sábado, 26 de fevereiro de 2022


26 DE FEVEREIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Carta para a tela em branco

De início, peço desculpas pela violação. Você começa agora a ser invadida pelas minhas palavras, que esparramo sobre o teu vazio, enquanto enfrento o meu também.

Tela, você não foi a primeira. Antes de você, eu me relacionava com a folha de papel em branco, que colocava numa máquina de escrever manual, logo substituída por uma máquina elétrica, até que me adaptei em definitivo ao computador. Já naquela época, ficava com a expressão facial que estou neste momento: tá, e agora?

O fato de estarmos instaladas em um universo virtual não muda nada. O desafio continua exatamente o mesmo, toda semana, há quase 30 anos, isso sem contar as ocasiões em que precisei de ti para escrever poesia ou ficção. Mas nada de ciúmes, crônica é nossa relação estável e desde já te dedico esta, que vem somar-se a outras duas mil e tantas. Raras, raríssimas vezes cheguei na tua frente sabendo com exatidão o que queria dizer, e mesmo quando havia foco e intenção, o texto saía diferente do planejado, porque a gente começa escrevendo de um jeito, se dando liberdades (percebe como alterno os pronomes?), até que o espaço termina e é preciso concluir tudo às pressas, sabe-se lá como.

Nem acredito que estou no quarto parágrafo e nem entrei no assunto - pois é, ainda não decidi. Estou aqui puxando conversa, desenrolando o famoso fio da meada que se transformará em nova linha, e depois em outra linha, e mais outra, a fim de completar essa branquitude aí embaixo que me aguarda (mas que para o leitor foi entregue preenchida, claro). Daqui onde estou, o drama permanece: o que vou inventar no parágrafo seguinte? Sugira algo, vamos lá, o pessoal está reparando.

Inventei de desabafar contigo, então não tem volta, não vou deletar o que já foi escrito, não passarei o dia inteiro presa a essa aflição. Indo direto ao ponto: você me intimida. Não adianta querer me lembrar da minha suposta experiência, ela não conta, é sempre como se fosse a primeira vez. Preciso agradar aos leitores, seja fazendo graça, seja refletindo sobre algum acontecimento ou simplesmente dividindo uma angústia particular, só que não pode ser de qualquer maneira, a leitura tem que resultar prazerosa, senão o povo se manda, vai ser uma debandada. A concorrência só aumenta e dá trabalho, são muito bons os jovens colunistas. E você faz o que para me ajudar? Segue altiva como uma lâmina. Como se dissesse: te vira, mas seja rápida, falta só um restinho de página.

Por fim, chego aqui, ridícula como os que escrevem cartas de amor. Sim, sua tola, amor. Vivo pra ti, não consigo te abandonar. Semana que vem estarei novamente arrancando os cabelos na tua frente e suplicando: por favor, em vez de se fazer de difícil, me inspira, vai.

MARTHA MEDEIROS

Pretinha e Branquinha

Minha relação com os animais se divide em antes e depois do Cachorro. Embora os muitos cães e gatos que tivemos em casa durante o tempo em que morei com minha família, sempre faltou alguma coisa - em mim, claro - para aprofundar a relação com os bichos. Era passear e alimentar com carinho e responsabilidade, mas sem aquele amor todo que eu via nos outros, aí incluídos meus pais e meus irmãos.

Hoje penso nos nossos bichos com a saudade sem remédio das perdas. O primeiro de todos, o boxer Barnaby, vulgo Babinho, praticamente um irmão caçula. O simpaticíssimo Jimmy e, esse era danado, o Fagundes, de quem eu tinha medo a ponto de não ir para o pátio sozinha. Quando meu pai foi salvar um gato que havia ousado se aproximar do prato de comida dele, o Fagundes mastigou a perna de seu dono, o único a quem ainda obedecia. Por último, a Bumba, nascida Zabumba, que meu filho ganhou de presente quando completou um ano, mas que vivia na casa dos meus pais por conta do espaço.

Nota da redação: meus parentes sempre escolheram nomes exóticos para os bichos da família.

No capítulo felinos, a pioneira foi a Samanta, gata preta cheia de personalidade, que nunca foi com a minha cara. O primeiro dos filhos dela, batizado de Éber pela minha irmã. As duas filhotes da segunda ninhada, Thelma & Louise. E muitos mais que não lembro na cronologia certa, sempre tinha um gatinho novo na casa dos meus pais.

Sempre para lá e para cá, nunca achei tempo ou mesmo vontade para adotar um bicho. Foi quando meu irmão voltou para Porto Alegre com o Cachorro. Um vira-lata da mais pura linhagem que andava pela praia do Santinho fazendo zoeira com sua turma de bad dogs, até que entrou na casa do Duda e nunca mais saiu de lá. Hoje os dois são o que se costumava chamar de a corda e a caçamba, onde um vai, o outro está junto.

O Cachorro tem um olhar tão cheio de amor que é impossível sentir por ele menos do que isso, amor. Seu programa favorito, além de trotear muitos e muitos quilômetros duas vezes por dia, é sentar de frente para os humanos, olhos nos olhos enquanto a gente faz qualquer coisa, trabalha, cozinha, limpa a casa, vê o jogo do Grêmio. Nem na estreia do Roger (glória aos deuses do futebol por ele ter voltado para casa) o Cachorro se dignou a olhar para a TV, preferiu continuar encarando sua família. Meu irmão diz que ele faz isso porque, catarinense que é, torce para o Avaí.

Foi com essa overdose de amor canino que li, para variar, uma boa notícia no jornal. A chefia de uma unidade operacional dos Correios de Porto Alegre queria expulsar as cadelas Pretinha e Branquinha, que viviam há mais de 10 anos por lá, cuidadas por funcionários e clientes. Pois dois dos funcionários ingressaram com uma ação popular na Justiça Federal para mantê-las ali. Conseguiram, desde então, duas decisões provisórias favoráveis (1º e 2º instâncias) e, no último dia 16, uma decisão de mérito.

A juíza da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, Clarides Rahmeier, deu ganho de causa aos funcionários e determinou que as cadelinhas continuem onde estão. Depois de tantos anos convivendo naquela unidade dos Correios, disse a magistrada, Pretinha e Branquinha criaram laços efetivos com os funcionários, e uma mudança poderia ser prejudicial para as duas. Um dos argumentos da ação é o de que as cadelinhas são comunitárias, e a lei estadual n° 15.254/19 dispõe, justamente, sobre o animal comunitário - definido no texto como "aquele que estabelece com a comunidade em que vive laços de dependência e de manutenção". Nos autos do processo, médicos veterinários indicaram que a remoção das duas, ambas com idade avançada, geraria estresse e sofrimento.

Ainda cabe recurso. Enquanto isso, os funcionários que, durante todos esses anos, se responsabilizaram pela alimentação e a saúde de Pretinha e Branquinha, continuarão sendo recebidos com festa pelas duas na chegada ao trabalho.

O amor nos olhos delas, com certeza, vale a luta.

CLAUDIA TAJES 


26 DE FEVEREIRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

VACINA CONTRA A ÔMICRON

O mundo precisa de uma vacina contra a Ômicron? Essa é a pergunta feita por Emily Waltz no último número da revista Nature.

Assim que a variante Ômicron foi detectada, em novembro de 2021, a indústria farmacêutica deu início às pesquisas para desenvolver uma preparação vacinal capaz de estimular a formação de anticorpos especificamente dirigidos contra ela.

