quarta-feira, 31 de agosto de 2016

 

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
MARTHA MEDEIROS

Guerra de torcidas

Inevitável lembrar o dia da votação do impeachment do Collor. A cada voto favorável à sua saída, eu aplaudia. Era 1992 e eu tinha certeza absoluta de que lado estava. Aliás, não havia divisão, era um processo apartidário. Todos os brasileiros estavam do mesmo lado.

Hoje, o país vive situação similar, mas o país foi rachado em dois.

O discurso de Dilma no Senado, na segunda-feira, foi digno e sua disposição para o interrogatório, louvável. Estava me causando boa impressão, até que vieram as ameaças: se ela fosse deposta, adeus à democracia, seria o fim do país, nenhum contrato assinado teria mais valor.

A gente sabe que não é bem assim. Existe também a alternativa de o país seguir seu curso, fazer ajustes necessários, fortalecer a economia e respirar até a eleição presidencial de 2018. A não ser que a oposição se articule para tirar Temer do governo antes disso, uma ação que chamaríamos de quê? Revanche? Toma lá dá cá? Golpe? Direito constitucional?

Passei então a observar o outro lado do balcão e houve momentos em que concordei com alguns argumentos pró-impeachment, mas não senti a menor vontade de fazer parte daquela turma. Os que julgam Dilma também estão enrolados até o pescoço. Tanta retórica começou a me dar náuseas e percebi que não havia, ali, preocupação com o Brasil, e sim paixão pela política, pelo jogo, pelo poder.

No início da noite, uma câmera flagrou um cumprimento amigável entre Aécio e Dilma. Dava para perceber que sorriam. É isso aí. Tal qual a troca de camisetas entre jogadores ao fim de uma partida de futebol. Todos disputam a posse de bola em campo, mas, no final das contas, é só um esporte. Amanhã um pode estar jogando no time do outro.

É bem provável que a decisão já tenha sido tomada: Dilma saiu ou Dilma ficou. No momento em que escrevo, não sei. Tampouco consigo ter a certeza que tantos têm sobre o que é justo, neste caso, e o que não é. Segundo os comentários deixados nas redes sociais, voltaremos a ser uma ditadura, se ela sair, ou amargaremos uma crise sem fim, se ela ficar. Exagero. Não creio que haverá nem um grande atraso nem um grande avanço, independentemente do resultado. Então torço, antes de tudo, para que vença a lei.

Transformação, pra valer, virá com a continuidade do trabalho da Lava-Jato. Não se pode parar de punir quem roubou, seja de que partido for – começando por Eduardo Cunha. É a corrupção que tem que sofrer um impeachment colossal a fim de abrir caminho para uma renovação no nosso modo de fazer política. Só então evoluiremos, trocando gatunos por pessoas realmente comprometidas e mantendo dinheiro em caixa para investir num projeto de país que nos una de novo.

sábado, 27 de agosto de 2016



27 de agosto de 2016 | N° 18619 
CARPINEJAR

Até Tóquio

Nunca subestime o poder de argumentação.

Se conversar não convence, pelo menos cansa o outro lado. O outro lado concordará comigo mais para dormir de uma vez por todas do que porque decidiu me apoiar.

Não me interessa ganhar uma discussão, só não quero perdê-la.

Quando estou errado, não deixo de defender os meus argumentos. Posso sofrer uma goleada, mas não desisto de buscar o gol de honra.

Jamais me entrego, jamais entrego os meus amigos. Amizade é a minha máfia. Não confunda o egoísmo com lealdade, é uma questão de preservação pessoal. Caso denunciar os amigos, sacrificarei os futuros álibis.

Homem ilhado é homem vulnerável.

Nego até depois do fim. Não duvido de que a verdade não fique com compaixão da minha forjada coerência. Não tremo de raiva, não grito, não altero o tom de voz. Não consulto o relógio para indicar ansiedade. Olho nos olhos para exalar confiança.

Nenhum mal é definitivo. O importante é não cair nocauteado pela confissão e permitir que o resultado seja fruto da subjetividade dos jurados.

