quarta-feira, 30 de dezembro de 2015



30 de dezembro de 2015 | N° 18400 
MARTHA MEDEIROS

Não querer é poder


Fim. 2015 terminou e um novo ano vai iniciar (a velocidade desse processo tem me causado vertigem, mas isso é outro assunto). O fato é que 2016 está batendo à porta, apresentando-se para receber nossos pedidos. O que você deseja, o que você colocou na sua lista de resoluções? Seja o que for, está começando mal.

Desejar coisa nenhuma: essa é a saída para minimizar frustrações e preservar a serenidade. Decretei como tendência, tudo sob a chancela do poeta português Fernando Pessoa: segundo ele, não querer é poder.

Não sei exatamente qual foi a motivação do gajo para inverter a máxima “querer é poder”, mas o fato é que ele a inverteu em seu Livro do Desassossego. “A renúncia é a libertação. Não querer é poder”.

Muito bem. O que tenho é suficiente. Não quero mais saber de cobrar pendências do futuro, de olhar pra ele de um jeito faminto, como se ele me devesse alguma coisa. Livre de anseios: é desse modo que me preparo para atravessar a meia-noite desta quinta-feira rumo ao primeiro minuto da vida pela frente.

Em 2016, não quero que meu bem-estar esteja atrelado às atitudes de quem me cerca, não quero que minha felicidade dependa de as pessoas agirem da forma que eu considero conveniente. Preciso aceitar que elas têm seus próprios pensamentos e acreditar que suas escolhas fortalecem suas identidades, e suas identidades não são assunto meu.

Em 2016, não quero temer o calendário, não quero encarar a passagem dos dias e meses como se fossem sentenças de morte, não quero perscrutar cada parte do meu corpo em busca de sinais de traição. Seria insano acreditar que o tempo me deve um tratamento privilegiado.

Em 2016, não quero que os projetos que estão em andamento me roubem o prazer de sua execução por causa da ansiedade pela sua conclusão. Não preciso me impor prazos rígidos e mergulhar numa autocobrança aflitiva. Demito a patroa de mim mesma e promovo a estagiária que, por não ter nada a perder, se entrega com entusiasmo ao que, para ela, ainda é um mistério. cortacorrente

Não quero me exigir atualização plena e constante dos fatos que acontecem ao meu redor e também em Brasília, em Paris e em Marte. Que eu me mantenha tranquila em relação ao meu desconhecimento de tanta coisa, esse desconhecimento que se agiganta sem que, nem por isso, eu diminua. O que eu absorver naturalmente haverá de bastar.

Não é necessário me dedicar a tanto querer, a tantas vontades que me obrigariam a me deslocar de onde estou, que me fariam perseguir às cegas algo que nem sei se é destinado realmente a mim. Melhor aguardar nesse ponto suave em que me instalei e que me confere o poder invencível da paz de espírito. O que está a caminho já é meu, apenas ainda não chegou.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015


29 de dezembro de 2015 | N° 18399 
CARPINEJAR

A maior intimidade


Dormir é pessoal. Dormir é um ato cheio de manias e restrições. Há o colchão de toda a vida, há o cobertor predileto, há o abajur especial da cabeceira.

O sono é regrado por simpatias inegociáveis, surgidas já na infância. São exigências para enganar a insônia e reproduzir o acolhimento da casa natal.

Tem gente que só dorme com a luz acesa. Tem gente que só dorme no escuro.

Tem gente que só dorme com frestas da persiana. Tem gente que só dorme com três travesseiros. Tem gente que só dorme abraçado ao travesseiro. Tem gente que só dorme com o travesseiro entre as pernas. Tem gente que só dorme destapado. 

Tem gente que só dorme com o rosto debaixo do braço. Tem gente que só dorme de banho tomado. Tem gente que só dorme com meditação. Tem gente que só dorme com música. Tem gente que só dorme com ar-condicionado ligado. Tem gente que só dorme com televisão acesa. Tem gente que só dorme depois de ler. Tem gente que só dorme roncando. Tem gente que só dorme falando. Tem gente que só dorme em silêncio. 

Tem gente que só dorme com remédio de nariz. Tem gente que só dorme com o despertador programado. Tem gente que só dorme com o seu gato. Tem gente que só dorme com o seu cachorro aos pés. Tem gente que só dorme de meias. Tem gente que só dorme no lado esquerdo. Tem gente que só dorme no lado direito. Tem gente que só dorme atravessado. Tem gente que só dorme com lençóis limpos. Tem gente que só dorme de portas fechadas. Tem gente que só dorme nu. 

Tem gente que só dorme de pijama. Tem gente que só dorme no sofá. Tem gente que só dorme vendo filme. Tem gente que só dorme ao rezar. Tem gente que só dorme com celular do lado. Tem gente que só dorme após um copo de leite. Tem gente que só dorme após um cálice de vinho. Tem gente que só dorme acompanhado do urso de pelúcia. Tem gente que só dorme de bruços. Tem gente que só dorme quando o filho volta da universidade ou da festa.

Por isso é que dormir com outro é muito íntimo. É e sempre será a maior intimidade que existe. Mais do que sexo.

sábado, 26 de dezembro de 2015



27 de dezembro de 2015 | N° 18397 
MARTHA MEDEIROS

De castigo no museu

Qual será o pior emprego do mundo? A lista deve ser longa, e trabalhar dentro de um museu não deve fazer parte dela. Geralmente são belos prédios, o funcionário fica protegido das intempéries, convive com pessoas de bom gosto e passa os dias cercado por arte. 

Será assim mesmo?

Recentemente conheci um antigo convento transformado em centro cultural numa cidade do Brasil. Fui até lá almoçar com um amigo (o restaurante era bem recomendado) e aproveitei para chegar um pouco mais cedo a fim de visitar a mostra que estava sendo exposta. O táxi me deixou na entrada às 11h30min da manhã. Entrei. Ao comprar meu tíquete, a moça da bilheteria suspirou: “Finalmente”.

Finalmente o quê? “Alguém.”

Sorri e me dirigi à primeira sala. Entreguei meu tíquete a uma moça e ela me deu o bom dia mais alegre que recebi na vida. “Bem-vinda. É a primeira.” Li seus pensamentos: “Talvez a última”.

Então fui entrando, sala por sala. Meus passos ecoavam. Não havia nem uma mosca com quem dividir meus comentários desabonadores – não me entusiasmei com nada. Olhei para o relógio e haviam se passado cinco minutos, mas parecia que eu estava cumprindo pena de 30 anos. Foi então que prestei atenção nelas. Nas mulheres que ficavam no canto de cada sala, guardando a integridade das peças. Umas sentadas, quase cochilando, e outras em pé, esticando os joelhos. 

Olhando o dia inteiro para as mesmas obras, que não eram nenhum Van Gogh, nenhum Edward Hopper, nenhum Dalí. Eram quadros e esculturas pouco envolventes, expostos em salas em que quase ninguém transitava. Resolvi puxar assunto. “Posso fotografar?” “Sem flash, pode.” Perguntei para outra: “É sempre animado assim?”. Ela deu um sorriso encabulado. Então entrei em outra sala e havia uma instalação instigante. Vários facões pontiagudos pendiam do teto. Paredes pretas, tudo preto, apenas aquelas lâminas afiadas e brilhantes sobre minha cabeça e a da moça que ali dava expediente. 

Eu sairia daquela emboscada em meio minuto, mas ela ficaria até às 5h da tarde com aqueles 300 facões sobre a cabeça. Imaginei o teto baixando lentamente, enquanto nós duas, amarradas, aguardaríamos a chegada de um super-herói. Mas não era um filme do Batman. Arrisquei: “Não é uma chatice passar o dia inteiro aqui dentro?”. Ela encheu as bochechas de ar e depois expirou, revirando os olhinhos. Boa resposta. Resolvi contemporizar. “Ao menos você está empregada, né?” Ela deu de ombros com as palmas da mão viradas pra cima, admitindo o consolo. Acho que era muda.

Fugi correndo daquele baixo astral e fui para o restaurante esperar meu amigo. Os garçons perambulavam pra lá e pra cá sorridentes, havia música boa, as mesas estavam ocupadas por jovens falantes e a arte saía da cozinha, em pratos saborosos. Lá era sempre animado assim, eu não precisaria perguntar.

