sábado, 30 de maio de 2015


31 de maio de 2015 | N° 18179
MARTHA MEDEIROS

Viciados em companhia

Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.

Não confio no amor de quem não consegue ficar sozinho.

Nunca foi ao cinema sozinho, nunca viajou sozinho, perambula pela rua feito um cão que se perdeu do dono. Sentar na lanchonete de uma livraria para tomar um cafezinho assemelha-se a uma catástrofe. Sua solidão lhe parece vergonhosa e indigesta, é evitada com o mesmo afinco com que evitaria a morte.

Para ele, qualquer parceria é melhor que nenhuma. Uma conversa enfadonha é melhor que o silêncio. Um chato é melhor que ninguém. É praticamente um viciado em companhia. E, como todo viciado, critério não é o seu forte.

Não confio no amor de quem não se suporta.

De quem telefona a fim de papo furado, de quem envia mensagens só para ouvir o sinal da chegada da resposta, de quem precisa se iludir de que não está só. Quem de nós não está só?

Uma manhã de frente para o mar, uma tarde com um livro, uma noite com um filme, três dias inteiros numa cidade estranha, uma rua que nunca foi atravessada, um museu com tempo livre à vontade, uma cama vazia – para ele, simulacros do inferno.

Não confio no amor de quem não se entretém. De quem se desespera em frente ao espelho, de quem não consegue se maravilhar num jardim, de quem não viaja ao ouvir uma música, de quem não gosta de andar de ônibus enquanto aprecia a paisagem pela janela, de quem não se sente inteiro num trem.

Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.

Eu sozinha sou muitas. Sozinha, tem mais sabor minha comida, tem mais foco o meu olhar, tem mais profundezas o meu ser. Sozinha tem mais espaço minha liberdade, tem mais imaginação a minha fantasia, tem mais beleza a minha individualidade. Sozinha tem mais força o meu pensamento, mais inteireza a minha vontade. Não confio no amor de quem negocia sua autenticidade.

Como amar de verdade outro alguém, se não sabe de onde esse amor vem? Onde foi gerado, por que é necessário, que atributos ele contém? Amar é doar, não vem do doer. Amar é saber que aquele que a gente ama, se faltar, vai deixar saudade, mas não nos transformará num cadáver a vagar. Não confio em quem ama para ser um par, não confio em quem quer apenas se enquadrar, não confio em quem ama por não se tolerar.

Amar tem que ser extraordinário. Além do que já se tem.

Se sozinho você não se tem, amar vira tubo de oxigênio, ânsia, invenção e enredo barato, perde a dignidade, o amor vira muleta e trucagem. Confio no amor de quem não precisa amar por sobrevivência, de quem se basta e mesmo assim é impelido a se dar, porque dar-se é excelência, não é mendicância.

Não confio no amor de quem não se ama em primeira instância.



31 de maio de 2015 | N° 18179
CARPINEJAR

Sonhei com você

Ninguém resiste a um sonhei com você. “Sonhei com você” cria uma cumplicidade imediata, uma afinidade súbita. Mudamos o nosso olhar para a conversa e para o interlocutor.

Pode ser trova, pode ser chantagem emocional, mas é um recurso sedutor infalível. No início da relação ou quando se é apenas amigo, o sonho é uma cantada que desperta a curiosidade.

Você procurará saber o que foi e o que estava fazendo no sonho de outra pessoa. Mesmo os mais inteligentes e maduros, os mais céticos e descrentes, sucumbem à estratégia.

É um sinal claro de interesse e de disposição para começar algo, já que o inconsciente criou uma memória em comum, uma memória a dois. Os homens, tarados por sua natureza, imaginam que são sonhos eróticos e crescem seu apelo pelo relato.

Não se dá muita chance quando alguém diz que pensou em você, mas quando diz que sonhou com você muda de figura e ganha toda a nossa atenção. O interrogatório do que aconteceu na mente alheia é inevitável.

Adere-se ao território das verdades secretas, aos símbolos do divã, à esfera mística das casualidades inexplicáveis.

Como contestar um sonho? Não tem como desmentir. Nem criamos oposição. Queremos, no fundo, sermos sonhados, sermos conduzidos, receber sinais de anjos e de cupidos.

Na paixão, somos supersticiosos, somos místicos. Não marcamos encontros, abrimos cartas de tarô na alma. Procuramos uma união que seja maior do que nossa força, que seja uma fatalidade, um destino agendado de vidas passadas.

Trata-se de uma facilidade sentimental, para não precisar justificar nossa escolha diante dos amigos e parentes. Pois foi o destino que definiu, não a gente, acabamos nos isentando de nossos gostos e predileções.

Se o sonho serve para estabelecer proximidade, o pesadelo é o elo para recuperar os laços.

Durante a separação, no momento em que perdeu o contato com o ex e a ex e não conta com pretexto para retomar o diálogo, o pesadelo vem como panaceia da saudade. Do nada, pode mandar uma mensagem que sempre produzirá estrago: “Tive um pesadelo com você. Está bem?”

É óbvio que ganhará resposta. Pelo medo do castigo, da macumba e da maldição, e também porque não há como deixar uma preocupação sobre a saúde no vácuo. Não perceberá que ela e ele procuram somente notícias de sua condição, é uma pescaria aleatória, com a meta de descobrir qual é o seu estágio de sofrimento.

O objetivo é de menos. O pressentimento, ainda que ruim, demonstra falta e indica uma forte ligação espiritual. Várias reconciliações se deram por um pesadelo falso ou verdadeiro. Não há como se indispor, ainda que a briga tenha sido épica e a ruptura justa.


