sábado, 27 de abril de 2019


27 DE ABRIL DE 2019
LYA LUFT

Do tempo


Faz alguns anos, tive, num sonho, um vislumbre de uma escultura interminável de corpos humanos entrelaçados emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito acima de minha cabeça. Talvez seja um dos significados da existência nossa: encadeamento e continuação. Como um novelo desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais: somos novelo e fio ao mesmo tempo.

Meu gesto repete o de uma de minhas antepassadas; meu riso será o de algum descendente meu, que jamais conhecerei, o fio primeiro de minhas ideias nasce de outro pensamento milênios atrás, e continuará se desenrolando depois que eu tiver deixado de existir há séculos, num tempo que não flui como o imaginamos, esse tempo medido e calculado. Ele é pulsação, surpresa.

Às vezes, suspiramos pelo conforto que, vista de longe, parecia ser a vida quando tudo era mais limitado e certo: menos opções, menos possibilidade de erro. Temos de aprender a conviver com essas novas engrenagens de tanta surpresa e perplexidade, mas tanta maravilha. Temos de estar mais alertas do que décadas atrás, quando a vida era - ou hoje nos parece - tão mais simples: precisamos estar mais preparados, para que ela não nos dilacere. Temos de ser múltiplos, e incansáveis.

Que cansaço.

Pois a vida não anda para trás: o preço da liberdade são as escolhas com seu cortejo de esperança, entusiasmo, hesitação e angústia - para que se criem novos contextos e se realizem novas adaptações, que podem não ser estáveis. Pois as inovações, a corrida do tempo e as possibilidades aparentemente infinitas já nos puxam pela manga e nos convidam para outra ciranda de mil receitas: vamos ser inventivos, vamos ser produtivos e competentes, felizes a qualquer preço na companhia de todos os deuses e demônios nessa sarabanda. Fora dela, nos dizem, restam o tédio, a paralisia e a morte.

Será mesmo assim? Ou ainda existem, e podemos descobrir, lugares ou momentos de tranquilidade onde se realiza a verdadeira criatividade, onde podemos expandir a alma, onde podemos amar as pessoas, onde podemos contemplar a natureza, a arte, e os rostos amados, e construir alguma paz interior? Creio que sim.

Para que as emoções e inquietações positivas não entrem em coma antes que termine de definhar o corpo.

LYA LUFT

27 DE ABRIL DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Só lembro que foi bom


Guardo muitos livros em casa, uma pequena biblioteca de milhares. Metade ainda espera minha leitura e a outra metade já foi devorada, mas ainda assim a mantenho, já que acontece comigo algo desesperador: não lembro o que leio. Nada. Qual era o nome do personagem, qual a trama, como é que ela termina. Nada.

Há quem recite trechos de seus autores preferidos, quem reconheça passagens de obras lidas anos atrás e quem declame poemas alheios como se fossem seus. Não lembro nem meus próprios versos, o que dirá os versos dos outros. Amo os livros e tenho com eles uma relação doentia. Doença neurodegenerativa: o sentimento fica, a lembrança vaza.

Outro dia, observando as lombadas perfiladas nas prateleiras, encontrei Longamente, de Erik Orsenna, romance francês que recomendei para muitos amigos, inclusive para um jornalista que se encantou a ponto de entrevistar o escritor em Paris. Pois mal me recordo do livro. O personagem amava uma mulher casada, e mais não sei dizer.

Não há como esquecer Canção de Ninar, de Leïla Slimani. É um romance recente e impactante. Tirza, de Arnon Grunberg. Enclausurado, de Ian McEwan. São livros que ainda retenho, pois não faz tanto tempo que os li e trazem passagens que abalam e surpreendem, mas o critério "não-faz-tanto-tempo-que-os-li" não é confiável. Três dias atrás fechei um livro que li com prazer, mas não me pergunte do que se trata. Sumiu de dentro de mim.

É uma espécie de mal de Alzheimer restrito apenas aos livros. Vejo a foto da capa, tenho certeza de que passamos bons momentos juntos, mas não me vem nenhum registro da história. E aí me pergunto: vale a pena continuar com o hábito da leitura, se logo depois perderei esse investimento de tempo?

A boa notícia: vale. É preciso confiar em tudo o que se conecta com a nossa sensibilidade. A retenção não precisa ser formal, ninguém irá nos sabatinar sobre o enredo, o que importa é a consequência emocional da leitura, a interiorização das descobertas, as portas que se abriram dentro da gente e que nos transformaram, mesmo sem termos consciência disso. O poeta José Paulo Paes explica assim: "Cultura é tudo aquilo que a gente se lembra após ter esquecido o que leu. Revela-se no modo de falar, de sentar, de comer, de ler um texto, de olhar o mundo. 

É uma atitude que se aperfeiçoa no contato com a arte. Cultura não é aquilo que entra pelos olhos, é o que modifica seu olhar". Grande poeta, que faleceu em 1998. Li muitos poemas de José Paulo Paes e não recordo de nenhum. Mas certamente sua poesia me deu alguma percepção da vida que eu ainda não tinha, e isso me tornou melhor, maior e mais humana. Como acontece a cada bom livro que leio e que desgraçadamente esqueço.

MARTHA MEDEIROS


27 DE ABRIL DE 2019
CARPINEJAR

Meu antidepressivo

É natural emendar episódios da série em casa. Há quem nem dorme até assistir uma temporada inteira, de cabo a rabo. Dez capítulos de um fôlego só pulando apenas a abertura e parando unicamente para o pit stop do banheiro e da água.

Lembra uma possessão, a pessoa não consegue realizar outra coisa a não ser acabar aquilo naquela noite. Não pisca, não interage, um zumbi do vício. É capaz de tomar café ou energético para não sucumbir ao sono. Profissional mesmo das maratonas visuais.

Já fiz isso, é um prazer indescritível de solidão, a esposa não consegue acompanhar o percurso e fica assustada no dia seguinte com o meu rosto murcho e remelento de ressaca, de balada dentro de casa.

Apesar da facilidade de empilhar séries, a minha maior alegria é ainda o cinema, onde recarrego as minhas baterias e organizo as ideias. Sou rato das cadeiras vermelhas. E é uma felicidade que costumo inventar quando estou triste, quase como uma automedicação. Ao sentir desânimo no trabalho, eu bloqueio a agenda e me receito filme.

Não um filme, vários filmes em sequência. Vou na bilheteria e compro a sessão das 14h, das 16h, das 18h. É apenas eu e as histórias na tela. Apago o celular e tiro miniférias por algumas horas. Sumo do radar das preocupações. Ninguém me encontrará.

Troco de sala rapidamente, como se estivesse participando de júri de um festival. Numa exibição, trituro pipoca. Noutra, quebro balas nos dentes. Na terceira, já me tornei um espectador cult, que não gosta de barulho e pede silêncio.

Um filme entra no próximo, aleatoriamente. Roteiros se misturam. Atores e atrizes de diferentes matrizes dialogam em minha cabeça. Relaxo não pensando nas discordâncias de minha rotina, assumindo o papel de testemunha da beleza e da verdade alheias. Meus problemas desaparecem porque interrompo a cadeia obsessiva de reprisá-los.

Nada é mais terapêutico do que entrar no escuro de uma projeção no começo da tarde e sair de noite. Não perdi o dia, ganhei a minha vida de volta. Dá uma saudade danada da luz e de conversar com os outros.

CARPINEJAR

27 DE ABRIL DE 2019
PIANGERS

O que é o amor?

"É o que faz você sorrir quando você está cansado", respondeu uma criança de quatro anos. Crianças respondem de forma espontânea, não caem no lugar-comum adulto. Uma pessoa crescida, cheia de clichês, responderia que é um sentimento profundo que nos faz querer estar perto de outras pessoas. Mas é uma resposta pré-pronta. Crianças tentam explicar o mundo que veem elaborando respostas melhores, autênticas. "Quando alguém ama você a maneira como ela fala seu nome é diferente. Você sabe que seu nome está seguro na boca dela", disse uma, de sete anos. Você sabe que está seguro na boca dela.

