terça-feira, 28 de setembro de 2010



28 de setembro de 2010 | N° 16472
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A vida e a História

Não é muito comum que pessoas que já nos deixaram – algumas delas merecendo cadeira cativa nos manuais de História – voltem a visitar-nos vivas e presentes nas páginas de uma novela. Foi o que me aconteceu ao percorrer as páginas de A Noite de Netuno e da Virgem, do arquiteto e urbanista Osni Schroeder. É um livro que somente agora, três anos depois do lançamento, recebo, por uma gentileza de meu irmão Eduardo.

Toda a trama se passa em Cachoeira, numa noite de inverno. Nathalio, boêmio por gosto e inclinação, é o personagem principal, mas não absolutamente o único. Num estilo direto e saboroso, o autor nos apresenta uma variadíssima coleção de criaturas, algumas saídas de sua imaginação, como Vilma, a que sente muito frio, mas não sai da janela de sua casa, com vista privilegiada para a Praça Balthazar de Bem e as vidas alheias; outras, retiradas do fundo dos decênios e dos séculos.

Mas as grandes personas desse cenário, todas iluminadas pela narrativa envolvente de Schroeder, são a esplanada moldada pela Catedral e a Virgem que está em seu topo, o Château d’Eau, um caprichoso conjunto de fontes, palmeiras e pontes, o prédio antigo da Prefeitura, visitado pelo Imperador Pedro II.

A Catedral é toda uma bela escultura coroada por duas torres e mais um exercício de estilos que remontam ao ano de 1799. O Château d’Eau, que tem no topo o deus Netuno apontando seu tridente para o infinito, é o símbolo da cidade, em particular pelas ninfas, que derramam a água de seus cântaros sobre um lago povoado de peixes vermelhos. E a Prefeitura, que tem estampada na fachada o ano de 1864, é um exemplo magnífico da arquitetura colonial brasileira.

Esse foi o palco escolhido por Osni Schroeder para exercer seu realismo fantástico. Não pretendo fazer desfilar nestas poucas linhas toda a riqueza dos personagens que povoam sua ficção.

Direi apenas que há uma cena, para mim inapagável, em que João Neves da Fontoura saúda em um discurso meu pai, Liberato Salzano Vieira da Cunha. Restam lugares para criaturas sobrenaturais, como Santa Josefa, a velha estação de trens, ou um carro antigo, que acelera do avesso do tempo.

E mais não conto para não roubar o prazer da leitura de quantos só agora, como eu, estão folheando as páginas de um livro singular.

Uma linda terça-feira. Aproveite o dia.

sábado, 25 de setembro de 2010



26 de setembro de 2010 | N° 16470
MARTHA MEDEIROS


A anestesia do impacto

Desde que houve o acidente com o filho da Cissa Guimarães, eu só havia falado com ela por telefone. Semana passada estive no Rio e pude finalmente dar o abraço que desejava. Passamos uma tarde juntas e, entre outras coisas, foi inevitável conversar sobre o que aconteceu e como ela está lidando com tudo isso.

Ainda que esteja sendo sustentada emocionalmente pelos outros filhos, pelo neto, pelo trabalho e pelos amigos, sua dor está maior agora, ao contrário do que se imagina. E vem aumentando a cada dia.

Acabei lembrando de uma entrevista que o pugilista Popó deu certa vez, onde dizia que na hora a pancada não dói, só dói no dia seguinte. Faz sentido. O choque anestesia a brutalidade dos fatos.

Imagino que a morte de um filho deve ser como uma bomba atômica que explode no meio da sala. Todos ficam catatônicos, sem ação, não sabendo mais como agir, comer, dormir, viver. Não há mais o que havia antes.

Até se adaptar a essa desorganização radical do cotidiano, fica-se num estado de entorpecência, e não raro os familiares se iludem de que será razoavelmente fácil administrar a nova situação. Mas aí, aos poucos, o efeito anestésico da surpresa vai diminuindo, a reconstrução de uma nova rotina se impõe e a ausência torna-se acachapante pra valer.

Não precisamos vivenciar uma dor dessa dimensão para entender como funciona. Todos nós passamos por outros tipos de impacto que, num primeiro momento, parecem facilmente superáveis. Um casamento desfeito, a traição de um sócio, uma demissão, o cancelamento de um sonho, a ruptura definitiva com um parente. Na hora da pancada, ficamos atordoados, porém buscamos forças para continuar de pé e seguir no ringue, afinal, temos cérebro para quê?

Tiramos da cartola argumentos que nos seguram, a autoestima é convocada, nos agarramos à fé: tudo vai dar certo, nada nos atingirá. Mas aí o tempo passa, as coisas se acomodam e começamos a nos permitir sentir o que antes não permitíamos.

Descobrimos então que estamos frágeis emocionalmente, cansados de combater a tristeza, sozinhos diante da inevitalidade dos fatos, e então jogamos a toalha e aceitamos a derrota. O analgésico contra o choque não faz mais efeito.

Não é justo nem injusto, simplesmente é assim. Somos condicionados a nos acostumar com o que é regra, com o que é conhecido, com emoções controláveis. Quando a vida nos tira o chão e reverte a ordem natural dos acontecimentos, ficamos pendurados por uma cordinha tênue que se chama esperança, e nem sabemos exatamente esperança de quê: de aniquilar com a dor? De voltarmos no tempo? De uma nova alegria nos alcançar? De tudo isso e mais o que for necessário para a gente reencontrar quem não podemos perder em hipótese alguma, que é a si próprio.

Um lindo domingo para você


25 de setembro de 2010 | N° 16469
NILSON SOUZA


Campos de sonhos

O primeiro jogador de futebol de verdade que conheci chamava-se Darlã e tinha a orelha esquerda encolhida por uma queimadura. Nunca vou esquecer aquele rosto. Foi nos Eucaliptos, esse estádio que o Internacional acaba de vender e que em breve será transformado num conjunto residencial.

Juntamente com outros meninos da minha idade, tinha assistido ao treino e estávamos rondando o vestiário quando aquele jovem negro, ainda suado pelo exercício recém concluído, colocou a cabeça numa janela e me escolheu aleatoriamente:

– Guri, vai ali no bar e busca uma Crush pra mim.

