sábado, 27 de setembro de 2014


28 de setembro de 2014 | N° 17936
FABRÍCIO CARPINEJAR

Fossa Nova

Nunca se comenta, nunca se discute, mas uma das principais modas é a da fossa. Fossa Nova que João Gilberto não sonhou em cantar.

Nenhum estilista providenciou um desfile sobre os deprimidos do amor, mas são as roupas que mais saem e as mais usadas.

Nenhuma Fashion Week abordou o assunto, mas não há vivalma que não tenha experimentado a eterna tendência.

As roupas da fossa são simples. Escuras, velhas e desbotadas. Aderem ao inverno total, apesar do sol brilhando lá fora. Não trazem cores quentes e ávidas do contato. Não provocam a atenção do verão e da primavera. Expressam cores resmungos, cores sombrias, avessas às gargalhadas e absolutamente discretas.

Vestidos? Jamais. Necas da sensualidade de pernas e tornozelos à mostra.

Blazers e casacos? Impossível. Às favas a sobriedade e a harmonia do conjunto masculino.

As calças pedem bolsos destinados ao lenço de papel, à aliança solteira e ao celular no silencioso. Pode ser de um abrigo surrado ou daquela calça jeans pronta para o sacrifício final.

As mulheres preferem as pantufas e os moletons com mais bolsos ainda.

Os homens optam pelo figurino de pintor de paredes: camiseta básica e manchada.

Os hábitos alimentares influenciam os modelos. As mulheres mergulham em potes de sorvete e desmancham barras de chocolate. Os homens recorrem ao álcool e à pizza como antidepressivos. Quem pede pizza durante três dias na semana é certo que vem penando por uma separação. Toda tele-entrega já identifica o cliente.

Estarão disfarçados de mendigo, interessados na praticidade: colocar e esquecer. Suas vestimentas formam um estranho macacão.

Não querem responder perguntas, odeiam cumprimentos educados como “tudo bem?” ou “o que fez no final de semana?”. Não desejam interagir. Querem passar despercebidos dentro da própria casa mesmo quando não tem ninguém.

São darks pelas olheiras. São grunges pela sobreposição. São punks pelos cabelos desalinhados e duros.

É uma mistura de épocas e de restos de coleções. Seus adeptos representam brechós andando, brechós-centopeias.

O que diferencia o deprimido é a falta de capricho no detalhe. Ele dispensa acessórios.

Se a mulher passeia pelo bairro desprovida de penteado é sócia do desastre.

Se o homem anda pela rua calçando um sapato sem meia está submerso na dor de corno e de cotovelo.

Se a mulher caminha sem maquiagem, brincos e colar está enfrentando um divórcio.

Se o homem percorre seu caminho ao trabalho desfalcado de cinto está vivendo sua decadência sentimental.


Vestir a dor tampouco exige medidas. As peças sobram ou apertam a cintura e não se reclama. Dois números acima, dois números abaixo, tanto faz, o desconforto não incomoda. A proposta é não se gostar mesmo.

28 de setembro de 2014 | N° 17936
ANTONIO PRATA

O agudo e a crônica

Quando eu comecei a escrever crônicas, quinze anos atrás, prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro, resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios pedregosos como a política, a economia, a crise no Oriente Médio. (Como diz o mestre Humberto Werneck, crônica é conversa sentado no meio-fio, não discurso sobre um caixotinho). Todo domingo, porém, questiono minha promessa: o mundo é vil, o país é injusto, há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas com megafones – devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha?

Às vezes, em bate-papos com leitores, me perguntam por que eu raramente escrevo sobre o assunto da semana. Digo que a chance de eu ter alguma coisa relevante a dizer sobre o assunto da semana é pequena, ainda mais concorrendo com jornalistas e especialistas que estão debruçados sobre a questão. Serei mais profundo ou divertido, terei, enfim, mais chance de dizer algo verdadeiro (mesmo que pequeno, mas verdadeiro, e é isso que importa) se mirar no que eu conheço: a minha infância, o amigo que reencontrei, os primeiros passos da minha filha.

Também costumam perguntar, nesses bate-papos, se por falar sempre de si mesmo o cronista não seria um autocentrado e, portanto, um alienado. Acho o contrário: o cronista procura nele mesmo (ou melhor, numa ficção de si mesmo) os assuntos que possam tocar os outros. Todo mundo teve infância, todo mundo tem amigos que a vida afastou, mesmo quem não é pai ou mãe sabe o que é uma criança. Se ao falar do meu umbigo eu não cutucar o seu, a relação umbilical da literatura não se estabeleceu: pode escrever pro Painel do Leitor.