Recentemente, as companhias Pfizer e Moderna anunciaram os primeiros estudos clínicos, nos quais serão testadas as doses que ofereçam proteção contra essa variante altamente contagiosa.

Mas, "se essa vacinação será necessária, ou mesmo prática, não está claro, de acordo com autoridades de saúde pública e especialistas ouvidos pela Nature", diz Waltz.

O principal argumento dos que são contrários a essa ideia é o de que os casos já terão chegado ao pico e caído antes que a vacina consiga passar pelos testes clínicos fase 3 e receber a aprovação das agências reguladoras. Qual a utilidade de uma vacina preparada especificamente para imunizar contra uma variante que já tivesse infectado a maioria das pessoas que entraram em contato com ela?

Além do mais, embora as vacinas existentes hoje não evitem que os imunizados adquiram a infecção pela Ômicron, protegem contra as formas mais graves e fatais da doença. Seria preciso criar outra vacina?

De fato, cerca de 80% dos pacientes internados em nossas UTIs não foram vacinados ou receberam apenas uma dose. Em Nova York, os que receberam as três doses da Moderna ou Pfizer correm risco de morte 78 vezes menor do que os não vacinados. Lá, o risco de uma pessoa que tomou as três doses vir a morrer é de um em cada milhão. A nova vacina apresentaria resultados superiores?

Kanta Subbarao, que coordena o Technical Advisory Group on Covid-19 Vaccine Composition da Organização Mundial da Saúde (OMS), criado em setembro de 2021, argumenta: "Nós temos muita confiança nas vacinas atuais, mas precisamos discutir se será necessário atualizarmos as composições vacinais, de acordo com as variantes-alvo".

O sistema de atualização periódica de vacinas já existe para a influenza (gripe): mais de cem laboratórios e cinco centros de vigilância epidemiológica ao redor do mundo testam milhares de amostras do vírus, em colaboração com um grupo da OMS, que se reúne duas vezes por ano para recomendar a composição da vacina que será empregada na estação seguinte.

Até agora, não havia estrutura semelhante para tratar da composição vacinal contra a covid As vacinas atuais foram desenvolvidas contra a cepa original do Sars-CoV-2 surgida em Wuhan, na China. No entanto, essa cepa é biologicamente distinta da Ômicron, que contém pelo menos 30 mutações em seu genoma, responsáveis por transmiti-la com tanta facilidade, que se tornou responsável por mais de 90% dos casos em boa parte dos países.

O fato de que muitos pacientes ainda sejam hospitalizados e o número de mortes ainda ser alto em muitos lugares, é lembrado pelos defensores de novas composições nas futuras preparações vacinais. O argumento é que fica impossível estimar o número de pessoas ainda vulneráveis à Ômicron por causa da idade ou por algum tipo de deficiência imunológica.

Como a produção de anticorpos cai lentamente após a terceira dose, especialistas discutem se estaria indicada a aplicação de uma quarta dose de uma das vacinas atuais, ou o ideal seria empregar uma preparação especificamente dirigida contra a Ômicron.

Instituições como o NIAID e o CEPI destinaram cerca de US$ 250 milhões para financiar pesquisas destinadas a chegar a uma vacina pan coronavírus, isto é, capaz de imunizar contra a maioria dos tipos dessa família.

Até lá, os esforços devem ser concentrados na obtenção de uma vacina atualizada para as variantes que estiverem circulando, sem passar a ideia de que as atuais estão defasadas, o que seria desastroso.

Enquanto cientistas talentosos, epidemiologistas, infectologistas e os melhores especialistas em saúde pública do mundo inteiro se reúnem para discutir a elaboração de vacinas cada vez mais eficazes que já salvaram, e continuarão salvando, milhões de vidas, hordas de ignorantes e de mal-intencionados se empenham em desacreditar a vacinação e em convencer os incautos a segui-los.

DRAUZIO VARELLA

26 DE FEVEREIRO DE 2022
MONJA COEN

SÁBADO SEM CARNAVAL

Seria hoje um dia de cantos e danças, festas, baladas, namoros, ir e vir, ficar, brigar, derrapar, beber e brincar. Isso tudo na época em que o Carnaval de rua era permitido, na época em que o Carnaval era esperado, quer fosse para fazer barulho, quer fosse para descansar.

Mas a pandemia sinistra chegou e infectou corpos e mentes. A alegria ficou proibida. O medo foi instalado. O Carnaval, adiado.

Há muitos anos, escolho os finais de semana alongados do Carnaval para ficar em silêncio e meditar. Procurar dentro e fora a capacidade de entender a mim e ao mundo, reconhecer paisagens e personagens e mergulhar no mais íntimo encontro com o todo. Onde nada falta e nada excede há uma doce ternura macia e suave a nos esperar. Todos podemos ir a esse não-lugar.

Um retiro Zen significa penetrar o coração, penetrar a essência, penetrar a mente. Perceber a equidade - diferente de igualdade. Não somos iguais, mas todos temos o mesmo valor, a mesma importância, somos a mesma vida e merecemos o mesmo respeito e a mesma dignidade.

Começamos a nos sentar e a silenciar na sexta-feira e nos levantamos e conversamos novamente a partir da Quarta-Feira de Cinzas. Pois, embora não haja neste ano, oficialmente, a festança do Carnaval, haverá a quarta-feira.

Cinzenta quarta, depois de apagada a fogueira, só restaria a cinza fria. A cinza não volta a ser lenha diretamente, mas indiretamente tudo está se transformando. Sem voltar para trás, sem retorno, mas num ir eterno, sem nunca chegar, sem ponto final, sem início e sem fim.

A cinza se espalha sobre a terra e ajuda a fertilidade do solo - como as lavas dos vulcões. Da pequenina semente aí cultivada, poderá surgir uma árvore grande e forte, da qual, nas tempestades, alguns galhos se partam e caiam à sua volta.

Alguém encontra o galho partido e coloca com outros galhos, como fazem os povos indígenas. Com eles acendem uma fogueira para aquecer os corpos, para cozinhar os alimentos, para cantar e dançar, beber, comer, fumar, rir e brincar, chorar, talvez, relembrar e orar, agradecer e compartilhar o fogo sagrado.

A cinza da quarta-feira virou festa, virou vida. Ficou quente lá adiante, na nova árvore nascida. Não voltou, mas foi adiante. Sempre indo, indo e quando chega percebe que continua sempre indo, numa jornada heroica. Como a Terra a girar com todo o sistema solar, numa elipse ascendente.

A palavra dita, o gesto feito e a atitude tomada nunca poderão ser apagados, excluídos, cancelados, exterminados. Deixam rastros e pegadas, cicatrizes, marcas.

O arrependimento, o reconhecimento de nossas falhas, faltas e erros, minimiza as consequências, mas nunca apaga a ação, a palavra e o pensamento. Podemos escolher como pensar? Definitivamente sim.

Não desenvolva pensamentos perversos, nefastos, de aniquilação e vingança. Pense o bem, veja qualidades mesmo em quem aparentemente não as tem. Não é fingir nem mentir. É perceber que luz e sombra são um par, como o pé da frente e o pé de trás ao andar.

Além do apego e da aversão está a pessoa sábia, capaz de ler os sinais do Caminho. Leia a realidade. Veja o que é. Nada se esconde. Tudo transparentemente se revela se você entender os sinais dos tempos e temporais, dos dias de sol e das noites de luar.