Vigia de sala de museu. Coloquei na lista.



27 de dezembro de 2015 | N° 18397 
CARPINEJAR

Casamento das cinzas


O amor é insuportavelmente misterioso. Você jura que viu tudo, mas descobre uma nova cena que desconcerta a razão e combate o pessimismo dos relacionamentos.

Cada vez mais vejo que não sei nada sobre o assunto, sou um menino contando as estrelas até cansar. Minha astrologia é o brilho do olhar repercutindo a cintilação dos astros.

Não me fio na ciência exata. Amor, para mim, é como a humildade da lua, o que era minguante um dia se transforma em balão amarelo e cheio na madrugada.

Eu me deslumbro com a poesia dos gestos, pois o romantismo finou para quem não se entregou a fundo para alguém: ficou na metade das palavras por dizer, cansou no calor de uma briga ou no frio do punhal de uma discordância, desistiu de insistir antes dos laços consolidados.

Chega um momento em que o amor e a fé se encontram, e se tornam uma única matéria, inquebrantável. Quando é somente amor, pode acabar. Amor sozinho não faz casamento. O amor também precisa casar. O amor é o noivo da fé.

Aconteceu em Porto Alegre. Antes de morrer, ele pediu para sua esposa de três décadas para ser cremado.

Ela questionou, procurando compreender o seu capricho: – Onde jogo as cinzas? – Espera! Deixa as cinzas com você. Não arremessa em nenhum lugar. Eu quero lhe esperar.

– Como assim? – Só aguento morrer se você me prometer que as nossas cinzas vão casar no futuro.

Depois de 15 anos de viuvez, ela também faleceu e deixou uma curiosa e inquietante carta aos filhos:

“Desejo ser cremada, junte as minhas cinzas com as cinzas de meu marido, que estão na cômoda do quarto, e celebrem o nosso casamento do pó em Rio Pardo, onde nos conhecemos. Prepare um altar, traga as nossas alianças, chame um padre, convide a família. Em vez da chuva de arroz, será uma chuva alegre de nossa fidelidade. Estaremos misturados no ar, enamorados, assim como passamos a vida inteira. Ninguém definirá o que é o meu corpo e o que é o corpo dele. Seremos uma nuvem gris cobrindo o céu dos nossos amigos, passeando pelas cabeças dos netos, voando, voando.”

Eu já tinha testemunhado com assombro casais festejando bodas de ouro, de diamante e de vinho, casais nonagenários beijando na boca, casais velhinhos renovando os votos, mas jamais presenciei uma história igual, do amor enganando a morte, do incrível matrimônio das cinzas de dois apaixonados.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015


RUTH DE AQUINO
23/12/2015 - 21h15 - Atualizado 23/12/2015 21h15

O papa Francisco e o falso Natal

Imagino quanto os políticos brasileiros teriam a aprender com o papa em humildade e dignidade


Num ano em que o Brasil fez mal ao fígado e o mundo foi atacado com crueldade pelo terror islâmico, um hermano argentino de quase 80 anos nos encheu de esperança na humanidade. O papa Francisco pode até dizer, a cardeais e bispos, que continuará a “reforma da Igreja”. Modéstia. Francisco é um revolucionário. E por isso elegeu a corrupção como um dos maiores males a combater. Não só a corrupção alheia. Ele substituiu o conselho do Banco do Vaticano. Enquanto viver, não quer mais testemunhar desvios do dinheiro destinado à caridade.

Francisco sabe o que diz. Sabe como dizer. Sem papas na língua, amedronta os “duros” no Vaticano. Aqueles que se agarram a uma “autoridade divina” para manter regalias e continuar acima do bem e do mal. Nosso papa sabe como conquistar católicos e não católicos para sua cruzada utópica. Porque sua palavra é a palavra da paz, da tolerância, do diálogo entre opostos, mas também do combate às guerras. E, por tudo isso, é reeleito Personagem Mundial e Líder do Mundo por diferentes organizações em diversos países.

O papa Francisco jogou por terra a imagem dúbia e conservadora que o Vaticano muitas vezes projetou sobre o mundo, ao cobrar a punição de todos os religiosos que cometeram pedofilia. O papa é pop e tem um sorriso contagiante. Sua falta de medo deriva de sua bondade e de sua confiança no outro. E também de uma profunda perspicácia da diplomacia internacional e dos grandes temas que nos afligem, dentro e fora de nossas casas.

Escreveu uma encíclica sobre o meio ambiente, algo que jamais moveu os sumos pontífices anteriores a um mero pronunciamento. Sua palavra de amor e compreensão a todos que não se encaixam nas regras, sejam homossexuais, transexuais ou mulheres que se submeteram a um aborto, causou ondas de espanto no Vaticano e no mundo. Aí está, pensamos nós, um ser extraordinário.

“Temos de derrubar muros e construir pontes.” Essa é uma frase favorita do papa Francisco – o primeiro na História a convidar um imã (líder religioso muçulmano) a subir com ele em seu papamóvel.

Seu nome de batismo é Jorge Bergoglio. Imagino quanto os políticos brasileiros, que gostam de ser fotografados nas missas e nos cultos, teriam a aprender com este papa! Em humildade e em dignidade. Ele rezou uma missa nas Filipinas no meio de um tufão – protegia-se com uma capa amarela, como se fosse mais um na multidão de fiéis. Quando foi aos Estados Unidos, andou num carro Fiat 500. Sempre, nos lugares mais perigosos ou em momentos conturbados, aproveitou para se misturar aos pobres, carentes e desassistidos. Aos deficientes físicos, às crianças, aos velhos.

O papa não para. Suas viagens em 2015 o levaram a 11 países de quatro continentes. Países em conflito ou simplesmente países esquecidos. “Por favor, não temos direito a permitir mais outro fracasso neste caminho de paz e reconciliação”, disse ele, sobre as negociações para um acordo de paz na Colômbia, entre as Farc (Forças Armadas Revolucionárias) e o governo. Seu voo histórico entre Santiago de Cuba e Washington mostrou sua fibra, a fibra de um homem comum – em toda a santidade embutida nesta expressão: “Um homem comum”.

No dia de seu aniversário de 79 anos, 17 de dezembro, o papa decidiu canonizar madre Teresa de Calcutá, a quem se atribui a cura milagrosa de um engenheiro brasileiro que sofria de um câncer terminal no cérebro e hoje vive com saúde, aos 42 anos. Madre Teresa é um símbolo da Igreja que o papa Francisco defende, mais comprometida com os pobres e com os que sofrem.

Madre Teresa foi até as “periferias da existência”, uma expressão usada por Francisco para se referir a todos os abandonados, que sobrevivem à margem das sociedades. Na periferia material, estão seres humanos sem casa, sem educação, sem saúde, sem dignidade. Na periferia afetiva, estão os drogados, os deprimidos, os sós. Quantas vezes passamos por doentes da alma sem um olhar de mero reconhecimento de sua existência. Sejam eles de nossa família ou estranhos.

Francisco foi o primeiro papa a ter a coragem, no mês passado, de denunciar o falso espírito do Natal num mundo em guerra. “Teremos luzes, festas, árvores luminosas e presépio. Tudo falso: o mundo continua fazendo guerras. O mundo não entendeu o caminho da paz. Em todo lugar existe guerra hoje, existe ódio. O que permanece de uma guerra? Ruínas, milhares de crianças sem educação, vários mortos inocentes e muito dinheiro no bolso dos traficantes de armas.”

Vida longa ao papa! Que o Brasil passe a honrar sua população e não deixe grávidas e doentes sem assistência, barrados nos hospitais, numa crueldade sem nome. Que sejamos todos melhores no próximo ano.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015



23 de dezembro de 2015 | N° 18394 
MARTHA MEDEIROS

Tudo isso e mais um feliz Natal


Que você consiga desgrudar das redes sociais, que dê uma longa caminhada sem que seus joelhos incomodem, que o sol apareça no dia que você tanto aguarda, que sair da dieta não interfira na sua silhueta, que você tenha a oportunidade de ajudar alguém que esteja precisando, que ouça agora mesmo a música que você mais gosta, que os amigos que se sentiram magoados façam a gentileza de colocar uma pedra no assunto, que o vinho branco esteja indecentemente gelado, que o livro que você está lendo mantenha-se interessante até o fim, que você encontre um presente baratinho, que por alguns minutos você esqueça os problemas do país, que você se reconheça bonito ao se olhar no espelho e que tenha um feliz Natal.