Esses questionamentos crônicos me voltam mais agudos nestas eleições. Na quinta retrasada, dia 18, um PM matou um ambulante com um tiro na cabeça. Nesta segunda, o PM foi solto. Não houve manifestações nem indignação por parte da população e Geraldo “quem não reagiu tá vivo” Alckmin, o chefe da PM, deve ser reeleito no primeiro turno. (Sobre o silêncio de São Paulo diante do assassinato, ler Flávio Moura em: http://migre.me/lRQpJ). Naquela mesma quinta, 18, no presídio de Pedrinhas, Maranhão, foi assassinado o décimo sétimo preso, só este ano. Ano passado, foram 60; alguns deles, decapitados diante das câmeras de celulares.

Os senhores feudais que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas são da base de apoio da Dilma, que acusa Marina de ser uma proposta insensata por não contar com o apoio de senhores feudais como os que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas. Marina, contudo, não é nada insensata: a paladina da nova política apoia quem, em SP? Alckmin.


Devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha? Às vezes, acredito que sim: que a crônica existe para iluminar uns rincõezinhos assombreados do cotidiano, pra abrir nossos olhos para a graça que passa despercebida, pelas esquinas – e que isso também é um ato político. Outras vezes, porém, me vejo como um nobre gordo, na França, em 1788, comendo codornas enquanto o povo morre de fome, de bala ou é decapitado do lado de fora e nos calabouços do castelo.

28 de setembro de 2014 | N° 17936
MARTHA MEDEIROS

Diga-me o que vestes

Lembro-me de uma matéria interessante que li anos atrás na revista Elle: convidaram uma estudante e uma executiva para passar 24 horas com a roupa uma da outra. Explico: a estudante, que costumava se vestir de uma maneira sexy e irreverente, teve de se vestir com o que encontrou no closet da executiva, e esta, por sua vez, teve de abandonar seu estilo sóbrio e conservador para escolher peças no closet da estudante. Resultado: viraram outra mulher por um dia.

A estudante, que adorava decote, barriga de fora e sandália de salto alto, colocou pela primeira vez um terno escuro com camisa para dentro da calça e sapato fechado. A executiva, habituada aos tailleurs bem-comportados, encarou uma saia acima do joelho, top de alcinhas, sandália gladiadora e gargantilha com crucifixo. Conclusão delas: não dá para mudar nosso jeito de ser simplesmente trocando de roupa.

Em termos, em termos. As próprias protagonistas da reportagem adotaram uma postura completamente diferente na hora de se deixar fotografar e, mesmo que tenham sido orientadas pela produtora de moda, a verdade é que a roupa conduz nossa atitude, sim.

A estudante, uma clone de Miley Cyrus sempre de mãos na cintura e ar provocante, cruzou os braços docemente quando colocou o terno. A executiva, que costumava ficar encolhida em seu trajes pastéis, jogou os cabelos para trás e encarou as lentes com um olhar sedutor, digno de quem se veste para matar. Lógico que a roupa pode despertar novas facetas de nossa personalidade.

Dormir com um pijamão apeluciado e dormir com uma lingerie de renda vermelha: tanto faz? Você de legging e tênis pela manhã, de jeans e jaqueta de couro à tarde, e à noite com um vestido justo decotado nas costas. Sim, é a mesma mulher, mas são três estados de espírito diferentes.

A roupa, subliminarmente, autoriza um determinado tipo de comportamento. Os homens se sentem mais confiantes quando estão de gravata, até seu jeito de caminhar se transforma. Já as mulheres sentem-se mais joviais quando estão de camiseta e mais sensuais quando estão de preto. Coloque um longo Versace numa freira e ela subitamente esquecerá da oração da Ave-Maria, empacará em “o Senhor é convosco” e, dali em diante se pegará, cantarolando algo da Beyoncé.


Cada pessoa deve vestir-se de acordo com o que é, e não com o que que gostaria de aparentar, mas não é pecado experimentar um personagem fora do habitual: desejar ser menos tímida, ou mais séria, ou um pouco excêntrica. É uma transformação que deve vir de dentro, mas o visual ajuda. Um botão a mais aberto na camisa pode operar milagres numa alma introvertida.

sábado, 20 de setembro de 2014


21 de setembro de 2014 | N° 17929
MARTHA MEDEIROS

Obrigação

Uma pesquisa revelou que 61% dos eleitores rejeitam a obrigatoriedade do voto. A desilusão com a política é apontada como um dos motivos. Sendo o voto um instrumento de transformação, eu jamais abriria mão dele, mesmo que fosse opcional, mas concordo: quem dera todos votassem por consciência em vez de fazerem uni-duni-tê em frente à urna apenas por dever cívico. Obrigação é uma palavra que me arrepia. Desde garota. Passei a infância desejando crescer porque intuía que a espontaneidade vivia no lado maduro da existência.