Aprecie sua vida. Reclame menos e faça mais. Ainda dá tempo. Desperte e se junte à luz deste amanhecer sagrado. É sábado - sem Carnaval - um bom dia para orar, meditar, agradecer e celebrar a vida.

Mãos em prece

MONJA COEN

26 DE FEVEREIRO DE 2022
.J. CAMARGO

A PRETENSA HIERARQUIA SOCIAL

O funcionário da segurança do banco só seguia o protocolo que impunha um ritual de senha e contrassenha para quem acessasse a área dos cofres privativos. Quando ouvimos o clássico "O senhor tem ideia de com quem está falando?", percebemos logo, pelo tom de voz, que tínhamos sido agraciados pela companhia de um extraclasse.

Só precisávamos descobrir se essa credencial era real ou uma fantasia do credenciado, porque a distância entre o que, de fato, somos e como gostaríamos que nos vissem pode ser quilométrica.

Os humildes, ajustados aos critérios que definem humildade, se satisfarão com a identidade básica, essa que consta nos documentos oficiais.

No outro extremo, habitam os deslumbrados com alguma fama aguda e fortuita, e que com graus variáveis de narcisismo tratam os circundantes como lacaios, uns coitados que nascem com a função exclusiva de reverenciá-los.

Esses deslumbrados se negam a acreditar que alguém possa não reconhecê-los e não têm a menor ideia do quão provável é que, no futuro, se tornem sócios honorários do clube dos ignorados crônicos. E com louvor.

Quando avançamos para o valor que se dá a quem se tornou, de alguma forma, reconhecido, os comportamentos também podem divergir substancialmente. Entre os famosos, se reconhece as pessoas do bem, que circulam entre seus pares com a serenidade madura de quem não precisa provar nada porque está em paz consigo mesmo, e os mal afamados que, se não chamassem tanto atenção, usariam sempre um capacete, porque não conseguem andar na rua sem serem importunados e, naturalmente, odeiam voos de carreira. Esses estão condenados de antemão à solidão na velhice, porque a biografia constrangerá os parentes, e os cúmplices que durante um longo tempo foram confundidos com amigos vão abandoná-los quando não houver mais o que cumpliciar.

Entre os humildes, há um subgrupo dos que são tratados como invisíveis, e muita gente, mais apressada em aparentar do que interessada em ser, não se envergonha em assumir que cuidar dessa turma é desperdiçar o escasso tempo da construção da sua própria notoriedade.

Depois que aprendi que dar visibilidade aos humildes é escancarar o filão da gratidão na sua forma mais pura, passei a insistir com meus alunos para que deem o máximo valor à identidade, primeiro degrau da visibilidade.

E o teste proposto é simples: quando um paciente, com a subserviência inconfundível dos desamparados, sentar-se à sua frente, com olho no olho, sem olhar na ficha do ambulatório, perguntem: "O que posso fazer para ajudar o nosso Jose Inácio Silveira e Silva da Silva?". Quanto maior o nome, maior o afago na autoestima atrofiada.

O brilho na córnea e aquele meio sorriso que se completaria, não fosse a timidez, são a senha de acesso ao mundo ideal que ele nunca imaginou merecer.

Daí por diante, teremos dois seres humanos ao alcance mútuo de um simples toque de mão. E iguais, que é como melhor nos sentimos.

Um, feliz por ter descoberto o prazer de ajudar, e o outro, encantado com a diferença que faz ser tratado como gente.

J.J. CAMARGO

26 DE FEVEREIRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Existiria uma fórmula para escrever melhor? A pergunta foi feita por um adolescente no meu correio eletrônico. Eu estava de férias e, em meio a uma viagem de trem, tive tempo de refletir. Não sei se serve para mais gente, mas resumirei o que enviei a ele.

Como professor, percebia, no Ensino Médio, que os textos ficavam piores quando os alunos achavam que era necessária uma impostação, uma artificialidade, um distanciamento entre o mundo do jovem e o que ele escrevia. O adolescente Rimbaud tinha uma capacidade linguística além do normal, porém, seu talento era não seguir o modelo formal, todavia o que lhe inspirava o coração e o gênio. Autenticidade é o primeiro ponto para escrever. Pretensão mata.

Há questões práticas. Ao escrever sobre um tema no qual você identifica palavras que podem se repetir, copie de um dicionário de sinônimos (ou da internet) um vocabulário mais rico. O rapaz escreveu sobre água, logo, a palavra ocorria muito. Sugeri substituir por palavras ou expressões próximas como hídrica, pluvioso, temporal, aguaceiro, garoa, borrisco, fluido, líquido, etc. Em todo texto existem conceitos recorrentes. Achar sinônimos para fazer gradações e impedir a repetição: um bom detalhe técnico.

Vamos ao tema. Quer falar da água? Pesquise antes de escrever. Duas pistas? No livro do Gênesis, primeiro há luz, depois, no segundo dia, Deus divide as águas. Luz e em seguida água, um poético pontapé inicial. Sintomaticamente, quase na mesma época em que o Gênesis estava sendo escrito, o filósofo Tales de Mileto dizia que a água era a matéria essencial do universo. Aqui, teríamos outro gancho... O sociólogo Bauman fala em mundo líquido para nos descrever... Tudo pode ser uma ideia para um texto. Pensar no que pretende dizer, imaginar o argumento central, buscar informações e fazer; são alguns ingredientes: o cozinheiro continua sendo você.

O óbvio canta dos rochedos como sereia tentadora. "Água é vida, o planeta precisa pensar a questão da água, etc., etc." Tudo corretíssimo e muito conhecido. Pense que tudo contém o seu contrário e a água simboliza vida, limpeza e renovação. Igualmente, ela é dilúvio, morte e punição do mundo. Ler algo novo sobre o que desejamos, ver um documentário, deixar-se impressionar por um quadro ou uma música: faz parte de "laboratório" do escritor. O que ainda não foi dito e que eu possa tentar captar em texto?

Originalidade é um caminho perigoso e bom.

Deve-se cuidar dos clichês, evitar ideias prontas, afastar-se de preconceitos e do senso comum. Importante traçar um roteiro de ideias, buscar uma citação boa, digerir o tema mentalmente e, por fim, dar forma à escrita.

Escrever é árduo, revisar o que se fez é ainda mais duro. Cortar, eliminar o que parece excessivo, diminuir e, assim, treinar. Escrita é treino.

Um bom escritor é um bom leitor? Os especialistas se dividem. Parece que ler muito me torna um... leitor experiente. Claro, analisar textos e ter contato com ideias de outros criadores é fundamental. Cada um deve encontrar sua voz. Sim, um grande autor pode deixar uma longa marca sobre mim. Gênios da escrita confessam sua "angústia da influência". Fundamental encontrar a voz própria, o estilema, a marca de cada um, a assinatura da escrita é algo que se elabora com mais tempo.

E a gramática? Aprendermos a vida toda. A norma culta estará muito bem resolvida quando eu tiver consciência dela para seguir sua via asfaltada ou para burlar a arquitetura clássica. Escrever bem é diferente de prestar um concurso: você não precisa viver só da forma ou da forma (nesse momento lamento a falta de acento em fôrma para distinguir, entre a vogal aberta ou fechada, duas ideias complementares).

Um grande dicionarista, Antonio Houaiss, homem de fala e escrita lapidares, disse-me que tinha encontrado duas ou três pessoas de gramática perfeita ao longo da vida. Sempre aprendemos.