Se você errar o nome da mulher, por exemplo, ainda há conserto. Mesmo que seja na cama. Confie em mim. Aliás, confie em si.

É apenas elogiar o ato falho. Criar um manifesto em defesa do ato falho. Inverter a situação. Nada melhor do que uma torção psicanalítica para evitar fraturas amorosas.

– Eu não sou Priscila. Priscila é o nome de sua ex! – resmunga a esposa, já chorando.

– Eu lhe chamei de Priscila? Que bom!

– Que bom?

– Que bom, amor. Eu estava esperando este momento.

– Tá de sacanagem comigo, troca meu nome no meio do sexo e acha isso normal? Você é um doente! Um doente!

– Não, agora é que estou curado. Não preciso mais cuidar do que falo. Vivia me censurando, me inibindo, com medo de lhe magoar. O ato falho prova que tenho confiança em você, que me permito errar e não lhe acho mais fraca, mais tola, mais bobinha, que você amadureceu para mim e demonstra condições de segurar a barra nos momentos difíceis.

– Você vem me enxergando diferente?

– Sim, amor, muito mais forte. Que orgulho de você. Eu a admiro bem mais hoje.

– Mesmo?

– E também prova que não estou mais me defendendo ou pensando naquilo que preciso dizer. Não me controlo na sua frente. Eu me soltei, eu me libertei do passado, posso amar como nunca. O ato falho é um exorcismo, não devo mais nada para Priscila.

– Mas, amor, já estamos juntos há quatro anos?

– Pois é, amor, o ato falho costuma acontecer a cada quatro anos, como a Olimpíada.

– Tudo bem, dessa vez passa, mas não haverá perdão para uma próxima.




27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?

As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.

sábado, 20 de agosto de 2016



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
CARPINEJAR



Solidão não é estar sozinho, mas é não conseguir ficar sozinho, não se suportar sozinho.

Assim como a solidão não tem conexão com o deserto e o isolamento. Pode acontecer casado, acompanhado, cheio de gente ao lado.

Solidão é uma insuficiência que cresce: é a infinita capacidade de piorar o mundo para melhorar as reclamações.

Solidão é não encontrar ânimo tanto para acordar quanto para dormir, é quando o desespero desemboca em angústia.

Solidão é guerrear com a imaginação, lutar com a memória, combater os pensamentos. É se posicionar contra o perdão.

Solidão é uma saudade de si.

Solidão é rir sem vontade mais do que ter vontade de chorar.

Solidão é parar de achar graça quando as coisas dão errado.

Solidão é não ser compreendido. É explicar o que machucou e não receber o curativo da atenção.

Solidão é ser desacreditado sempre que se conta a verdade. É revelar uma urgência e ser menosprezado. É expor uma necessidade e não ser levado a sério.

Solidão é a incomunicabilidade. É conviver com alguém e não ter como falar o que incomoda, é perder o ritmo da confissão, é não saber mais como começar uma conversa.

Solidão é ser assaltado várias vezes pela mesma tristeza. É não resolver nunca o problema, é aceitar a falta de solução.

Solidão é jamais encerrar as mágoas, adiar a despedida para fingir que a relação não acabou.

Solidão é não terminar mais nenhum livro e ouvir uma única música ininterruptamente.

Solidão é forjar respostas para não enfrentar as perguntas.

Solidão é chegar muito atrasado na emoção. É um desabafo feito exclusivamente de soluços.

Solidão é ir substituindo a vida por mentiras, é ir substituindo o compromisso pelas desculpas.

Solidão é assumir a culpa por aquilo que não aconteceu e, ironicamente, fugir da responsabilidade por tudo aquilo que aconteceu.

Solidão é ser desajeitado para amar e ser incompetente para odiar.

Solidão é quando o silêncio vira fardo.

Solidão não é o vazio, é ocupar o coração pela pessoa errada.

Solidão é manter um quarto infantil para um filho adulto.