Que você encontre o anel dos seus sonhos numa feira de rua, que pegue o último canapé do prato sem culpa, que reze mesmo sem crer o suficiente, que não dependa de companhia para viajar, que não perca muito tempo se arrependendo, que deixe a vida um pouco nas mãos do destino, que reveja fotos antigas, que tome um banho de mar inesquecível, que vá à luta por uma camiseta que seja a sua cara, que transe com alguém bem legal, que segure dentro da boca uma maldade, que chore sem ficar com o rosto inchado, que o checkup não acuse nada, que ganhe dois ingressos para o show do ano e que tenha um feliz Natal.

Que você pare um pouco de reclamar, que em tudo perceba alguma graça, que resolva ir caminhando em vez de tirar o carro da garagem, que use de uma vez aquela camisa escandalosa ou doe para uma escola de samba, que escute ambos os lados antes de distribuir acusações, que um WhatsApp salve o seu dia, que encontre uma nota de R$ 50 no bolso da calça que está indo para a lavanderia, que te convidem para passar o Carnaval num lugar incomum, que tire bom proveito da insônia, que suma a espinha maldita que apareceu no nariz, que o dia termine sem nenhum contratempo e que tenha um feliz Natal.

Que você não leve um tombo na escada, que não fique preso no elevador, que não perca o chinelo de dedo na praia, que a chuva não estrague seu cabelo, que você mentalize que tudo pode ser simples, que pense duas vezes antes de fazer uma tatuagem no rosto, que vá para Londres sem mais nem menos, que sua barriga pare por aí, que consiga pagar em dia seu seguro-saúde, que você descubra o prazer de uma lanchonete de beira de estrada, que quando pedirem uma opinião sincera você não caia nessa, que entre fazer a coisa certa e a coisa errada você escolha fazer a coisa certa, que não subestime a importância das trivialidades e que tenha um feliz Natal.

É o que desejo pra você dentro do espírito de generosidade abundante que a data inspira.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015



22 de dezembro de 2015 | N° 18393 
CARPINEJAR

Não foi assim


Almoço familiar é uma guerra de recordações. Ainda mais lá em casa: prole numerosa, formada por escritores, promotores e juízes. Há uma disputa vaidosa por quem conduz a melhor história. Um interrompe o outro. A falta de educação é uma arma para ganhar o debate. Falar de boca cheia é uma obrigação para não ficar atrás na conversa. Não há timidez, recato, respeito, trata-se de jogo sujo do início ao fim da refeição, não faltam cotoveladas, chutes por debaixo da mesa e respingos de molho na roupa. Comer é o de menos, desde criança participo de um concurso de contos.

Começo a ciscar uma lembrança: – A minha tia dizia que fui trocado no hospital.

A mãe logo interrompe: – Nada a ver, confunde a tia com a sua irmã.

O pai muda o personagem: – Foi a sua avó.

Insisto no tom professoral, como se a luz me focasse sem a ameaça de o público interferir no escuro. Faço da cozinha o meu palco, as vaias não me pressionam.

– A minha tia me encarava estranho e chamava a atenção para uma incoerência: nasci cheio de pintinhas e depois no berçário não apresentava mais nenhuma mancha no rosto. Como? Ela suspeitava seriamente da troca.

Os irmãos me censuram:– Não pode lembrar, era muito pequeno. Aposto que é invenção.

É necessário manter a tranquilidade e não ceder à mudança de rotas do pessoal. Passo a bandeja de arroz, a salada, respiro fundo o intervalo comercial e não perco o estribilho.

– Pedi para a mãe comprovar que era mesmo filho dela. Ela me trouxe a certidão de nascimento. Ora, não sou idiota, poderia me colocar como filho no cartório e isso não prova nada.

O pai questiona quando que ele vai aparecer na lembrança.  – Pai, você não está nesta história – resmungo.

Prossigo. É um esforço enfrentar os parentes para terminar uma piada ou uma evocação. Eles têm a mania de duvidar do jeito que memorizamos a infância.

– Mantinha a certeza de que fui trocado no hospital. A mãe, chateada com a minha desconfiança, decidiu pôr fim às dúvidas e me trouxe um envelope pardo. Abriu vagarosamente com as fotos de meu avô: a mesma cara amassada, o mesmo desvio de septo, os mesmos olhos caídos, a mesma testa larga. Olhei, olhei e lamentei: “Coitado, ele também foi trocado no hospital”.

Enfrento as risadas desonestas da turma, sinto o cheiro do deboche. Ouço gritos de protesto:

– Não foi assim.

O pai conta uma versão. A mãe conta uma diferente. Carla, Rodrigo e Miguel tomam caminhos absolutamente inesperados na interceptação dos fatos. É de enlouquecer para qualquer estranho convidado a comer conosco.

Desisto de tentar definir a verdade. O que descobri ao longo da vida é que todos, inclusive eu, estão mentindo.

sábado, 19 de dezembro de 2015



20 de dezembro de 2015 | N° 18391 
MARTHA MEDEIROS

A favor do vento


Há muito que não espero que os outros ajam conforme eu gostaria

Se ninguém se posicionasse contra a violência, contra a corrupção e contra outras tantas indignidades, viver seria ainda mais difícil do que normalmente é. Ser combativo é uma atitude necessária e exige bravura, coragem, empenho, espírito de luta. Meus aplausos e respeito a quem tem disposição para o enfrentamento.

Eu deixei de ter faz tempo. Lutei pelo o que eu queria lutar quando era garota e o saldo foi bom, mas parei de dar murro em ponta de faca e troquei de estratégia. Hoje, em vez de me posicionar contra isso e aquilo, em vez de ataques virulentos e muitas vezes quixotescos, prefiro viver de acordo com o que acredito que é certo. Funciona também, e desgasta menos.

Na esfera privada, não tento mais fazer ninguém mudar de ideia. Desisti de trazer para perto quem prefere ficar afastado. Não crio ilusão de que o que já se provou ineficaz um dia funcionará por obra do Espírito Santo. Não me fixo mais nos defeitos dos outros. Não perco a cabeça quando ouço asneiras (antes tinha vontade de sacudir a pessoa pelos ombros, fazendo seus cabelos voarem para frente e para trás como se fosse um boneco de pano). 

Há muito que não espero que os outros ajam conforme eu gostaria. Não aguardo favores, elogios ou adesões. Não fico em estado de alerta para flagrar quando pisam na bola comigo – percebo quando pisam, mas procuro não estressar com isso. Nem sempre consigo ser tão magnânima, mas tento. E, por fim, perdoo. Não por ter parentesco em primeiro grau com Nossa Senhora, mas porque dá menos trabalho.

Lei do menor esforço, sim. Mas com resultados práticos muito favoráveis.

Agora escolho os caminhos menos tortuosos e as parcerias mais afetivas, sinceras e engraçadas. Se me fizer rir, está valendo. Digo não com a mesma facilidade com que digo sim: passei a ser 100% honesta em relação aos meus desejos, deixei de ser condescendente com o que não me satisfaz. Só tolero dificuldades que gerem algo positivo mais à frente. Cumpro tudo aquilo que eu exigiria dos outros se ainda tivesse disposição para fazer exigências. Agora só exijo de mim, e ainda assim, pouco.

A minha porção rigorosa e mesquinha existe, mas tenho educação suficiente para não exibi-la por aí. A minha parte canalha restrinjo aos meus pensamentos secretos. Sou do contra só quando contra mim. A briga é interna e não muito violenta: não me aplico golpes baixos. Meus demônios são inimigos adestrados.

No mais, sigo a favor do vento. Falo com clareza, faço escolhas condizentes com quem sou e facilito o que posso. Talvez, para alguns, uma vida sem tormentas diárias produza um vazio impossível de suportar. Cada um, cada qual. Eu joguei a toalha: o que não suporto mais nessa vida é peso.