Recomendo conhecer o máximo possível para ter liberdade. Como no piano, as escalas e exercícios não são um fim. A ossatura gramatical permite uma consciência que confere liberdade. Sempre haverá pianistas, gramáticos e elaboradores de concursos que acham que a norma é o objetivo em si. Limitar a escrita à regra é supor que o objetivo de Castro Alves, ao fazer seu Navio Negreiro, era exemplificar a terceira geração poética romântica no Brasil. A gramática é um esquema, por vezes útil e, em outros casos, fossilizado. A escrita é vida pulsante e instável. Nunca confunda um bom livro de receitas com um bolo real fumegante.

Não sou professor de texto. Emito opinião pura. Se tivesse de resumir, diria: a) seja natural; b) ache sua voz; c) domine a gramática normativa para não ficar endurecido por ela; d) leia; e) treine. Tudo isso, levado adiante, pode ajudá-lo a escrever muito melhor, com mais vida e mais qualidade.

"Ah, mas eu queria escrever como Machado de Assis ou como Clarice Lispector." Bem... Nesse caso, o problema é outro. Sabe o que esses dois tinham em comum? Nunca consultaram Leandro Karnal para serem gênios. Felizmente, para eles e para a literatura brasileira. Treino melhora todo mundo. Os gênios? Ruy Barbosa disse que eram meteoros raros, nem sempre benéficos. Aliás, o advogado baiano disse isso a jovens do Colégio Anchieta, que desejavam escrever melhor... Conservem a esperança.

LEANDRO KARNAL

26 DE FEVEREIRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

LIBERDADE

A palavra liberdade é uma das mais maltratadas por discursos e ideologias modernas. Ainda pior é o caso da própria liberdade, pois sem uma correta definição é difícil defender e conquistar este grau maior da condição social. É preciso remontarmos ao fundamento da palavra e das tradições que a moldaram para a partir da origem atualizar-se o conhecimento, pois muitas marcas genéticas preservam-se e esclarecem significados. Mas você pode começar perguntando-se, para logo dialogarmos com dados da história: o que é liberdade?

No mundo greco-romano, o sentido de liberdade estava vinculado ao seu oposto, a escravidão: ser livre era não ser escravo; é este o sentido essencial de liberdade e dele decorrem todos os demais. A sociedade coisificava seres humanos cativos e diante deles uma classe superior, com narcisismo egoísta, afirmava sua liberdade e sua autoimagem de superioridade. 

Foram mais de mil anos de escravismo, e essa base jurídica e econômica tornou-se poderosa matriz de vocabulários e ideologias, tendo como base o contraste entre escravidão e liberdade. As mesmas condições repetem-se nas sociedades escravistas do Novo Mundo entre os séculos XVI e XIX, como apontou Moses Finley no livro Escravidão Antiga e Ideologia Moderna (original de 1980, traduzido em 1991). Após a abolição da escravidão, a tradição escravista perdurou sob a forma de preconceitos e de relações de exploração do trabalho; a desigualdade social agravou-se tanto que se tornou um quadro de iniquidades estruturais, em que parte da população nasce condenada a viver em condições comparáveis às dos escravos antigos, senão piores. 

Conclui-se que em nosso mundo a população cativa é formada por miseráveis e que a defesa da liberdade começa e se realiza como combate à miséria. E se entendermos o cativeiro em suas dimensões culturais, veremos que a luta pela liberdade é a luta pela educação e pela emancipação moral, pelo combate à ignorância e às farsas que mantêm aviltada tanta gente em nosso país.

Nesse ponto aparecem os abusos da palavra liberdade, a começar pela usurpação liberal, que finge defender a liberdade quando de fato quer a autonomia desregulamentada do capital e sua hegemonia sobre as relações sociais. Na ideologia liberal, há não apenas a obsessão hipócrita contra o Estado, o ataque à esfera pública e a ganância privatista, mas também o cruel desdém com a iniquidade e o absoluto descaso com o combate pela liberdade dos que mais dela precisam, os miseráveis. Aliás, você já viu algum liberal ou seus fóruns e institutos combater o que persiste de trabalho escravo? 

Outro uso abusivo da palavra é supor que liberdade é dom do indivíduo alheio a normas - faz o que quer, libido livre. Assim chega-se ao absurdo de supor que liberdade é ter dinheiro e comprar armas ou contrariar campanhas de saúde pública. O pior dos horrores, porém, é vermos a palavra liberdade na boca suja de um tirano que só quer ver-se livre da prisão que merece, com sua prole delinquente. Livremo-nos desta chaga, e lutemos, sempre, por liberdade sem escravos, e pela felicidade emancipada.

FRANCISCO MARSHALL

26 DE FEVEREIRO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

NOSSA CULPA

Sobram adjetivos para designar o horror ocorrido em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro. Tudo vai além de um desastre e, por sorte, ninguém ousou chamar erroneamente de "acidente", como anos atrás em Brumadinho (MG). Em verdade, em ambos casos, houve um crime perpetrado por nosso desdém que se transforma em agressão direta à natureza.

As cenas mostradas agora pela TV percorreram o mundo inteiro, num cataclismo que parecia o apocalipse bíblico. A água, bem essencial à vida do planeta, transformada em mão criminosa que destrói, afoga ou aprisiona na lama, matando tudo o que encontre à frente. Não repetirei o que todos viram, pois o essencial é ir às causas e às origens do horror.

E aí deparamos com nossa culpa nesse absurdo desprezo pela natureza, como se ela fosse uma intrusa incômoda e não o berço e alimento da vida. O horror das chuvas de Petrópolis é uma das consequências das mudanças climáticas, tal qual a estiagem que nos afeta no sul do Brasil. Simulamos, porém, que não sabemos disso, num faz de conta infantil, e continuamos a poluir tudo ao nosso redor. Ignoramos as advertências da ciência e os alertas da ONU e do papa Francisco sobre a preservação do meio ambiente.

A situação agravou-se e os riscos cresceram no atual governo. Na área federal, Bolsonaro abriu a floresta amazônica ao desmatamento do agronegócio, desconhecendo que são terras impróprias à lavoura e à pecuária que, em dois ou três anos, estarão estéreis. Aqui, o governador Eduardo Leite (com apoio do Legislativo) mudou o exemplar Código Ambiental do Estado para facilitar agredir a natureza.

Nosso desdém vira culpa direta e, assim, nos transformamos em assassinos da vida no planeta. Em termos teológicos, matamos a obra divina da Criação e jogamos ao lixo a ciência e a própria evolução humana.

Há também outras culpas, menores mas fundamentais, como acreditar nas tais "pesquisas" de intenção de voto para presidente da República, feitas por telefone e ouvindo brevemente 2 mil pessoas como se fossem milhões de eleitores.

Essas "pesquisas" nada pesquisam, apenas induzem a decidir sobre os que apareçam na ponta, em primeiro e segundo lugares, sem mostrar jamais o que eles são ou o que fizeram, nem o que propõem. Capengas, são apresentadas como "verdades", mas são uma ficção que transforma o eleitor em um boneco.

Por que não pesquisamos o histórico e as propostas dos candidatos e não só números a esmo?