"Amor é quando minha mãe faz café para o meu pai e bebe um golinho antes de lhe dar, pra saber se está realmente bom". "Amor é quando você diz a alguém que gosta da camisa dele, então ele a usa todos os dias". "Amor é quando seu cachorro lambe sua cara mesmo depois de você deixá-lo sozinho em casa o dia inteiro". "Amor é quando você beija o tempo todo. Então, quando você cansa de beijar, você ainda quer estar junto da pessoa para conversar mais. Minha mãe e meu pai são assim".

O amor nunca é bruto. O amor não agride. O amor é paciente, tem sempre mais cinco minutos. Toma cafés demorados. Aceita ligações. Tem tempo para papo furado. Dorme abraçado, agradecido. O amor não se deixa pra depois. "Você não deveria dizer "eu te amo" a menos que seja verdade. Mas se for, você deveria dizer o tempo todo. As pessoas esquecem". O amor se cultiva e quando está maduro se distribui. O amor é mais forte do que aquilo que é anti-amor. Ele opera em silêncio. Ele é contagioso. "Eu sei que minha irmã mais velha me ama porque ela me dá todas as roupas velhas dela e tem que sair para comprar roupas novas", disse uma menina de quatro anos. O amor é sem vergonha.

Há uma coisa que nós, adultos, sabemos mais do que as crianças. Que a vida não é para sempre. Que nossos corpos envelhecem. Que nossos filhos crescerão. Precisamos ser românticos. Acreditar que nossa vida, nossos minutos aqui são valiosos demais pra serem perdidos. Que a vida deve ser preenchida com amor. Que, talvez, seja o sentido de estarmos aqui. E que tudo o que precisamos saber já sabíamos, quando éramos crianças.

PIANGERS

27 DE ABRIL DE 2019
ANA CARDOSO

Você não importa tanto assim

Quantas vezes eu falei para as minhas filhas que elas são as pessoas mais lindas, fofas, inteligentes e capazes do mundo, nesta semana? Obviamente já perdi a conta. Somos essa geração que não tem vergonha de lamber a cria até que a adolescência estabeleça uma distância saudável entre criador e criatura. Esse excesso de elogios nem sempre é positivo, porque, verdade seja dita, nossos filhos podem ser tudo e mais um pouco para a gente, mas, para o mundo, são apenas um entre sete bilhões, poeira cósmica, diria o astrofísico Neil deGrasse Tyson.

Pessoas que crescem achando que são melhores do que os outros têm sérias dificuldades para se relacionar com colegas, professores, namorados, empregadores ou clientes. Da porta de casa para fora, serão essas relações que irão definir quem você é, o seu sucesso ou fracasso, a sua felicidade ou depressão. A mamãe repetir que te ama e que você é lindo não obriga sua coleguinha de natação a achar o mesmo. O professor a te achar genial. A menina bonita da festa a querer transar com você. Seus funcionários a curtirem suas fotos. O árbitro a dar sempre a vitória para o seu time.

No domingo passado, os jogadores do São Paulo, ao perderem o jogo para o Corinthians, nos últimos minutos da partida, ficaram tão chateados que não queriam participar da cerimônia de premiação. Foi preciso Raí, diretor executivo de futebol, esse sim digno de todos os bons predicados que lhes são atribuídos, levar os garotos mimados a encarar o fato de que não eram campeões, mas sim vice-campeões.

Mães, pais e demais familiares, parem de reservar o chuveiro para seu pimpolho na natação. Parem de reclamar das professoras nos grupos. De carregar a mochila do moleque para a escola. O mundo, com certeza, não vai ser tão servil a ele assim. Ele não importa, você não importa, eu não importo. Quem sabe, se tivermos essa consciência, possamos ser de fato legais e relevantes. E passar a importar um pouquinho. Não que isso importe.

ANA CARDOSO

27 DE ABRIL DE 2019
GALPÃO CRIOULO

Galpão de cara nova

O Galpão Crioulo traz novidade. A participação da artista Analise Severo, que apresentará o programa comigo a partir do mês de maio, durante o período da licença-maternidade da Shana Müller, que aguarda a chegada do seu segundo filho, o Francisco. Analise Severo também é cantora, e das boas, uma baita apresentadora, colega que, com certeza, irá colaborar com seu talento e simpatia para a continuidade da história do Galpão.

Analise já participou do programa diversas vezes, seja cantando com o grupo das Mulheres Pampeanas ou ao lado do seu parceiro de vida e de palco, o Jean Kirchoff, outro baita colega e ótimo cantor. Sei que a aproximação da data de estreia tem deixado a Analise preocupada, mas já me adiantei e disse para ela que estarei ali para acalmar e dar aquela força. 

Pois sei que o meu papel, neste momento, por estar há mais tempo na apresentação do programa, é apenas colaborar, dando aquelas dicas no início, pois sei que ali na frente ela estará tirando de letra esse novo momento de vida e de carreira. Quando somos chamados, para qualquer coisa que envolva uma responsabilidade, dá aquele frio na barriga, mas também nos entrega uma grande porcentagem de prazer, de fazer bem feito aquele papel que nos foi destinado.

Seja muito bem-vinda Analise Severo, confiamos muito em ti, o palco é o teu lugar, que as luzes do Galpão Crioulo te iluminem nesse novo momento e que possamos levar adiante, com fibra e com valentia, essa história de 37 anos que nunca saiu do ar. O Galpão Crioulo é a vitrine do gauchismo na televisão brasileira que oportuniza artistas de diferentes estilos, uns da música instrumental ou cantada, urbanos e rurais, da música latina do Uruguai ou da Argentina, do fandango e da poesia, da trova ou da Payada, a mostrarem seu trabalho. 

Espero que possamos iniciar o domingo juntos, acordar com alegria e música os gaúchos e as gaúchas de todas as querências. Está chegando a hora de recebermos de braços abertos a Analise Severo. Venha tranquila e com a certeza de que o nosso Galpão Crioulo, a partir do mês de maio, também estará de cara nova. Ah, mas fiquem tranquilos porque em outubro Shana estará de volta!

NETO FAGUNDES


27 DE ABRIL DE 2019
PAULO GERMANO

Por que não dá para desistir

Não conhecia aquele Michael. Há quase três anos, recebi dele uma mensagem no Facebook: Minha tia encontrou uma carteirade um Paulo Germano e, pelas fotos,é parecido contigo.

Ué. A carteira estava na minha pasta, ela raramente sai dali, então pobre desse outro Paulo Germano, que, além de ter perdido a carteira, ainda é parecido comigo, mas, mesmo assim, decidi abrir a pasta, não custava conferir, enfiei a mão lá no fundo, só senti a caneta e o bloquinho, depois meti o nariz lá dentro e cadê o diabo da carteira?

Perdi. Michael estava certo, devia ser minha mesmo. Estavam nela todos os meus documentos, cartões de crédito e de débito, notas fiscais e algum dinheiro. Ele pediu que eu informasse minha data de nascimento, para checá-la na identidade, mas ressaltou que a carteira, na verdade, estava com a tia dele. Michael só tinha as fotos dos documentos, que a tia lhe havia enviado por WhatsApp. Comecei a me impressionar com aquilo.

É que a tia de Michael, dona Rosangela, não tinha Facebook, então pediu ao sobrinho que encontrasse o moço da carteira. O problema é que meu nome completo, na identidade, é Paulo Germano Moreira Boa Nova, o que fez Michael procurar por Paulos Moreiras e Paulos Boas Novas e Paulos Novas e Paulos Germanos, até encontrar alguém mais parecido com o sujeito dos documentos.