Sem nunca ter me visto, me entregou o dinheiro do refrigerante. Acho que eu devia ter uma cara honesta – ou então ele confiava no próprio prestígio, pois os atletas profissionais sabiam que a meninada os idolatrava. Atravessei a rua correndo e voltei logo com a bebida, uma espécie de laranjada, que vinha numa garrafa de vidro com ranhuras. Anos depois, no mesmo local, acompanhei como jornalista esportivo a mudança do Inter para o Beira-Rio e o abandono sistemático do velho estádio.

Também frequentei o Olímpico na adolescência. Fui aprovado numa peneira, uma espécie de teste coletivo para candidatos a jogador. Dei um passe de três dedos e o selecionador parou o treino, dizendo que eu já podia sair e esperar ao lado do campo porque tinha sido aprovado.

Os outros dois meninos do meu bairro, que me acompanhavam na aventura, não tiveram a mesma sorte. Morávamos na Zona Norte, do outro lado da cidade. Voltei aos estádios algumas vezes, de bonde, solitário, carregando um par de chuteiras velhas, sem muito entusiasmo para treinar entre desconhecidos.

O que era diversão passou a ser sacrifício e acabei desistindo da meteórica carreira. Acho que nunca mais acertei um passe de três dedos, mas o Olímpico é até hoje uma lembrança doce daquele momento mágico da minha vida. Também lá voltei muitas vezes, para exercer meu ofício de jornalista.

Agora, o estádio do Grêmio também será demolido, para dar lugar a blocos de apartamentos.

A Azenha e o Menino Deus não serão mais os mesmos sem os seus templos do futebol. Imagino que, num futuro não muito distante, meninos de apartamento correrão atrás da bola no playground dos seus prédios, sem saber que pisam em locais que já foram campos de sonhos para muitas gerações de garotos. Alguns transformaram o brinquedo em profissão.

Outros, como este escriba, guardam daquela época apenas algumas lembranças enfumaçadas pelo tempo.

Como o Darlã – que tinha jeito de craque mas nunca foi; o bonde – que chacoalhava a solidão dos passageiros; e a Crush – que às vezes continha pedaços de laranja.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010



22 de setembro de 2010 | N° 16466
MARTHA MEDEIROS


Coisas que não servem pra nada

De outubro a dezembro, Porto Alegre receberá a maior exposição de arte urbana do mundo, a Cow Parade. Dezenas de vacas de fibra de vidro, em tamanho natural, ficarão espalhadas pela cidade, todas decoradas por artistas plásticos, diretores de arte, designers e cartunistas.

Um nonsense mais que bem-vindo, uma intervenção no nosso olhar acostumado. Ao passar por ruas, parques e viadutos, seremos surpreendidos por elas, vacas enormes, coloridas, profanas, insólitas. Para quê? Para nada de especial, apenas para espantar o tédio, inspirar loucuras, lembrar que as coisas não precisam ser sempre iguais.

Um descrente não se convenceria: “Se não serve para nada, então qual o sentido?”.

Convocarei a poesia para tentar explicar.

Ela, a poesia, serve para a mesma coisa que serve uma vaca no meio da calçada de uma agitada metrópole. Para alterar o curso do nosso andar, para interromper um hábito, para provocar um estranhamento, para nos fazer pensar, para nos resgatar do inferno que é viver todo santo dia sem nenhum assombro, sem nenhum encantamento.

Ainda ouço o sujeito resmungando: “Ou seja, também não serve pra nada”.

Hoje em dia, quando se quer elogiar alguma coisa, costuma-se dizer: “Fulano é tudo”, “O filme é tudo”. Quanta consistência, quanta importância. Tudo!

Diante da soberania do tudo, defendo o nada e sua valiosa despretensão. Flores não servem para nada, mas não abro mão de tê-las por perto, me fazendo companhia dentro de casa. Velas não servem para nada (quando se tem energia elétrica), mas eu as acendo mesmo assim, para que atraiam bons espíritos. Para que serve viajar, havendo cartões-postais?

Os cartões ao menos podem ser grudados na parede, mas lembranças, se faz o que com elas? Para que serve comer um prato caro e elaborado se, horas mais tarde, ele terá o mesmo fim que um reles feijão com arroz? Para que serve a arte? Para que serve a paixão? Para que serve mergulhar, escalar uma montanha, saltar de paraquedas?

Contaminados pela síndrome da utilidade, estamos perdendo o hábito de reverenciar a nobreza daquilo que serve apenas para ser contemplado, daquilo que desperta um prazer sensitivo e nada mais.

O tudo (tecnologia, religião, política, família) nos incute metas, ritos, obrigações, distraindo-nos assim da ideia da morte. Mas é o nada que, em sua extrema pureza, dá o verdadeiro sentido à vida.

Aproveite a quarta-feira. Tenha um ótimo dia.

terça-feira, 21 de setembro de 2010



21 de setembro de 2010 | N° 16465
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O custo da felicidade

A felicidade já é cotada nas bolsas de valores? Sou inclinado a supor que não. Mas uma reportagem de Giuliano Guandalini, publicada na Veja, informa que uma pesquisa do Gallup, feita com base na análise de 400 mil pessoas, dá uma pista a respeito. Segundo esse levantamento, o preço de uma vida feliz gira ao redor de 75 mil dólares por ano e por família de classe média, o bastante para ter uma casa confortável, um carro novo e a educação dos filhos.

Me permito pôr aqui minha colher torta no assunto, para concluir que 75 mil dólares são insuficientes para uma inscrição naquele fechado clube que Stendhal chamava de “the happy few.”

Pois mister é que, além das notas verdes, hoje tão anêmicas mesmo ante um euro debilitado, você seja agraciado com uma boa dose de serenidade. É preciso que seja abençoado com uma razoável porção de paz, bem posicionada entre você e sua circunstância.

Eu não desaconselharia uma qualidade especial e única: o amor por você mesmo.

Não deixaria de lado o apreço por seus amigos, aqueles com que você precisa contar sempre, nas horas sombrias, mas, muito especialmente, nos momentos alegres.

Não esqueceria de recomendar que você vivesse em estado de paixão, por suas amadas passadas e presentes e, particularmente, por aquelas cujo coração você quiser conquistar.

Não desdenharia uma sadia tendência por sua profissão ou seu ofício, pois somos o que nos dá prazer de fazer.

Amaria meus filhos e meus netos com essa devoção de que só a partilha é capaz.

Acalentaria meus sonhos, mesmo os mais impossíveis, com essa confiança que só a fé e a imaginação nos dão.

Colecionaria as partituras de todos os grandes músicos, as frases de todos os melhores escritores, as telas de todos os grandes pintores.