FLÁVIO TAVARES

26 DE FEVEREIRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

ESTILHAÇOS ECONÔMICOS

A perda de vidas e outros dramas humanitários são sempre os aspectos que mais devem ser lamentados em uma guerra. Mas o conflito na Ucrânia, a partir da condenável invasão russa, traz preocupações adicionais em relação à economia. Principalmente devido ao perfil dos países diretamente envolvidos na contenda. A Rússia é um dos principais produtores do mundo de petróleo, gás, fertilizantes e tem grande peso em alguns grãos. A Ucrânia, conhecida pela fecundidade ímpar de seu solo, também é relevante exportadora de trigo e milho. Estas particularidades são motivo de sobra para o Brasil e o Rio Grande do Sul temerem especialmente os reflexos da conflagração armada.

As incertezas em relação à continuidade das hostilidades, além das sanções impostas à Rússia, trazem insegurança sobre o fluxo de fornecimento dessas matérias-primas. O resultado óbvio, como já se viu, é a disparada dos preços pela imprevisibilidade em relação à normalização da corrente de comércio. É inevitável um impacto inflacionário global e também no crescimento do mundo, que recém tenta se reerguer dos prejuízos causados pela pandemia.

A disparada do petróleo e do gás, em alta mesmo antes do início do conflito, tende a pressionar ainda mais os preços no Brasil e disseminar malefícios. Combustíveis possivelmente ficarão mais caros nas bombas. O gás, da mesma forma, é um importante insumo industrial, utilizado em diversos outros fins, como a geração de energia elétrica. O impacto da guerra pode ser ainda mais nefasto se forem considerados os reflexos no câmbio.

A agricultura brasileira e gaúcha, é necessário ressaltar, depende basicamente de fertilizantes importados, e a Rússia é a grande fornecedora. A escalada das cotações, que já ocorria, acelerou. Péssimo especialmente para os produtores gaúchos, que verão o custo de produção ter alta significativa, ao mesmo tempo em que colhem uma safra frustrada devido à estiagem. O milho inflacionado reverbera na cadeia de carnes, uma vez que o grão é o principal ingrediente das rações. Trigo valorizado significa massas e pães mais caros.

É imprudente prever os próximos dias pela alta volatilidade dos acontecimentos. Os desdobramentos do conflito são imponderáveis. Mas o cenário que se desenha, por enquanto, traz justificada apreensão. Os preços mais altos de combustíveis, de grãos e derivados e de carnes vão afetar todo o mundo. O Brasil, no entanto, enfrenta dias de economia desaquecida, mercado de trabalho fraco e renda em queda. Isso significa que, na média, cada brasileiro está ganhando menos, enquanto o custo de vida sobe. A inflação persistente, fatalmente, levará o Banco Central a pelo menos manter o juro em níveis mais altos por um período maior do que projetava há poucas semanas. Encarece o crédito e afeta a economia.

Todo este horizonte desafiador torna ainda mais improrrogável a busca do país por atacar as suas fragilidades internas para se defender dos estilhaços econômicos da guerra. Sinalizar responsabilidade fiscal e comprometimento com reformas - mesmo difíceis de andar em ano eleitoral - e evitar turbulências institucionais e políticas são um bom começo para ajudar a estabilizar indicadores macroeconômicos. A sensatez se torna um imperativo, enquanto se aguarda que as tensões no Leste Europeu possam refluir.


Tempos soturnos

Num soturno dia do outono russo de 1991, nos estertores do soturno império soviético, fui até a estação de Kiesvki, em Moscou, e tomei um trem um tanto decadente, como todo transporte na Rússia de então, para a capital da Ucrânia. O estrago econômico do regime comunista era tão profundo que uma cabine inteira de primeira classe custava US$ 3 - metade do salário de um professor universitário. Comprei uma só para mim e amanheci em Kiev para, como repórter de Zero Hora e da Rádio Gaúcha, testemunhar o surgimento de um país.

Dali a uns dias, em 1º de dezembro de 1991, nada menos do que 92,3% dos ucranianos viriam a referendar a declaração de independência que deu constituição e forma ao que já era há séculos uma nação com identidade, cultura, história e religião próprias. Naqueles dias em Kiev, entrevistei noivos prestes a casar, imigrantes de outras repúblicas, comunistas pretensamente arrependidos, estudantes e políticos que moldavam a nova Ucrânia. Entrei em casas de família e compartilhei pratos típicos, como a sopa borscht e panquecas de queijo precedidas de doses de vodca que pareciam fazer aumentar a euforia com um futuro de liberdade e prosperidade.

Apesar das manchas urbanas com a soturna arquitetura soviética, Kiev já era uma cidade resplandecente, pontilhada de cúpulas douradas, mosteiros coloridos e monumentos a seu passado glorioso e sofrido. Mais de duas décadas depois, no verão de 2012, quando voltei a uma metrópole moderna, assisti aos primeiros acordes da Revolução da Praça Maidan que expulsaria o governo pró-russo dali a 18 meses. Em um evento com o presidente Viktor Yaunukóvytch presente, vi agentes infiltrados na plateia agirem rapidamente para deter manifestantes que levantavam cartazes pedindo liberdade de imprensa. Era a evidência de que a Ucrânia deixara o império russo para trás, mas o longo braço do Kremlin não a deixaria verdadeiramente livre, como foi escancarado na madrugada deste 24 de fevereiro de 2022.

Ao contrário do que a máquina de propaganda do Kremlin apregoa, a Ucrânia é um país e uma nação tragicamente forjados no sangue derramado contra inimigos externos e internos, como na Segunda Guerra, quando insurgentes combateram tanto nazistas como comunistas. Dez anos antes, no início da década de 30, Stalin havia deixado mais de 4 milhões de ucranianos morrerem de fome. Depois, na brutal ocupação nazista, 28 mil vilas foram destruídas e mais de 5 milhões foram mortos, entre os quais 1,5 milhão de judeus. Parte da história da tibieza humana, não faltaram também colaboracionistas para agir em ambos os lados.

O soturno Putin agora apenas dá sequência às ambições de seus antecessores no Kremlin e às suas próprias, e é provável que, quando os combates cessarem, não venham a escassear governantes fantoches que restabeleçam o domínio do império. Uma Ucrânia livre não pode dar ideias à Rússia.

MARCELO RECH 

26 DE FEVEREIRO DE 2022
J.R.GUZZO

Búzios dos bancos preveem o desastre

Um dos grandes bancos brasileiros chegou à conclusão, já em fevereiro, de que o Brasil vai fechar este ano com recessão - mais exatamente, a economia vai recuar 0,5% até o mês de dezembro. Como é que eles sabem isso, se o ano nem começou? É o tipo de pergunta que não adianta nada fazer, porque nunca dão uma resposta coerente para ela; são previsões da ciência econômica, diriam os autores da profecia, coisa que é privativa dos economistas de grandes bancos e a respeito da qual não cabe ao leigo se manifestar.

Tudo bem, mas o que realmente interessa saber, nessa espécie de adivinhações, é o seguinte: elas são feitas sem nenhuma responsabilidade, sem nenhum compromisso e, sobretudo, sem nenhuma consequência para quem as coloca em circulação junto ao público pagante. Têm de ser recebidas, assim, com o grau de confiança que se reserva para os búzios do Pai João e as cartas de tarô da Mãe Joana.

É simples: se der tudo errado, e a realidade mostrar-se o contrário da previsão, não acontece nada para o economista-previsor. Não perde o emprego. Não é nem chamado para uma pequena conversa na sala do chefe. Na verdade, ninguém vai se lembrar em dezembro o que ele disse em fevereiro - com um pouco de jeito, o cidadão pode até ir dizendo, aqui e ali, que previu outra coisa, ou mesmo o contrário. Em seguida, parte para a próxima previsão.