Fiquei comovido. Agradeci pela honestidade, pelo tempo perdido com uma pessoa que nunca viram. "Era o mínimo que eu poderia ter feito", respondeu Michael, antes de me passar o telefone da tia. Com entusiasmo na voz, feliz por ter me achado, dona Rosangela já foi contando:

- Faço faxina ali na Bordini e, quando eu saía do trabalho, antes de pegar o ônibus no Parcão, chutei um troço preto na calçada.

Pela descrição, foi em frente ao prédio da minha mãe. Decerto a carteira caiu quando eu descia do Uber. - Fiquei com uma pena... Vi aquele monte de documento ali, e o senhor ia ter que fazer tudo de novo.

- Nem me fala, dona Rosangela, seria uma incomodação.

- Sim, eu sei. Fui assaltada esses dias e fiquei tão triste, seu Paulo. Roubaram a carteira e o meu celular, duas vezes.

- Mas como duas vezes?

- Roubaram na parada. Comprei um celular novo na sexta e, na segunda, já me levaram ele também. Aliás, quero dizer que os R$ 60 do senhor continuam aqui, viu? Tá tudinho na carteira.

Fiquei pensando, meio culpado. Dona Rosangela faz faxinas, frequenta o Moinhos a trabalho, volta para casa de ônibus, não deve ter muito dinheiro e é assaltada duas vezes em poucos dias. Já eu visito minha mãe no Moinhos, volto para casa de Uber, não sou pobre e, quando perco meu dinheiro, dona Rosangela me devolve. No dia seguinte, ao buscar minha carteira com ela, na casa de uma família no Bom Fim, pedi que agradecesse outra vez a Michael.

- Ele ficou tão feliz que pôde ajudar. Porque o Michael anda preocupado, perdeu o emprego faz um mês e agora só pensa em arranjar trabalho - contou ela antes de eu me despedir.

Na quinta-feira passada, resolvi ligar para dona Rosangela. Descobri que Michael, hoje, é cobrador. Perguntei como foram os últimos anos, e ela disse que tudo bem, embora tenha vivido alguns imprevistos:

- Lembra daquele temporal horrível? Aquele que destruiu a cidade. Perdi tudo, seu Paulo, tudo - ela suspirou, para depois dizer que recuperou cada coisinha trabalhando duro, mas que, no ano passado, arrombaram sua casa e tudo foi embora de novo.

Dona Rosangela, como sempre, foi reconquistando o que precisava. E eu fiz questão de lhe agradecer outra vez - agora não pela carteira, mas porque nunca, nem ela, nem Michael, aceitaram desistir.

PAULO GERMANO

Paixão, tiros e malas

Boris Fausto fez um livro memorável: O Crime da Galeria de Cristal e os Dois Crimes da Mala São Paulo 1908-1928 (Cia das Letras, 2019). Fruto de uma pesquisa nos arquivos do Judiciário e de leitura de vários jornais da época, o livro já encontrou boa acolhida do público leitor com justas razões. Vejamos algumas.

Um jovem advogado, Arthur Malheiros, é atraído para um quarto de hotel por um potencial cliente. Lá encontra uma ex-namorada, desonrada por uma gravidez que ele não assumiu. Ao perceber a armadilha, era tarde. Levou dois tiros. Albertina Barbosa, a da honra maculada, ainda tentou cortar a cabeça do advogado. Tudo com auxílio do seu atual marido e que tinha atraído a vítima ao desfecho no hotel Bella Vista. Querem um fato notável? Muita gente ficara ao lado da assassina. A questão da honra tinha se tornado um debate importante e faz emergir os valores da época.

O crime empolga a imprensa como um folhetim real. Escritoras renomadas assumem posições distintas sobre Albertina. Os advogados a apresentam como uma mulher ultrajada, mas a acusação também constrói a personagem moralmente indefensável, com hábitos estranhos e mãe que abandonara o filho do infeliz bacharel na roda dos expostos. O leitor acompanha o dia a dia do julgamento, a exposição dos juristas e os dados que surgem na imprensa. É um folhetim complexo, a tal ponto que omito o final dos processos para não quebrar o suspense.

Além do crime da Galeria de Cristal que mesmerizou o público paulistano que transitava da modorra provinciana para os anseios cosmopolitas, o livro contém duas histórias com o mesmo destino lúgubre das vítimas: serem acomodadas dentro de uma mala. Os dois foram muito diferentes, todavia despertaram na São Paulo da ocasião paixões similares ao "affaire Dreyfus" que dividira a França anos antes. Imaginamos que, anos antes da nossa polarização política atual, os jantares paulistanos estavam divididos entre quem reeditava ou não, na versão de Michel Trad, o assassino do celebérrimo crime da mala.

Outra razão de o livro ser tão bom: a linguagem é clara, direta, bem elaborada e consegue prender o leitor como se ele acompanhasse o caso dia a dia. Somos levados à cidade de São Paulo na República Velha e vamos acompanhando os desdobramentos, as charges, a reação do público, a posição da imprensa e os julgamentos eletrizantes. Funciona como uma narrativa bem construída e com o domínio retórico para prender a atenção do leitor. Isso confirma Boris como um grande escritor.

Os dados são bem pesquisados e ordenados e, como é imperativo para um profissional de humanas, existem ampliações sociológicas para entender o universo no qual tudo isso está inserido. Assim, a geografia de São Paulo, o crescimento populacional extraordinário, a situação da mulher na cidade, a imigração massiva, como era o carnaval, a imprensa popular, o consumo de jornais, a legislação vigente e os valores do século passado emergem com clareza e inserem os fatos diversos (faits divers, na expressão teórica) como os crimes em uma perspectiva muito bem realizada. Isso confirma Boris como excelente historiador.

Existe um equilíbrio entre o individual e irrepetível com o amplo e sociológico. É incrível como algumas questões do século 21 aparecem em casos antigos, como o debate sobre o show midiático e sua influência sobre o andamento do processo. As penas seriam duras ou leves demais? A vida na prisão era uma masmorra ou era um hotel de luxo? O mundo estaria piorando porque as punições não desestimulavam a delinquência? Em 1908, 1909 e 1928, havia muita gente reclamando que a segurança piorava dia a dia e era culpa do governo do momento. Com anexos jurídicos e sínteses sobre as etapas do processo, vamos acompanhando o debate ao longo do livro.

Fazer um escrito histórico para grande público é um desafio. Se Boris Fausto nada disser da teoria de Roland Barthes ou de Marlyse Meyer sobre os "fatos diversos", será acusado de factual, narrativo e de ter cedido ao gosto do populacho pelo anedótico. Se insistir na estruturação de como um crime se insere na ordem social a partir de uma explicação teórica mais ampla, será acusado de academicismo, linguagem pernóstica ou de "escritor confuso". Pior de todos os crimes: simplesmente não venderá nenhum exemplar. Bem, a vitalidade da escrita, o rigor da pesquisa e o sabor da narrativa encontraram, no livro de Boris Fausto, um equilíbrio muito bom. A carreira do professor da USP já é exemplar e consolidada e não necessita de elogios e sobreviveria a ataques. 

O mais interessante ao fechar o livro é perceber que alguém que não decai o nível da narrativa continua intenso e contribuindo tanto para o conhecimento como para o prazer de ler uma excelente obra como O Crime da Galeria de Cristal. Há o duplo prazer de leitor comum que acompanha um texto muito bem feito e o de especialista em história que destrinça os fatos e suas costuras sociais. Casos individuais de uma São Paulo que já não existe, todavia, iluminam a que existe e que ainda se vê imersa em crimes e passionalidades. É preciso ter esperança.
LEANDRO KARNAL


27 DE ABRIL DE 2019
DRAUZIO VARELLA

DEPRESSÃO PERINATAL

De 10% a 15% das mulheres que dão à luz caem numa tristeza que não tem fim, sem entender o que se passa nem identificar a causa de tanta infelicidade, num momento que julgavam trazer-lhes muita alegria
Conforme as estatísticas, 50% a 80% das puérperas apresentam crises de irritabilidade e disforia, que se iniciam dias depois do parto, mas regridem espontaneamente em duas ou três semanas. Esse estado é atribuído às alterações hormonais desencadeadas pela proximidade do parto, entre outros fatores.