20 de dezembro de 2015 | N° 18391 
CARPINEJAR

Não custa enviar uma mensagem

Na vida de solteiro, liberdade é fazer o que se quer. Na vida de casado, liberdade é honrar a confiança: oferecer atenção e corresponder simultaneamente com a atenção recebida.

Há regras a serem seguidas, estabelecidas pelos dois. O ciúme ou a perda de credibilidade virá à medida que elas são quebradas. Não percebemos que o amor é legislação, e temos que respeitar o acordo e prestar contas da rotina. Não adianta bancar o esperto ou o distraído. Corrupção amorosa é desrespeito.

Solteiro pode bater a porta de casa sem avisar, aparecer na manhã seguinte sem explicar coisa alguma, dormir fora sem medo do despejo, voltar bêbado derrubando móveis e mijando no vaso da sala.

Casado tem alguém que se importa com todos os seus movimentos. Pois ternura é valorizar os mínimos detalhes, olhar para o hipotético com singularidade. A emoção domina os fatos. Não existem bobagens quando predomina a compreensão e o hábito de se colocar no lugar do outro.

Se você sai sozinho, o seu papel é não deixar a sua companhia preocupada. Não tem como abandonar a relação nem por um momento. Não custa mandar mensagens dizendo como está e o que vem fazendo. Uma foto ou um comentário não corresponderá ao tempo perdido ao longo de uma festa ou de um jantar. Serão apenas alguns minutos de seu prazer. É um investimento irrisório para garantir a felicidade do casal e não gerar questionamentos à toa. 

Muitos não realizam porque não pretendem se sentir controlados. Alegam que não acessaram o celular, de que estava no silencioso ou de que a noite passou rapidamente. E quem até o momento esperava na boa, confortado, impregnado de fé, respeitando o espaço de cada um, ficará pensando bobagem (mais envolvendo a insegurança de hoje do que a infidelidade).

Sua alegria não deve tirar o sono de ninguém, não deve roubar o sossego de ninguém. Não é consolo explicar que não fez nada de errado e não traiu, que sempre impede o pedido de desculpa. Não é este o problema que estará em questão, mas a completa indiferença. Aquele que reclama termina com a fama de possessivo. E o que não avisou chama para si o papel de vítima, já que aparentemente não cometeu nenhum grande erro.

O relacionamento é feito de pequenas reciprocidades. O risco é confundir cuidado com vigilância. Nos dias atuais, com as notícias policiais prosperando, não é possível contar com o luxo de desaparecer por cinco horas.

Casar tem o lado ruim de não ser mais inconsequente. O nome disso é responsabilidade. Não há lealdade excluindo a responsabilidade.


20 de dezembro de 2015 | N° 18391 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Caixa de perguntas


Nesses dias de final de ano, a vontade que dá, num espaço privilegiado como este aqui, é a de saudar todo mundo, ou os de bem, e desejar um ano bem melhor. E dar balanço do ano que termina – e que ano. Uma sucessão de revelações envolvendo os principais partidos e um naco das mais importantes instituições do país. Um pacote de gente presa, de gente delatando esquemas, tudo num sem-fim que dá nos nervos de qualquer um. E nem falamos da crise econômica, que já tem feito vítimas várias, atingindo primeiro os de sempre: os de baixo.

Mas acontece que eu fui atropelado por um livro, e não pude largá-lo até vir aqui para dar notícia dele. Saiu já em 2013, e para meu constrangimento só agora tomei contato com ele. A editora é a Libretos; o autor é Elenilton Neukamp; o livro se chama Caixa de Perguntas, e tem um subtítulo poderoso: Desafio Vivo em Sala de Aula.

De que se trata: um relato de experiência. O autor é professor em escola pública de periferia. De Filosofia. Os dados começam a rolar no tabuleiro: dar aula de Filosofia em escola dessas condições, todo mundo sabe, é coisa de maluco, de herói, de visionário – ou de um cidadão centrado e convencido do papel civilizador que a escola tem, precisa ter. Este último é o caso do Elenilton.

O livro tem lá suas desigualdades; ao lê-lo tive vontade de contribuir para uma arrumação do material em formato mais produtivo, mais justo. Mas essa impressão não importa para nada: o que vem ao caso é o que ele conta, como ele pensa.

Assim: o professor Elenilton descobriu, em 2004, que havia uma maneira de abrir um genuíno e produtivo diálogo com os alunos daquele mundo em que trabalha – proporcionar uma caixa, para que cada um pudesse colocar suas perguntas. Sem limite de tema, sem medo, sem necessidade de assinar; só não valia mencionar nomes de pessoas da escola, nem ofender ninguém. No mais, tudo livre.

O professor então leva a caixa para casa, digita as perguntas – mantendo os erros eventuais, que também são motivo de aprendizado e são comentados com a turma – e retorna para a escola (as perguntas são lidas em todas as turmas) abrindo a discussão sobre os temas ali solicitados. Sem censura, enfrentando a vida que explode nos alunos, mas também espalhando questões para colegas de outras áreas – claro, uma porção grande das perguntas tem a ver diretamente com sexo e correlatos, desde a paixão até assédio e estupro.

(E o Elenilton lembra, de modo singelo e poderoso, o que o animou a essa invenção: “lembrava-me do Elenilton estudante, um garoto tímido que jamais teria a coragem de levantar o dedo para perguntar” algo íntimo, delicado, problemático. Da autocrítica e do autoconhecimento é que se faz o grande professor, sempre.)

O livro começa com uma conversa sobre o papel que a Filosofia tem ou pode ter na vida dos adolescentes, mas também dos adultos em escola. Desdobra-se em relatos sobre o uso concreto da caixa em sala de aula – uma caixa de madeira, com uma fenda em cima, por onde o aluno enfia seu bilhete, em papel roubado ao caderno – e avança para considerações muito úteis sobre o processo. Por exemplo: o dar-se conta de que a caixa é uma mediação para o mais básico da Filosofia e da escola, o diálogo. Na caixa, todas as perguntas são genuínas, urgentes, inseguráveis.

Depois vem uma segunda parte em que são reproduzidas, em várias páginas, muitas das perguntas reais feitas por alunos. São comoventes, embaraçosas, inteligentes, de vez em quando bobas, alguma vez duras, sempre interessantes, por algum motivo. Diz o autor que se trata de considerar cada pergunta como expressão de uma vida, de um pensamento.

Adolescentes têm muitas dúvidas sobre sexo, e portanto suas perguntas pesam muito nesse aspecto. (Estou relendo, por motivos profissionais, o Dom Casmurro, do Machado de Assis; e ali se lê: “Há em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro”.) Mas há arguições sobre o racismo, sobre o sentido da escola, sobre ciência, sobre o imponderável da vida, sobre a felicidade, sobre estar na cadeia e sobre sair dela. Perguntas, perguntas, perguntas.

Na terceira parte, o livro reproduz algumas respostas que o Elenilton deu, para alguns casos. Por exemplo ao seguinte bilhete: “Sor, eu odeio todo mundo. Me ajuda a gostar do mundo”. E agora? Como conversar sobre isso? O Elenilton encontrou um caminho, que deve parte importante ao passado pessoal do próprio professor. (Alunos querem saber, uma vez me disse uma sábia psicóloga escolar, como é que se pode sobreviver à adolescência.)

Por esse caminho, há textos relatando a vida do autor, descendente de pobres camponeses expulsos da Alemanha, que teimaram em sobreviver. A vida não teve muita graça para o Elenilton menino.

Mas o Elenilton adulto deu a volta por cima, oferecendo um livro que toca o sublime, em sua encarnação tão concreta, tão chã, tão dura. Imperdível.

sábado, 12 de dezembro de 2015


RUTH DE AQUINO
11/12/2015 - 22h19 - Atualizado 11/12/2015 22h23

O bloco do sanatório geral

O vice é decorativo, a presidente sempre pareceu decorativa e o eleitor se sente decorativo, um mero figurante


Esta é uma carta pessoal. Não entendo como o desabafo veio parar aqui no site de ÉPOCA, na última página da revista e nas redes sociais. Tudo vaza, as barragens se rompem, os responsáveis não são punidos nem presos e nós ficamos ao desabrigo, sem dinheiro para entrar em recesso. Quem vazou? Dididilma quis ver a lama chegar ao mar antes do Réveillon? Mimimichel decidiu rasgar a fantasia antes do Carnaval? A nossa pátria mãe, subtraída em tenebrosas transações, viu passar, neste fim de ano de 2015, o bloco do sanatório geral.