Solidão é lembrar o aniversário um dia depois.

Solidão é um asilo para crianças, um orfanato para velhos.

Solidão é desinteressar-se pelas palavras e, em seguida, desinteressar-se pelo corpo.

Solidão não é ausência de sexo, é ausência de prazer.

Solidão é extraviar o contato com a família e não ter a humildade de reatar.

Solidão é desaparecer para os amigos durante a alegria e depois ver os amigos desaparecendo nos momentos da tristeza.

Solidão é pagar mesada aos defeitos e salário para as dores e não sobrar nada para agradecer aos céus.

Solidão é enjoar de tudo o que antes lhe inspirava, é quando a felicidade transforma-se em tédio.

Solidão é rastejar com asas, não dispor da concentração mínima para recuperar o que era importante.

Solidão é não ser mais solidário consigo.

Solidão é recordar os bons momentos somente para se torturar.

Solidão é inventar doenças e morrer de desgosto pelo excesso de saúde.

Solidão é se sentir só ainda desejando estar só.


20 de agosto de 2016 | N° 18613 
MARTHA MEDEIROS

Vida dura comparada com a de quem?

Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza


Vamos supor que a mesa da sua cozinha tenha sido atacada por cupins, que você esteja de relações cortadas com sua mãe, que venha sofrendo uma dor-de-cotovelo daquelas, que tenha engordado durante o inverno, que esteja estremecida com uma amiga com posição política oposta à sua, que tenham batido no seu carro estacionado e não deixaram nem um bilhete no para-brisa. Continue supondo: fez as contas e não vai dar para viajar no fim do ano, seu filho admitiu que fuma maconha, e seu patrão encasquetou que você está fazendo corpo mole no trabalho, mas a única coisa mole é seu tríceps.

Sem falar que anda frio, que sair à noite anda perigoso e você andou se estressando com comentários deixados nas redes sociais. O peixe que comeu no almoço estava estragado, e sua prima perdeu o livro que você emprestou. Convidaram você para um casamento, e você não tem roupa. Um maluco caçando pokémons pisou em cima do seu yorkshire. Será porque é agosto?

Pode nada disso estar acontecendo com você, mas certamente você tem sua lista de queixas. Todos nós temos. Mas queixas comparadas com o quê?

Passei uma tarde na Kinder, uma entidade que reposiciona nossos valores. Há mais de 25 anos, oferece educação especial e reabilitação a 300 crianças e adolescentes carentes com sérios comprometimentos neurológicos e físicos. Emprega cerca de 50 profissionais, entre pedagogos, fisioterapeutas, educadores. Mantém uma sede ampla, limpa e bem equipada – tudo mantido com doações privadas e repasses públicos. 

O que acontece lá dentro é um milagre. Cada funcionário trabalha com um baita sorriso no rosto, como se estivesse na Disney. Atendem meninos e meninas com deficiências de moderadas a graves (não há caso leve por lá) e se sentem orgulhosos e plenamente gratificados por fazer diferença na vida de quem nasceu em total desvantagem em relação a nós. Desvantagens como não conseguir falar, não conseguir ficar em pé sozinho, não ter articulação motora.

Quem começou tudo isso foi, de certa forma, uma refugiada. Barbara Fischinger chegou novinha aqui no sul, vinda da Alemanha, e não poupou esforços até realizar seu sonho de viabilizar um projeto de assistência aos que têm comprometimentos múltiplos. O que ela fez e ainda faz é de uma importância que até nos deixa acanhados, nós que nos julgamos especiais sei lá por quê. 

Especiais são aqueles que se dedicam a projetos de inclusão social e o fazem com amor e entrega ilimitada. A nós, resta colaborar. Podendo, entre no site kinder.org.br. Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Vamos dar uma mão para que esse pessoal prossiga com o que começou. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza.

sábado, 13 de agosto de 2016




13 de agosto de 2016 | N° 18607 
MARTHA MEDEIROS

A arte salva

A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer

A já remota cerimônia de abertura da Olimpíada no Rio deixou claro que música, dança e teatro não são supérfluos, que precisamos de um Ministério da Cultura forte e valorizado, e que arte também é uma religião.