O pesadelo é o habeas corpus do amor.

sábado, 23 de maio de 2015


24 de maio de 2015 | N° 18172
CARPINEJAR

Fim da várzea

Tenha cuidado ao seduzir dentro da piscina e no mar. Não são os melhores lugares para o flerte. Há um imenso risco de gafes e constrangimentos.

Não brinque de boto e golfinho, talvez encalhe na areia com as barbas de molho do leão-marinho.

O banho traz surpresas desagradáveis. A água mexe com a respiração, com os cabelos, com os olhos. O equivalente a se fechar num liquidificador: entramos tranquilos, convictos de nossa fisionomia, e saímos alterados, pelo avesso. O redemoinho engole as certezas do penteado e a previsão dos traços.

Aquela cena de pular no trampolim e mergulhar virilmente para abordar a pretendente de biquíni sensual do outro lado não costuma terminar bem. Não existe um espelhinho para confirmar a aparência.

De repente, você mexe os cabelos molhados e sorri, pensando que agradou com sua acrobacia aquática, jurando que mostrou sua masculinidade em braçadas enérgicas, cria um olhar fatal, emoldura o peito e não percebe que está com um ranho verde pendendo no nariz. Uma gosma indefinida reivindicando papel higiênico e uma fungada libertadora. Aquilo que cada um chama de um jeito, tamanho o pudor com o inimigo anti-higiênico: a meleca, a titica, a caca, o monco, o ouro.

Ela não sabe como avisá-lo, não desfruta de intimidade para apontar e pedir que limpe. Nenhuma indireta será suficiente para direcionar suas mãos ao local da sujeira. Nenhuma mímica trará a resposta certa do Imagem & Ação.

Você conversa alegremente, convida para uma esticada de tarde num bar e não compreende a careta feminina, o esgar assombrado. Antes, ela parecia absolutamente receptiva. Agora, frente a frente, ela se contorce em repulsa. Não desvendará o problema em tempo hábil, somente depois numa superfície refletida: o tartarugaço meio dentro, meio fora da toca.

É um pouco nojento travar um diálogo nestas condições. Desanima a vontade de beijar e de baixar as defesas de sua candidata. Ela vai desaparecer, sem nenhuma explicação, até encontrá-lo com cara limpa. Reze para que a primeira impressão não cisme em ficar.


Todo mergulho é perigoso pela incerteza do muco. Pode vir à tona quando menos esperar. A sensualidade exige o mínimo de decência. Ou que não esteja gripado.

24 de maio de 2015 | N° 18172
MARTHA MEDEIROS

Bá, agora tu me pegou

Tenho vontade de abraçar afetuosamente aquele que se confessa inapto para explicações com tanta gente enrolando por aí

O texto em que condenei os serviços prestados em estabelecimentos comerciais de Porto Alegre (Chardonnay Tinto, publicada em Zero Hora do dia 13 de maio) teve um retorno expressivo. Alguns empresários me alertaram de que o problema não se resume a treinamento há também muita falta de comprometimento dos funcionários, que optam pelo rodízio de empregos em vez de se dedicar a um plano de carreira.

Feito este registro, o que restou foi a concordância maciça dos leitores e relatos de casos engraçados envolvendo atendimentos sofríveis. Da série rir para não chorar.

O que mais me divertiu foi uma frase clássica que se aplica em restaurantes no momento em que pedimos para o garçom esclarecer o modo de preparo de um prato. Sabe-se que o cliente não tem superpoderes para adivinhar do que se trata o “Filé Gruta Azul” ou o “Frango à moda do chef” e, se a descrição não está no cardápio, só resta perguntar: como é que é? Não raro o garçom, simpático e solícito, responde: “Bá, agora tu me pegou”.

Com você, nunca?

Não só em restaurantes. Você entra numa loja e pergunta se tem aquela calça verde da vitrine, só que na cor preta. “Bá, agora tu me pegou.” Dá para pagar com cheque? “Bá, agora tu me pegou.” O feriado é na terça, a loja abrirá na segunda? “Bá, agora tu me pegou.”

É a expressão que define o atendimento gaúcho. Estão todos os elementos ali. O orgulho local (“Bá”), nenhuma cerimônia com desconhecidos (“tu”) e a concordância verbal peculiar (“me pegou”) – sem falar na comédia toda. Pô, o sujeito não tinha decorado essa parte. Como será feito o raio do Filé Gruta Azul? É um convite para chutar, mas melhor não. Bora perguntar para o cozinheiro. E torcer para que ele saiba.

Recentemente, eu estava na padaria de um súper sem ninguém para atender no balcão quando vi uma moça uniformizada empilhando umas embalagens ali ao meu lado. Perguntei se era ela quem atendia naquele setor, e ela confirmou assim: “Tu tá com pressa?”.

Inúmeras vezes entrei em lojas cujo atendente estava de olho no seu smartphone e nem levantou a cabeça para dar bom dia, e lembro também... Ah, deixa pra lá, isso já está virando bullying. Fiquemos com a graça da coisa: “Bá, agora tu me pegou”.

Tenho vontade de abraçar afetuosamente aquele que se confessa inapto para explicações. É um indefeso. Não está preparado para enfrentar perguntas difíceis. Tanta gente enrolando por aí, enquanto ele revela sua fragilidade sem subterfúgios. Admite a própria limitação. Mas, obstinado em acertar, vai em busca da resposta.