No entanto, 10% a 15% das mulheres que dão à luz caem numa tristeza que não tem fim, sem entender o que se passa nem identificar a causa de tanta infelicidade, num momento que julgavam trazer-lhes muita alegria.

É uma das principais complicações do parto. Seus efeitos adversos são múltiplos: aumento do risco de prematuridade, crises de choro, apatia, sonolência ou insônia, anorexia ou compulsão alimentar, perda de libido, ansiedade, crises de pânico, desleixo nos cuidados com o recém-nascido, alterações emocionais que interferem com o relacionamento mãe-filho e causam desentendimentos familiares.

O impacto emocional da depressão materna pode prejudicar o desenvolvimento neuropsicomotor da criança, com consequências a médio e longo prazo. Nos casos extremos, existe risco de suicídio da mãe.

O United States Preventive Services Task Force (USPSTF) acaba de publicar as recomendações para que médicos clínicos e obstetras encaminhem para aconselhamento psicoterápico pacientes grávidas, ou no pós-parto, que apresentem risco aumentado para desenvolver depressão.

Diversos fatores clínicos e sociodemográficos estão associados ao aumento desse risco. Entre eles, violência doméstica, dificuldades financeiras, gravidez não planejada ou indesejada, falta de apoio familiar e social, histórico de sintomas depressivos ou episódios de depressão no passado.

O USPSTF considera que a fase perinatal é especialmente oportuna para intervenções preventivas, porque a mulher está motivada a adotar comportamentos que promovam bem-estar pessoal e do bebê. Recomenda que os profissionais procurem consultar o Antenatal Risk Questionnaire ou o Postpartum Depression Predictors Inventory, para ajudá-los a identificar outros fatores de risco.

Os médicos não devem esperar até que os sintomas se instalem para recomendar a intervenção. Estudos mostram que o aconselhamento precoce está associado a 39% de redução na probabilidade de surgir depressão no período perinatal. Os métodos mais estudados têm sido a terapia cognitivo-comportamental e a psicoterapia interpessoal.

Infelizmente, o número de mulheres que necessitam de cuidados psicoterápicos perinatais é muito maior do que a disponibilidade de acesso aos serviços do SUS em condições de atendê-las.

A identificação dos fatores de risco, dos primeiros sintomas e do histórico de quadros depressivos anteriores é fundamental para a prevenção da doença. Quanto mais precoce o acompanhamento psicoterápico através da terapia cognitivo-comportamental ou da psicoterapia interpessoal, melhores serão os resultados.

DRAUZIO VARELLA


27 DE ABRIL DE 2019
PAULO GLEICH

SAIR DE CASA ACONTECE CADA VEZ MAIS TARDE

Na minha adolescência, tudo o que eu queria era sair de casa. Não que a vida em família fosse tão penosa assim, mas ansiava pela liberdade que morar sozinho me traria: dormir a hora que quisesse, receber amigos e crushes a qualquer momento, decidir sobre minha alimentação. Isso também era manifestado pelos meus pais, que repetiam: quando tiveres 18 anos, poderás decidir o que fazer da vida.

Claro que aos 18 estava longe de ter toda a maturidade imaginada, mas, assim que foi possível, fiz minhas trouxinhas e me mandei. Aos poucos, fui equalizando os hábitos, descobrindo minha própria rotina, longe da casa dos pais. Virei noites fazendo trabalhos para a faculdade deixados para a última hora, perdi aulas por não ter conseguido abrir mão de uma festa imperdível, ajustei hábitos ao orçamento.

Os tempos mudaram, e as gerações atuais saem cada vez mais tarde de casa. Há um contexto econômico, diferente de 20 anos atrás, sempre apontado como fator determinante. Mas desconfio que não seja o único: com frequência, falta aos jovens o desejo de sair da casa dos pais. Estes, menos rigorosos e restritivos do que os de antanho, abrem espaço para liberdades pouco comuns nas gerações anteriores: podem levar namorados, fazer festas, ir e vir quando bem desejam - e tudo isso com comida e roupa lavada.

O que parece um cenário com o melhor de dois mundos pode ser, muitas vezes, uma espécie de prisão de luxo. Seduzidos pelas tolerantes benesses do lar parental, os filhos não veem sentido em passar perrengues - como juntar trocados para pagar a conta de luz ou comer miojo por uma semana - apenas para ter algo que, supostamente, têm em casa: a liberdade de ir e vir, de fazer o que desejam. Com esse véu de liberalidade, a alienação passa quase despercebida, mas com frequência está lá: há uma dependência que transcende a questão econômica, que diz da dificuldade de filhos e, sobretudo de pais, de se separarem.

Nesse contexto, uma saída comum na atualidade têm sido as experiências de intercâmbio ou de uma temporada no Exterior. Toleradas e até estimuladas pelos pais, ciosos de investir no futuro profissional dos filhos, acabam sendo aproveitadas por estes como uma espécie de estágio da vida adulta: aprender a lidar com colegas de apartamento, dar conta dos cuidados que uma casa requer, aventurar-se para além do restrito contexto conhecido por muitos jovens de classe média alta.

Há casos em que a saída de casa torna-se um desafio tão grande que só parece justificável, para o jovem e para os pais, quando envolve a mudança para outra cidade. Afinal, por que ele sairia de casa para morar na mesma cidade, em outra casa? É essa distância geográfica que, com frequência, dá lugar a uma elaboração do que se vivia e sentia, sem se dar conta, na proximidade. É ela também que permite perceber um estranhamento em relação aos hábitos familiares, abrindo espaço para perguntar-se sobre o próprio desejo.

Sair de casa é sempre um desafio, pois mesmo longe dela a levamos conosco, sem perceber. Começamos a entender o mundo e a vida a partir das relações familiares, e precisamos de alguma distância delas para criarmos nosso próprio estilo e lugar no mundo. Estes, é claro, sempre terão as marcas do que recebemos em casa. No entanto, requerem alguma separação, física - mas sobretudo psíquica - para que não sejam apenas uma repetição daquilo que se herdou dos laços de família.

Paulo Gleich escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Christian Dunker - PAULO GLEICH


27 DE ABRIL DE 2019
INFÂNCIA

POR QUE BRINCAR DE GUERRA

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, o português Carlos Neto não foge a temas polêmicos relacionados ao desenvolvimento infantil. Em entrevista por e-mail, ele falou da importância das brincadeiras de luta, guerras e "brigas" entre crianças, ainda hoje vistas como nocivas por pais e especialistas.

INFLUÊNCIA DOS JOGOS NA FORMAÇÃO DAS CRIANÇAS

"O processo de desenvolvimento humano ocorre entre duas dinâmicas opostas e complementares: a procura de proximidade (segurança) e a necessidade progressiva de distanciamento (autonomia). As crianças menores procuram afeto, e as mais velhas, independência. Esse é um fenômeno que acontece em quase todas as espécies animais. Trata-se de uma questão de sobrevivência e de aquisição de ferramentas muito úteis para se tornar adulto. Esse mecanismo adaptativo é ainda mais particular no ser humano por ter uma infância relativamente longa e necessitar assegurar a sua sobrevivência através de uma relação muito complexa entre mudanças que ocorrem no seu corpo e no seu ambiente. O desenvolvimento do jogo e da motricidade permite uma conquista progressiva de autonomia do homem através de referências biológicas e culturais.

BRINQUEDOS BÉLICOS E DESENVOLVIMENTO

"Se as famílias e as escolas não fornecerem brinquedos bélicos às crianças, elas terão a ocasião de encontrar objetos que imitarão esse tipo de brincadeira. Esses brinquedos bélicos naturais, artesanais ou industriais (como a maior parte de jogos de guerra eletrônicos), são fundamentais para o desenvolvimento motor, cognitivo e social. Elas brincam de guerra (faz-de-conta) de forma simbólica e adquirem várias competências muito importantes: noção de ataque, defesa, território, fuga, simulação, sobreviver, morrer.