Quem resolveu expor ao país a fratura de um governo desmoralizado num momento em que o Brasil é rebaixado em todos os sentidos? Deveriam todos ser impedidos. Impedidos de trabalhar só de terça a quinta no Congresso, impedi­dos de ganhar tantas mordomias, impedidos de roubar das estatais, dos hospitais, das escolas, das estradas, dos eleitores e dos contribuintes. Impedidos de tirar férias, impedidos de mentir deslavadamente, impedidos de ter direito a vale-apartamento, vale-combustível, vale-assessor, vale-aposentadoria e vale-tudo. Quem não vale nada e não se importa com o Brasil, só com seu bolso e seu prestígio, deveria ser cassado.

O zika vírus acometeu os Poderes da República e acentuou os problemas neurológicos dos parlamentares, aqueles que um dia chamamos de “representantes do povo”. Descobriu-se a verdadeira identidade do mosquito Aedes aegypti, transmissor de várias doenças: ele se chama Eduardo Cunha. Está disfarçado de presidente da Câmara nas águas paradas do país. Ele é frio e inabalável em suas piruetas e seus delírios. As picadas do mosquito provocam, entre outros sintomas, náusea, fadiga e dores. Não há repelente capaz de combater o Aedes Cunha Chikungunya.

O Conselho de Ética está contaminado. A julgar pelas cabeçadas, ofensas, agressões e tapas entre marmanjos de gravata em sessões preliminares, destinadas apenas a decidir se prossegue ou não a análise da cassação de Cunha, o diagnóstico é claro. Enlouqueceram todos aqueles muito próximos do presidente da Câmara, que pertence a um novo partido, o PMDB do C. Esse partido briga com o PMDB do T e o PMDB da D. Como diz o deputado Lúcio Vieira Lima, do PMDB baiano, “querem transformar o PMDB em um motel, com essa alta rotatividade, de entrar num dia e sair num outro”.

Aparentemente, votamos em cabras-machos, que não levam desaforo para casa. Foi só um deputado do Conselho de Ética chamar o outro de bagunceiro que se instalou a briga física.

– Aceito tudo, mas me tocar, não – gritou o deputado Zé Geraldo, do PT da Bahia, que queria validar o processo contra o presidente da Câmara, já adiado por sete vezes.

– Macho nenhum vai tocar em mim, não. O senhor é moleque – gritou o deputado Wellington Roberto, do PR da Paraíba, aliado de Aedes Cunha.

Os machos não podem se tocar, só podem se agredir. Enquanto isso, Cunha dá entrevista sorrindo, parece se divertir. Seu colega Renan Calheiros, presidente do Senado, também envolvido em denúncias de corrupção, está impaciente e acha que Cunha poderá até ser preso ou afastado, para ser julgado. Renan lembra direitinho que renunciou para não ser cassado.

Não é só “bagunceiro” que virou ofensa a cabra-macho em Brasília. “Namoradeira” virou ofensa visceral a cabra-­fêmea. Numa festa natalina de beija-mão a Temer, a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, entrou para o bloco do sanatório geral ao jogar seu vinho branco em José Serra. Reagiu como barraqueira ao ser chamada de namoradeira pelo tucano mais desajeitado e bobo do tucanato.

Kátia podia ter se limitado a dizer sua verdade – que Serra tinha sido deselegante e que, por esse tipo de comportamento, jamais seria eleito presidente da República. Mas não. A porta-voz dos ruralistas e amiga de Dilma se transformou, com um tufão nos quadris. E continuou irada nas redes sociais, despejando adjetivos contra Serra, “desrespeitoso, arrogante e machista”. Dizer que Serra é machista é chover no inundado.

O vice-presidente é decorativo, a presidente sempre pareceu decorativa e o eleitor se sente decorativo, mero figurante nesse samba atravessado. A letra do antológico “Vai passar”, de Chico Buarque, foi composta ao fim de “uma página infeliz de nossa história”, a ditadura militar. Hoje, com o país afundando na depressão e o espetáculo constrangedor oferecido pelo Legislativo e pelo Executivo, eu me pergunto quem seria o mestre-sala e a porta-estandarte do sanatório geral. Eles são um exemplo para a ala mirim maluquete, representada pela neta de Lula fazendo gestos obscenos em rede social. Vai demorar para passar. O Carnaval será uma alegria fugaz. Confio nas novas gerações para reinventar a vida boa, ô lerê, ô lará.


12 de dezembro de 2015 | N° 18383
JJ CAMARGO | J.J. CAMARGO

A NOÇÃO DE MORTE DIGNA


A PERDA SEMPRE PARECERÁ CRUEL, DOLOROSA E EXTEMPORÂNEA AOS OLHOS DE QUEM AMA 

Esse foi o título da minha conferência de abertura do Simpósio da Academia Nacional de Medicina, sobre O Direito de Morrer.

Antecipei que, quando se discute o conceito de morte digna, temos de considerar primariamente a circunstância em que ela ocorre: súbita, traumática ou arrastada por doença crônica, além da idade da pessoa.

A perda de um jovem que nem viveu o suficiente para se justificar neste mundo e a morte de um indivíduo sadio até o evento são, evidentemente, diferentes daquela que representa um ponto final de uma enfermidade crônica que arrastou a vítima e sua família pela via crucis do sofrimento. Principalmente quando esse sofrimento não envolvia nenhuma perspectiva de benefício e significava apenas a protelação injusta do desfecho inevitável. Admito, constrangido, que demorei algum tempo para aprender que desejar a morte de um familiar nessa condição não tem nada de desamor, é só um gesto de dolorosa compaixão.

A naturalidade com que se convive com o acontecido no velório de pacientes idosos é reveladora da nossa tendência de interpretar a morte como um previsível e imutável ponto final do ciclo biológico.

No entanto, não se deve esquecer que essas racionalizações são desapegadas de afeto, porque a morte sempre parecerá cruel, dolorosa e extemporânea aos olhos de quem ama, independentemente da idade do falecido.

Por que é assim? Porque o afeto não é um sentimento racionalizável, e disso só entendem bem os sobreviventes da dor da perda, ou seja, os que morrem um pouco com os que se vão.

A noção de morte digna devia exigir um tempo de preparação que permitisse o resgate dos afetos negligenciados, a confissão dos amores omitidos e o reconhecimento agradecido pelo querer bem incondicional.

Não há possibilidade de morte digna num mar de sofrimento físico, de tal modo que um princípio básico do atendimento profissional é a noção de que toda queixa clínica representa uma urgência médica. Nada mais incompreensível do que um paciente terminal gemente de dor num hospital moderno. Isso deveria ser visto como a mais grosseira capitulação da medicina, cuja principal missão é aliviar sofrimento.

Como a convivência com a proximidade da morte é um devastador exercício de impotência, compreende-se que o médico queira interrompê-lo por sedação do pobre paciente, mas essa decisão também precisa ser compartilhada.

O Juvenal tinha se tornado um amigo querido durante os anos de convívio com uma fibrose pulmonar que o alcançara acima da idade limite para o transplante. Quando comuniquei à esposa que pretendíamos sedá-lo para interromper a angústia inútil, ela me disse: “Por favor, não. Estávamos falando e ele me disse umas coisas tão bonitas! Não interrompa essa conversa, por favor!”.

Horas depois, quando voltei ao quarto, ele tinha acabado de morrer e ela me abraçou e, carinhosamente, agradeceu: “Obrigado, doutor. Por sua generosidade, nós tivemos a segunda melhor noite das nossas vidas!”.

Aprendi, neste dia, o quanto sabemos pouco do que é melhor para cada pessoa no ocaso do seu universo único e intransferível.

Outro imenso desafio à sensibilidade médica é conviver com a família e descobrir que o mais revoltado e inconsolável é o mau filho, que se apercebeu que a última oportunidade de recuperar o afeto renegado está indo embora.