Viveria em uma morada que fosse o retrato perfeito de todos os meus devaneios, de todos os meus anseios – e ainda refletisse minha inteira fisionomia.

E a cada dia e a cada instante agradeceria a mim mesmo pelo simples ato de estar vivo.

Aproveite o Dia da Árvore. Uma linda terça-feira.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Hino Riograndense

Como aurora precursora
Do farol da divindade
Foi o vinte de setembro
O precursor da liberdade

Refrão

Mostremos valor e constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
II.
Mas não basta pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
Refrão
Mostremos valor e constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
De modelo a toda terra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda terra
[Trecho suprimido

Em 1966, durante o Regime Militar a segunda estrofe foi retirada oficialmente.

Que entre nós, reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos



Parabéns para os gaúchos e gaúchas de todas as querencias - Ótimo feriado

sábado, 18 de setembro de 2010



19 de setembro de 2010 | N° 16463
MARTHA MEDEIROS


Na terra do se

Se quem luta por um mundo melhor soubesse que toda revolução começa por revolucionar antes a si próprio.

Se aqueles que vivem intoxicando sua família e seus amigos com reclamações fechassem um pouco a boca e abrissem suas cabeças, reconhecendo que são responsáveis por tudo o que lhes acontece.

Se as diferenças fossem aceitas naturalmente e só nos defendêssemos contra quem nos faz mal.

Se todas as religiões fossem fiéis a seus preceitos, enaltecendo apenas o amor e a paz, sem se envolver com as escolhas particulares de seus devotos.

Se a gente percebesse que tudo o que é feito em nome do amor (e isso não inclui o ciúme e a posse) tem 100% de gerar boas reações e resultados positivos.

Se as pessoas fossem seguras o suficiente para tolerar opiniões contrárias às suas sem precisar agredir e despejar sua raiva.

Se fôssemos mais divertidos para nos vestir e mobiliar nossa casa, e menos reféns de convencionalismos.

Se não tivéssemos tanto medo da solidão e não fizéssemos tanta besteira para evitá-la.

Se todos lessem bons livros.

Se as pessoas soubessem que quase sempre vale mais a pena gastar dinheiro com coisas que não vão para dentro dos armários, como viagens, filmes e festas para celebrar a vida.

Se valorizássemos o cachorro-quente tanto quanto o caviar.

Se mudássemos o foco e concluíssemos que infelicidade não existe, o que existe são apenas momentos infelizes.

Se percebêssemos a diferença entre ter uma vida sensacional e uma vida sensacionalista.

Se acreditássemos que uma pessoa é sempre mais valiosa do que uma instituição: é a instituição que deve servir a ela, e não o contrário.

Se quem não tem bom humor reconhecesse sua falta e fizesse dessa busca a mais importante da sua vida.

Se as pessoas não se manifestassem agressivamente contra tudo só para tentar provar que são inteligentes.

Se em vez de lutar para não envelhecer, lutássemos para não emburrecer.

Se.

Ótimo domingo para você e um ótimo feriado para os gaúchos e gaúchas tche.


18 de setembro de 2010 | N° 16462
NILSON SOUZA


Perspectiva

A política nos confunde. Não passa dia sem que sejamos confrontados com versões antagônicas de um mesmo fato. Adeptos de causas e candidatos fazem defesas apaixonadas de suas preferências, ao mesmo tempo em que procuram desmerecer seus oponentes. E raramente admitem que alguém possa ter outro olhar ou outro posicionamento.

Este conflito de visões me faz lembrar um livro infantil muito interessante, dos norte-americanos Amy Krouse Rosenthal (escritora) e Tom Lichtenheld (ilustrador), chamado Pato! Coelho!. Baseia-se no diálogo de duas crianças, vendo as figuras formadas pelas nuvens no céu. De repente, olhando para a mesma nuvem, uma vê um pato e outra vê um coelho. O que é bico para uma transforma-se em orelhas para a outra. E começa a discussão:

– É um pato!

– Não, é um coelho!

O curioso é que a ilustração do livro permite as duas interpretações. Quem olha da esquerda para a direita vê um coelho. Quem olha da direita para a esquerda vê um pato. A proposta do livro é exatamente estimular as crianças ao convívio com quem pensa de forma diferente. A alegoria encaixa-se perfeitamente na política, inclusive na questão do antagonismo esquerda-direita.

Na verdade, as pessoas veem o que querem ver, de acordo com a própria visão de mundo. Isso é absolutamente natural e compreensível. Também não deixa de ser saudável que discutam quando têm posições discordantes. O conflito de ideias, conduzido de forma civilizada, costuma gerar novas luzes. O problema surge quando alguém se fecha na própria opinião, torna-se intransigente ou, pior ainda, tenta impor o seu ponto de vista na marra.

– É pato, e ponto final!

Aí, o troco costuma ser na mesma moeda, quando não com algum excesso:

– Coelho, seu burro!

Pronto, está estabelecido o litígio, às vezes insanável. Não é o que estamos vendo na atual campanha eleitoral? Em vez de defender seus projetos, candidatos e partidos empenham-se em depreciar os adversários. É ficha suja pra lá, caluniador pra cá.

Todos são mentirosos e desonestos, menos os nossos. Ninguém se coloca na perspectiva do oponente, para ao menos tentar entender o seu modo de ver e de pensar. Sequer admitem, as partes em conflito, que alguém possa observar com distanciamento e neutralidade este inflamado jogo de paixões pelo poder. Ou está conosco ou contra nós. Ou pato ou coelho.

E, no entanto, é apenas uma nuvem, que logo vai adquirir outro formato ou se desfazer com os ventos do inverno agonizante.

Martha Mendonça, com Cristiane Segatto

R$ 520,00 por uma vida

A história absurda do menino de 14 anos que morreu porque as autoridades se recusaram – mesmo com ordem da Justiça – a fornecer um aparelho simples para ajudá-lo a respirar

Não há resposta fácil. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal organizou três dias de audiências públicas e ouviu representantes do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais, médicos e associações de pacientes para coletar informações que podem guiar os juízes em processos que cheguem à Suprema Corte.

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil vive uma “epidemia” de ações judiciais. Ela é sintoma de dois problemas. O primeiro: como a Constituição diz que saúde é dever do Estado, abre caminho para qualquer pedido: drogas caríssimas, experimentais, que só existem no exterior (e de eficácia duvidosa), fraldas (quando um dos sintomas da doença é diarreia), iogurtes (quando a dieta é recomendada pelo médico)... O segundo problema: a lista de medicamentos oferecidos no SUS não é atualizada há quase uma década.