Sei que cada criança processa os ensinamentos que recebe através de um código muito particular, mas o fato é que eu me sentia numa camisa de força. Horário de ir para cama, ter que raspar o prato mesmo estando sem fome, a televisão racionada, o dever de só tirar notas boas. Obrigações que resultaram numa mulher responsável e bem-criada, ao contrário de tantas outras crianças que fazem o que bem entendem e viram adultos mimados e despreparados para lidar com frustrações. Só que, aos oito anos de idade, eu não sabia nada sobre pedagogia. A teoria sobre criação de filhos não fazia parte do meu repertório. Eu só sabia das minhas vontades. Eu queria ser livre porque me parecia o único jeito de ser honesta com meus sentimentos e pensamentos.

Não queria fazer nada por obrigação. Nem comer, nem dormir, nem ser feliz por obrigação. Considerava uma violência quando, ao perguntar aos adultos “por que desse jeito?”, ouvia como resposta “porque sim e pronto” ou “porque é assim que tem que ser”.

Obedecia militarmente “a hora certa” de fazer as coisas como se houvesse um relógio universal regendo uma orquestra de bons moços a serviço do andamento do espetáculo. Não que me fosse custoso cumprir. Só era custoso entender.

Pior do que me comportar como “todo mundo” era viver uma afetividade também regida por regras. Não parecia que as pessoas se encontravam por saudades, por afinidades ou para repartir calor humano. Parecia obrigação também. A obrigação das datas festivas. A obrigação dos domingos. A obrigação dos parentescos.

Ai de mim se gostasse mais de uma avó do que de outra. Ou se não quisesse sair do quarto para jantar. Ou se me recusasse a ir à missa. Ao colégio eu sabia que tinha que ir, não questionava. Só questionava o que me parecia facultativo.

Apesar dos meus “facultativos” não baterem com os dos meus pais, optei por não dar trabalho, segui a cartilha da boa menina. Fiz minha parte e eles a deles – benfeita, diga-se, ou não seria quem sou.

Mas quem eu sou mesmo? Cumpridora, pontual, educada, porém, hoje, profundamente intolerante a tudo o que não for espontâneo, ao teatro das convenções, às blindagens contra a intimidade, ao que serve apenas para manter a orquestra tocando.



21 de setembro de 2014 | N° 17929
ANTONIO PRATA

Garagem

Sempre achei acordar um negócio terrível. Seja cutucado pela luz ou estapeado pelo despertador, abro os olhos com um profundo sentimento de injustiça: por que já?! Por que eu?! Tende piedade, Senhor, dai-me mais cinco minutinhos – e abençoai, se tiverdes tempo, o inventor da “Função Soneca”.

Quando eu era adolescente, pensava que o problema fosse a escola. Afinal, quem quer sair da cama às 6h da madrugada pra estudar adjuntos adnominais e alcalino-terrosos? (Melhor ficar adjunto do travesseiro, como que embalado por alcaloides-celestiais.)

Anos mais tarde, já livre da gramática e da tabela periódica, passei a achar que o sofrimento viesse dos freelas chatos que eu tinha que encarar, logo depois do café: um capítulo sobre sustentabilidade na produção de celulose pro livro comemorativo de vinte anos de uma fábrica de guardanapos; a matéria 10 programas nota 10 neste Dia das Crianças, pra revista Kids; a revisão dos textos publicitários a serem estampados sobre a imagem de crianças loiras correndo num parque, no fundo de uma caixa de cereais – “Funflakes é pura diversão!”.

Agora, porém, virando de um lado pro outro na cama, dividido entre a preguiça e a culpa, tento amaldiçoar alguma tarefa enfadonha que supostamente me aguarda na primeira esquina depois da escova de dentes, mas não encontro nada horroroso por lá. Hoje é quinta, dia de escrever a crônica. Gosto de escrever a crônica.

Da sala, vêm os gritinhos da minha filha. Tenho saúde, amor, amigos, uma churrasqueira e, além de tudo, faz sol lá fora, esse sol da primavera que não está aí para solapar ninguém, mas para deixar o céu mais azul e a grama mais verde, como no parque em que corriam as crianças loiras, na caixa de “Funflakes”. Acordar, no entanto, não é “pura diversão!”: acordar continua sendo um saco.