Por fim, resistir à pressão descabida de algumas famílias em transferir o paciente para a solidão desumanizada da UTI e garantir que ele tenha seus instantes finais sem nenhum sofrimento físico, de mãos dadas e olhando no olho das pessoas que de fato vão sentir a sua falta é o mais próximo que podemos chegar do conceito de morte digna.

Gostaria de fazer uma correção. Na sessão “Enquanto isto, na Academia”, publicada sábado passado, há uma informação equivocada: não é correto que 62% dos jovens com menos de 18 anos já provaram maconha, e sim que 62% dos usuários de maconha iniciaram seu uso antes dos 18 anos.


12 de dezembro de 2015 | N° 18383 
NÍLSON SOUZA

CARTA A TEMER


Senhor vice-presidente decorativo.

Verba movent exempla trahunt (As palavras movem, os exemplos arrastam).

Por isso lhe escrevo. Muito a propósito do intenso noticiário desses últimos dias e de tudo que me chega aos ouvidos.

Esta é uma carta pessoal. Desde logo, digo-lhe que também desconfio de suas reais intenções.

Vamos aos fatos.

1. Se o senhor passou os quatro primeiros anos de governo como vice decorativo, como admitiu em recente correspondência à sua chefe, talvez devesse devolver pelo menos parte dos R$ 30.934,70 do seu subsídio mensal, pois o povo brasileiro trabalha duramente para sustentar a administração pública e não é justo que um servidor receba sem dar a correspondente contrapartida.

2. Acredito que o senhor tenha mesmo muitos motivos para estar magoado com a presidente, mas a alegação de que seus afilhados políticos foram preteridos na ocupação de ministérios e cargos públicos importantes pega muito mal junto aos milhares de brasileiros desempregados, que não têm padrinho nem partido político que os protejam.

3. Democrata que sou, apoio totalmente sua disposição de reunificar o país e seu empenho pela construção de “uma ponte para o futuro”, com potencial para recuperar a esgualepada economia nacional.

4. Não sei se o governo está tentando dividir ainda mais o seu partido, mas qualquer brasileiro minimamente informado sabe que o PMDB já é uma colcha de retalhos e que se tornou pouco confiável exatamente por renunciar às próprias convicções para sistematicamente aderir ao poder.

5. Caso a presidente venha a ser impichada, como se desenha, e o senhor assuma o comando da nação, por favor procure respeitar a Constituição e não gaste o seu latim em vão. Espero, sinceramente, que siga a citação da língua morta tão ao seu gosto, que pernosticamente utilizei na abertura deste texto. Fecho com outra: Tempus est optimus judex rerum omnium (O tempo é o melhor juiz de todas as coisas).

Lamento, mas esta é a minha convicção.



12 de dezembro de 2015 | N° 18383 
DAVID COIMBRA

O especial do Roberto Carlos

Está bem. Vou dizer. Admito.

Gosto do especial de fim de ano do Roberto Carlos.


Inclusive já fui a shows do Roberto Carlos, se você quer saber. E, para quem nunca foi, revelo agora: são sempre iguais. Não muda nada, nem as gracinhas que ele faz, nem as reações enlevadas da plateia, tudo absolutamente igual.

O Roberto Carlos tem compulsão por fazer tudo sempre igual. É parte daquele TOC que ele tem. Numa entrevista para o Jô Soares, ele contou que, uma vez, foi à missa numa igreja de, se não me engano, Los Angeles, e passou tempo demais rezando. Todo mundo saiu, ficou só o Rei, e o sacristão fechou a porta principal da igreja. Aí o Roberto foi falar com o sacristão. Pediu que abrisse a porta. O sacristão respondeu que a porta lateral estava aberta.

– É que eu entrei por essa porta e tenho que sair por ela – argumentou o Roberto, apontando para a porta principal. – A porta lateral está aberta, senhor – repetiu o sacristão. – Pode sair por lá.

– Não! – rebateu o Roberto. – Não posso. Entrei por essa, tenho que sair por essa!

O sacristão olhou para ele desconfiado e anunciou: – Se o senhor não sair agora, vou chamar a polícia.

Como o Roberto sabe que nos Estados Unidos a polícia atende a esses chamados e, atendendo, pode dar problema sério, saiu pela porta lateral.

Voltou no dia seguinte. Entrou pela porta lateral e saiu pela da frente, para desfazer o encantamento.

O Roberto Carlos, você sabe, só usa azul e branco, e tem muito medo do marrom. Ele sai correndo quando alguém de marrom se aproxima. Havia um tempo em que ele não dobrava jamais para a esquerda. Quando chegava ao aeroporto de Porto Alegre para fazer show no Gigantinho, ia dobrando para a direita, para a direita, para a direita e acabava chegando sempre a Cachoeirinha.

O Roberto Carlos é uma pessoa estranha.

Mas gosto das músicas dele dos anos 1970. As músicas do tempo da dor por amor. Depois dos anos 1980, quando ele começou a fazer música para as baleias e botou aquela pena na cabeça, não gostei mais.

A verdade é que, passados os anos 1980, tanta coisa mudou, no Brasil. Vários artistas ficaram estranhos. O Belchior tem sumido, desde então. Estranhíssimo. O Milton Nascimento: estranho. Xuxa: estranha. Dalto: muito estranho.

E o Chico Buarque, que compunha aquelas músicas belíssimas, cansou. Foi escrever livro e falar bem do governo. Pode algo ser mais estranho?

O Brasil definitivamente não é mais o mesmo. Perdeu muito do senso de humor, mas, em vez de tornar-se um país sério, tornou-se amargo. As relações entre as pessoas são outras, a política é outra, o futebol é outro, a música é outra. Só o especial do Roberto Carlos, no final de cada ano, continua igual. Por isso assisto, lembro do velho Brasil, que não existe mais, e suspiro: foram tantas emoções...



12 de dezembro de 2015 | N° 18383 
CLÁUDIA LAITANO

Reprovados


Não deve acontecer tão cedo, mas se um dia os brasileiros puderem estufar o peito para dizer que neste país todas as crianças têm a chance de estudar em boas escolas, com professores preparados e bem pagos, o Brasil ainda vai ter que se defrontar com problemas que nem mesmo boas escolas conseguem resolver.

Educação formal é muita coisa, sim, mas não é tudo. A ilustração mais eloquente de que nem sempre, no Brasil, a suposta elite intelectual tem honrado as oportunidades que teve são os casos de violência e estupros registrados em festas da Medicina da USP – o curso universitário mais disputado do país, frequentado pelos melhores alunos das melhores escolas. Jovens poliglotas, viajados, conectados – mas muitas vezes também imaturos, inconsequentes, cruéis. 

A que aula eles faltaram? Enquanto isso, do outro lado da pirâmide educacional, estudando em escolas imundas, sucateadas, com professores em boa parte desmotivados e desatualizados, alunos da rede pública paulista deram uma aula de mobilização, organização e consciência política ao resistir a uma reforma educacional imposta de forma atabalhoada e autoritária pelo governo do Estado. Dois e dois nem sempre são quatro.

Corta para Brasília. Na mesma semana, o deputado paraibano Wellington Roberto (curso de Engenharia Civil não concluído/Universidade Federal da Paraíba) e o capixaba Zé Geraldo (Ensino Fundamental) saíram no tapa no meio dos debates da Comissão de Ética, e o senador José Serra (PhD em Economia pela Cornell University) fez comentários inapropriados e de mau gosto para a ministra Kátia Abreu (Psicologia/Universidade de Goiás) – que, por sua vez, em vez de responder a grosseria com superioridade, achou mais adequado jogar uma taça de vinho no interlocutor.

Temos uma presidente da República (Economia/UFRGS) que deixou as finanças do país naufragarem e parece ter dificuldades para se expressar e agir politicamente. Um presidente da Câmara dos Deputados (Economia/Universidade Cândido Mendes) que dá lições diárias de como usar o regulamento de uma instituição para desacreditar a própria instituição – e de quebra empurrar o país para ainda mais perto do abismo. Um vice-presidente (doutorado em Direito/ PUC de São Paulo) que gasta seu latim em uma carta que vira piada nacional. E intelectuais que em vez de exercerem seu espírito crítico como deveriam sucumbem à estúpida polarização política rifando o bom senso em nome da ideologia.