Nesse período, foram lançados muitos remédios de eficácia comprovada, úteis no tratamento do câncer e de outras doenças graves, mas eles não estão disponíveis no SUS. O Senado aprovou um projeto de lei que obriga o Ministério da Saúde a atualizar as tabelas de remédios e procedimentos do SUS pelo menos uma vez por ano. O projeto, apoiado pelo próprio ministério, está em tramitação na Câmara dos Deputados.

Fabinho, no entanto, não era um desses casos de dilema da Saúde. Seu tratamento era relativamente barato; ele era uma criança, que deve ter preferência na alocação de recursos. O descaso no cumprimento da ordem judicial, aí, é sintoma de um problema grave: a falta de clareza na política de saúde está levando a um comportamento cínico, desleixado, que custa vidas. “O que aconteceu com Fabinho dá desânimo a quem cuidou dele”, diz a pneumologista Marina Andrade Lessa. “Nosso trabalho é refém do poder público.”

É um desvio do sistema que as decisões vitais para pacientes como Fabinho dependam de ações, recursos e burocracia. Elas devem ser tomadas por quem tem contato com as pessoas. “Fabinho tinha os olhos mais lindos do mundo”, diz Marina.

A assistente social do Inca, Claudia Leivos, lembra-se dos últimos meses em que conviveu com Fabinho. “Ele estava orgulhoso porque foi escolhido como capa de uma cartilha nossa.” O desenho de Fabinho estampa a cartilha dos direitos dos pacientes de câncer do Inca – uma escolha que hoje soa irônica. “Ele dizia que agora era artista e que distribuiria autógrafos pelo hospital. Mas a última vez que o vi parecia muito cansado”, afirma Claudia.

“Fabinho era feliz”, diz a mãe, apesar da rotina de hospitais e remédios. Quando estava em casa, brincava com os vizinhos, andava de bicicleta, chegou a jogar bola com o cateter no peito. Apegava-se a todo mundo. No sobrado de Jacarepaguá, Maria das Graças procura o que fazer. “Eu vivi em torno dele. Agora ando pela casa sem função. Ele era minha vida.” O pai chora, conta algumas travessuras e repete sempre, com seu sotaque nordestino: “Ele era demais”.

Os problemas de saúde não deixaram Fabinho estudar direito. Aprendeu mais em casa, e com professoras que iam aos hospitais. Tinha uma curiosidade espontânea. Gostava de consertar eletrodomésticos, e às vezes conseguia, segundo o pai. Também colecionava fotografias e informações sobre ônibus e caminhões. No computador da irmã, fez um arquivo sobre como dirigi-los.

No último aniversário, entre o Natal e o Ano-Novo passados, os pais lhe fizeram uma festa surpresa. “A gente se virava para dar uma festinha, os vizinhos ajudavam, porque ele merecia, por passar por tanta coisa”, diz Maria das Graças. Seus 14 anos foram cercados dos amigos e parentes mais próximos e amigos da vizinhança. Depois do bolo e das fotografias em que sempre saía fazendo caretas, jogou videogame com os meninos da rua.

No condomínio Cesar Maia, com suas quadras numeradas e ruas batizadas com letras, o menino da casa 37 da Rua F suscitava um misto de pena e admiração. Sua luta pela vida fazia dele uma espécie de herói e símbolo de superação. Cada vez que ele sumia, para tratamentos, surgia uma incerteza sobre sua volta.

“Era uma felicidade vê-lo de novo brincando na rua depois de um sumiço. Ele dava esperança para a vida da gente”, diz a vizinha da casa 69, a dona de casa Rosemary Gonçalo da Silva. No mês passado, Fabinho deixou a todos preocupados quando desapareceu numa ambulância de manhãzinha. E, desta vez, não voltou.

Fabinho era um adolescente típico de muitas maneiras – a paixão por música e jogos eletrônicos. A irmã, Fiama, diz que fica com saudades do irmão quando vê novelas. “Ele adorava e sabia todas as músicas. Tinha uma memória incrível.” Também sonhava em ter um quarto só para ele, já que, desde pequeno, dormia com os pais. Mas Fabinho era bem diferente em outros aspectos. Tantos tratamentos e remédios frearam seu desenvolvimento. Tinha 14 anos, mas corpo de 10.

Na vizinhança, muitos garotos que eram seus amigos quando mais novos passaram a rejeitá-lo. Nos últimos anos, ia menos à rua. “Ele me contou que alguns estavam chamando ele de esquisito”, diz a mãe.

Dos que continuaram fiéis, se destaca Iúri da Silva, de 12 anos. Os dois viviam um na casa do outro. Com a piora na saúde de Fabinho, Iúri passava horas na casa 37, para longas maratonas de videogame e brincadeiras com carrinhos de ferro.

Já no fim, as alegrias de Fabinho foram escasseando. Andava poucos metros e já ficava cansado ou começava a tossir. Passou a ir à pracinha apenas para ficar sentado nos bancos vendo as outras crianças brincar. Depois, nem isso. Tinha de recorrer à nebulização e muitos copos d’água para conter a tosse. Adeus bicicleta, futebol e pique na rua. “Ele passou por quase tudo sem reclamar. Mas na semana que morreu me disse que estava cansado demais.

Ele tinha crises de tosse tão fortes que ficava com a boca e as unhas roxas”, diz a mãe. De tudo, Maria das Graças tem apenas um arrependimento: não ter deixado Fabinho tomar banho de chuva. Ele sempre quis, mas ela, preocupada com sua saúde, proibia. “Agora fico imaginando meu filho correndo na chuva, molhado e feliz.”

quarta-feira, 15 de setembro de 2010



15 de setembro de 2010 | N° 16459
MARTHA MEDEIROS


Sem Destino

Desde que o ator Dennis Hopper faleceu, em 29 de maio último, me propus a cumprir uma tarefa daquelas que a gente se autoimpõe, mas sempre deixa pra depois. No caso, a tarefa era assistir ao clássico Easy Rider, filme dirigido e atuado por ele, e que no Brasil ganhou o título de Sem Destino. Foi o que acabei de fazer, com um atraso absurdo.

O filme é de 1969. Eu tinha oito anos quando foi lançado. Lembro que não demorou para que meu meu pai e minha mãe trouxessem o disco com a trilha sonora pra casa, e ele não saiu mais da minha vitrola. Você leu certo: vitrola. Aqui jaz matusalém.