A arte possibilita a comunicação instantânea entre povos que não falam a mesma língua e não possuem os mesmos costumes. A arte acessa em cada um de nós uma emoção que suplanta as mesquinharias triviais e cotidianas. Traz à tona valores fundamentais, a começar pela humildade. A arte nos reposiciona: saímos do lugar-comum, transcendemos e passamos a desenvolver um olhar mais amplo e generoso para o que nos cerca. A arte homenageia nossa inteligência e nossa sensibilidade. A arte é universal. É feita de mágica, beleza, espanto. Cala a nossa voz e desperta nossos sentimentos, sem os quais seríamos pessoas vazias, robotizadas.

Através da arte, nos aproximamos de outras vivências e combatemos nossos preconceitos. A arte é empática. Elimina fronteiras. Desconstrói rótulos. Mesmo quando comercial, traz sempre um valor intrínseco. A arte não tem que atender nossas demandas, não tem que ser “boazinha”, não tem que ser prática – ela existe para provocar, para desenterrar aquilo que escondemos de nós mesmos por covardia: emoção dói, por isso choramos. Ela recupera a inocência da infância, aquele tempo de descobertas, quando nada sabíamos. A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer. A arte impõe a subjetividade como caminho para a evolução.

Precisamos da arte para extrair de nós o nosso melhor. Portanto, que nossas escolas invistam em aulas de teatro e música, que mantenham oficinas de literatura, que coloquem o artesanato no currículo, que não apenas levem os estudantes a museus, mas que também os habilitem a manejar luz, som, matéria. Sem desprezar o mundo digital, que as crianças voltem a fazer trabalhos manuais, encontrando uma forma legítima, autêntica e excitante de criar algo que as personalize.

Não é preciso Deus quando se pode contar com maestros, bailarinos, compositores, instrumentistas, cineastas, escritores, pintores, dramaturgos, ceramistas, escultores, designers, atores, cantores, coreógrafos, malabaristas – e inclusive atletas. Nadia Comaneci foi uma artista. Garrincha foi um artista. Toda pessoa que consegue transformar o inesperado em poesia – através de um salto, um drible – reforça nossa autoestima e nossa fé. Se religião é crer, eu creio na arte. Ela não promove guerras, intolerância, terrorismo, repressões. Ela apenas retribui nossa crença nela, fazendo com que acreditemos em nós também.



13 de agosto de 2016 | N° 18607 
CARPINEJAR

Quando mordi a minha língua

O que sentimos ou deixamos de sentir está impresso nos mínimos gestos. Você pode ser uma pedra, não falar nada, mas até a pedra um dia será amaciada pelo musgo.

Não adianta sonegar emoções, traficar amores, camuflar problemas, porque será descoberto. Entregará o que vem lhe preocupando pela aparência. Somos horóscopos ambulantes, biscoitos da sorte prestes a serem quebrados por uma mensagem.

No fim do Ensino Médio, eu vivia brigando com os meus colegas, desafiando os professores, respondendo desaforado aos pais.

Óbvio que fui forçado a visitar a psicóloga da escola. Prometi a mim mesmo que lacraria a boca, ficaria calado durante a consulta inteira, faria terrorismo com a quietude. Não achava justo ser obrigado a me analisar e ainda mais numa época em que a terapia estava vinculada preconceituosamente à loucura.

Eu me ajeitei na poltrona com o meu estojo e caderno de aula debaixo do braço e a indisposição macabra de silenciar a cada pergunta. Mas a psicanalista não questionou nada, e o seu silêncio inesperado foi me enervando. Ela me observava com interesse, e eu querendo cada vez mais me esconder. Quando alguém permanece quieto muito tempo em nossa frente é como encarar um espelho e o tamanho de nossas dúvidas. Ela me provocava não me provocando, ela me emparedava abrindo todas as portas. Aquela liberdade assustadora de não ser cobrado a participar me aprisionava.