A IMPORTÂNCIA DAS BRINCADEIRAS DE LUTA

"Elas são uma das mais fascinantes linguagens do corpo em uma perspectiva evolutiva. Os comportamentos de jogo de luta a brincar (play-fighting), jogo de perseguição e caça (play-chasing) e jogo de luta a sério (real-fighting) têm sido largamente estudados no comportamento animal e humano. Todas as crianças saudáveis têm necessidade de brincar de lutas ou de jogos de perseguição. São atividades ancestrais que devem fazer parte das culturas lúdicas na infância."

PAIS DEVEM PROIBIR OU NÃO?

"O contato físico através dessas brincadeiras e a consequente perseguição são comportamentos que não devem ser proibidos. Pelo contrário, devem ser implementados entre pais e filhos em casa, entre as crianças no recreio ou em jogo livre nos espaços exteriores. Reprimir esse tipo de brincadeira é um erro estratégico do ponto de vista educativo e terapêutico. No entanto, devemos ter atenção quando assistimos a lutas a sério de forma repetida em crianças (principalmente nos recreios escolares), porque isso pode denotar comportamentos de bullying."

LUTAS ESTIMULAM AGRESSIVIDADE?

"Essas formas de brincar são muito importantes durante a infância e uma estratégia decisiva em interiorizar e humanizar os impulsos agressivos que fazem parte da natureza humana. As nossas pesquisas vêm demonstrando que os jogos de luta e a utilização de brinquedos bélicos têm um estereótipo predominantemente masculino e não se verificou, nas crianças estudadas, alterações ou aumento de comportamentos antissociais ou agressivos entre pares. Devemos ainda lembrar que os brinquedos bélicos têm uma existência muito significativa em todos os estudos realizados em pesquisas etnográficas sobre jogos tradicionais na infância, em diversos continentes e culturas. Há muitos benefícios no desenvolvimento da criança na utilização destes objetos lúdicos, apesar da polêmica científica e pedagógica ainda existente sobre o papel nocivo dos brinquedos bélicos."

Gazeta do Povo - ADRIANO JUSTINO

27 DE ABRIL DE 2019
JJ CAMARGO

OS RAIVOSOS


Desfilam em todas as áreas e nunca dão certo - no trabalho, no amor, na vida. Abastecem-se de uma pretensa incompreensão para tentar dissimular a sua estrondosa mediocridade
Os raivosos sempre existiram, com variações percentuais, em função do contexto histórico, mas sempre tendo ao outro como alvo indispensável, porque, afinal, que sentido teria uma grande raiva sem um fiel depositário?

Em todas as áreas, com as vítimas correspondentes, desfilam os raivosos, cheios de uma convicção, que nunca admitirão precária, sobre estarem certos e apesar disso incompreendidos, e desta pretensa incompreensão se abastecem para tentar dissimular a sua estrondosa mediocridade. Uma parte significativa desse contingente é formado por aqueles que, não fazendo, não toleram que os outros façam.

Como o raivoso não sobreviveria tendo raiva sozinho, ele tende a buscar companhia, procurando parceiros que indispensavelmente tenham raiva das mesmas coisas, ideias ou pessoas, e essa necessidade de compartilhar faz com que os raivosos se agrupem, e assim nascem os grupelhos e as seitas, seguidas por muitos prosélitos.

Para que esse tipo de comunidade se mantenha e prospere, é indispensável que haja um líder, que será identificado como aquele que sinta tanta raiva que os outros passem a temê-lo mais do que respeitá-lo, e que se afirme como um modelo inalcançável na infinita capacidade de odiar.

Não há, nas atitudes e nos gestos, nenhum indício de generosidade, porque esse sentimento, que o raivoso pensa como um sinal de fraqueza, geraria gratidão, e definitivamente, não é possível odiar a quem retribua com reconhecimento. E então, para preservar a sua raiva intacta, ele assume a antipatia como doutrina, e é melhor que todos saibam logo com quem estão lidando. Claro que essa descoberta virá carregada de uma raiva danada por não ter pensado nisso antes.

O raivoso nunca dá certo. No trabalho. No amor. Na vida. Como ele odeia o que faz, e esse rancor é via expressa para a frustração, inconscientemente ele assume a gerência da mais eficiente usina de infelicidade: a incompetência. Como é inevitável que isso seja percebido pelos seus colegas, ele se sentirá abandonado, e isso dá uma raiva! E como ninguém consegue amar a um incompetente que, além de tudo, ainda ficou raivoso, o círculo da tristeza estará fechado.

Então aconteceu. Esse tipo, que sempre existiu, mas mantinha-se limitado ao círculo restrito da sua tacanhice, descobriu a metralhadora giratória das redes sociais, e aí começou o tempo do ódio ilimitado. As agressões são tão gratuitas que, se suspeita, o raivoso escolha suas vítimas aleatoriamente, e então fica na espreita que ao menos umazinha reaja, para que ele possa descarregar nela todo o ódio que sente de si mesmo, porque apesar da arrogância, quando apaga a luz, ele se sabe insignificante.

JJ CAMARGO



27 DE ABRIL DE 2019
DAVID COIMBRA

É sempre agora

A Marcha talvez seja o romance menos conhecido de E.L. Doctorow. Ele é autor de pelo menos dois clássicos: Ragtime e Billy Bathgate. São livros tão bons, que lamento já tê-los lido. Se você não leu, sorte sua. Vá agora a uma livraria, compre os dois, vá para casa, abra um malbec e se delicie com um fim de semana perfeito.

Você não terá menos prazer ao ler A Marcha. É um belo romance. Conta a história da campanha na qual o general Sherman finalmente derrota o Exército Confederado na Guerra Civil Americana e, na prática, funda os Estados Unidos modernos.

A tática de Sherman para vencer a guerra despertou grande controvérsia e revolta. Porque seus exércitos não se limitaram a bater os inimigos no campo de batalha. Os soldados invadiam as cidades, pilhavam as casas e depois as incendiavam. As plantações eram destruídas, as fábricas eram postas abaixo, os trilhos dos trens eram arrancados, deitados ao fogo e depois entortados para que não pudessem mais ser aproveitados. Os homens de Sherman eram como gafanhotos: nada restava à sua passagem.

Mas, enquanto passavam de fazenda em fazenda, de cidade em cidade, os exércitos de Sherman iam libertando os escravos que faziam a grandeza do Sul. A descrição de Doctorow é impressionante: homens, mulheres e crianças que a vida toda tinham sido tratados como gado de repente se viam livres, donos do próprio destino. Porém, sem lugar para ir e sem ter como se sustentar, o que eles fariam? Doctorow conta esse drama.

Conta, também, os dramas de soldados dos dois lados. Um deles chama-se Albion Simms, vítima de uma explosão que faz um pino de aço penetrar em seu crânio. Apesar disso, Albion continua vivo e com todos os reflexos perfeitos. Seu cérebro, no entanto, começa a se esvaziar lentamente, como se estivesse se esvaindo pelo ferimento. Albion vai perdendo a memória. Primeiro, as mais remotas. Depois, as recentes.

O médico do regimento, Wrede Sartorius, vê no caso a possibilidade única de estudar o funcionamento do cérebro humano. Ele sabe que o soldado irá sofrer, mas o mantém amarrado a uma cadeira para poder observá-lo. Albion pede que ele desate as correias que o prendem para poder se matar, mas o médico não o atende. Desesperado, o soldado repete, às lágrimas:

- É sempre agora! É sempre agora!

Foi essa frase que me impactou. Porque, se formos pensar no futuro, o que aconteceu com o soldado não é diferente do que o que acontece com todos nós: para nós também é sempre agora. O futuro é um lugar que não existe. Você planeja chegar lá e nunca chega: é sempre agora.