Vinda de onde vem, a estimativa de 0,5% de recessão não deveria, pensando um pouco, surpreender ninguém. Curiosamente, no Brasil de hoje, temos bancos de esquerda - e faz parte de seu compromisso social, sobretudo num ano de eleições, dizer que a economia nacional está em ruínas e dar a entender que o "campo progressista" vai devolver ao sistema econômico a felicidade que ele perdeu com o governo de direita. São bancos assim que fazem previsões como essa. Ou, então, pagam campanhas de publicidade contra a pecuária brasileira. Ou têm, na voz de gente que está em suas vizinhanças, candidatos à Presidência da República.

A saída possível, para o cidadão comum, é olhar para a realidade do dia a dia e acreditar naquilo que vê, e não naquilo que lhe dizem os economistas dos grandes bancos. Pode anotar, por exemplo, que justamente em janeiro de 2022, junto com a previsão de recessão, o investimento estrangeiro direto no Brasil foi de US$ 5 bilhões, o maior desde 2018; as contas mostram que podem ser US$ 10 bilhões em fevereiro. Se o país está morto, por que gente de fora está investindo tanto dinheiro aqui? Não dá para entender - mas leigo não tem mesmo que entender essas coisas, certo? Esperemos, então, pelos fatos.

J.R. GUZZO

26 DE FEVEREIRO DE 2022
NFORME ESPECIAL

O caçador de cogumelos

Quando o biólogo Jeferson Müller Timm começou a estudar cogumelos, em 2005, na Faculdade de Biologia da Feevale, em Novo Hamburgo, aquele ramo de pesquisas era alvo de preconceito fora do ambiente acadêmico. Ainda menino, Timm ouvia os mais velhos definirem os cogumelos como "chapéus de cobra". "Melhor nem chegar perto", repetiam, receosos.

- Ou era veneno, ou era droga. E sempre vinha alguém com alguma piada quando comecei minhas pesquisas. Ainda estamos tentando mudar isso, mas o cenário já evoluiu bastante - conta o especialista, que tem 40 anos e também atua como técnico na área de gestão ambiental na prefeitura de Campo Bom.

A mudança andou a passos rápidos, de braços dados com chefs de cozinha brasileiros, que passaram a utilizar cada vez mais o ingrediente em seus pratos - dos suculentos porcini, espalhados pelas florestas de pinus na Serra gaúcha, aos champignon e shimeji silvestres.

Nessa caminhada para difundir conhecimento e desmistificar o mundo dos fungos selvagens, Timm passou a liderar "caçadas de cogumelos" no interior do RS. As expedições - já são mais de 20 - envolvem coletas na mata e aliam informação, diversão e boa gastronomia. Atraem a curiosidade de adultos e crianças.

Em 2018, com farto material e conhecimento acumulado, o biólogo fez um financiamento coletivo para produzir o livro Primavera Fungi - Guia de Fungos do Sul do Brasil, com 154 espécies catalogadas. Agora, Timm acaba de autografar, no Parador Hampel, em São Francisco de Paula, a segunda edição da obra (foto ao lado), revisada e ampliada com 172 variedades (saiba mais em primaverafungi.com). O livro traz novas e saborosas receitas culinárias, valorizando os cogumelos locais, encontrados em terras gaúchas.

Há um documentário sobre esse tema na Netflix chamado Fungos Fantásticos, que vale a pena assistir. Dirigido por Louie Schwartzberg, o filme mergulha no mundo misterioso dos fungos e mostra a capacidade regenerativa dos cogumelos (eles ajudam até mesmo a limpar derramamentos de óleo) e as redes invisíveis formadas sob a terra, conectando as árvores.

Quem tentar interferir, ou ainda mais, criar ameaças para o nosso país e nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências nunca antes experimentadas na História.

VLADIMIR PUTIN

Presidente da Rússia, que ao invadir a Ucrânia ameaçou outras nações que se intrometerem no conflito militar.

Nos deixaram sozinhos para defender nosso Estado.

VOLODIMIR ZELENSKY

Presidente da Ucrânia, lamentando a falta de engajamento militar de outros países.

Putin é o agressor. Putin escolheu essa guerra. E agora ele e seu país vão sofrer as consequências.

JOE BIDEN

Presidente dos EUA, sobre as sanções aplicadas ao líder russo e à própria Rússia.

São 69 universidades federais, todas elas pedindo recursos, e eu cada vez com o recurso menor.

MILTON RIBEIRO

Ministro da Educação, em passagem por Porto Alegre, sustentando não ter verbas para atender todas as instituições de ensino superior.

Eu não tenho medo nenhum de falar contra o Raul Seixas

ED MOTTA

Cantor, atacou o baiano considerado um dos pioneiros do rock brasileiro, morto em 1989.

Nós somos a próxima revolução.

FAFÁ DE BELÉM

Cantora e técnica do The Voice +, engajada contra o chamado etarismo, preconceito que afeta pessoas acima de determinada idade.

Vou até o fim do Mundial. Não tenho porque mentir aqui.

TITE

Técnico da Seleção, revelando que vai deixar o cargo após a Copa do Catar.

Com a chegada do Carnaval, nada mais justo do que destacar a obra de um artista que foi cantor, compositor e pintor do samba por excelência: Heitor dos Prazeres, um carioca cheio de ginga que viveu entre 1898 e 1966 e participou da fundação de grandes escolas cariocas, como Portela e Mangueira. Uma de suas pinturas - Dança, de 1965 - segue exposta no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que, aliás, merece uma visita. A obra foi doada à instituição por outra pintora, Iracema Arditi, e chama atenção pelas cores e pela alegria dos dançarinos.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 19 de fevereiro de 2022


19 DE FEVEREIRO DE 2022
CINEMA

EM BUSCA DO TESOURO PERDIDO

"Uncharted - Fora do Mapa" é uma nova investida de Hollywood para tentar emplacar uma adaptação dos games

Não tem jeito: toda adaptação do videogame para o cinema é vista com desconfiança. Na grande maioria das vezes em que Hollywood tentou adaptar algum título para as telonas, o resultado foi corrosivo. É só lembrar dos infames Super Mario Bros. (1993) e Street Fighter (1994). Alguns são sucessos comerciais, casos de Lara Croft: Tomb Raider (2001) e da franquia Resident Evil, mas que não escaparam das críticas negativas. Há poucas exceções, como o despojado Sonic: O Filme (2020) e Mortal Kombat (1995), cultuado pelo valor afetivo.

Uncharted: Fora do Mapa, que chegou aos cinemas na última quinta-feira (veja salas e horários no roteiro da página 6), é mais um filme que tenta quebrar a sina das adaptações de games. Para isso, aposta no carisma da dupla Tom Holland, o Homem-Aranha do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU), e Mark Wahlberg - astro de filmes como Boogie Nights (1997), Os Infiltrados (2006), O Vencedor (2011) e até o esquecido Max Payne (2008), que também é uma história saída dos videogames.

Com seu primeiro título lançado em 2007, Uncharted é uma franquia de sucesso das plataformas Playstation. Os jogos são protagonizados por Nathan "Nate" Drake, que, ao lado de seu mentor, Victor "Sully" Sullivan, viaja atrás de tesouros por lugares exóticos e inóspitos ao redor do mundo - sim, é um Indiana Jones millennial. A série de games sempre se caracterizou por dosar ações cinematográficas e enredo cativante (há diálogos engraçados, há reviravoltas no roteiro, há mistério), proporcionando uma experiência spielbergiana.