Foi uma das vantagens de ser de uma época em que não existia “música para criança”. Quando eu tinha oito anos, música para criança era Beatles, Janis Joplin, Tina Turner, Burt Bacharach, Astor Piazzola. Ouvia-se o que os pais ouviam. Tempos modernos.

Até hoje, considero Easy Rider uma das trilhas mais empolgantes do cinema, ao menos pra mim, que elegi The Weigth como minha música-tema desde que me entendo por gente. Então, ter assistido, 40 anos depois, no meu DVD player (que também já é um troço antigo) às imagens de um filme que eu nunca havia visto, junto à música que eu sempre guardei na minha memória afetiva, foi uma viagem: meu on the road particular sem sair do sofá.

Além da trilha, me emocionou o talento de Jack Nicholson, um garoto que era apenas uma promessa, ensaiando seus primeiros maneirismos e bonito como poucos atores são hoje. Peter Fonda também não era de se jogar fora, mas é Dennis Hopper quem rouba a cena e justifica toda a mitificação que carregou até o último dia de vida, aos 74 anos.

O filme não envelheceu, ainda que algumas cenas (em especial as que se passam no acampamento hippie) sejam um pouco cansativas. Ele se mantém atual porque trata de um assunto que tampouco envelhece: liberdade. O filme dá seu recado através das belas imagens e do som, mas há um diálogo definitivo, em que Nicholson e Hopper analisam a diferença entre se discursar sobre liberdade e se conviver com quem é livre. Do blá-blá-blá teórico à aceitação na prática, há um precipício que atemoriza a sociedade até hoje.

Por fim, o que me deixou mais comovida foi me dar conta de que meus pais cultuaram esse filme, falavam sobre ele conosco, encheram a casa com sua música, isso no período mais repressivo do Brasil.

Me senti agradecida por ter tido pais, em tese, convencionais, porém com o espírito arrojado, o pensamento aberto, um casal de 30 e poucos anos que sabia diferenciar o novo do velho e que hoje, tendo a idade que Hopper teria, ainda se mantém assim. Deram a seus dois filhos, meu irmão e eu, uma base cultural sem preconceitos. E, com isso, um destino.

Lindo dia pra você. aproveite a quarta-feira.

terça-feira, 14 de setembro de 2010



14 de setembro de 2010 | N° 16458
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O prazer de escrever

Não é incomum que, conversando com amigos ou simples conhecidos, eles me perguntem quando sairá meu próximo livro.

“Não tenho a menor ideia” – digo sempre. E isso por várias razões. A primeira delas é porque enfeixar minhas vivências e minha imaginação entre duas capas nunca foi meu único projeto de vida. Crio personagens e irrealidades pelo prazer de dar-lhes tom e forma, jamais de levá-los ao grande público. Me basta a alegria de moldá-los para meu prazer.

Mas existe um segundo motivo. Quando compões uma figura – digamos a figura de uma bela e sedutora mulher –, estás tão preocupado em descrevê-la, quanto em fazer que o público também a ame. E aí comprometes um pouco de tua independência como artista, já que estás voltado a repartir teus sentimentos, a ceder às inclinações de teus leitores.

E há uma terceira ideia – dentre muitas outras – que te aconselha a refletir mais na tua criação do no que possam pensar sobre ela as pessoas que percorrem tuas páginas. O ato de escrever é um jogo lúdico em si mesmo. Ele começa com uma letra maiúscula e se esgota num ponto final. Fora disso, é um desafio a tua vaidade, um chamamento e teu ego, um desafio a tua fantasia.

Já publiquei 10 livros – fora as participações em múltiplas antologias e naqueles construídos em colaboração. Vários deles tiveram mais do que duas edições, outros foram premiados e um registrou 21 mil exemplares impressos. Outro ponteou a lista dos mais vendidos na Feira do primeiro ao último dia, apesar de suas 608 páginas.

Meu último romance, O Homem que Colecionava Manhãs, lançado por uma editora do Rio, a Objetiva, colecionou boas vendas e excelentes críticas, em especial uma consagradora, de Luiz Antônio de Assis Brasil, sem falar no tributo de Wilson Martins em O Globo.

E depois disso? Bom, depois é o infinito. Tenho uma coletânea de crônicas de 2002 para cá que me requerem há séculos uma ordem unida, para hospedá-las em um ou dois volumes. Tenho um novo romance, O Inventor da Eternidade, que pede pequenos retoques, embora há muito aceito por uma editora também do Rio.

É pouco? É muito? Não sei. Mas nada disso me faz renunciar ao prazer de escrever.

Uma ótima terça-feira para você. Aproveite o dia.

sábado, 11 de setembro de 2010



12 de setembro de 2010 | N° 16456
MARTHA MEDEIROS


Mulheres cabeludas

Ninguém vai presa por não se depilar. Mas deveria

Deixe os pelos do corpo crescerem e aparecerem, e ao inferno com o que os outros pensam. Esse é o slogan do movimento Hairy Awarey, que aqui no Brasil ganhou o nome de Peludas Conscientes. Se entendi bem, algumas mulheres estão lutando pelo direito de deixarem as axilas cabeludas que nem as de um homem, assim como as pernas e provavelmente o bigode, por que não? Viva Frida Kahlo.

Lutar pelo direito é força de expressão, pois esse direito existe, ninguém vai presa por não se depilar. Mas deveria.

Eu sei, companheiras, eu sei que depilação com cera quente é uma tortura. Mas se a mulher não tem tempo, dinheiro ou vontade de ir a um salão periodicamente para se submeter ao procedimento, então use uma lâmina de barbear durante o banho e zas! Elimime os pelinhos das pernocas e das axilas.

Todo dia, que nem usar sabonete. Depois é só passar um hidratante e fim de drama. Ou então busque outra solução: há tantos cremes depilatórios vendidos em farmácia. Sem falar na revolucionária pinça. Eu já passei por todos os métodos, todos. A única tortura pela qual não passei é a de me olhar no espelho e dar de cara com a Chita.

Eu sei, companheiras, eu sei que a famigerada mídia é a culpada de tudo que nos acontece. É culpada de não mergulharmos num tonel de chocolate como gostaríamos, é culpada de fazer a gente acordar cedo para ir para a academia, é culpada das centenas de escovas para alisamento, é até culpada de termos nascido, se bobear. Mas devagar com a carruagem, princesas.