Sei que reclamo de barriga cheia. 99% da humanidade desperta pra vidas bem piores que a minha. Passam os dias a apertar parafusos, cruzam montanhas atrás de água, fogem de balas e leões. Um terremoto na Conchinchina, contudo, não nos impede de reclamar da nossa dor de dente. Acordar é a minha dor de dente.

Olha, eu não faço o tipo blasé, que se arrasta por aí com a cabeça baixa e um olhar superior, como se a inteligência levasse inevitavelmente ao niilismo e o comentário mais sagaz sobre a existência fosse o bocejo. Desconfio desses tipos, aliás: acho que o que move essas casmurrices é muito menos um arraigado ceticismo do que um apurado senso estético. “um homem com uma dor”, escreveu Leminski, “é muito mais elegante/ caminha assim de lado/ como se chegando atrasado/ andasse mais adiante”.). Não, não faço esse tipo. Uma vez acordado e de banho tomado, existir me parece um programa bem razoável. O meu problema não é no carburador, é no motor de arranque.


Pensando bem, não há nada de estranho nisso. Sou um carro a álcool do fim dos anos setenta. Antes de ir pra rua, tenho que ficar um tempo na garagem, esquentando. Sou um velho Passat verde. Não, Passat é muita presunção, sou uma Brasília, uma velha Brasília bordô. Talvez escreva sobre isso, mais tarde. Mais tarde: agora, aperto a “Função Soneca” do despertador e viro de lado, agradecendo ao Senhor por mais cinco minutinhos nas brumas dessa garagem.

21 de setembro de 2014 | N° 17929
FABRÍCIO CARPINEJAR

O coração cuspindo

Quando você não tem como resgatar uma história de amor, meu amigo, meu irmão, o coração vai cuspindo.

O coração está gripado. Está doente. Você respira bem, mas o coração não. Não criaram uma aspirina para o coração. Não tem como tomar um remédio. Ou esquecer.

Seu coração cospe o nome dela, as imagens dela em cada tentativa de romance.

As mulheres com quem vai sair não notarão o seu peito apertado. O seu peito confrangido. O seu peito constrangido. O seu peito doendo a falta de esperança. Mas, entenda, seu coração vai cuspir muito ainda. Talvez seja pneumonia do coração.

Seguirá com a vida porque não tem o que fazer: ela arrancou o futuro da relação, a esperança, ela não mudará, continuará lhe destratando, sendo grosseira, muda, fria, insensível.

Ela não dará jamais as respostas que deseja. A saúde que espera. O arrependimento que anseia. Cuspirá, meu querido. Nas calçadas e nos canteiros, cuidando para não ser visto.

Um exorcismo que não termina, fracassando para jogar fora o excesso não vivido a dois. Sofre da nostalgia do que não viveu e não viverá mais.

Ela não merece seu amor - o que agrava a sua angústia. Pertencimento e merecimento não andam lado a lado, descobriu isso, infelizmente.

Você já cansou de rezar. A tosse é o cansaço da memória. O cansaço do silêncio. O cansaço de Deus. O cansaço da insistência: esta insistência cansada na desistência. O amor pulsa inteiro entre palavras quebradas. O amor bate inteiro com a fé estraçalhada.

Tudo foi piorando de tal forma que ou você afundava junto com ela, humilhado, ou você emergia, sozinho e ferido. Todo amor a uma mulher deve coincidir com o amor à vida.

Seu coração tosse quando janta acompanhado em um restaurante diferente e percebe que sua ex poderia gostar de um prato, da decoração, quando seu pedido no cardápio é mais o pedido dela do que o seu, quando você tem vontade de sair dali para contar para ela que precisa conhecer um novo restaurante, que é a sua cara.

Mas ela não escutará você. Porque estará de mau humor, estará cobrando novamente, sempre insatisfeita, sempre infeliz. Você tentou fazê-la feliz e ela somente lhe machucou.

Já conclui que ela odeia sua felicidade, ama seu amor e odeia sua felicidade. Não dará importância à sua poesia, aos seus detalhes, ao tempo que leva reunindo a saudade de lugar a lugar para oferecê-la.

Seu coração tosse sem parar quando busca se envolver com uma pretendente. Depois da euforia do sexo, da inconsciência do sexo, ficará com uma vontade imensa de se isolar e mandar a companhia embora. Terá que ser educado para disfarçar a tosse e não transmitir a sensação que usou a pessoa. Você vem se usando, não usando ninguém.