A diferença é que o soldado não tem passado, e isso é insuportável.

Tudo o que você faz, faz olhando para trás. É com base na experiência que você toma atitudes pensando no futuro. Donde, a suprema relevância do passado.

O passado não é só uma coleção de fatos antigos, que não se repetirão. O passado é um patrimônio. É como se fosse uma caderneta de poupança, onde você guarda recursos para usar quando houver necessidade. Por isso, é importante saber construir o passado. É o que você está fazendo exatamente agora. É o que faz todos os dias.

Chegará um momento em que você abrirá a conta do passado a fim de procurar pessoas e experiências para ajudá-lo, para consolá-lo ou para alegrá-lo. Se você tiver armazenado dias ruins e relações ruins, o seu depósito será inútil. Mas, quando você termina o dia e pensa "esse foi um dia bom", significa que você depositou algo de positivo na sua conta. Mais tarde, essa poupança irá socorrê-lo.

Ter um bom passado de estoque é o que existe de mais seguro para um bom futuro. E o melhor: você pode usar sempre, não vai gastar nunca. Um punhado de dias bons vale mais do que um punhado de dólares, milhares de dias bons são uma fortuna. Quem sabe poupar tem.

DAVID COIMBRA

27 DE ABRIL DE 2019
MÁRIO CORSO

Por que não se produzem mais gênios?

A chamada da matéria era boa. Colocava a questão: com tanto acesso à informação, por que não se produzem mais gênios? Mas o artigo era fraco, considerações óbvias sobre como a internet é útil mas nos faz perder tempo.

Mas serviu para matutar uma outra resposta. Esta minha tese devo a um livro: As duas Culturas e uma Segunda Leitura, de C. P. Snow. Trata-se da transcrição de uma polêmica conferência em Cambridge de 1959.

Snow era um intelectual hoje raro, ao mesmo tempo físico e escritor. Portanto, estava dos dois lados do que ele chamou de "duas culturas". Referia-se a essa distinção tola que se faz sobre alguém ser de exatas ou de humanas. Como se houvesse naturalidade na oposição dessas duas formas de pensar. A palestra que originou o livro era uma reflexão sobre como essa divisão ganhava forma, ou seja, nem sempre foi assim, tornando- se uma tragédia para o conhecimento e um empobrecimento dos dois campos.

Segundo ele, criaram-se duas tribos rivais que pouco conversam e produzem mais atritos do que pontes. O mundo é um só. Nós, para facilitar o entendimento, o fatiamos com divisões arbitrárias. O equívoco é supor que as divisões acadêmicas sejam, por si só, uma verdade, e não a história das investigações que cercaram determinado objeto.

Voltando ao ponto, por que não temos novos Leonardos da Vinci? Uma das razões é essa tosca maneira de encarar o saber, que está no fundo da nossa maneira de pensar. Produzimos intelectuais amputados pela insistência na monomania temática.

Um exemplo, se uma criança mostrar aptidão para matemática, vamos enchê-la de mais matemática e esperar desempenhos brilhantes apenas nisso. Quando o ideal seria desafiá-la naquilo que ela ainda não tem. E nem digo da obviedade de acrescentar conteúdos de humanidades, acredito que ela deva praticar esporte, dançar, tocar um instrumento. Existe uma inteligência corporal motora e sensorial a ser desenvolvida, que tem reflexos na inteligência final do sujeito. O cérebro também é um só, e se nutre das várias experiências às quais foi submetido. A educação integrada o fará melhor matemático.

Não produzimos mais gênios porque treinamos sujeitos unidimensionais, fadados apenas a uma via do saber, como se fosse o melhor destino de sua aptidão, privando-o de unir os pontos desconexos da totalidade. Esse pensador monotemático não experimentará a humildade ao se defrontar com a dificuldade dos campos que não domina. Nesse caso, o dom recebido, ao invés de florescer numa personalidade complexa, pela hipertrofia, estreitará seu horizonte. Confundimos obsessões com genialidade.

Nossos heróis do Renascimento, como Leonardo, não faziam fronteiras, nem diferença de valor, entre a arte e a ciência. Exatamente por isso foram o que foram.

MÁRIO CORSO

sábado, 20 de abril de 2019


20 DE ABRIL DE 2019
LYA LUFT

Névoas

Uma dessas manhãs de que, talvez bizarramente, eu gosto: chegar à janela e não encontrar o mundo. Em lugar do parque com seus mil tons de verde e manchas de árvores floridas, apenas esse tule estendido, vagamente ondulante, com poucas sombras de um cinza muito claro. Só junto das janelas, o vulto escuro e recortado de duas árvores.

Roubaram o mundo também? Quase sarcástica, penso: "Que alívio".

Nada mais de inocentes mulheres, homens, crianças, bebês, esmagados por pequenos edifícios ilegais construídos por criminosos: todos sabiam que eram ilegais e sem a menor garantia - e ninguém fez nada, e muitos compraram sua própria morte porque aflitos e desamparados buscadores de um lar, uma felicidade.

Nada mais de centenas de vidas perdidas em rompimento de barragens negligenciadas ou deslizamentos de encostas onde ninguém poderia construir. Nada mais das loucuras ou cretinices de líderes por este planeta, nem uma venerada catedral quase milenar incendiada com a destruição de estruturas e imagens sem preço.

Nem rumores de que se pretende reconstruir em pouco tempo isso que foi perdido e deixou o mundo tão menor e mais pobre... com a bizarra afirmação de que agora a catedral "ficará muito mais bonita".

Nada vai ser mais precioso do que as pedras, as traves de mil carvalhos e entalhes de artistas e artesãos medievais cujos suor e sangue e lágrimas, junto com a genialidade de arquitetos, planejaram e criaram aquela e outras maravilhas.

O perigo de termos uma Notre-Dame com trejeitos moderninhos quase me roubou o sono das últimas noites, mas agora o lago de tule me conforta um pouco: oblivion.

Por outro lado, sei que as coisas lindas continuam, as amizades raras e firmes, os amores ternos nas famílias apesar das brigas naturais; a delícia do bebê que tenta abrir a pálpebra da mãe que finge dormir, "olha pra mim, não dorme mais!". O passo reconfortante no corredor; a Lua, as nuvens com seus contornos, as árvores com seus segredos, a chuva com seus murmúrios... e as artes, e os sentimentos, as dores e alegrias... e a eterna Senhora Esperança.

Enquanto em um brevíssimo momento penso em todas essas coisas, o coração vai se aquecendo devagar assim como essa lagoa de névoa se dispersa: o que é belo e bom e essencial ainda perdura como o sol que de repente inaugura os incríveis tons de rosa e lilás das paineiras logo ali, que parecem me chamar: estamos aqui, amiga.

LYA LUFT

20 DE ABRIL DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Do ataque de nervos ao ataque de risos

Um ano atrás, assisti à grande Juliette Binoche no filme Deixe a Luz do Sol Entrar, cujo tema é o amor na maturidade. Uma decepção. A personagem, na faixa dos 50 anos, é obcecada pelo amor romântico, como se nada mais na vida importasse: nem a filha, nem os amigos, nem a carreira. Infantilizada, chora baldes porque seus encontros não prosperam. Lá pelo fim do filme, Gerard Depardieu, sempre uma presença magnética, faz uma participação especial e dá um toque pra madame: o amor é a coisa mais importante da vida, mas, durante as entressafras, a solidão pode ser solar também. Descoberta que já não merece um "extra! extra!", vai dizer.

Agora estive no cinema para assistir à Gloria Bell, com temática semelhante, porém mais realista do que o filme francês: a espetacular Julianne Moore interpreta uma mulher divorciada, filhos criados e distantes, com amigos ocasionais e que vive às turras com um gato que invade sua casa, mas que ela não quer como companhia: prefere sair pra dançar e ver o que a vida oferece. Às vezes volta sozinha pra casa, às vezes passa a noite fora com um desconhecido, até que surge um cara em quem, tudo indica, vale a pena apostar. E a coisa não sai como o planejado, claro. A questão é até quando isso será tratado como o fim do mundo.