Se por um lado é realmente esquizofrênica essa busca pelo padrão de beleza photoshop, há que se concordar que o estímulo à vaidade nem sempre é predador. Buscar a feminilidade não nos torna submissas, escravas, reféns, nem nada que faça retroceder as conquistas das nossas ancestrais.

Ser feminina é chique. Não precisamos nos igualar aos homens em todos os quesitos. Ando por aqui com essa história de igualdade, igualdade, igualdade. Quando começa a virar fanatismo, boa coisa não vem.

Aproveitando a deixa: meninos, vocês sim, mantenham-se peludos, por favor. O Cesar Cielo se depila porque precisa, mas vocês irão competir por uma medalha de ouro nas próximas Olimpíadas? Então sosseguem. Esse sofrimento é nosso, vocês têm o de vocês: queda de cabelo, exame de próstata, expectativa de vida menor. Cada um com a sua dor.

Eu sei, companheiras, eu sei que a liberdade é um valor a ser defendido com unhas e dentes. Mas não custa lembrar: unhas feitas, dentes escovados e sem pelos crescendo pelo corpo, de preferência. Ninguém disse que para sermos livres teríamos que voltar para a selva.

Um ótimo domingo para vc e um gostoso inicio de semana.

domingo, 5 de setembro de 2010



05 de setembro de 2010
| N° 16449 - MARTHA MEDEIROS


Um amor asfixiado

Muitas pessoas me pedem para escrever sobre o amor entre amantes, quando um deles, ou ambos, são comprometidos e estabelecem uma relação clandestina que se alimenta do próprio sentimento e de mais nada. Pode durar? Deve terminar?

Pode tudo, como qualquer história de amor, e não é fácil, nenhuma relação é.

Amantes vivem uma paixão temperada pelo anonimato. Os encontros escondidos, o segredo unindo os dois, o receio de um flagra, a excitação de estar fazendo algo oficialmente ilegítimo: uma aventura.

É como ser personagem de um filme B, a luxúria assumindo o comando, a vida privada ainda mais privada do que normalmente costuma ser. A coragem de abraçar o pecado, desafiando uma sociedade que adora apontar o dedo para aqueles que ousam mais do que outros.

A despeito do que possa haver de culpa numa relação assim e de toda a logística para colocar em prática a operação semanal, para eles compensa. Até que um dia os encontros se banalizam, como tudo que sofre a ação do tempo. O que era excitante passa a entrar para a rotina, e o sexo, estrela principal desse espetáculo, já não basta. Passa-se a requerer o que se requer em todas as relações: a confirmação pública de sua existência.

A ideia de um amor e uma cabana é uma idealização que não se sustenta. Queremos o ninho, mas também queremos voar juntos. Sempre que saímos pra rua, nós conhecemos novas pessoas, lugares, sensações. Tem graça estando sozinho? Podemos compartilhar nossas descobertas com nosso amor através do telefone, mas muito melhor é quando a pessoa que diz estar ao nosso lado está de fato ao nosso lado, não apenas metaforicamente.

Quando dizemos “tenho alguém”, não se está propagando o sentimento de posse como quando dizemos “tenho um carro” ou “tenho um iPod”. Ter alguém significa ter companhia para o teatro, o cinema, os jantares entre amigos, as caminhadas de sábado.

Ter com quem desabafar quando a angústia aperta, ter com quem dançar, ter com quem viajar, ter com quem dividir os momentos de prazer e também as indiadas, ter com quem trocar um olhar cúmplice em meio à multidão, ter com quem praticar um esporte, comprar condimentos para cozinhar à noite, escolher um DVD, reclamar das coisas que não deram certo, pedir uma carona no final do expediente, fazer uma surpresa.

Por mais que se diga que a tecnologia aproxima as pessoas, você não exercita a convivência por e-mail ou qualquer outra ferramenta virtual, e mesmo o telefone é paliativo: minimiza a distância, mas não reforça o vínculo. Viver junto é junto mesmo.

Não estou levantando a bandeira do grude, bem sei como é importante uma área de respiro, mas está-se falando de ligações em que a presença física é raridade, daqueles casais que só frequentam endereços secretos, uma ou duas vezes por semana. Que não conhecem os amigos e o local de trabalho de quem dizem amar.

Que reservam para seus raros encontros a lingerie mais bonita e as palavras mais doces, mas que não abrem janelas, desligam o celular, deixam a porta trancada. Um caso. Um affair. Um microcosmo onde só cabem dois habitantes.

Romântico, pulsante, febril, mas chega uma hora que asfixia. Sair do casulo, namorar ao ar livre, testemunhar as reações um do outro diante dos acontecimentos mundanos, tudo isso me parece mais divertido: uma relação a dois e múltipla ao mesmo tempo. O que reforça a intimidade é ter o que compartilhar, não o que esconder.

sábado, 4 de setembro de 2010



Quem são e o que querem as mulheres de 20

Uma pesquisa exclusiva revela a rotina, as aspirações e os dilemas de uma geração de brasileiras que está adiando a entrada na vida adulta. Elas têm tudo o que suas mães e avós não tiveram – liberdade, dinheiro e carreira –, mas ainda sonham com filhos e o marido perfeito
Fernanda Colavitti

Quando fala sobre suas prioridades, a publicitária paulistana Cléia Lourenço, de 24 anos, não hesita. Diz que o investimento na carreira e na educação é seu principal objetivo.

Formada há um ano, ela trabalha desde 2008 em uma agência de publicidade, na qual gerencia uma pequena equipe. Sua jornada diária é de dez horas. O excesso de trabalho é o motivo pelo qual está adiando para o ano que vem a pós-graduação e o curso de idiomas.

“Quero mais experiência e reconhecimento”, afirma. Mesmo com tanta dedicação à carreira, a vida social da publicitária vai bem. Há um ano e meio sem namorado, ela diz que sai com amigos quase todos os dias e viaja nos fins de semana. O lazer consome 60% de sua renda. O resto ela gasta com a manutenção do carro e com roupas, mas ainda consegue guardar um pouco. Cléia mora com os pais, mas planeja morar sozinha no ano que vem. Quer ter mais liberdade.