A tosse é indelicada e convence seu rosto a mergulhar na tristeza. Não consegue conversar, pois seu coração quer cuspir. De novo e de novo. Você não fala mais com ela. Você não telefona. Você não manda mensagens. Você não tem nenhum motivo ou pretexto. A tosse é a paixão sufocada. A paixão por dentro sem voz, sem comunicação, sem nada.


Ela tampouco imagina que seu coração está cuspindo. Seu coração cospe. Intervalos longos em que o mundo para e desaparece. Seu coração resmunga. Seu coração não é seu, ainda é dela, até quando?

quarta-feira, 17 de setembro de 2014


17 de setembro de 2014 | N° 17925
MARTHA MEDEIROS

Homens, santos e desertores

Outro dia, o Fábio Prikladnicki escreveu um artigo interessante sobre essa mania de aplaudir de pé qualquer apresentação teatral, seja ela excelente, razoável ou uma porcaria. É de fato constrangedor prestar reverência a um artista apenas por hábito, mas felizmente não foi o que aconteceu sábado passado no Theatro São Pedro, quando o ator Ricardo Blat foi tão magnífico em Homens, Santos e Desertores, que até uma múmia daria um jeito de levantar ao final.

Foi aplaudido com vigor, confirmando que, na televisão, atores coadjuvantes ficam presos a uma jaula com poucos recursos, mas no palco ganham uma liberdade de atuação que os torna comparáveis aos grandes. Só achei a peça curta: uns 15 minutos a mais poderiam aumentar a consistência do conflito mostrado no palco. Mas o que importa é que o desempenho foi hipnótico e os aplausos em pé se justificaram – reação espontânea e agradecida da plateia.

O texto é de Mario Bortolotto, um dos nomes em evidência na nova dramaturgia brasileira. Na peça, ele coloca em cena a inadequação social, a dificuldade de se integrar e a solidão como rota de fuga – há muitos desertores por aí. Pode-se desertar de uma forma convencional (colocar o pé na estrada) ou trágica (o suicídio). E, como desertores não costumam olhar para trás e avaliar os estragos causados, cabe àqueles que ficam administrar o abandono.

“Ninguém nunca tem culpa sozinho.” Essa é uma frase que pincei da peça e que pode confortar ou incomodar, depende: a quem atribuímos a tal culpa? Quando a culpa parece ser apenas dos outros, daqueles que não nos aceitam como somos, que vivem à revelia das nossas vontades, vale perguntar: por que colocamos nas mãos deles o que é responsabilidade nossa? As outras pessoas não vieram ao mundo para nos bajular, para nos mimar.

Elas têm suas próprias necessidades, suas próprias carências. Não são agressores conscientes, apenas estão tocando a vida da forma que acham que devem. Serão os únicos culpados pela nossa infelicidade? Nós é que devemos encontrar um jeito de não sermos tão dependentes do olhar alheio.

Por outro lado, se assumimos sozinhos a culpa pela nossa incompetência diante da vida, pela nossa dificuldade em lidar com os desafios, por não conseguirmos manter laços afetivos, também é um exagero. O egoísmo do mundo tem crescido, as pessoas andam desinteressadas em manter vínculos, temos sido jogados às feras mesmo. Os outros contribuem para nossa dor, sem dúvida.


Do que se conclui: tudo o que nos acontece tem vários “pais” e “mães”. Ao reconhecermos isso, fica mais democrática a distribuição de responsabilidades e o impulso de fugir diminui. Desertar é uma tentativa de escapar da culpa, mas raçudo mesmo é aquele que fica e a reparte – e toca a vida sem abandonar ninguém.

sábado, 13 de setembro de 2014


14 de setembro de 2014 | N° 17922
MARTHA MEDEIROS

O galão d’água

Reproduzo o relato que minha filha recebeu pelo whatsapp de uma garota brasileira que mora no Japão: Ontem veio um homem aqui e deixou um galão dágua na frente da minha porta. Disse que durante a madrugada eles fariam uma vistoria nos encanamentos de água do bairro e por isso estavam passando para avisar, deixar o galão e pedir desculpas por terem que desligar o registro de água por algumas horas.

Eu disse para ele que não precisava deixar a água, afinal, estaríamos dormindo nesse horário, mas ele respondeu: Você paga suas contas todos os meses e nós temos obrigação de não deixar você sem água nem por um minuto. E ainda disse: Se precisar de mais, pode pedir. E assim seguiu a distribuir nas outras casas. Durante a madrugada, olhei pela janela e havia um grupo trabalhando nas ruas em silêncio. Hoje vieram novamente, casa por casa, só para agradecer.