“O cozinheiro disse que o filé Gruta Azul, moça, é na verdade uma maminha temperada com muita pimenta e que vem acompanhada com batatas ao molho picante e ervas.”

Ervas finas ou ordinárias?, você pergunta, só para zoar.


E ele cai. “Bá, me pegou de novo.”

quarta-feira, 20 de maio de 2015


20 de maio de 2015 | N° 18168
MARTHA MEDEIROS

Pega-ratão

Outro dia usei uma expressão que andava sumida do meu vocabulário: pega-ratão. De onde saiu isso?

Há quem diga que é o mesmo que uma pegadinha, mas não vejo assim. Pegadinha é uma piada que logo se assume como tal. Alguém envolve você numa situação que parece verdadeira, mas no instante seguinte revela que não era pra valer, estava apenas se divertindo com a sua reação. O objetivo era fazer todos darem risada, uns antes (os que arquitetaram a brincadeira), e depois o pobre do mané ao descobrir a tramoia da qual foi vítima. Qual a saída dele a não ser rir também? Pegadinha é isso, um pega-ratinho.

Pega-ratão, como o superlativo indica, é uma armadilha mais engenhosa e que não é revelada nem antes nem depois: os mentores jamais admitirão que tentaram engambelar. Alegarão que não ousariam cometer essa deselegância conosco, os ratões, pessoas bem-informadas, que pagam ingressos caros para ver um show, para visitar uma exposição e até mesmo para comer um determinado prato num restaurante da moda. Para pegar um ratão, é necessária uma artimanha sofisticada e de preferência amparada pela mídia, que também pode ter entrado de gaiata.

Salvo exceções, considero que instalações artísticas são uma espécie de pega-ratão com um verniz intelectualizado. Se eu estiver sendo muito provinciana, aceito humildemente a crítica e o xingamento, mas o fato é que quase nunca entendo o que significam aquelas latarias, ferragens, cordas caindo do teto e demais materiais inorgânicos (às vezes, orgânicos) promovidos a arte moderna, bastando um holofote jogado em cima.

Restaurante minimalista, com pratos insípidos e minúsculos custando a bagatela de R$ 80: pega-ratão. A recompensa talvez seja a publicação da foto da guloseima no Instagram e o cliente ter o nome publicado na coluna social, o que uma macarronada honesta num restaurante simples não proporcionaria – macarronada sacia sua fome, não seu apetite de status.

Encontros às escuras, anúncios de apartamentos “nobres” em que os quartos são menores do que banheiros, filmes que se anunciam como continuação de um sucesso: tudo pega-ratão. Está passando nos cinemas um tal Divã a 2, cujo cartaz possui a mesma programação visual do filme baseado no meu livro Divã e que teve excelente bilheteria em 2009, com a grande Lilia Cabral liderando o elenco, além de roteiro de Marcelo Saback e direção de José Alvarenga Jr, todos feras. Pois, afora esse cartaz enganoso, o filme atual não conta com o mesmo elenco, nem a mesma equipe e não tem nada a ver com meu livro. Por falta de estofo próprio, recorreu à armadilha de colocar um número 2 no título para – nhac! – atrair os desavisados.

Então, esteja avisado. Os ratos estão do outro lado do balcão.


sábado, 16 de maio de 2015


17 de maio de 2015 | N° 18165
MARTHA MEDEIROS

O segundo encontro

Afinal, um encontro não é uma boa notícia?

O segundo, ela me respondeu.

Ela estava sentada bem na minha frente, abalada, desanimada, com péssimos presságios em relação ao que aconteceria dali a duas horas: ela teria o primeiro encontro com um homem de quem estava muito a fim. Me explica, pedi. Me explica por que você não está soltando foguete. Me explica o motivo para não estar no cabeleireiro. Me explica a parte que eu perdi: afinal, um encontro não é uma boa notícia?

O segundo, ela me respondeu. O segundo encontro me faz soltar rojão. O primeiro é ir para o sacrifício.

Diante do meu espanto, ela resolveu reavivar minha memória.

Primeiro encontro, disse ela, é que nem entrevista de emprego. O nível de stress é o mesmo. Você não pode ir produzida demais, para que ele não pense que você está desesperada, nem ir vestida de qualquer jeito, para ele não pensar que você está pouco se lixando. Você não pode ser muito engraçada, para não passar a impressão de frivolidade, nem séria demais, para ele não te considerar uma chata.

Você não pode falar dos seus ex-amores, para ele não ficar inseguro, mas se não mencionar nenhum ele vai pensar que você é uma laranja podre que ninguém quis catar do chão. Você não deve beber demais, pois seria deselegante, mas pedir um suco vai fazê-lo pensar que você tem 14 anos.

Você passa a noite falando sobre tudo de que gosta – filmes, cidades, programas de tevê, esportes, música – e precisa se controlar para não pedi-lo em casamento quando ele concordar com suas preferências, ou se controlar para não cair em prantos quando ele disser que os Rolling Stones são detestáveis e que não suporta rock, mas que morreria por um show ao vivo do Lionel Richie.

Ela continua: “Aí você lembra que o Lionel Richie bem que se esforçou, compôs We Are the World com o Michael Jackson e você quase gostou daquela música que ele fez para o filme O Sol da Meia-Noite, e percebe que já está fazendo concessões antes mesmo de seu pretendente pedir a conta, e ia esquecendo esta parte, a conta: se você se oferece para dividir, ele pode te achar bacana, mas também pode desconfiar de que você seja uma feminista que nem ao menos se depila.