Quando o assunto são seus planos de longo prazo, porém, as expectativas são outras. “Daqui a uns cinco anos, penso em ter um relacionamento sério, casar e ter filhos”, afirma. “Tudo certinho, como manda o figurino.” Ela diz que depois de casar não pretende abrir mão da profissão, mas que vai trabalhar menos para se dedicar ao marido e aos filhos: “A ideia é trabalhar bastante agora para poder reduzir depois”.
Ricardo Corrêa

Cléia faz parte de uma geração privilegiada de mulheres brasileiras. Aos 20 e poucos anos, elas têm mais escolaridade, mais renda, mais planos, mais oportunidades, mais independência e muito mais liberdade do que suas mães e avós tiveram na mesma idade.

No entanto, mantêm os mesmos valores em relação à família e à vida conjugal, embora as datas tenham se alterado. O casamento tem de esperar pelo encaminhamento da carreira, mas, depois disso, deve ser feito nos moldes históricos. Os filhos podem vir depois dos 30 anos, mas sua chegada vai colocar a vida profissional em segundo plano. As mulheres de 20 brasileiras são conservadoras num mundo em processo acelerado de mudança.

Essa é uma das principais conclusões de um levantamento feito pela Sophia Mind, empresa especializada em comportamento e tendências no universo feminino. A pedido de ÉPOCA, o instituto de pesquisas entrevistou 3.100 mulheres (55% solteiras, 45% casadas), com idade entre 18 e 29 anos, que têm acesso à internet banda larga, em todas as regiões do Brasil. As entrevistas foram feitas por questionário on-line, entre fevereiro e maio de 2010.

Ao casar, as mulheres assumem 80% das tarefas dométicas

Os resultados apresentados na imagem mostram que as jovens brasileiras de classe média estão alinhadas a um movimento mundial de revisão de valores e adiamento da vida adulta. Em boa parte dos países desenvolvidos, os jovens estão ficando até mais tarde na casa dos pais, atrasam compromissos afetivos e tratam da própria carreira sem pressa aparente.

Os cinco passos tradicionais que definiam a formação de um adulto – terminar a escola, sair da casa dos pais, tornar-se independente financeiramente, casar e ter filhos – estão sendo ignorados, subvertidos ou ordenados de forma totalmente diferente.

O psicólogo americano Jeffrey Jensen Arnett, professor da Universidade Clark, em Worcester, nos Estados Unidos, cunhou a expressão “adulto emergente” para definir esse grupo dos vintões. Arnett acredita que essa faixa etária tem de começar a ser encarada como um momento específico da existência, com suas próprias características.

Ele disse a ÉPOCA que o movimento que está ocorrendo agora é similar ao que teve lugar um século atrás, quando mudanças sociais e econômicas ajudaram a criar o conceito de adolescência. Arnett afirma que, agora, a sociedade precisa reconhecer a existência de um período de pós-adolescência. Os que vivem as confusões desse período não são apenas jovens acomodados ou perdidos, mas “adultos emergentes” que atravessam um período de transição com ritmos e necessidades especiais.
RICARDO CORRÊA

Mas homens e mulheres vivem esse período da mesma forma? Mais ou menos, diz Arnett. “As mulheres experimentam da mesma maneira que os homens esse período de transição antes de entrar na vida adulta”, afirma. “A única diferença é que elas ainda têm um relógio biológico que, aos 30 anos, começa a alertá-las de que seu período de fertilidade está no fim. Portanto, se quiserem ter filhos, precisam crescer logo.

” Isso significa que o período de transição é maior nos homens do que nas mulheres? Arnett diz que as estatísticas internacionais mostram que os homens casam e têm filhos em média três anos depois das mulheres – e, mesmo assim, a contragosto. “Apesar de não sentirem a pressão biológica para ser pais, eles cedem à pressão das mulheres”, afirma.

A pesquisa brasileira sugere que aqui as jovens estão mais engajadas no mercado de trabalho do que suas congêneres nos países industrializados. Talvez isso se explique por ser o Brasil um país mais pobre, que coloca as pessoas diante da necessidade de trabalhar mais cedo.

Qualquer que seja a razão, o resultado é uma multidão de moças relativamente abastadas, cujas prioridades, até os 25 anos – média de idade em que se casam –, consistem em cuidar da própria carreira e educação. Adiar a saída da casa dos pais facilita o investimento de tempo e dinheiro nesse projeto – e permite aproveitar a vida de solteira.

Não é pouca coisa. As jovens ouvidas pela Sophia Mind ganham, em média, R$ 3.200. Elas gastam esse dinheiro na seguinte ordem: roupas, sapatos, acessórios e cosméticos, restaurantes, bares e casas noturnas. Apenas em produtos de beleza torram R$ 69 por mês; 38% delas consideram que ler é essencial; 25% vão ao cinema ou ao teatro uma vez por mês; e 33% fazem exercícios regularmente – mais da metade delas, 56%, frequenta academias de ginástica.

A carioca Juliana Rodrigues, de 28 anos, está entre elas. Como mora com os pais e não precisa participar das despesas domésticas, usa todo o seu salário de tecnóloga com gastos pessoais, que incluem jantares, boates, teatro, cinema, viagens, livros e revistas. Sozinha desde 2002, ela diz não sentir falta de um namorado.

“Se aparecer alguém logo, ótimo. Mas, se demorar, não tem problema”, afirma. Ela diz que seria difícil ficar solteira se estivesse desempregada, se não estudasse, se não se divertisse. O que não é o caso. Assim como Juliana, a maioria das mulheres da pesquisa atribui à independência financeira, que lhe permite uma vida social intensa, o fato de não ter pressa para arrumar um companheiro.

Essa atitude sugere um grupo de mulheres poderosas. Elas têm profissão, dinheiro e aspirações. Gostam de se divertir e consomem vorazmente. São independentes e bem informadas. “Elas têm um tipo de poder que eu chamaria de objetivo”, afirma a antropóloga Mirian Goldenberg, autora do livro Toda mulher é meio Leila Diniz. “As mulheres brasileiras nunca tiveram tanto poder. Não só de adquirir coisas, mas de fazer escolhas.”

Há, porém, um pedaço do universo feminino em que essas escolhas parecem se restringir. Ele diz respeito aos parceiros. À pesquisa da Sophia Mind, apenas 28% das mulheres disseram fazer sexo casual.

Não é um número surpreendente para quem estuda o comportamento das brasileiras. Mirian Goldenberg diz que depois de ouvir 835 mulheres da classe média carioca, descobriu que entre 18 e 60 anos elas tiveram entre três e cinco parceiros sexuais. O ponto fora da curva foi uma jovem de 28 anos que admitiu já ter tido 27 parceiros.