Mexi em meu estojo para me distrair. Ela perguntou se eu poderia emprestar uma caneta.

Alcancei uma Bic azul. Ela viu que a tampa estava mordida. Olhou com carinho e comentou:

– Enquanto não morder o tubo, está tudo bem. Eu ri de nervoso e demonstrei curiosidade.

– Morder a tampa significa alguma coisa?

– Significa que não fecha as conversas, que foge das discussões com medo de dizer a verdade, que reprime o desejo e vira as costas remoendo sozinho as suas frustrações e decepções, jamais repartindo a sua verdadeira opinião com ninguém, nem com seus melhores amigos.

Não revelei coisa alguma durante uma hora do encontro, mas ela me decifrou inteiramente apenas analisando a tampinha mordida da caneta. Uma mera, idiota e banal tampinha iluminou o meu comportamento.

A partir daquele dia, nunca mais subestimei a psicanálise e cuidei para morder somente a insossa borracha nos momentos de maior ansiedade.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016



10 de agosto de 2016 | N° 18604 
MARTHA MEDEIROS

O que eu caço por aí

Estava distraída andando pelo parque num dia de sol quando escutei, sem querer, a conversa de duas moças que caminhavam logo atrás de mim.

Disse uma para a outra: “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Imaginei que ela estivesse narrando as desventuras da noite anterior. Visualizei a cena: ela tomava uma caipirinha em uma mesa de bar quando entrou no recinto o homem de seus sonhos, que deu uma rápida conferida no ambiente e logo sumiu porta afora, como era de costume. O comentário dela não fazia todo o sentido? “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Se não era esse o caso, talvez fôssemos colegas de profissão e o comentário faria sentido igual, uma vez que, além de eu estar no parque me exercitando, estava também fazendo algo que minha atividade exige: caçando. Calma. Caçando assunto. Às vezes, eles também surgem muito depressa, nem dá tempo de pegar.

Parece insano reclamar de falta de assunto, já que não se pode alegar que o mundo esteja um tédio. Absolutamente tudo está acontecendo neste ano, a ponto de uma boa piada ter se propagado por aí: “Tentei acompanhar 2016, mas desisto, vou esperar sair em DVD”.

Ainda assim, quem escreve colunas há mais de duas décadas vive com a sensação de ter esgotado seu estoque de opiniões. Olimpíada, corrupção, desastres ambientais, mortes, crises, eleições, retrocessos, avanços, dores existenciais, ativismo político e social: mudam os personagens, os enredos são reescritos, a filosofia clássica é reinterpretada, mas o que é que ainda surpreende de fato? Lembro que até há pouco tempo eu pensava que o último acontecimento realmente impactante deste início de século havia sido o 11 de Setembro, porém até o terrorismo está em vias de se banalizar.

O jeito é extrair uma impressão pessoal não só das grandes questões, mas também das trivialidades que todos estão comentando (e agora todos são todos mesmo), com bom humor ou mau humor, sem se angustiar por não conseguir ser original em meio a bilhões de palpiteiros simultâneos desse universo tecnológico.

Costumo fazer minhas caminhadas sem levar o celular, mas aquelas duas moças atrás de mim estavam com seus smarthphones caçando você-sabe-o-quê, só que quem se deu bem fui eu, pois ele passou depressa e eu consegui pegar – um assunto! Graças ao comentário delas, trouxe pra casa minha caça: a crônica foi escrita, entregue para o jornal e agora está sendo lida. De certa forma, meu Pokémon é você.

sábado, 6 de agosto de 2016


06 de agosto de 2016 | N° 18601 
CARPINEJAR

A gentileza é o óleo das relações


Somos educados com estranhos. A ironia é que não somos educados com quem amamos.

Parece que amar é perder o freio da língua, que deixamos de medir as expressões quando estamos à vontade na cozinha, de abrigo e havaiana, conversando com a família, que intimidade é o antônimo de formalidade.