E se você não se oferece para pagar ele pode te achar uma folgada ou, ao contrário, te considerar uma fêmea que reconhece seu papel no jogo, uma mulher acostumada a sair com cavalheiros – como saber?”.

Apavorada com o quadro esquizoide que ela me apresentava, arrisquei: nenhuma possibilidade de ser você mesma, criatura?

“Claro que existe a possibilidade de ser eu mesma. No segun...” Não, não: nenhuma possibilidade de ser você mesma no primeiro encontro?


“Zero”. E assim, convicta, preparou-se para a ida ao sacrifício. Retirou seu Crocs e pediu minha sandália emprestada.

17 de maio de 2015 | N° 18165
L. F. VERISSIMO - As aventuras da família Brasil

A janela

Freud escreveu em algum lugar que não existe nada mais parecido com a paranoia do que a filosofia. Querendo dizer, acho eu, que a filosofia também vê uma trama por trás de tudo. Assim como todo complexo é o sintoma de uma disfunção a ser descoberta na análise, toda filosofia é uma tese conspiratória. Para a filosofia, tudo que existe é a ponta de um iceberg, exceto, talvez, a ponta de um iceberg, que deve ser outra coisa. Há uma lógica secreta na vida dos homens e das nações. O retorno do reprimido freudiano é o eterno retorno nietzschiano depois de uma análise.

Tirando um exemplo do chapéu: quando fizeram um plebiscito para decidir que nome deveria ter Leningrado, depois que Lenin caiu em desgraça, a maioria da população escolheu São Petersburgo. Não quis nem Petrogrado, nome dado em 1914, durante a I Guerra Mundial, quando, presume-se, a antipatia com santos era grande.

A população quis o santo e o “burgo” de volta à cidade que Pedro o Grande construiu sobre um pântano para ser uma janela através da qual a Europa veria como a Rússia se civilizava. O custo humano desse capricho foi terrível. Em The Russia House, John le Carré escreveu que em nenhum outro lugar do mundo o barbarismo se fez um monumento tão bonito.

A sina da cidade é ser um símbolo. Era de São Petersburgo que os exilados da União Soviética falavam quando falavam das delícias da vida antes da revolução. Ela era a “capital da memória” de Nabokov, sua cidade natal, e pelo resto da sua vida ele misturou seus mármores e seus canais e os verões idílicos nos seus arredores com lembranças de infância, e com ressentimento.

O retorno do reprimido, no caso, foi a tentativa de retomar o jardim dos prazeres do qual o tempo e a História expulsaram a criança. A lógica secreta do plebiscito foi a necessidade de anular o tempo e transformar Leningrado, de novo, num símbolo de ocidentalização.

O tempo fez outros símbolos do velho pântano. Lenin instalou seu quartel-general num ex-colégio de moças da aristocracia local, que só falava francês em casa e veraneava em Biarritz, antes de ser corrida para o exílio. A resistência da cidade ao cerco alemão por quase dois anos, na II Guerra, empolgou o mundo. Mas nada valeu tanto, para os que votaram pela mudança do nome da cidade, do que a sua conotação de fracasso.


O plebiscito serviu como um réquiem para a maior experiência de engenharia social já feita, e o tempo não foi suficiente para suprimir o reprimido: Lenin, o santo secular homenageado, não teve a força do outro santo. Se o que venceu foi a nostalgia imperial, outro capricho ou a liberdade, depende da sua filosofia, ou da sua paranoia. O fato é que pela cidade-janela se viu a outra grande convulsão na alma russa depois da revolução, que foi o fim do comunismo.

quarta-feira, 13 de maio de 2015


13 de maio de 2015 | N° 18161
MARTHA MEDEIROS

Chardonnay tinto

Outro dia fui a um bistrô com um amigo. Eram 21h30min e havia pouca gente. Carta de vinhos inexistia, tal a escassez de opções. Tudo bem. Pedi um cálice de espumante e meu amigo um cálice de chardonnay. Meu espumante veio morno e sem gás, e descobrimos que existe chardonnay tinto.

Com a quantidade de problemas que o Estado tem para resolver, falar sobre o serviço dos estabelecimentos comerciais parece frivolidade, mas não é. Em um mercado competitivo, mau atendimento é fator de descarte. Talvez os empresários gaúchos não estejam dando a devida atenção ao assunto porque sua concorrência também oferece um atendimento sofrível. É possível que pensem: para que investir em treinamento? Quem for menos pior está no lucro.

É comum encontrarmos atendentes desinformados, mas o que mais espanta é a displicência diante do cliente. Nos supermercados é visível o desleixo de rapazes e moças de todos os setores. Uma rede em especial me tira do sério e só frequento para emergências. Como costumo ir cedo, já desisti de ser atendida na peixaria, por exemplo. É a hora do café do funcionário e o balcão fica às moscas. Não existe um gerente no local que explique a razão de não haver um substituto. Ninguém se responsabiliza. Esqueça o peixe. Compre frango, patinho, alcatra ou volte mais tarde, e torça para chegar num momento em que o rapaz não esteja ocupado, comentando os resultados do Brasileirão com algum colega.

Como se sabe, a pessoa mais importante para os funcionários, durante o expediente, é o colega. O cliente não passa de um estorvo que interrompe a conversa agradável que eles estão tendo sobre a novela, sobre o gol perdido pelo centroavante, sobre os dias que faltam para eles saírem de férias. Não é proibido conversar, mas seria simpático se fizessem isso com discrição e quando não houvesse cliente em volta.