Essas respostas confirmam uma pesquisa nacional com 8.200 participantes, conduzida em 2008 pela psiquiatra Carmita Abdo, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Seus resultados mostram que entre os 18 e os 25 anos a média de parceiros sexuais das brasileiras é de 1,4. Entre 26 e 40 anos, a média sobe para 1,6. Isso mostra que vivemos numa sociedade de jovens conservadoras? Sim, responde Mirian.

“As garotas têm mais dinheiro, mais sucesso, se vendem como modernas e avançadas, mas, no fundo, querem manter o que a mãe e as avós tinham”, diz a antropóloga. A nova mulher ainda espera encontrar o homem ideal, casar na igreja, ter filhos e ser feliz para sempre. De preferência ao lado de um marido fiel e dedicado. “A mulher brasileira mudou, mas não abre mão do outro poder, aquele que a mãe e as avós tinham, que é o poder doméstico”, diz Mirian.


04 de setembro de 2010 | N° 16448
NILSON SOUZA


Epitáfio de um jornal

– Qual é o maior jornal do Brasil?

– Você já disse.

Desde que me formei em Jornalismo, no início da década de 70, ouvi muitas vezes este ingênuo jogo de palavras que servia para evidenciar uma inquestionável verdade. O JB, editado no Rio de Janeiro, era já naquela época o grande jornal do país.

E não apenas porque vendia mais de 180 mil exemplares diariamente e chegava a 250 mil na sua edição dominical – números que causam inveja aos jornais de hoje. Era grande, o maior do Brasil, por sua linha editorial, por sua independência, por reunir uma verdadeira seleção brasileira de profissionais, por representar a vanguarda da mídia impressa. Foi a principal escola prática de jornalismo do país durante várias décadas.

Trabalhei no JB. Dava uma contribuição modesta, como repórter esportivo da sucursal de Porto Alegre, mas explodia de orgulho e de paixão pela minha profissão cada vez que identificava algumas linhas de minha autoria no mesmo jornalão que abrigava Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, João Saldanha e Clarice Lispector, entre outros monstros sagrados das letras nacionais.

Pelo JB, cobri a Copa do Mundo da Argentina. Numa ousadia para a época, o jornal incluiu na sua equipe de trabalho profissionais que atuavam fora do Rio de Janeiro.

Naquele tempo, o Jornal do Brasil também encarava ditaduras e censuras. Numa noite gelada de Mar del Plata, João Saldanha me pediu para digitar no telex a nominata das freiras francesas desaparecidas durante o governo do general Videla – e a notícia desbancou o futebol da primeira página.

O JB sempre enfrentou com valentia o autoritarismo. Ficou na história do jornal, também, uma célebre cobertura sobre o golpe militar que derrubou Salvador Allende no Chile, em 1973. Os censores, que então habitavam as redações dos jornais brasileiros, ordenaram ao JB que não abrisse manchetes e nem fotos de capa sobre o assunto.

O então diretor de Redação, Alberto Dines, encontrou uma maneira criativa de driblar a censura: fez a primeira página sem título algum, sem foto alguma, mas toda ela preenchida por uma única notícia, relatando em detalhes o bombardeio sobre o palácio de La Moneda e a morte do presidente. Chamou mais atenção do que uma manchete gigantesca.

Assim era o JB, cuja última edição impressa foi para as bancas no último dia 31 de agosto – por ironia, o dia do meu aniversário. Morre com ele um ideal de jornalismo. Numa nota com tom de obituário, os editores informaram que a transferência do jornal para o mundo online possibilitará a preservação de 200 árvores que eram sacrificadas a cada edição dominical.

Faltou imaginação até para o epitáfio.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010



01 de setembro de 2010 | N° 16445
MARTHA MEDEIROS


Uma espiadinha no subsolo

Mal comparando, muito mal comparando, todos nós acompanharemos uma espécie de Big Brother daqui pra frente. Mais grave, mais sério e cujo prêmio será a vida de volta. Estou me referindo, naturalmente, aos 33 mineiros que estão soterrados em pleno deserto do Atacama. Não haverá festas, nem banhos de piscina, nem namoros: o que o mundo inteiro acompanhará serão os efeitos que um confinamento provoca.

O Big Brother da Globo sempre me intrigou sob esse aspecto. Mesmo sabendo que todos sairiam de lá com mais dinheiro e uma fama episódica, ainda assim eram pessoas que passavam dois meses trancafiadas numa casa sem ter contato com o mundo.

Eu me perguntava como seria ficar dois meses sem ler um jornal, sem reagir a nenhum estímulo externo, sem poder fazer planos para o dia seguinte, sem poder sumir de vez em quando. O blablablá dos participantes era imbecil, porém até a mais inteligente das criaturas sucumbiria à piração coletiva e passaria a achar relevante a discussão sobre se há alguém conspirando contra você, se o Fulano é um falso amigo ou se é verdadeiro.

Agora, será a vez de os mineiros passarem por isso, em situação incomparavelmente mais infernal. Veremos, através dos equipamentos tecnológicos disponíveis, imagens desses homens emagrecendo, jogando dominó, passando um tempo que, para nós, é veloz, mas que para eles será interminável.

E veremos também – ou saberemos através de bilhetes e de depoimentos – como eles irão se virar com a pressão psicológica. É nos confinamentos que as neuras procriam, logo, haverá a hipervalorização da intriga, que gera acusações, brigas e perda de noção. As pessoas tornam-se autorreferentes ao extremo, já que entram numa bolha e ficam apartadas da realidade em companhia de outros solitários, cada um em sua prisão particular.

Existem confinamentos por opção. É quando alguém não se abastece de arte, convive com meia dúzia de alienados e, em vez de ampliar seus horizontes, faz o contrário: se fecha com suas ideias imutáveis e fica se ocupando com fofoquinha, briguinha, um minimundo sem transcendência alguma. Burros. Bitolados. Burocráticos. BBBs a granel, soltos por toda parte.

Os mineiros não escolheram entrar nesse jogo, mas passarão por testes similares e bem mais sacrificantes. Espero que possam receber livros, que é uma maneira de escapar sem sair do lugar. E que consigam, sempre que possível, manter o bom humor.

Enquanto um ou outro rir da situação (já foi dito por eles que um colega não está gostando da ideia de ser resgatado porque precisará voltar a tomar banho), a sobrevivência mental do grupo estará garantida. Regra que vale aqui fora também.

Aproveite o dia. Uma excelente quarta-feira para você.