Existe a mania de entender que a convivência traz a possibilidade de falar qualquer coisa a qualquer hora. Conferimos licença para grosserias sob alegação de espontaneidade.

A preguiça atrofia o amadurecimento, abandonar o cumprimento e o agradecimento traduz um completo desprezo a todos que nos acompanham. É também um sinal de pouca humildade, já que nos sentimos superiores a ponto de nem olhar para os lados.

Não acredito que um filho respeitará o pai se não adotar “com licença” e “obrigado” dentro do lar. Nunca abdiquei, por exemplo, do costume de solicitar a bênção para a mãe no momento em que me despeço dela – baixo a cabeça em obediência aos mais velhos e ofereço a minha testa para receber a sua proteção.

A gentileza começa com o dever de casa e se estende aos demais. Quem abdica da cordialidade com a família jamais será genuinamente afetuoso nem absorverá o sábio rigor do silêncio e a pausa de reflexão diante dos erros cometidos.

O rancor surge da falta de controle. A agressividade emerge da ansiedade.

A educação é pensar duas vezes antes de fazer uma bobagem, representa um intervalo entre os impulsos para organizar a emoção. Ela renova o alvará da rotina, reconhecendo o valor daquilo que se tem.

Educação não é frieza, não é censura, mas proteção para não machucar e ferir os mais próximos.

Desfaz mal-entendidos com a paciência da linguagem. Equivale à uma fisioterapia da alma, quando as palavras se apoiam nas barras do cavalheirismo para fortalecer as longas pernas da verdade.

Não canso de avisar de meus movimentos e retribuir os outros pela preocupação comigo.

Não há dia em que não diga “bom dia” para a minha mulher, mesmo que seja redundante. Não há noite em que não diga “boa noite” para a minha mulher, apesar de dormir e despertar sempre com ela. A qualquer pedido que faço, reitero o “por favor”. É para alcançar o sal ou o controle da tevê. Ela não tem obrigação nenhuma em me atender, trata-se de um agrado a ser recompensado igualmente com o meu capricho.

Não é porque nos conhecemos que dispensarei o cuidado. Até porque o tempo de casamento não torna ninguém resistente, somos mais frágeis e vulneráveis quanto mais nos entregamos.



06 de agosto de 2016 | N° 18601 
MARTHA MEDEIROS

ATLETAS

Meu lugar não é no pódio, e sim na arquibancada, na plateia, na frente da tevê

Em passo acelerado, cruzo com outro caminhante, ambos orgulhosos do nosso feito: num sábado de manhã gelado, não estamos embaixo das cobertas, e sim na rua, colocando as pernas em movimento, o corpo em marcha, isso em plena meia-idade. Ninguém diz. De legging, tênis, rabo de cavalo, fone de ouvido, ninguém diz nada. Esforçados não merecem críticas, apenas incentivo, ou no mínimo um silêncio cúmplice.

Nunca fui uma atleta. Joguei caçador quando criança, andei muito de bicicleta, mas não era uma esportista. Depois me atrevi ao vôlei, mas só um pouquinho. Tentei o tênis uma tarde e meia, não rolou. Frequentei academias de jazz por anos, mas dança é arte, não esporte. O frescobol vingou e vinga até hoje, mas não existe gaúcha no ranking. Fiz meia dúzia de aulas de beach tênis, mas parei quando esfriou. Trilha, só em viagens de aventura, não são cotidianas. No final das contas, me restou a literatura, a mais sedentária das atividades.

Faço pilates há quatro anos e mereceria ao menos um bronze pelas acrobacias que minha instrutora exige, mas o Esporte espetacular me esnoba, nunca irá me filmar, e também ninguém jamais me flagrou conduzindo um caiaque numa praia da Tailândia ou escalando um morro em Machu Picchu. Férias não contam. Melhor esquecer. Não produzo suor suficiente.

Meu lugar não é no pódio, e sim na arquibancada, na plateia, na frente da tevê.