O cliente gosta de ser percebido. O cliente gosta de ver o funcionário focado no que está fazendo. O cliente gosta de saber que está deixando seu dinheiro numa empresa que valoriza sua presença. Outro dia passei com um carrinho lotado de compras ao lado de dois garotos que, em tese, deveriam estar no estacionamento do súper para ajudar os clientes a descarregá-las, mas ambos estavam ocupados com uma competição de arrotos. Sem problema, posso tranquilamente descarregar minhas compras sozinha, mas preferiria que os meninos estivessem competindo por uma gorjeta.

Generalizando: no Rio Grande do Sul, cliente é um mal necessário. E a culpa dessa distorção não é do empregado, e sim do patrão. Do dono do bistrô que não treina seu garçom, da dona da loja que não adverte a balconista que masca chiclete enquanto mostra o produto, do dono do supermercado que não estabelece normas de conduta.

Aos que atendem de forma cortês e eficiente, nossa fidelização e cumprimentos. Aos relapsos, parafraseio o querido Anonymus Gourmet: não voltaremos.


sábado, 9 de maio de 2015


10 de maio de 2015 | N° 18158
CARPINEJAR

Imobilidade do inverno

Terrível no inverno não é passar frio, mas tentar não passar frio.

É se antecipar ao desconforto do vento e da tremedeira.

Passamos a estação inteira nos adiantando para não sofrer e terminamos sofrendo o dobro.

Nunca conseguimos nos agasalhar para o frio psicológico.

Planejamos um momento em que estaremos protegidos que nunca chega. Sempre falta uma coisa que encerra o aconchego que criamos detalhadamente.

É como se refugiar num abrigo antiaéreo e deixar a sacola de mantimentos lá em cima. Subir ou não subir de volta?

Quantas vezes já tremi a noite inteira somente porque não desejava me levantar para buscar um edredom?

Dentro do sono, eu pensava: será que vou ou não vou? E, por fim, dormia com a angústia da dúvida, tremendo, chamando a gripe para conviver comigo.

Inverno é um dilema permanente, um descuido irreversível.

Vou assistir a um filme na sala com a minha mulher, preparamos pipoca e chocolate quente, puxamos o edredom, demoramos para encontrar o lugarzinho ideal, para nos encaixar entre as almofadas e o encosto, no instante em que alcançamos a perfeição alguém se dá conta da ausência do sal. Qual será a alma caridosa a largar a fortaleza e trazê-lo da cozinha? A tristeza é que – se um sair – recomeçará todo o reposicionamento delicado que levou horas para ser feito.

A ânsia de não sofrer contratempos supervaloriza o incômodo. A mania de querer uma situação ideal nos põe em perigo.

Qualquer movimento em casa é acampamento, com o medo permanente de sair do fundo da barraca após o esforço de montá-la. É trazer tudo para não se mexer depois, mas sempre existe um lapso.

Inverno é frustração, é distração letal.

Quem já não enfrentou o banho rápido, desafiou o gelo do lençol, friccionou seus pés com os pés da esposa, abraçou forte sua companhia debaixo da montanha de cobertas, suspirou de felicidade quando se enxergou novamente quente e, de repente, verifica que a persiana tem uma fresta de luz? É preciso muita coragem para abandonar o acolhimento custoso e reiniciar os trabalhos.

No inverno, por maior que seja a cautela, esqueceremos algo.

Perderemos consecutivamente a vantagem que adquirimos com a prevenção.

Basta encontrar uma posição para se morrer feliz que seremos impelidos a ressuscitar.

10 de maio de 2015 | N° 18158
MARTHA MEDEIROS

A desagradável tarefa de fazer-se odiar

Pais de família estão cada vez mais participativos, atuantes, necessários, afetivos, fundamentais na criação dos filhos, ao contrário do que acontecia nas gerações anteriores, quando o pai era uma figura cerimoniosa, o provedor que detinha a última palavra nas questões graves e terceirizava o resto. Hoje não. Hoje os pais deitam, rolam, se embolam, se envolvem nas pequenezas cotidianas, são quase mães.

Quase. Porque tem uma coisa que a maioria deles ainda não consegue assumir: a desagradável tarefa de fazer-se odiar.

Li essa frase num livro (em outro contexto) e achei que fechava perfeitamente com a maternidade. O que é ser mãe, senão tomar para si o papel de chata da família?

As cobranças do dia a dia são especialidade nossa: o que comeu, o que vestiu, se tomou banho, a toalha no chão, os garranchos, o blusão amarfanhado, a luz que ficou acesa, liga pra tua vó, o estado deplorável do tênis, a hora em que foi dormir, segura direito esse talher, deixa de preguiça, cuidado ao atravessar, não dorme de cabelo molhado, larga esse computador, menos palavrão, hora de acordar, a consulta no dentista, e esse amigo mal encarado, e esse decote provocante, convida os teus primos, não tranca a porta à chave, fecha a janela, abre a janela, não corre pela casa, me avisa assim que chegar, tu anda bebendo?

Não que o pai seja relapso, mas, se ele ainda vive com a mãe das crianças, a patrulha cotidiana possivelmente ficará a cargo do sargento de saias. Nós, tão femininas, tão doces, tão sensíveis, tão amorosas, não pensamos duas vezes em abrir mão desses nossos suaves atributos caricaturais a fim de manter a casa de pé, a roda girando, a vida funcionando, todo mundo no eixo. Se tivermos que ser antipáticas, seremos. Se tivermos que ser repetitivas, que jeito. Controladoras? Pois é. Alguém tem que se encarregar do trabalho sujo.