O espetáculo de vaudeville em que se transformou a vida pública do país não pode ser atribuído apenas à falta de preparo dos políticos ou dos eleitores que os conduziram ao poder. O que a crise política e econômica está jogando na nossa cara é a dificuldade de todos nós – trabalhadores, empresários, políticos – de construirmos um país de baixo para cima, honrando a democracia e a civilidade todos os dias, em todos os níveis, e usando a educação para ampliar os horizontes e não apenas as distâncias sociais.

sábado, 5 de dezembro de 2015



06 de dezembro de 2015 | N° 18377 
MARTHA MEDEIROS

Acontecem coisas

Cada minuto que passa indica que a vida se modifica


Acontecem coisas todos os dias. Quem tem medo de já ter envelhecido não imagina os ineditismos que ainda estão por vir. Quem é jovem e não vê perspectiva se surpreenderá com o que vai encontrar logo adiante. Quem tem uma rotina aborrecida não está enxergando direito. Acontecem coisas todos os dias, basta prestar atenção.

Coisas acontecem quando menos se espera, que é o momento preferido dos acontecimentos. Você está retocando o esmalte e entra uma mensagem surpresa no Whatsapp. Você está saindo do mar e encontra uma pessoa que não via faz tempo. Você está parado num sinal fechado e um garoto entrega um folheto com a informação que você buscava. Você está tendo uma conversa banal com sua mãe e ela diz aquilo que você não queria ouvir, mas precisava.

Todos os dias alguma coisa faz você pensar o que ainda não havia pensado, faz você escolher pelo que ainda duvidava, coloca um rosto desconhecido bem em frente ao seu. Você compra uma revista, e a reportagem de capa sugere uma ideia, você escuta uma música no rádio e a lembrança de alguém invade a sala, uma promoção na internet faz você decretar: é agora.

Mesmo que você esteja numa fase em que nada parece tão estimulante quanto dormir, em alguma hora do dia, desperto, o que enxergar da janela fará você pensar no que ainda não havia pensado, e o barulho da chuva poderá emocionar por nada.

Por outro lado, acordando cedo e tendo 16 horas pela frente, vai dar vontade de comprar uma bobagem no meio da tarde, de ligar para um amigo, de marcar aquele churrasco, de procurar aquela mulher, de cortar a barba, de alternar as ruas onde costuma levar o cachorro para passear – e por estas mínimas experiências casuais a vida pode mudar, porque coisas acontecem quase sempre por causa de detalhes, de mínimos desvios do cotidiano.

Aquele disco que estava no fundo de uma gaveta e que você resolveu ouvir depois de sete anos sem escutá-lo é uma coisa que acontece. Ter dito para seu filho algo que você nunca gostaria de ter verbalizado é outra coisa que acontece. E, desses pequenos quase nadas, começa o início de algo ou o fim de uma etapa, mesmo que na hora ninguém perceba.

Porque as coisas acontecem sem que sejam festejadas, às vezes nem ao menos percebidas. No entanto, cada minuto que passa indica que a vida se modifica.

Acontecem coisas todos os dias. Você estava indo ao cinema sozinho e na fila ganhou inesperada companhia. A conversa trivial virou declaração. As peles se roçaram sem querer. Bateu saudade de uma sensação já esquecida. Seus olhos brilharam mais do que deviam. Você se apaixonou. Você se deu conta. Ninguém hesitou. Você nem esperava que fosse hoje, muito menos agora, mas essas coisas não avisam.

Acontecem.



06 de dezembro de 2015 | N° 18377 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Humores centenários


Teve algo de abençoado o ano de 1915, no campo do humor, no Brasil. Não é pouca coisa terem sido lançados, cem anos atrás, tanto o Antônio Chimango, de Amaro Juvenal, cá no Rio Grande do Sul, quanto La Divina Increnca, de Juó Bananére, em São Paulo.

Os autores estão escondidos nas duas assinaturas. O gaúcho Amaro Juvenal se chamava, na vida real, Ramiro Fortes de Barcellos. Foi médico, compôs a geração que inventou a República no Estado, fez carreira política importante (deputado estadual, secretário de estado, embaixador no Uruguai, senador); viveu entre 1851 e 1916, tendo tempo de realizar muitas coisas, incluindo o “poemeto campestre” lançado cem anos atrás.

O pseudônimo Juó Bananére foi inventado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, um engenheiro paulista de vida curta (entre 1892, Pindamonhangaba, e 1933, São Paulo). Juó Bananére foi um cronista satírico que fez do mundo italianado paulistano sua matéria- prima e sua linguagem. (Por uma desgraça que eu vivo comentando, ele mal consta nos manuais de ensino de literatura; e quando consta ainda é xingado como “pré-modernista”, termo que só faz atrapalhar nosso acesso a ele, por julgá-lo de antemão como alguém que é menor, que deve algo ao futuro.)

As assinaturas já dão o que pensar. Amaro Juvenal combina o adjetivo “amaro”, amargo, com o nome do satirista latino Juvenal; mas o conjunto parece mesmo nome de gaúcho. “Juó” é a imitação escrita da pronúncia meio italiana de “joão”, e “bananére”, com ar de palavra italiana pela terminação, mal esconde a fruta-símbolo brasileira, a banana. Um sarro, dois sarros.

Antônio Chimango é uma obra-prima: um poema narrativo escrito nas boas regras da literatura gauchesca, mas com requintes inéditos. São cinco partes, as “rondas”, que acompanham uma tropeada; um narrador externo aos fatos relata as dificuldades de conduzir o gado por estradas e corredores e, a cada noite, ao se organizarem os turnos de vigia, entra em cena um velho gaúcho, sábio e matreiro, o tio Lautério, que conta a história do personagem-título, que é uma caricatura do mais longevo governador do Estado, que estava vivo e tinha poder amplo, o notório Antônio Augusto Borges de Medeiros.

Em linguagem e forma perfeitamente adequadas ao gênero, Ramiro/Amaro fez a denúncia que prometeu, ao perder para o candidato oficial a viciada eleição ao senado naquele ano: o tal Chimango sai com a imagem muito ruim, como um fracote, puxa-saco, arrogante, mau administrador, tudo isso e mais ainda. O humor do livro vem temperado de funda amargura.

Já o livro de Bananére é de outra matriz humorística. Seu forte é a paródia, a começar do título, La Divina Increnca, que evoca a séria e famosa (e italiana) Divina Comédia. Ironizando o nacionalismo brasileiro (e ocidental – estávamos no começo da I Guerra Mundial), sem livrar a cara nem dos amigos do autor, os poemas do livro nos fazem sacudir a barriga da inteligência ao atacar a poesia brasileira, especialmente o paradigma que era Olavo Bilac, aquela mala.

Tendo como fundo o famoso Soneto XIII de A Via Láctea, aquele do “Ora – direis – ouvir estrelas”, escreve Bananére: “Che scuitá strella, né meia strella! / Vucê stá maluco! e io ti diró intanto / che p’ra iscuitalas moltas veiz livanto / i vô dá una spiada na gianella”. Lido em voz alta, imitando um italiano a falar, o resultado é muito engraçado.

A irreverência de Bananére havia já rendido a ele algum prejuízo – chegou a perder um emprego justamente por atacar o mesmo Bilac. Oswald de Andrade, antes de 1922, gostava dele, e, bem, quem não o admiraria, se fosse dotado de bom humor e de disposição para a ironia?

O começo de “Os meus otto anno”, anti-casimirianamente diz:

O chi sodades che io tegno

D’aquillo gustoso tempigno,

Ch’io stava o tempo intirigno

Bringando c’oas mulecada.

Che brutta insgugliambaço,

Che troça, che bringadêra,

Imbaxo das bananera

Na smobra dus bambuzá.

Já o tio Lautério, criatura de Amaro Juvenal, assim diagnosticava a situação do Rio Grande do Sul, cem anos atrás:

E tudo mais em S. Pedro

Vai morrendo, pouco a pouco,

A manotaços e a soco,

Rolando para um abismo;

Pois c’o tal Positivismo,

O home inda acaba louco.

Cem anos... Que falta faz um talento humorístico literário assim agora!