Eu poderia (e provavelmente deveria) ser mais uma a dizer que é um absurdo o que gastaram nessa Olimpíada do Rio, que é um vexame a infraestrutura ser tão meia-boca, mas à medida que o evento acontece, meu espírito crítico vai minguando, contraindo e dando espaço para o coração expandir (palavrinha trazida na bagagem de todas as comitivas: coração).

A verdade é que acho bacana tudo isso.

Vários jovens de diversas nações unidos pela farra, mas competindo por um frame de segundo que pode virar um recorde. Braços musculosos, abdômens inexistentes, bíceps, tríceps e sorrisos confiantes. Gente que se alimenta direito, que acorda cedo, que treina, que vive no ginásio, que quase não namora, ou namora escondido, gente que não chega nem perto de droga, gente que rema, dribla, salta, pontua, supera. De quatro em quatro anos, novos deuses do esporte cantam seus hinos pátrios, carregam medalhas no peito e voltam pra casa com a missão cumprida.

Dessa vez acontece no quintal da gente, nessa casa esculhambada que conhecemos como ninguém, mas mesmo que alguma coisa ou muitas coisas deem errado, só nos resta aplaudir – e no outro dia acordar cedo para caminhar, modestamente caminhar: se não a sua, minha única forma de compartilhar.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016


03 de agosto de 2016 | N° 18598 
MARTHA MEDEIROS

A arte do encontro


Exatamente uma semana atrás, assisti à estreia do programa de entrevistas A arte do encontro, do Canal Brasil (quartas, 21h30min), apresentado por um Tony Ramos também estreante na função. O primeiro convidado foi Antonio Fagundes, seu colega de dramaturgia. Antes mesmo que eles começassem a conversa, um de frente para o outro, apenas com uma estreita mesa separando-os, eu já estava cativada: eram dois homens que ali estavam. Não dois rapazotes, não dois deslumbrados. Eram dois homens vividos, seguros, confortáveis dentro do próprio corpo, dois amantes da poesia, da literatura, da arte, da vida. Dois homens calmos, dois homens sem afetação, dois homens sem necessidade de fazer marketing pessoal, sem disputarem nada entre si.

O povo anda com o parafuso solto, como se sabe. Ou se debocha de tudo, presunçosamente, ou parte-se para a agressão. Muita gente disposta a ferir, ofender, humilhar. Os papos, quase sempre, são rasos. A polarização política continua: se você não grita “Fora, Temer”, seus amigos de esquerda te chamam de golpista, e, se não grita “Fora, Dilma”, seus amigos de direita te chamam de comunista. E estamos resumidos. Então surgem dois homens tranquilos na tevê, numa noite no meio da semana, na hora do jantar, declamando poemas de Fernando Pessoa e fazendo uma leitura de Hamlet, assim, por nada, só pelo prazer de invocar palavras que emocionam.

Os dias correm ligeiros. Dezenas de mensagens entram pelo WhatsApp e nos sentimos isolados quando o aplicativo é bloqueado pela Justiça, sem lembrar que podemos telefonar como fazíamos dois anos atrás. Tudo passa rápido, há quem já me pergunte para onde irei no réveillon e ainda nem digeri o almoço. Quase nada permanece, o tempo voa, e então, finalmente, relaxo diante de dois homens sem pressa, que me ajudam a perceber como são sólidas as palavras ditas sem afobação.

Dois homens provocaram esse efeito em mim. Não foram duas mulheres empoderadas, foram dois homens. Num tempo em que os homens parecem ter se transformado em inimigos da sociedade, admito que me senti acolhida por aquelas vozes maduras, por uma virilidade nem um pouco ameaçadora, por um entrevistador que escuta e permite que o entrevistado fale, como deveria acontecer em nossas conversas privadas, duas pessoas que se olham sem aguardarem ansiosas a hora de dar o bote. Eram dois homens adultos que, sei lá por que – talvez porque estejamos na véspera de assistir a uma perseguição por vitórias – me fizeram lembrar que respeitar e admirar o outro não nos diminui em nada.

Não competir também é muito bom.