Pois é. Não é assim que deveria ser tudo na vida? Decência, responsabilidade e educação: por que é tão raro, tão complicado? A simplicidade da cena: um galão d’água deixado de porta em porta para o caso de os moradores terem alguma eventual necessidade às duas horas da manhã, às três horas da manhã.

Não é caridade, e sim direito do cidadão que paga taxas e impostos. Eu não deveria me comover com isso, mas me comovo, porque a gente cumpre com os compromissos como qualquer japonês, qualquer sueco, qualquer canadense, mas onde está a contrapartida?

Acho que isso explica nossa desesperança de que uma eleição mude alguma coisa. Já não acreditamos que um candidato consiga não se deixar corromper pelo poder, que possa governar sem dever favores para outros partidos, que solucione as mazelas do povo em detrimento das negociatas de gabinete. Política passou a ter um sentido desvirtuado.

Ninguém obriga um homem ou uma mulher a se candidatar a um cargo público. Se ele se oferece para a missão de governar, deveria fazer isso unicamente por seu espírito altruísta. Mas soa como piada. Altruísmo na política brasileira? Tem graça.

Um galão d’água na porta. Um serviço de atendimento ao consumidor que funcione de forma fácil. Um policial em cada esquina. Nota fiscal entregue em todas as transações comerciais. Lixeiras por toda parte. Ruas bem sinalizadas. Transporte farto, barato e que cumpra horários. Hospitais com vagas dia e noite. Escolas eficientes. Confiança em vez de burocracia. Sinceridade em vez de enrolação. Agilidade em vez de empurrar com a barriga. Se todo mundo concorda que é assim que tem que ser, por que não acontece, quem emperra?

Não é só culpa de quem governa, mas dos governados também. Viciados em retórica, seduzidos por vantagens exclusivas e não coletivas, sempre nos perguntando “como posso faturar com essa situação?”, não permitimos que o Brasil se moralize e avance.

Galão d’água na porta de casa? Só com um troquinho por fora, meu irmão.



14 de setembro de 2014 | N° 17922
FABRÍCIO CARPINEJAR

Moteleiros

Não se dorme em motel, por mais que se tente, não se dorme.

Trata-se de uma maldição, o casal dirá que deseja virar a noite e aproveitar o café da manhã. Nunca vi alguém tomar café da manhã em motel. No máximo, é possível passar seis horas em seus domínios. Descansar é impossível.

Motel é para transar e mais nada. Foi criado unicamente para a luxúria e insônia. Deveria ganhar diária grátis quem consegue fechar os olhos ali dentro. Só bêbado, mesmo. Só desmaiando. Só em coma alcoólico.

Não existe nem a tranquilidade de Bíblia na gaveta. Não há o aconchego de ninho, a atmosfera de conchinha, de se apegar mansamente nos braços da mulher e virar para o lado.

Não há lado no quarto de motel. É uma gaiola de vidro, de hamster correndo.

É uma jaula de musculação, de ginástica, de levantamento de halteres. Não há como sonhar em paz com um espelho no teto. É acordar e se espiar de cima. Parece que estamos mortos, levitando, que saímos do próprio corpo.

Há uma luz que nos cega entrando pelas frestas e pelos reflexos dos vidros. Pode fechar as cortinas que ainda tem claridade. É como dormir de luz acesa. O quarto de motel é o sol da Sibéria em miniatura. Mesmo que sufoque completamente as janelas, uma luz negra banha os objetos. Os objetos brilham, o telefone brilha, como adesivos de decoração infantil. É como deitar nas cadeiras do Planetário.

Estar em seu território é não se encontrar com o silêncio. Tem um chiado ininterrupto entre as paredes. Não sei se é a tevê, não sei se é o rádio, não sei se é a alavanca da cama. Apertou algum botão por engano e não localiza qual é. O apartamento não traz a segurança da intimidade. A porta está fechada, mas a impressão é que surgirá alguém para limpar a qualquer momento, alguém sairá do elevador dos pratos ou de uma outra porta secreta.

Não há como descansar, a estrutura é moldada para contorcionismo, oferece degraus, divisórias, box. Não tem o fundo plano para o sossego. Um horizonte de calma e de estabilidade. Uma cena igual e monótona para se entregar ao cansaço.

Como repousar num banheiro? Estamos enredados em um banheiro imenso e infinito, um banheiro feito dormitório. As lajes, o mármore e os azulejos são pedras frias, pedras que não entoam cantigas de ninar. A cama é redonda, triangular, tudo menos quadrada. Os pés escapam, ficam soltos de suas órbitas, dançam no ar, pedalam perdidos.