06 de dezembro de 2015 | N° 18377 
CARPINEJAR

Minha amante


Preciso confessar, amor: tenho uma amante. Você deve ter percebido. Não há como esconder mais. Antes você reclamava, agora cansou diante das excessivas evidências irrefutáveis. O escândalo de seu silêncio me fez admitir. O silêncio é o último estágio da briga. Entendo que nunca me tratará da mesma forma, que estraguei a lealdade, sofrerei os efeitos colaterais da verdade. Sim, a verdade cura, mas somente depois de muita dor e medicação.

Os amigos são contrários à minha franqueza, adeptos de mentir até o fim, mesmo depois do fim. Mas não consigo, pois lhe devo lealdade, eu lhe amo mais do que me amo.

Eu tenho uma amante. Há tempo. Desde antes de nossa relação. É uma amante vitalícia, uma amante estável, um caso antigo.

Você já identificou o dia. É toda a noite de segunda-feira. Sumo por duas horas, não atendo o celular por nada desse mundo. Quando retorno, estou podre de cansado, suor seco, pele lívida. Não demonstro vontade para mais nada nem para o nosso sexo. Mal converso, a culpa não me ajuda. Vou direto ao banho, ponho bermuda e camiseta, aqueço o que acho na geladeira e deito cedo, sem direito à repescagem das histórias de nosso trabalho. Eu me encontro morto após a escapada, a amante me exige demais. Ela é gulosa, possessiva, autoritária. Desejava que eu me separasse, não aceitei, não me vejo longe de você. Desejava que ampliasse os dias da semana, recusei também, seria ostensivo e chamaria atenção.

Eu tenho uma amante, duro desabafar, fui fraco por errar e por revelar, não aguentei sustentar a minha hipocrisia.

Está explicado por que volto cheio de arranhões, hematomas, machucados. Fico com receio de permanecer nu em sua frente, venho cobrindo as pernas e o dorso quando me visto no quarto. Tenta se aproximar, e me afasto. Não há como justificar a herança da violência em minha pele. Disfarço como posso, com pomadas e cremes. Nunca cicatriza ou desaparece rapidamente, gerando angústia da delação. Pedi que ela não me batesse mais, só que não muda sua natureza violenta – me agarra e me puxa e me derruba no chão.

Tenho uma amante. No momento em que sou chamado por ela, saio de perto para atender o celular. São várias ligações pela manhã, antes do nosso encontro. Converso baixinho, envergonhado com a confusão sentimental. Apago o sinal sonoro do WhatsApp e as mensagens da tela. Sofro tentando sufocar os sinais, despistando e me mantendo alegre e solícito para não entregar o nervosismo.

Compreendo que é uma falta de tato assumir que tenho uma amante publicamente. Dirá que é uma humilhação. Porém, não existe jeito fácil. Que, pelo menos, eu sirva de exemplo para outros homens com vida dupla, que tomem a coragem de expor seus segredos.

Tenho uma amante, amor, desculpa. Certamente perguntará quem é. Aposto que conhece e sabe o nome da destruidora de nosso lar: é e sempre foi o futebol.


RUTH DE AQUINO
04/12/2015 - 20h24 - Atualizado 04/12/2015 20h25

Apressem a análise do impeachment!


Com Dilma sendo ou não afastada, o país ganhará um norte. Não podemos esperar que a economia piore mais

Não importa que a dama e o valete mintam. Quem ainda não sabe que ambos mentem? Até os marcianos sabem. Importa que Dilma e Cunha sejam julgados por seus malfeitos, às claras, cartas na mesa, votos abertos e transparentes. Um por corrupção ativa e passiva, outra por incompetência e irresponsabilidade fiscal. Um pela Comissão de Ética, outra pelo Congresso. Mas que seja logo. Nada de “tô me guardando pra quando o Carnaval chegar”. O país não merece um recesso no meio da depressão e do descaso com os mais carentes.

O PT tomou na semana passada a primeira decisão decente em muito tempo. Não cedeu à chantagem do abominável presidente da Câmara, Eduardo Cunha – nem às pressões do Palácio do Planalto. Sob orientação do presidente do partido, Rui Falcão, os três deputados petistas da Comissão de Ética decidiram não vender sua consciência em troca da não abertura de um processo de impeachment contra Dilma. Optaram por apoiar o processo de cassação de Cunha. “Quebra de decoro” é eufemismo barato. Muito mais que isso condena Cunha a ser cassado.

Concordo também com o Planalto: nada de recesso parlamentar. Ao trabalho, deputados e senadores, arregacem as mangas, não escondam nada nelas! Foi aberto um processo de impeachment, é um momento grave e histórico, e ele não pode ficar suspenso, à espera de uma piora no quadro maligno na economia que leve à metástase. À espera de mais inflação, mais rombos, mais demissões em massa, mais greves, mais fechamento de escolas, empresas e fábricas, mais hospitais falidos, mais suspensão de pagamento aos servidores, mais interrupção de obras e programas sociais, mais tombos do PIB, mais instabilidade, mais incertezas e mais composições por baixo da toalha. E enquanto isso se conspira e se estouram os champanhes?

O texto do impeachment – aliás, que se deixe claro e se repita a cada vez que for mencionado – não veio da cabeça de Cunha. Foi escrito e assinado por um dos fundadores do PT, o jurista Hélio Bicudo, de 93 anos, e pelos também juristas Miguel Reale Jr. e Janaína Conceição Paschoal. Bicudo foi ridicularizado por seu filho e por quadros do PT, com insinuações de que estaria senil e gagá. Mas não se intimidou. Mandou Dilma “ler a Constituição, porque lá está escrito que o impeachment é um remédio constitucional (...), um processo democrático em curso”. Afirmou ainda: “Acho que a saída da Dilma não vai gerar trauma algum. As pessoas vão respirar fundo, dizendo: ‘Puxa, saiu’”.

Também não é assim. É um trauma, sempre, um presidente sofrer um processo de impeachment. Mas, se Dilma vencer e conseguir apoio de um terço dos deputados – convenhamos, é o mínimo que um presidente precisa ter para não paralisar o governo –, sairá fortalecida. E governará os próximos três anos (três anos!) sem o fantasma das algemas legislativas a lhe atar mãos e pernas. A “esfinge” – o vice-presidente Michel Temer – terá de apoiá-la de verdade, em vez de se ocultar em silêncios tonitroantes. Dilma dorme com o inimigo há muito tempo e sabe disso. O PMDB não está com ela. O PMDB sempre esteve ao lado do Poder, não de governos que fazem água onde há temporais.

Nas análises sobre o mérito ou não do atual processo, frequentemente se esquece o papel do sujeito mais citado por Dilma. O povo. O voto do povo deve ser respeitado. Esse mesmo povo que sempre apoiou Lula e Dilma acha o atual governo “ruim ou péssimo” (67% segundo o Datafolha). Esse mesmo povo acha que o Congresso deveria abrir um processo para afastar Dilma (65%). E esse mesmo povo acha que Dilma não será afastada (56%). Sendo ou não afastada, o Brasil ganhará um norte. E um sul, um leste e um oeste. Discordo de quem diz que o Brasil está sendo “jogado no abismo”. O Brasil já caiu no abismo.

É por causa desse cenário de recessão que o processo de impeachment acabou aceito – e não somente pela vingança de um personagem cínico e zombeteiro. O povo não pode tirar Dilma do Palácio. O povo não pode tirar Cunha da Câmara. É preciso respeitar as instituições. Mas, aparentemente, o povo quer “Fora, Dilma” e “Fora, Cunha”. Mesmo sem a mobilização nas ruas, a vontade popular tem influenciado os rumos da política – e vimos isso no comportamento do Senado ao votar sobre a prisão do senador Delcídio do Amaral.

O adjetivo mais em moda no país agora é “perplexo”. Todo mundo está perplexo. Dilma, perplexa com “a prisão de Delcídio”. Lula, perplexo com “a insanidade de Cunha”. E nós, perplexos com governo e oposição, com a crise e a corrupção. Passemos da perplexidade à ação. Sem fazer julgamentos, quero juntar minha voz à de Dilma. Apressem a análise do processo, nada de recesso. Até rimou.