Queremos amar e ser amados. Aos 18, aos 38, aos 58 anos e mais. Encontrar alguém não é difícil, fazer a coisa funcionar é que é. Quando jovens, queremos que nossas ilusões fechem com as ilusões do outro. Se não fecham, dói. Já na maturidade, são nossas desilusões que precisam fechar com as desilusões do outro - parece-me um ponto de vista mais divertido para construir alguma coisa.

O que me incomoda em alguns filmes que tratam sobre o amor na maturidade é que há uma insistente inclinação para o drama, como se todo adulto fosse um carente patológico que não consegue conviver consigo mesmo. O amor, nesta etapa, deveria ser encarado como uma sorte, um presente, não como uma corda a ser agarrada. 

Não faz sentido agirmos feito crianças indefesas lutando contra amores imperfeitos. A esta altura, deveríamos estar acostumados com as imperfeições. Já tivemos filhos e sabemos que eles não vêm embalados em papel celofane, já desencanamos do "pra sempre", já entendemos que não existe gênio da lâmpada e desejos atendidos, então o que nos resta é se relacionar com leveza, com humor e sem tanto idealismo. 

O bom da maturidade é que ela nos torna mais tolerantes com aquilo que é frustrante, chato, incompleto, mantendo nosso foco na parte bacana da história. Óbvio que sofremos por amor em qualquer idade, mas a passagem do tempo nos refina. Então, no cinema como na vida: menos neura, mais ventura.

MARTHA MEDEIROS


20 DE ABRIL DE 2019
CARPINEJAR

Banalização da troca de presente

Há uma epidemia da troca de presente. Você dá um presente para alguém e ele resolve usar o valor para um novo produto. Na maior desinibição. Na maior cara-de-pau. Antes a troca de presente era em último caso, situação derradeira, quando o regalo tinha um defeito de fabricação ou não servia de jeito nenhum, nem com a ajuda de terceiros. No máximo do descontentamento, passava-se adiante o mimo.

Agora não, qualquer um troca organicamente, para conferir na loja se não tinha algo melhor. De repente, até gostou do que recebeu, mas imagina que pode se surpreender com o estoque e descobrir um item ainda mais adorável. O presente virou um vale-presente. Virou dinheiro. A etiqueta da troca é só moeda, desprovida de valor sentimental.

Estamos jogando fora o carinho junto com a embalagem: o sentido de reconhecimento, de pertencimento, de gratidão a um amigo ou namorado ou familiar que dedicou horas de seu dia escolhendo uma lembrança.

Não valorizamos nem o tempo gasto de quem comprou o presente, há um materialismo vaidoso de não admitir qualquer objeto diferente ou estranho de nossos hábitos.

Assim como não tiramos mais fotos, mas selfies, apenas nos enxergando em primeiro plano, também não aceitamos mais nenhuma surpresa. Tudo o que temos precisa vir de nossas próprias mãos e de nossas predileções.

O presente é hoje um autopresente. Reforça-se em adquirir o mesmo do guarda-roupa, o mesmo da estante, o mesmo de sempre. Toda extravagância é abolida. Emprega o que se ganhou como entrada para aquilo que se deseja. Tanto faz a ternura simbólica de uma encomenda ou o texto do cartão explicando a escolha - são irrelevantes perto do consumismo desenfreado, de alcançar incessantemente os próprios prazeres.

A banalização da troca de presente não corresponde a uma maior personalidade do consumidor, que não fica com aquilo que tem dúvida, porém é uma manifestação clara de egoísmo e de falta de solidariedade. Imagine o caos que seria no mar se Nossa Senhora dos Navegantes devolvesse as oferendas de seus fiéis quando não fossem, exclusivamente, rosas vermelhas.

Vem ocorrendo uma distorção do significado da homenagem. Presente não é dar o que o outro gosta - porque ele pode comprar sozinho a qualquer momento -, é dar o que você gosta para o outro, é dar-se para o outro, é entregar parte de sua vida para ampliar a vida do outro.

CARPINEJAR

20 DE ABRIL DE 2019
PIANGERS

Valores

Me perguntaram esses dias: "Quais os valores que você quer passar para suas filhas?". Veja bem, querer é uma coisa, conseguir é outra. Quero que tenham paciência, mas eu mesmo falho quando grito pela décima vez para que entrem no banho. Quero que sejam educadas, mas não como eu sou com quem corta a minha frente no trânsito. Quero que aprendam o valor da vida em família, mas estou aqui escrevendo este texto enquanto elas jantam juntas na cozinha.

Quero que digam "com licença, por favor e obrigado", mesmo que eu não diga, às vezes. Quero que entendam o valor das coisas que não podem ser contadas. As melhores coisas da vida não podem ser colocadas em números. Carinho, amor, felicidade, gratidão. Que não devem consumir indiscriminadamente. Que só comprem aquilo que precisam - ou que estejam loucas de vontade, especialmente se for um sorvete.

Que não comparem suas vidas com a vida de outras pessoas. Cada um tem seus problemas e suas sortes. Agradecer pelo que temos, sem desejar aquilo que não temos. Felicidade é desejar aquilo que a gente já tem. Acredito nisso e, quem sabe, seja o valor que estou passando para as meninas. Quando perguntamos para a mais nova o que queria de Natal, ela disse: "Tanto faz! Eu gosto de tudo!". O maior luxo da mais velha é passar aniversários assistindo a filmes no cinema, comendo pipocas e tomando suco.

Talvez a leitura seja um valor. Desde pequenas lemos juntos histórias de ninar, livros infantis, gibis da Turma da Mônica. A mais velha está lendo a série napolitana da Elena Ferrante. Sempre dissemos que só há um presente que pode ser pedido fora de datas comemorativas: livros. E as duas leem. E acredito que é um grande valor.

Além disso, o que estou passando? Humildade, talvez. Minhas filhas se vestem com roupas de brechó, usam uniformes escolares de segunda (ou terceira!) mão, nosso apartamento não tem elevador nem salão de festas. Elas gostariam de uma vida mais confortável, presumo. Por vezes me pergunto se estariam mais felizes em uma mansão. Mas na única vez que dormimos em uma mansão e podíamos escolher qualquer um dos oito quartos, acabamos dormindo todos amontoados no mesmo colchão.

Os valores que estou passando para minhas filhas são aqueles que elas acenderam dentro mim. No fundo, a chegada delas despertou em mim meus valores, minha melhor parte. E, quem sabe um dia, o trabalho delas comigo esteja completo.

PIANGERS


20 DE ABRIL DE 2019
PAULO GERMANO

A BELEZA DE FALAR MAL DOS OUTROS

É bom falar mal dos outros. Vamos ser francos, sem rodeios: uma das melhores coisas da vida é esculhambar alguém mas só pelas costas, que na frente é grosseria. A fofoca aproxima as pessoas, cria uma aliança entre elas, estabelece cumplicidade, emula o Bem contra o Mal.

O psicanalista Mário Corso diz que é um elogio às avessas: ao falar mal de outra pessoa, os fofoqueiros se presumem superiores - moralmente, intelectualmente ou esteticamente, não importa, o fofoqueiro é sempre melhor. Não há quem não goste de se sentir melhor, então não há quem não goste de fofocar.

Uma pesquisa de 2012, das universidades do Texas e de Oklahoma, mostrou que falar mal dos outros é a melhor forma de fazer amigos. Quer conquistar alguém? Pense primeiro em outro alguém que aquela pessoa deve odiar. Então basta falar mal desse outro alguém e, em minutos, vocês estarão sorrindo e sentindo aquela vibrante identificação que só uma fofocaiada é capaz de oferecer.