O lençol não dá conta do frio. É um lenço fino, pura gaze, que serve para nu artístico. Não tapa nada. Não achará cobertor e edredon no armário. Não tem como se aprochegar. O ar ou é quente demais ou é frio demais. Ou se levantará queimando em febre ou congelado.

Acima de tudo, sentirá falta de seu travesseiro. Aquele peso sob a cabeça é apenas uma almofada morta de sofá.


Terá saudade de seu confidente de penas. Macio, fofo, impregnado de seu cheiro. Mas levar travesseiro para o motel é coisa de depravado.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014


10 de setembro de 2014 | N° 17918
MARTHA MEDEIROS

Os fazedores de besteiras

Sei que o assunto Patricia Moreira já cansou, mas não dá pra perder a oportunidade de olhar para o próprio umbigo e perguntar se somos tão nobres a ponto de nos darmos o direito de atirar pedras no telhado dos outros. Fazendo uma viagenzinha no tempo, você não consegue lembrar de nenhuma besteira já cometida? Nunca foi idiota por um dia?

Eu até que não fui das mais torpes, desde cedo desenvolvi um senso de justiça que me fazia ir contra o rebanho se preciso fosse. Mas isso não me isenta de também já ter ido a favor do rebanho, com mugido e tudo. Simplesmente porque fazer coisas sem sentido é típico de quem ainda não reconheceu seu papel no mundo.

Fecho os olhos e me vejo na estrada, num carro lotado de adolescentes empunhando latinhas de cerveja. Eu era alguma espécie de delinquente? Nem perto disso. A mais correta e ajuizada das criaturas, mas não mandava parar o carro para descer. Eu queria seguir com eles, que hoje são respeitados advogados, administradores, biólogos. Éramos jovens desbundados em busca de uma identidade comum.

A garota Patricia, símbolo do caso Aranha x Grêmio, entrou na onda furada de xingar o goleiro do time adversário porque se sentiu segura para extravasar e fazer bobagem sob a proteção de um grupo. Quem não? Certa vez, fui assistir a um jogo do Grêmio contra o Corinthians, quando o craque do time paulista era Ronaldo, o Fenômeno. Dias antes da partida, o travesti que Ronaldo levara a um motel havia falecido. Pois bastava o atacante tocar na bola para o Olímpico inteiro berrar: vi-ú-vo, vi-ú-vo! Eu não segui o coro, mas se houvesse uma câmera me focalizando, me flagraria rindo. Era uma chacota.

Chamar alguém de macaco não é chacota, e sim ofensa racista, e racismo é crime. Patricia será penalizada juntamente com seus companheiros de imbecilidade e nunca mais repetirá o gesto, tenho certeza, e nós, de fora, também não. Para isso servem as penalizações: para educar, alertar, servir de exemplo. A guria, ironicamente, agiu como macaca de auditório, termo que caiu em desuso por motivos óbvios, e deu-se mal. Assim é. Sempre há um mártir por trás das mudanças de comportamento.

Que agora a Justiça tome conta do caso e basta de perseguições pessoais. A garota não é diferente de nenhum adolescente que já dirigiu sem carteira, que fez brincadeiras de mau gosto com gays, que praticou bullying na escola, que passou trotes por telefone, que fez uma prova chapado, que falsificou carteirinha de estudante, que arranhou o carro de um desafeto, que roubou a namorada do irmão. Tudo errado, mas dentro da previsível tacanheza juvenil.

Sou a favor de penalizar. O Brasil é este caldeirão de escândalos por causa da impunidade. Mas pegar para Cristo é hipocrisia.


sábado, 6 de setembro de 2014


07 de setembro de 2014 | N° 17915
MARTHA MEDEIROS

MAGIA

Sim, vou falar de novo sobre Woody Allen, então, se você não o suporta, pode pular para a página seguinte, ou me ler com ressalvas por eu ser tão tendenciosa, ou simplesmente me dar outro voto de confiança: o filme Magia ao Luar não é extasiante e não vai concorrer ao Oscar em nenhuma categoria (figurino, talvez), e nem mesmo Colin Firth arrebata (pouco à vontade no papel, meio afetado), mas quem se importa?

Trata-se de um legítimo produto Woody Allen, que a cada novo trabalho leva para as telas as conclusões pessoais que vem colhendo no transcorrer de sua vida. Isso é o que me fascina, diferentemente do que os críticos profissionais analisam. Eu viajo para dentro da cabeça desse homem que acompanho desde que ele tinha 36 anos e eu uns 10.