Aventura

Logo, Uncharted teria muito material para dar um salto dos games para os cinemas. Na adaptação, quem vive o protagonista, Nate, é Tom Holland, enquanto Wahlberg vive o carismático e escorregadio Sully. A trama de Fora do Mapa se passa antes dos acontecimentos dos jogos. No filme, o protagonista é apresentado como um jovem órfão, que não vê mais seu irmão, Sam, desde a pré-adolescência. Sorrateiro, ágil e bom de papo, ele trabalha como garçom e sobrevive com pequenos furtos.

Até que um dia o caçador de tesouros Sully cruza seu caminho. Ele é um sujeito engraçadinho e calculista. Um tiozão boa praça. Sully, que já trabalhou com o desaparecido irmão de Nate, recruta o jovem para buscar uma fortuna espanhola perdida da era das grandes navegações, que pertencia a Fernão de Magalhães e sua tripulação. Para Nate, também é uma oportunidade de tentar descobrir o paradeiro de Sam, que sumiu de vista buscando esse tesouro. Junta-se a eles a desconfiada caçadora de recompensas Chloe Frazer (Sophia Ali), que também quer o ouro.

Eles precisam lidar com Santiago Moncada (Antonio Banderas) - que acredita ser o herdeiro legítimo da fortuna - e sua implacável capanga, Braddock (Tati Gabrielle). O que se segue é uma aventura em diferentes partes do globo em que Nate e Sully tentam decifrar as pistas para encontrar o tesouro perdido. Porém, a jornada é traiçoeira e contém reviravoltas.

Dirigido por Ruben Fleischer (Venom e Zombieland), Fora do Mapa mantém sua trama sempre em movimento. Em seu punhado de cenas de ação, há bons momentos - em especial, a que referencia Uncharted 3: Drake?s Deception, com Nate caindo de um avião e se segurando nas cargas que também estão em queda -, assim como há sequências em que o espectador precisa abraçar a suspensão da realidade, das leis da física e da verossimilhança. Nesse caso, o clímax envolvendo uma perseguição com helicópteros carregando navios do século 16 é o que podemos classificar como "puxado".

Carisma

Fora do Mapa não chega a fascinar como um filme de sua maior inspiração, Indiana Jones, nem trazer aquela sensação de ansiedade durante as perseguições. É um trabalho dolorosamente genérico. Os cenários contêm tanta computação gráfica que frustram a experiência. Há bastante imaginação em muitas cenas de ação, mas talvez fossem mais emocionantes se tivessem melhores efeitos visuais ou, quem sabe, lúdicos.

Tom Holland tem muito de Peter Parker em seu Nate, com um tanto de ingenuidade e de protagonista jovem descobrindo seus dons, enquanto nos games o personagem se destaca pelo seu cinismo e humor ácido. No quesito personalidades, é como comparar Dr. House com o Pequeno Príncipe. O trabalho de Holland não é dos piores, mas parece que ele leu o roteiro errado e está interpretando o Homem-Aranha novamente. Já Wahlberg é eficiente como Sully.

De qualquer maneira, o carisma da dupla principal segura Fora do Mapa e entrega um filme ok. Nada revolucionário, nada fora da curva, apenas uma diversão fugaz. Não chega a ser uma catástrofe como outras adaptações dos games, mas também não foi desta vez que um longa vindo dos consoles se sobressaiu. Quem sabe na próxima, já que Fora do Mapa é cumpridor o suficiente a ponto de pensarem em uma sequência (assista aos pós-créditos).

 WILLIAM MANSQUE


19 DE FEVEREIRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Não existe história muda

A verdade sempre aparece. Poderia resumir com essa frase o novo filme de Pedro Almodóvar, o essencial Mães Paralelas, ainda que o verbo resumir não combine com a abrangência cinematográfica desse cineasta espanhol que tanto perturba quanto encanta. Mais uma vez, Almodóvar traz à tela uma sequência de emoções que gritam como os tons de verde, vermelho e amarelo que vestem suas atrizes e cenários. Porém, sem melodrama ou subterfúgios: ele simplesmente usa o amor e a ética para despir nossa pele e revelar o esqueleto que nos compõe.

O filme apresenta Janis, 40 anos, e Ana, 17, duas grávidas que se conhecem ao compartilharem o mesmo quarto na maternidade. Ambas solteiras, estão prestes a parir suas primeiras filhas. Mas esse encontro casual vai parir também um segredo que precisará ser desenterrado para que a vida se mantenha digna.

Uma história paralela complementa o drama particular das duas mulheres. Janis, vivida bravamente por Penélope Cruz, é uma fotógrafa que pede ajuda a um arqueólogo para localizar os restos mortais de seu bisavô e de outros militantes políticos que foram assassinados durante o franquismo e jogados em valas comuns, sem identificação. As duas histórias sobrepostas conduzem a uma mesma reflexão: nenhuma pessoa e nenhum país consegue pleitear um futuro sem antes sepultar seus fantasmas.

Hora da entrada em cena de outra personagem. A mãe da jovem Ana, por mais bem intencionada que esteja em ajudar a filha inexperiente a criar seu bebê, permanece envolvida demais com sua própria carreira e não consegue participar do grande evento emocional que o destino reservou para a sua família. Mantém-se de fora, isolada, ausente. Não é à toa que, durante uma conversa, ela se declara apolítica. A informação, aparentemente banal, mostra que a neutralidade impede a comunhão necessária para se avançar. Ou estamos juntos, ou não estamos em lugar nenhum.

Almodóvar é tudo, menos apolítico, como atesta sua produção cinematográfica, e Mães Paralelas reforça seu posicionamento libertário. Escreveu um roteiro que poderia render uma telenovela com meses de duração e inúmeras reviravoltas, mas bastam duas horas para ele dar seu recado de forma enxuta, sem desvios, sem desperdícios, abordando temas fundamentais como feminismo, ancestralidade, sexualidade e a importância de nos engajarmos por uma realidade às claras e não mantida no escuro. Se essa discussão segue em pauta na Espanha, mais ainda no Brasil, que atravessa uma onda retrógrada que em vez de abrir caminhos, os fecha; em vez de defender as diferenças, as condena; em vez de trazer à tona a verdade, as enterra.

Depois de uma cena final de impacto, Almodóvar acerta em cheio ao assinar sua bela obra com as palavras contundentes de Eduardo Galeano: "Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a fechar a boca". Se é luz que queremos, hablemos.

MARTHA MEDEIROS
19 DE FEVEREIRO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Outros verões

Em um verão do passado: família apertada no carro, BR-101 a anos luz da duplicação, pai dirigindo em velocidade passível de multa por insuficiência de velocidade. Ultrapassar caminhão, jamais. Ultrapassagens todas, aliás, só passando antes pela permissão da copilota, também conhecida por mãe.

Nove horas depois, a chegada ao apartamento alugado nos classificados do jornal, muito menor do que o prometido, muito mais longe do que o razoável, para os melhores 15 dias do ano.

Em um verão do passado: ao primeiro vento mais forte, o guarda-sol às cambalhotas pela areia com a família toda atrás, menos a mãe, a única com cadeira de praia exclusiva, da qual só levantava na hora de voltar para casa.