- Não é que a gente goste de detestar as pessoas - ponderou a psicóloga Jennifer Bosson, uma das autoras da pesquisa. - A gente gosta é de conhecer pessoas que detestam as mesmas pessoas.

Enfim, é bom falar mal dos outros. O problema é que é errado. "Não faças a ninguém o que não queres que te façam", diz uma passagem do Antigo Testamento, uma das grandes referências éticas do Ocidente. De fato, quem gostaria de ser malfalado? Aliás, será que todo esse veneno, esse cinismo, essa maldade fofoqueira poderia, de alguma forma, voltar-se contra nós?

O meu tio Cleo diz que sim.

O tio Cleo é a única pessoa que conheço que jamais, sob hipótese alguma, fala mal de outra pessoa. É incrível: estamos todos difamando algum desgraçado, todos animados por dividir o mesmo rancor, aí o tio Cleo solta aquele sorriso doce, não repreende ninguém, apenas se levanta discretamente, sempre sorrindo e sempre tranquilo, então se afasta devagarinho e nos deixa lá, bufando feito animais involuídos que somos.

Como pode? É que ele segue os ensinamentos do seicho-no-ie, uma filosofia japonesa que prega o seguinte: o que você planta, você colhe. Quer dizer: se por meio de pensamentos, sentimentos, atos e palavras você plantar o mal, prepare-se porque o Mal virá. Se plantar o bem, parabéns porque o Bem virá. Portanto, falar mal de alguém, segundo o meu tio Cleo, envolve uma série de vibrações negativas, o que atrairia assim situações negativas.

Não sei se concordo, não sei se acredito nesse equilíbrio cósmico. Mas é fato que falar mal de alguém expressa o quanto podemos estar mal. Por exemplo:

- Como é burro esse nosso chefe! É um burro, um idiota, um incompetente!

Bem, se ele é burro mas é o chefe, e você é genial mas é chefiado por ele, quem está na pior? O fofoqueiro, quando fofoca, revela muito mais sobre si próprio do que sobre seu alvo. Todo homem que chama de abobado o namorado de uma linda mulher queria ser esse abobado. E imagino que toda mulher que chama outra de vadia talvez sonhe com sua liberdade.

É feio falar mal dos outros. Mas, vamos combinar: poucas coisas são tão maravilhosas.

PAULO GERMANO



20 DE ABRIL DE 2019
LEANDRO KARNAL

A VIRTUDE DO SILÊNCIO

AS OCASIÕES SOCIAIS ENSINAM, INTRODUZEM NOVAS PESSOAS E DESAFIAM NO SENTIDO POSITIVO. ACHO QUE, COM O TEMPO E A PERSONALIDADE, TENDEMOS A QUERER UM POUCO MAIS DE ISOLAMENTO.

Benjamin Moser cita (faço sem consultar o texto lido há alguns anos) que Clarice Lispector foi convidada para um jantar com um conhecido. O anfitrião, desconhecendo a pouca afeição da autora à sociabilidade, convidou outro casal. Na saída, irritada, a mais brasileira das ucranianas disse que não sabia que haveria muita gente à mesa. O episódio aqui mal citado de memória remete ao conto O Jantar, da mesma Lispector, traz o trivial relido sob a subjetividade de um observador. Aparentemente, o conto parece indicar uma pessoa, Clarice, mais feliz em observar alguém jantando do que em participar de uma refeição como comensal ativa.

Ela ficava atormentada com a presença de muita gente. Entendo-a. Infelizmente, não posso ter a justificativa dela de ser tão brilhante na percepção do indizível que a algaravia externa atrapalhe. Uma mulher genial como Clarice pode dizer: "Não fiquem conversando comigo, pois estou criando A Paixão Segundo GH". O mundo se calaria com respeito similar aos milaneses que, diante do prédio onde o compositor Verdi convalescia, colocaram feno nas ruas para que carruagens e cavalos não perturbassem a enfermidade grave do criador de melodias da Traviata. Para Clarice e Verdi, teríamos o obséquio da mudez.

Gênios podem ser chatos, misantropos isolados para que saia a obra definitiva e impactante. Nós? Seremos apenas chatos ao querer silêncio ou isolamento.

O mundo oferece sístoles e diástoles sociais, como um coração. Expande-se ou contrai-se o órgão, cumprindo suas funções vitais. A função pública, a vida em meio a grupos, palestras e aulas e todo o processo expansivo, faz parte de algo natural e até desejável. As ocasiões sociais ensinam, introduzem novas pessoas e desafiam no sentido positivo. Acho que, com o tempo e a personalidade, tendemos a querer um pouco mais de isolamento.

Li que os finlandeses valorizam muito o silêncio, que só deveria ser quebrado em um transporte público tendo em vista mal iminente. A notícia me faz desejar Helsinque como alguns anelam Paris. Imagino um ônibus onde eu esteja imerso em um livro e ninguém jamais tenha a ideia de perguntar se o livro é bom. Essa questão, para mim, é similar a interromper um casal no meio de uma relação erótica e pedir aos envolvidos uma avaliação minuciosa do momento e se recomendam alguma carícia em particular.

Sou colocado em uma sala esperando uma palestra ou outro evento. De repente chega alguém, compadecido da minha solidão, e decide que seria gentil ficar comigo conversando. Sou bom em conversa rápida com pessoas desconhecidas. É um treino de anos. Etimologia do nome da pessoa, dados familiares, pequenas questões sobre algum símbolo ou joia que o interlocutor esteja usando, comentários interessantes para preencher o silêncio e o vazio. A questão é que o vazio não precisa ser preenchido porque ele não é ruim. O silêncio externo aguça o interno. Tenho saudade dos Exercícios de Santo Inácio de Loyola, um mês de retiro em quase total silêncio. A ordem religiosa dos trapistas e seus prolongados períodos de silêncio também me animam muito. Li o grande trapista Thomas Merton prestando atenção se a sabedoria dele era fruto do que ouvira ou do que calara.

Sim, querida leitora e estimado leitor: gosto de companhia e de conversas. Tal como Harold Bloom, confesso que é difícil a competição entre o mundo descrito nos livros e as conversas em geral.

O coração funciona entre aberturas e fechamentos. Retraindo e expandindo, ele cumpre sua missão. Surgiu uma categoria nova de silêncio: o dos celulares. Nada falo, mas fico digitando e tagarelando pelos dedos. Pior, preguiçosos em geral adoram gravar mensagens de voz, algo que abomino profundamente. Alguém pode ser um gênio e dizer que não deseja muitos convidados. É o silêncio brilhante da Clarice. Alguém pode transmutar-se em místico denso e fascinante como um trapista. É o silêncio de Merton. Por fim, alguém pode dizer a um político desagradável ¿Por qué no te callas?. É a vontade de silêncio real de Juan Carlos. Gênios, santos e reis podem adotar ou impor o silêncio. Nós, mortais atarefados ou entediados, temos de falar e de ouvir sempre. Nosso laconismo não é adornado pelo QI extraordinário, pela coroa da glória celeste ou pelo diadema real das Espanhas. Porém, caberia aqui o desejo utópico de um botão on e off sobre o barulho circunstante? Não apenas conversas, mas gente vendo vídeos sem fone de ouvido no avião, pessoas narrando seu cotidiano de um desesperador tom sépia e, por fim, sibilar de vozes gravando ou ouvindo longuíssimos trechos narrados ao celular...

O mundo é um lugar barulhento. Dizem que os anjos cantam hosanas sem cessar no céu. O inferno, afirma-se, tem o som forte de choro e ranger de dentes. Haveria um espaço sem barulho algum? Teremos de buscar na Finlândia esse paraíso terreal repleto da paz imperativa do silêncio? Ruas sem buzinas, salas sem celulares, aeroportos sem avisos e o débil som das folhas do outono caindo, farfalhando, tênues e poéticas. O que será que ouviríamos se não fôssemos todos algozes do frágil silêncio? É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL