendo, o professor Vitor Necchi lança Não Existe Mais Dia Seguinte, crônicas sensíveis com o consolo da filosofia em tempos de intolerância. Neste sábado, dia 20, às 17h, na Livraria Taverna. Pode compartilhar que é quente.

CLAUDIA TAJES

20 DE OUTUBRO DE 2018
CARPINEJAR

Nunca dê as costas

Uma exigência de casa me salvou. Um hábito simples determinou o meu jeitinho de amar. Para sempre amar enxergando, amar com coragem.

Todos os mandamentos de berço são os votos de Minerva em meus dilemas. Quando estou em dúvida em uma decisão, eu me inspiro naquilo que aprendi quando pequeno. A receita é imbatível. Não importa se trago uma boa ou má notícia, devo assumir a responsabilidade de mensageiro.

Sinceridade é pontualidade: deixar de comentar algo importante quando já se encontrou com alguém cria incontornável mal-estar:. Por que você não me contou antes?

Só me cabe a hombridade de não adiar, não distorcer e não enrolar: enfrentar os problemas com rigor, não dando desculpas, não se isentando da gravidade do que penso, não colocando a culpa em terceiros.

Educação é levar a sério o que os pais dizem. Eu não questiono, obedeço, eles são mais velhos do que eu e querem o meu melhor. Não nasci sabendo, malandragem é arrogância.

Minha mãe não me permitia conversar de costas para ninguém. - Nunca dê as costas quando fala. É afronta, é grosseria, é falta de respeito. Vivia corrigindo a minha postura diante de colegas e familiares. Meu quadril ficou firme como um poste. Era uma chatice que eu odiava na época e hoje faz muito sentido.

Ela pedia que eu ficasse em silêncio até me aproximar do interlocutor. A palavra tinha que esperar que estivesse finalmente frente a frente.

O conselho me serviu para fim de relacionamentos (jamais acabar uma história por telefone ou mensagem), na confissão de erros, na retratação de amizades. Tudo precisava ser resolvido presencialmente, cara a cara, para não restar dúvidas.

Tanto que a mãe não aceitava que eu conversasse de longe, zanzando pelos corredores ou confinado no quarto. - Deseja me dizer algo? Venha até aqui e me diga.

Ela costumava explicar que não me ouvia direito, um truque que me constrangia e me impedia de enganá-la.

Encarar a mãe tornava qualquer mentira complicada. Uma coisa é mentir pela boca, outra bem diferente é mentir pelos olhos. Não dou as costas para qualquer pessoa. Nenhuma pessoa é qualquer pessoa.

CARPINEJAR

20 DE OUTUBRO DE 2018
PIANGERS

Eu não nasci pra sofrer

Dias desses, navegando pelo Youtube, acabei caindo em uma ótima palestra do professor Luli Radfahrer sobre o emprego. "Que coisa é essa que todas as pessoas, todos os governos, todas as empresas defendem tanto?", ele pergunta. "O emprego é uma violência diária, constante e gigantesca. É uma humilhação completa em que todos os dias você é submisso e tem que respeitar uma hierarquia que não faz o menor sentido. Você tem um idiota por chefe, você tem um idiota por cliente, quando você mesmo não é o verdadeiro idiota", ele diz, comicamente. "Ainda assim, você não pode falar mal do emprego. Você pode falar mal do seu trabalho, mas não pode falar mal de trabalhar", completa.

Logicamente, ridicularizar o trabalho é tarefa delegada apenas para malucos ou revolucionários. Nosso século foi baseado naquilo que fazemos e no quanto de valor aquilo que fazemos entrega para a sociedade. Alguns sobrenomes, inclusive, determinam aquilo que seus antepassados faziam: os Fischers são pescadores, os Schumachers são sapateiros, os Schmidt são ferreiros, e assim por diante. Soa ultrajante desafiar aquilo que nos deu um sobrenome, aquilo que nos empresta algum sentido no mundo. Desafiar nosso trabalho é também desafiar nossa própria identidade. A primeira coisa que perguntamos para uma pessoa ao conhecê-la é seu nome. A segunda é o que ela faz da vida.

Mas tudo leva a crer que os próximos anos serão de cada vez menos empregos, pelo menos como os conhecemos. Cada vez mais, postos de trabalho estão sendo substituídos por máquinas. As grandes montadoras de carros nos anos 1980 empregavam mais de um milhão de pessoas. A nova grande indústria da tecnologia emprega metade disso. A cada dia, jornalistas, engenheiros, arquitetos, advogados e fisioterapeutas se tornam motoristas de Uber por não conseguir colocação na sua área. E o que acontecerá quando os carros se dirigirem sozinhos, revolução prevista para os próximos 10 anos?

Teremos que reorganizar nossa sociedade de outra forma. Não será a primeira vez. Migramos de uma sociedade agrícola para uma sociedade industrial. Hoje, grandes potências econômicas são, em grande parte, focadas em serviços. Qual será o próximo passo? Quando as máquinas forem mais inteligentes do que nós, o que os futuristas chamam de singularidade e preveem que aconteça até 2049, o que sobrará para nós e nossos empregos inúteis? No futuro, teremos que entender novamente o que podemos ser, para além daquilo que fazemos. Seremos todos artistas? Youtubers? Jogadores de videogame em uma realidade virtual? Uma sociedade hedonista que apenas passa os dias assistindo Netflix, jogando Candy Crush? Seja como for, teremos sempre os malucos e revolucionários para nos provocar.

PIANGERS

20 DE OUTUBRO DE 2018
PAULO GERMANO

O mito

Um dos textos mais debatidos da história da humanidade, O Mito da Caverna, de Platão, foi escrito 380 anos antes de Cristo e, ainda hoje, apresenta a mais profunda e precisa explicação sobre a nossa ignorância. Onde quer que você vá, lá estão os prisioneiros da caverna negando a realidade e mergulhando nas sombras de um mundo distorcido que eles próprios escolheram enxergar.

Mas comecemos do começo. Se você já conhece o mito, creio que não verá problema em ler outra vez sobre ele, visto que a história é muito boa. Platão conta que um grupo de pessoas - morri de pena quando li sobre elas no colégio, então vale lembrar que isso é uma parábola, não aconteceu de verdade - nasceu e cresceu dentro de uma caverna escura. E todos tinham seus braços, pernas e pescoços presos por correntes. Era uma chatice, porque a turma só conseguia olhar para o fundo da caverna: ninguém nunca tinha visto o que havia lá fora.

E, do lado de fora, havia uma fogueira. E, em volta dessa fogueira, gente que passava com objetos e bichos e qualquer coisa que um ser humano carrega por aí. Mas os prisioneiros, sempre olhando para a parede do fundo da caverna, só conseguiam enxergar as sombras desse monte de coisa. Para eles, as sombras eram a realidade: aquele mundinho minúsculo, limitado e fictício era, na cabeça deles, o mundo real.

Só que um dia, que maravilha!, um dos presos conseguiu escapar. Foi meio chato no início: seus olhos doeram com tanta luz, ele sentiu vontade de voltar para a caverna, mas tanta liberdade e novidade, tanta descoberta naquele mundo sem limites, foram deixando o homem encantado, feliz, realizado. Lá foi ele buscar os velhos amigos, mas, quando entrou na caverna de novo, aí foi a escuridão que afetou seus olhos.

Sem conseguir enxergar direito, o cara foi visto como doente pela turma, que não acreditava em nada do que ele contava. Passaram a vê-lo como uma ameaça: "Esse louco ainda vai atrair mais gente para fora da caverna, e o pessoal vai acabar cego e doido que nem ele". Solução: mataram o coitado. Fim da história.

É fácil entender a metáfora toda: a caverna simboliza os limites do nosso mundo quando estamos acorrentados, presos às nossas crenças, ao senso comum, aos dogmas e à ignorância. No momento atual do país, brota de todo canto gente amarrada ao conforto da obviedade, gente fugindo da avaliação racional e independente, gente que evita refletir por se contentar com verdades (ainda que falsas) oferecidas por quem pensa exatamente como elas.

São como o grupo da caverna, que nasceu e cresceu acreditando só no que a própria turma dizia - e, quando alguém tentou apresentar o outro lado, tornou-se inimigo de morte na mesma hora. Uma reportagem da Débora Ely, publicada em Zero Hora na semana que passou, mostrou a rede de fake news montada por eleitores de um candidato no WhatsApp. Fica claro que eles realmente acreditam nela, e não na imprensa, não em quem está fora do grupo, não em quem apenas busca a verdade - seja ela boa ou ruim.

Não há problema algum em admirar alguém, em seguir um líder, em festejar suas ideias. O problema é anular-se. É abrir mão de questionar, é parar de pensar, é ter um ataque histérico quando alguém expressa uma dúvida. É assim que nos enfiamos na caverna. É assim que Platão segue atual. É assim que se confirma o mito.

PAULO GERMANO