É uma generalização, eu sei, mas amparada no senso comum. Os pais mandam, ralham, brigam, mas raramente perdem a cabeça, quase nunca gritam e se estressam. Eles têm essa irritante capacidade de manter a boa reputação com os filhos. Se forem obrigados a escolher um lado durante o barraco, dirão que estão do lado da mãe, que estão de acordo com tudo o que ela disse, mas irão piscar para o filho quando ela não estiver olhando.

Ao fim e ao cabo, mães dão conta de todas as crianças da casa. Todas.

É o nosso papel: reger a orquestra familiar ofertando nosso melhor, mesmo que ele seja confundido com nosso pior. É o risco que corremos, mas não há outra maneira de educar. O excesso de zelo pode ser estafante, mas é preciso segurar o tranco de ser odiada um pouquinho a cada dia a fim de garantir um amor pra sempre.


quarta-feira, 6 de maio de 2015


06 de maio de 2015 | N° 18154
MARTA MEDEIROS

Um novo olhar sobre as palavras

Isso é bom, isso é ruim, isso é certo, isso é errado, isso é assim e não assado. Costumamos catalogar e etiquetar tudo, inclusive palavras e expressões. No entanto, algumas foram condenadas a ter um sentido negativo quando poderiam ser avaliadas por outro prisma – caso de “válvula de escape”, por exemplo. Bastou dizer que fulano está recorrendo a uma válvula de escape para que pensemos que a criatura não é de confiança, que é alguém que não enfrenta a realidade. Puro pensamento condicionado. Ora, qual o problema de se ter uma válvula de escape?

Uma viagem solitária, um amor escondido, um vício secreto, um pseudônimo, manias ocultas: ninguém precisa ser tão corretinho e tão transparente o tempo todo. Dar uma fugida para um mundo particular, só seu, não consta da lista de pecados mortais – supondo que você ainda acredite em pecados.

Frivolidade. Outra palavra para a qual os narizes se torcem. A ordem é ser sério e profundo para garantir o respeito alheio. Concordo, mas sem fanatismo. Sou séria, profunda, respeitável e também leve, superficial, brincalhona, tudo isso atendendo pelo mesmo nome e sobrenome. Virar refém da aura de intelectual que minha profissão impõe? Nunca pensei. Escritores também têm o direito de ser divertir, assim como juízes e padres. Frívolo, mesmo, é aquele que engessa a própria vida.

Escândalo. Precisa mesmo ser uma palavra que apavore os cidadãos de bom comportamento? É razoável que não queiramos mais escândalos na política, mas um decote escandaloso, um beijo escandaloso, uma performance escandalosa podem provocar sorrisos, desejos, ideias e uma empolgação a que estamos cada vez menos acostumados. É importante sermos provocados. O escândalo nos salva da anestesia geral e da apatia que a constante repetição dos dias provoca.

Desespero é outro exemplo. A tendência universal é manter os nervos controlados. O mundo está sob efeito de ansiolíticos. O faniquito já não é considerado uma reação espontânea, e sim um delito. Entendo, também não dou audiência para chiliques, mas a palavra desespero é de outra categoria e merece toda minha atenção.

Um poema desesperado, uma súplica desesperada, uma expressão desesperada de algum sentimento: como não se comover? Pollock pintava com desespero, Janis Joplin cantava com desespero, ou assim parecia. Não se pode negligenciar aquilo que acorda a humanidade de sua sobriedade bocejante. Banir o desespero é banir a paixão.

Palavras têm vida e não se deve temê-las. Mesmo as que carregam uma herança maldita podem ser revestidas por uma visão mais humorada e criativa em relação ao seu uso. Andrógino, ácido, infernal, rebelde, subversivo, titânico, incendiário: onde foram parar os adjetivos que tornavam a vida mais excitante? 

sábado, 2 de maio de 2015


03 de maio de 2015 | N° 18151
CARPINEJAR

Casaquinho preto

Toda mulher tem um casaquinho preto, de malha, que custou barato e é uma companhia inseparável. De aparência simples e discreta, o casaquinho é mais importante do que qualquer roupa de estilista famoso.

O casaquinho é aquele que ela diz para as amigas que deveria ter comprado dois e que jamais encontrará igual. E ela nunca compra dois, apesar de já ter amaldiçoado a avareza antes.

O casaquinho é uma segunda bolsa, tamanho seu valor prático, combate o frio do cinema, da saída de festa e de jantares. Toda mulher que se admira tem um casaquinho preto, que cavou em uma liquidação como um dos grandes achados de sua vida.

É uma peça invisível que não estraga nenhuma combinação. É um travesseiro para os ombros. É uma vitamina C de pano para prevenir a gripe.

Não se habilite a segurar o casaquinho preto dela, é muito pessoal. Cometerá uma gafe. O máximo que pode fazer é ajudá-la a vesti-lo.

Nenhuma mulher aceita emprestá-lo. Não é gentileza, e sim invasão de privacidade, o equivalente a mexer em suas redes sociais.

O casaquinho é um objeto íntimo, intransferível, lingerie pelo lado de fora. Não queira assumir a responsabilidade. Se tomar conta e extraviar, ela ficará enlouquecida e não perdoará a distração.

Casamento é bem capaz de terminar quando o homem inventa de proteger o casaquinho e acaba esquecendo em algum lugar. Não corra riscos. Eu perdi um casaquinho num show. Amarrei na cintura. Ao pular e dançar como um negro gato no show do Luiz Melodia, deixei cair no meio da pista.