Em um verão do passado: o pai torrado no peito e nas costas porque, se algum pai do passado usou protetor solar, gostaria de conhecer esse caso raro da humanidade.

Em um verão do passado: 10 horas sob o sol, passando protetor só nos primeiros dias, porque depois a pele ficava de um jeito que parecia imune a qualquer raio ultravioleta. As rugas de hoje estão aí para desdizer essa teoria.

Em um verão do passado: o irmão adolescente que quer fazer outra carteira de identidade, e para isso precisa se livrar do RG antigo, com a foto do gorduchinho que havia sido. Só que a mãe não deixa: para quê, essa identidade ainda está nova, a foto é tão bonita.

O irmão então dá um mergulho e solta, disfarçadamente, a carteira velha no mar, quase um presente para Iemanjá. Minutos depois - o que nunca acontece -, a mãe levanta para molhar os pés e vê, na onda que vem quebrando baixinho, a carteira de identidade do filho. Iemanjá devolveu o presente.

Em um verão do passado: a criança entra na casa alugada correndo, depois das tantas horas de BR-101 ainda não duplicada. Antes que alguém possa impedir, liga o videogame 110V na tomada 220V. E torra tudo, Mario Kart, Zelda, Dragon Ball, a possibilidade de alguns minutos de calmaria nos dias que começam cedo, bem cedo, com a tralha sendo carregada até a areia e um doce balanço a caminho do mar gelado, bandeira preta.

Em um verão do passado: diferentemente de agora, chove o tempo inteiro. Duas semanas de água caindo, com breves intervalos para levar a tralha até a areia, doce balanço a caminho do mar gelado, bandeira preta. E com o videogame torrado.

Quando penso nos verões passados, eles parecem todos o mesmo, as mesmas histórias, os mesmos perrengues, as mesmas chatices, as mesmas risadas. E a mesma certeza: era neles que eu queria continuar passando todos os meus verões de agora.

Recado do leitor. Rodolfo Manfredini esclarece que a casa da Rua Duque de Caxias, antes ocupada pelas mulheres da Mirabal, tema da coluna dos dias 5 e 6 de fevereiro, agora sedia os trabalhos de caridade dos freis da congregação salesiana Dom Bosco, entre eles o fornecimento de almoço para moradores de rua.

CLAUDIA TAJES

19 DE FEVEREIRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Faz pouco tempo, parece que foi ontem, diz o avô aos netos adolescentes. Os três jovens sabiam que essa frase introduzia uma chuva de memórias e que deveriam ouvi-las porque amavam o avô e porque os pais estavam por perto para garantir a fidelidade às raízes. Com a supervisão do olhar paterno e materno e um pouco de impulso afetivo, eles chegam mais perto do velho senhor.

- Como era? - Ah, meninos, era outra época. A gente não fazia exames com cotonetes nas narinas e ninguém usava máscara.

Os netos se entreolharam. Seria o início da senilidade quando a memória fica mais liberta dos fatos reais? Voltaram a entreolhar-se de forma cúmplice e continuaram dispostos a ouvir o pai do pai.

- Vou um pouco mais para trás. Não existiam celulares e fazíamos poucas fotos. As pessoas conversavam umas com as outras sempre que saíam.

Agora sim: os netos tinham certeza de que a saúde mental do patriarca estava em declínio absoluto. Como sair sem celular? Como não fotografar tudo? Sobre o que poderiam conversar as pessoas se não tivessem redes sociais? Duvidaram, ainda mais, da lucidez do avô, especialmente no exato momento em que o olhar do pai ficou mais vigilante do outro lado da sala.

O senhor de cabelos brancos falou daquele quase paleolítico inferior. Descreveu um mundo de barbárie absoluta com discos comprados em lojas, sem internet e, como único sistema de delivery de comida, um padeiro e um leiteiro que deixavam as coisas em casa pela manhã. O mais novo perguntou:

- Mas... pedia pelo aplicativo, vô?

O senhor não respondeu à pergunta. Estava imerso naquela melancolia que colabora para tornar o passado brilhante à medida que dele nos distanciamos. Falou de cartas escritas a mão, envelopes com selos, ligações interurbanas caríssimas para a Europa, uma televisão por família, carros que duravam muitos anos em cada casa, eletrodomésticos que eram dados de presente no dia do casamento e eram trocados, por vezes, nas bodas de prata.

- Eram de adamantium? - perguntou o mais novo, brincando com a figura da personagem Wolverine, com garras indestrutíveis daquele metal. Não, o avô não acompanha os X-Men e apenas louvava um mundo sem a obsolescência do atual.

- A gente consertava as coisas: sapatos, batedeiras, casamentos. Não se jogava fora ao primeiro sinal de fadiga de material.

Consertar um calçado era algo muito estranho aos três netos. Quando o tênis rasgava, era o momento de trocá-lo, ou até antes. Chocavam-se dois modelos de capitalismo entre as gerações ali em debate. Todavia a narrativa estranha daquele mundo muito antigo, quase uma Idade das Trevas tecnológica, seduzia um pouco eles.

- Entre 1970 e 1986, eu e sua avó tivemos o mesmo aparelho de telefone fixo; depois, ela inventou de comprar um modelo novo e começou a trocar.

Dezesseis anos com um aparelho? Júlia nunca tinha conseguido ter um por muito tempo. Surgiam modelos, quebrava a tela, havia uma fonte nova que não se encaixava nas coisas do verão passado. Dezesseis anos eram dois a mais do que toda a vida dela. Como se ela tivesse recebido um celular ao nascer e, incrível, ainda o usasse! A menina estava realmente espantada que sua família tivesse sobrevivido a um mundo assim!

A narrativa ainda descreveu uma escola de presença diária, sem aulas virtuais. "Todos os dias", a expressão parecia inacreditável. Como alguém aguentava? De fato, nenhum dos netos conseguia supor aquela época contemporânea das pirâmides do Egito. Era concebível? Alguém seria feliz? Era possível existir? Não havia suicídios em massa? As pessoas, desesperadas, não se atiravam das pontes pelo vazio da sociedade sem smartphones?

Já fazia trinta minutos que o senhor descrevia, com alguma idealização, o passado. Eram dois mundos incomunicáveis. Quando se lê a expressão "pérolas para os porcos", existe um julgamento moral e uma incompreensão. O julgamento moral dos porcos é injusto: por que os suínos deveriam dar valor a uma substância retirada de uma concha e sem valor alimentício? Os animais da vara não são estúpidos, os humanos talvez sejam. Porém, se as pérolas possuem alguma consciência, também não valorizariam os porcos. Ambos se ignoram e animais e esferas marinhas não conseguem entender a utilidade ou o valor alheio. Sim, o avô falava e o efeito era similar. Onde estaria o valor: na pérola contemporânea ou no porco de antanho?

O horário do almoço se aproximava e os pais entraram na sala para dar liberdade provisória aos netos. O velho senhor encerrou a história com a revelação final: não havia tomadas ao lado da cama na infância dele. Por vezes, uma única, ocupada pelo abajur "Sem tomadas ao lado da cama?" Agora, a narrativa tinha se tornado mítica em excesso. Eram pérolas-wireless em excesso e porcos se atropelando. Os três almoçaram felizes por terem se livrado de nascer em época tão atrasada.

- Faz pouco tempo! - exclamou o avô, balançando a cabeça com saudade.

O prato de domingo era um leitão assado, pedido pelo celular do pai. O animal parecia concordar: "Faz pouco tempo...".

LEANDRO KARNAL