Hoje Woody Allen, aquele neurótico apavorado com a morte, buscando incessantemente um sentido para a vida, cético de carteirinha, é um senhor de quase 79 anos. Se eu, com 26 menos, já abandonei alguns questionamentos irrespondíveis, imagine quem está, teoricamente, mais próximo de apagar a luz.

É natural que cultivemos milhares de indagações, mas a tendência é aceitar as simplificações que a maturidade traz - no final das contas, o que sobra de uma vida são os resultados que não buscamos, mas que aconteceram mesmo assim.

Magia. Truque. Ilusionismo. Depois de uma vida regida por planos, metas e racionalismo, o inacreditável é que ficará marcado em nossa biografia.

Durante muito tempo, Woody Allen não acreditou em nada que não pudesse explicar, mas aos poucos ele relaxou e passou a duvidar de si próprio, foi se dando alta e desfrutando de uma leveza que deixou de ser sinônimo de pequenez, mas de facilitação.

Quem é que aguenta brigar infinitamente contra si mesmo, quem é que tem fôlego para uma busca incessante por respostas que nunca serão conclusivas? Muito melhor é admitir que as respostas mudam com o tempo e que o comprometimento com nossa imagem se torna patético. Mais vale relaxar e levar a sério apenas o que se sente, porque as teorias se tornarão uma teimosia de estimação, nada além.

Eu também sempre fui muito cética, até que mudei. Virei a casaca, deixei de torcer pelo nada e resolvi torcer pelo tudo. Astrologia, anjos, telepatia, acaso, vibrações, energia: hoje respeito toda a família Imponderável da Silva. E vou além, acredito profundamente num troço chamado Amor, que não tem lógica, não tem explicação e não tem racionalidade que o justifique. Basta um sorriso para fazer a mágica funcionar.

Parece que me esqueci de falar do filme, mas o filme é sobre isso, e se não for, que Woody Allen me perdoe as elucubrações: são tantos anos de fidelidade ao seu trabalho que já me permito invadir sua alma sem permissão.



07 de setembro de 2014 | N° 17915
FABRÍCIO CARPINEJAR

Eu te devoto

Se você tem um homem ou uma mulher que lhe ama, é muita sorte.

Mas existe algo maior do que o amor: a devoção.

Se você tem um homem ou uma mulher devota, não é apenas sorte, e sim milagre.

O devoto jamais desistirá de você, é amor até depois da morte.

Ele não tem orgulho, tem fé. No orgulho, só cabe um. Já a fé tem espaço para todo o casal.

O voto matrimonial será cumprido realmente pelo devoto (quem ama às vezes não aguenta cumprir a declaração à risca):

“Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.

O devoto foi feito de pele de aço e alma de vidro. Encontra explicações na própria esperança, mesmo quando não é retribuído ou correspondido. Pode ser criticado, ofendido, abandonado, esquecido, maltratado, torturado e não vai desistir.

Ele sofre pelos dois, e se acalma pelos dois. Ele briga pelos dois e se desculpa pelos dois.

Tenho pena do devoto e também admiração.

Nenhum de seus amigos e familiares será capaz de entendê-lo. Porque ama demais, se doa demais, se quebra demais.

É amargamente ingênuo, docemente compreensivo.

Vive mudando sua perspectiva para encaixar a convivência. É um otimista da ação, apesar da tônica pessimista de sua rotina.

Renuncia os objetivos em nome do casamento, da recuperação do casamento, da melhoria do casamento, que talvez nunca venha.

Enquanto é natural procurar motivos externos para justificar a tristeza, o devoto se concentra nas lembranças boas, ainda que raras, para proteger sua vontade de viver.

O devoto é um guerrilheiro da relação, um apaixonado vitalício.

Tem o desespero de ajudar sempre, em atender os pedidos antes de pensar em si.

Ele cessa qualquer trabalho para acolher a súplica de sua companhia. Nunca volta de uma viagem desprovido de uma lembrança, desenha a saudade nos vidros de sua paisagem, derrama-se em reticências nas mensagens. Não encara o nome de sua amada ou amado no celular sem tremer.

Quem ama dorme bocejando, o devoto dorme suspirando.

Quem ama acorda pedindo espaço, o devoto acorda pedindo abraço.

O devoto vai além da compreensão. Escreve cartas, deixa bilhetes de manhã, prepara surpresas, inventa festas. Incansável em sua busca por ser inesquecível.

Ele pode, inclusive, se piorar para não ser melhor do que sua companhia. Ele pode se sonegar para se equiparar ao que recebe.

Eu te devoto supera o Eu te amo.


O único empecilho é que um devoto precisa encontrar um outro devoto para ser feliz.