Estávamos felizes, radiantes, nos beijando e nos abraçando com furor, um casal antologicamente apaixonado em Porto Alegre, cantando as canções de cor e trocando risos caprichados. Quando, no intervalo de uma música, ela me perguntou “Cadê o casaquinho?”, a noite mudou de feição, ela mudou de feição, eu mudei de feição vendo a noite e ela mudando de feição ao mesmo tempo. Paralisei minha boca em uma careta, porque ele havia sumido sem que percebesse.

Com a lanterna do celular, eu me postei no chão, me agachei como o aspirador dos dedos para reconhecê-lo entre latas e copos de bebida. Pisaram em minhas mãos, me empurraram, e nada de resgatar o pobrezinho.

Ela passou a madrugada lamentando o casaquinho, a manhã seguinte lamentando o casaquinho, o mês seguinte lamentando o casaquinho. Era viúva do casaquinho. Não se falava em outra coisa.


Procurei corrigir o erro e adquirir um semelhante. E agravei a minha falha: só ela tem o direito de escolher seu casaquinho. As mulheres não são difíceis, mas fetichistas.

03 de maio de 2015 | N° 18151
MARTHA MEDEIROS

Um novo arranjo

Afora o jogo explícito da sedução, mulheres podem sim surpreender um homem com flores, desde que seja oportuno

Semanas atrás, li na coluna da Celia Ribeiro, aqui mesmo na revista Donna, que uma leitora tinha dúvida sobre se era aceitável mandar flores a um homem. Celia respondeu com a sensatez de sempre: dependendo da situação e não sendo um buquê de rosas vermelhas, ok. Está certa. Rosas vermelhas são declarações de amor em estado vegetal. Melhor não bagunçar as regras do jogo: deixemos que eles mandem rosas. Já conquistamos tanto poder nas relações, vamos querer seduzir os rapazes com flores também? Desse jeito, vai sobrar o que para eles fazerem?

Mas afora o jogo explícito da sedução, creio que mulheres podem sim surpreender um homem com flores, desde que seja oportuno.

Exemplo de momento oportuno?

Se ele estiver no hospital... não. Leve algumas revistas, jornais. Leve frutas, chocolates. Isso considerando que ele não esteja na UTI – neste caso, leve apenas suas orações.

Se ele está festejando aniversário... acho que não. Dê a série completa de House of Cards. Um disco. Um livro.

Se ele está se formando... também não. Eu sei que presentes como caneta e agenda estão com a validade vencida, mas duvido que um garoto que acabou de sair da universidade vá querer receber astromélias, margaridas ou girassóis.

Se ele chamou para alguma comemoração, leve bebida. Não tem erro.

Se ele está autografando sua primeira obra, arraste para a livraria uma turma disposta a comprar vários exemplares. É isso o que ele quer: uma longa fila.

Se irá visitá-lo na cadeia (ué, gente), leve sabonete líquido, biscoito recheado, palavras cruzadas, ansiolíticos.

Então, quando seria oportuno? Vou dar um exemplo que vivenciei.

Um conhecido que mora sozinho resolveu fazer um jantar em sua casa para me apresentar seus amigos. Eu não conhecia sua casa e, sendo sincera, nem a ele muito bem, mas sendo um jantar com uma motivação relacionada a mim, não podia aparecer de mãos abanando. Sem me preocupar em ser original, pensei em levar uma garrafa de vinho. O problema é que ele era um grande conhecedor de vinhos e já havia decidido o que servir à mesa, ou seja, eu só atrapalharia seus planos. Foi então que, às três da tarde, horas antes do jantar, entrei numa floricultura, escolhi uma bela orquídea e mandei entregar na casa dele. Não tinha ideia sobre que efeito isso teria.

Teve um bom efeito. Outro momento oportuno, vivenciado por uma moça bem menos sutil, foi quando o noivo rompeu com ela, sem dar explicação, duas semanas antes do casamento. O rapaz recebeu em casa uma coroa de flores com uma faixa roxa onde estava escrito: “Descanse em paz”.

Se o clima for de velório, considere. Mas não espere encontrar essa dica numa coluna de etiqueta.


sexta-feira, 1 de maio de 2015


Dia do trabalho

A história do trabalho humano é das partes mais lindas e interessantes da história da humanidade. Talvez seja mesmo a parte mais digna, honesta e bonita. Estão aí pirâmides, muralha da China, estádios à beira de rios, livros, bibliotecas, jardins, templos, catedrais, obras gigantes, pequenas casas em aldeias, represas, edifícios, arte, artesanato, tudo feito quase sempre por milhões de anônimos, geralmente mal remunerados.

Desde que Adão comeu a maçã e Deus o mandou ir atrás e suar um monte para comer, até o ócio criativo, o direito à preguiça, o lazer cultural e outras modernidades laborais, passando por lutas sindicais e revolução industrial, muita coisa aconteceu nestes milênios, especialmente a partir de 1886. Em Tempos Modernos, Chaplin deixou seu recado sobre o novo mundo trabalho, com suas linhas de produção, suas correrias e falta de humanismo.

Tripalium, instrumento de ferro ou de madeira com três pontas, usado antigamente na lavoura para separar cereal, teve sua utilização decaída e virou instrumento de tortura e, aí a triste origem da palavra trabalho, até hoje muita associada com pecado, punição, esforço, tortura, abuso e violência. No Brasil do século XXI, o trabalho escravo é objeto de uma PEC. Triste, mas não podemos deixar isso de lado, esquecer essa chaga no Dia do Trabalho. Desculpem.

1886, primeira grande paralisação de empregados nos EUA. 1889, Paris, enorme movimento de operários. 1891, 8 horas diárias de trabalho. Na Inglaterra da Revolução Industrial a frase revolucionária, verdadeira lição de vida e de luta: 8 horas de trabalho, 8 de diversão, 8 de descanso e 8 shillings por dia. Meu pai me ensinou esta frase, quando eu tinha uns dezoito anos, mas sem os 8 shillings, que as oito de trabalho eram de estudo.

1º de maio no Brasil virou feriado nacional só em 1924 com o Presidente Artur Bernardes. Nos outros países foi bem antes, como de costume nestas coisas. Nossa CLT, não por ocaso, foi promulgada no histórico 1º - 5- 1943. De lá para cá muitas conquistas, muitos avanços, especialmente no âmbito do trabalho doméstico, um setor que evoluiu muito, calmamente, sem tumultos, sem problemas maiores. Domésticos constituem a maior categoria profissional do Brasil.

Claro que há muito ainda por acontecer nas relações de trabalho no Brasil. Temos que evoluir. Tomara que aconteçam coisas boas. Muito diálogo produtivo entre as forças do capital e do trabalho seria um ótimo, desejável caminho. Não é fácil, nunca foi fácil a conversa entre o capital e o trabalho, nestes séculos de luta. Mas seria o melhor. Vamos torcer pelo melhor.

É sempre bom lembrar que na vida a relação com o trabalho é das mais longas que temos e é das que podem nos dar mais alegria e satisfações. É uma espécie de casamento com uma parte importantíssima da gente, um relacionamento com nossos setores produtivos e criativos, por aí. Que seja bom. Para nós e para os que estão perto.

a propósito...

O ideal seria que todo mundo trabalhasse com a seriedade e a alegria de uma criança brincando. Não é fácil. Pouquíssimos conseguem. Mais comum em áreas artísticas, de criação, atividades que envolvem sonhos infantis, aspirações profundas, e vocações inatas, difícil explicar. Bom pensar que mesmo num mundo onde a alta tecnologia por vezes aliena e faz os trabalhadores, solitários, conviverem até demais com as telas e o silêncio, sempre haverá momentos de pausa, olhar, conversa, abraço, cafezinho, chá, chimarrão e convívio indispensável. Se não houver, melhor exercer o direito à preguiça, ir para a praia e viver à base de peixe com banana.



Castellinho, o mais lido e mais influente
DIVULGAÇÃO/JC

Todo aquele imenso mar de liberdade - A dura vida do jornalista Carlos Castello Branco (Record, 560 páginas, R$ 60,00), do jornalista Carlos Marchi, conta a história do colunista político mais lido e influente do País entre as décadas de 1960 e 1990. Muitos o consideram o maior colunista de política que o Brasil já teve. Ele escreveu mais de 8 mil colunas para o Jornal do Brasil. Política, literatura e jornalismo são os três pilares que definem a vida de Castellinho, que integrou a Academia Brasileira de Letras.

Carlos Marchi conviveu longamente com Castellinho, trabalhou no Rio de Janeiro (Correio da Manhã, Última Hora e O Globo), Brasília (O Globo, TV Globo, O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil) e São Paulo (O Estado de São Paulo). Foi secretário do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal na gestão de Castellinho e assessor da campanha civilista de Tancredo Neves em 1984/1985. É autor de Fera de Macabu (Record, 1988 e Best Bolso).

Marchi é um exímio contador de histórias e não escondeu nada sobre o ícone da imprensa com quem conviveu. Não escondeu as fraquezas de Castellinho e a obra se inicia com uma conversa do biografado com Jango, sobre um tema que seria a maior tristeza da vida do jornalista.

Castellinho veio do Piauí, formou-se em Direito, começou sua carreira em Minas Gerais, onde logo começou a trabalhar nos Diários Associados. Conviveu com os maiores personagens da história do País e atravessou períodos turbulentos da política, como a renúncia de Jânio Quadros, de quem foi secretário de imprensa. Em Minas, aproximou-se de Fernando Sabino, Hélio Peregrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

Castellinho morou no Rio e depois em Brasília, onde consolidou sua carreira. Castellinho foi jornalista durante cinqüenta anos, sendo que trinta deles como colunista político diário no Jornal do Brasil. Somente uma vez atuou "do outro lado do balcão", trabalhando no governo, como se diz no meio jornalístico.

No Jornal do Brasil com seu talento para as letras e o jornalismo, ia driblando a censura do tempo da ditadura militar, aprofundando análises, definindo informações essenciais e, assim, conseguia informar, na medida do possível para a época, o leitor, defendendo ao máximo a liberdade de expressão e de informação. Não era fácil, mas Castellinho ia desenhando o panorama político da época.

Com a volta da democracia em 1985, mestre Castellinho pode livrar-se de tristezas, frustrações e angústias pessoais e profissionais dos anos de chumbo e mergulhar num imenso mar de liberdade, quando então pode abandonar as entrelinhas e falar bem alto e claro. Felizmente Castellinho viveu oito anos depois da abertura democrática, vindo a falecer em 1993.


O volume tem apresentação de Merval Pereira, colunista político de O Globo e integrante da Academia Brasileira de Letras. Escreveu Merval: "frio, pragmático, Castellinho sabia lidar com as autoridades de Brasília sem perder de vista sua condição de repórter, o que sempre surpreendia seus interlocutores".